Eu nasci como Saulo Cesar da Silva e quando em casei, passei a usar o Paulino como sobrenome também, então, hoje eu me identifico como Saulo Cesar Paulino e Silva. Eu nasci no antigo Estado da Guanabara, que hoje já não mais existe, chamado hoje Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1962. Vim para São Paulo com seis meses de vida.
A origem materna, realmente, eu não tenho como trazer alguma informação, pelo fato de minha mãe ser órfã, sendo que foi criada por uma família fora, que não pertencia a sua família de origem e eu próprio, não os conheci. Então, fica um vazio, fica um vácuo na parte materna. Na parte paterna, tem a minha avó nascida no Rio de Janeiro, ainda no século 19 e o meu avô também nascido no século 19. Eu posso falar da peculiaridade de ter casado?
P/1 – Claro, sem dúvida.
R – Uma das histórias, essas histórias orais que vão passando de geração para geração é que a minha avó, ela foi deserdada dos seus bens por ter se casado com uma pessoa de origem africana. E eu acho que isso é uma marca que a gente traz até os dias de hoje, né, essa rejeição.
P/1 – Conta um pouquinho mais sobre os dois, né, que eu acho que você conseguiu descobrir bastante sobre a história deles, que eu acho que conta muito da origem do seu pai e depois da construção da sua família.
R – Bom, a origem… nos anos 80, aproximadamente, eu me envolvi na busca da identidade pessoal, né, e resolvi sair a campo pra construção de uma árvore genealógica e no momento em que nós não tínhamos a possibilidade tecnológica de internet, era tudo muito manual, tudo muito analógico, eu me defino hoje como uma pessoa analógica que vice no mundo digital, então a gente vaio se adaptando. Mas essa minha pesquisa, ela foi feita no núcleo de uma igreja mórmon na Penha de França, aqui na zona leste, que guarda os registros de todos os cartórios e batistérios da igreja católica por ser da filosofia dos...
Continuar leituraEu nasci como Saulo Cesar da Silva e quando em casei, passei a usar o Paulino como sobrenome também, então, hoje eu me identifico como Saulo Cesar Paulino e Silva. Eu nasci no antigo Estado da Guanabara, que hoje já não mais existe, chamado hoje Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1962. Vim para São Paulo com seis meses de vida.
A origem materna, realmente, eu não tenho como trazer alguma informação, pelo fato de minha mãe ser órfã, sendo que foi criada por uma família fora, que não pertencia a sua família de origem e eu próprio, não os conheci. Então, fica um vazio, fica um vácuo na parte materna. Na parte paterna, tem a minha avó nascida no Rio de Janeiro, ainda no século 19 e o meu avô também nascido no século 19. Eu posso falar da peculiaridade de ter casado?
P/1 – Claro, sem dúvida.
R – Uma das histórias, essas histórias orais que vão passando de geração para geração é que a minha avó, ela foi deserdada dos seus bens por ter se casado com uma pessoa de origem africana. E eu acho que isso é uma marca que a gente traz até os dias de hoje, né, essa rejeição.
P/1 – Conta um pouquinho mais sobre os dois, né, que eu acho que você conseguiu descobrir bastante sobre a história deles, que eu acho que conta muito da origem do seu pai e depois da construção da sua família.
R – Bom, a origem… nos anos 80, aproximadamente, eu me envolvi na busca da identidade pessoal, né, e resolvi sair a campo pra construção de uma árvore genealógica e no momento em que nós não tínhamos a possibilidade tecnológica de internet, era tudo muito manual, tudo muito analógico, eu me defino hoje como uma pessoa analógica que vice no mundo digital, então a gente vaio se adaptando. Mas essa minha pesquisa, ela foi feita no núcleo de uma igreja mórmon na Penha de França, aqui na zona leste, que guarda os registros de todos os cartórios e batistérios da igreja católica por ser da filosofia dos mórmons, o batizado dos mortos. Então, eles resgatam, eles têm tudo microfilmado e tal e eu consegui chegar a algumas informações. Nessas informações, eu tive contato com outras pessoas e me chegou a informação de que esse meu avô era comerciante na região de Campo Grande, subúrbio da capital do Rio de Janeiro e que uma localidade, ali hoje, dá o nome a ele, uma referência a ele, né? Minha avó teve dez filhos, o meu pai é o mais velho desses filhos, eram dois homens e oito mulheres e ele foi, vamos dizer assim, o baluarte de sustentação de sobrevivência dessa família durante muitos anos. Era uma pessoa que trabalhava no braçal até a idade da juventude quando passou a trabalhar no Banco do Brasil que deu uma outra estabilidade, deu um outro tipo de vida pra ele, né? E o interessante nessa história é que até a juventude, meu pai… já posso entrar nessa história do pai, tudo bem?
P/1 – Sim, claro.
R – Ele era uma pessoa muito de bem com a vida, muito farrista, sambista de primeira linha, tal, e quando ele entra no Banco do Brasil e casa, etc., ele se converte ao Protestantismo e se torna uma pessoa muito radical em relação às coisas que não estivessem afinadas com a religião protestante. E uma das marcas desse radicalismo foi justamente a saída do Rio de Janeiro, justamente, onde ele tinha todo um passado, vamos dizer assim, – entre aspas – comprometido com o samba e com a vida boemia e aí, veio para São Paulo e passa a viver aqui uma outra vida, né? E fomos criados com muito rigor evangélico. Isso também foi uma marca bastante acentuada.
P/2 – Você sabe alguma história desse passado do seu pai?
R – Eu sei assim, de trechos de boemia, de que era uma pessoa que saía à noite, ia tocar à noite, ia tocar à noite. No carnaval, ele era uma pessoa muito ativa, mas assim, é meio tabu falar dessa parte da vida, porque as pessoas, os tios, as tias, principalmente, evitavam. Por ser o mais velho, uma espécie, meio que uma hierarquia, sabe? Então, se preservava essa imagem dele.
P/2 – E você sabe como que os seus pais se conheceram?
R – Então, Felipe, essa é uma questão que eu não tenho essa informação. Eu, particularmente, acredito que tenha sido em ambiente de igreja, porque a minha mãe vem também… foi adotada por uma família protestante, né?
P/1 – Sobre a sua mãe, você conseguiria descrever ela nesse principio de família, de vida, como ela era?
R – Olha, uma pessoa que sempre evitou falar muito, Marcos, do passado. Uma pessoa que sempre… eu, particularmente, acho que foi um momento muito traumático da vida da minha mãe. Então, ela contava algumas coisas, né, por exemplo, uma das passagens traumáticas foi até uma tentativa de abuso naquela época, não sei por quem, ela nunca falou e ela dizia que nessa casa onde ela foi criada, ela era tratada como empregada, ela não era tratada como membro da família, né? Tanto é que ela nunca fez questão que nós os visitássemos, ou os conhecêssemos. Eu conheci, eu estive uma vez na casa desse pessoal, mas eu a chamava de tia Silvia, até, mas eu não tenho, assim, afetivamente, nenhum laco de proximidade com essas pessoas.
P/1 – Seus pais se conheceram no rio e vieram para São Paulo? Como foi essa…
R – Houve um rompimento do passado para uma nova vida e uma coisa interessante que eu vim saber, posteriormente, já adulto é que um dos motivos desse rompimento foi um relacionamento fora do casamento, com uma outra irmã que depois, eu vim saber que era minha meia-irmã, entendeu? E isso sempre foi ocultado, nunca houve uma conversa aberta, né? Então, acredito eu que aquela imagem de um cara severo, moralista, poderia ser desmanchada se viesse à tona que eu tinha uma irmã fora do casamento oficial, né?
P/1 – Sobre o seu pai, ele tem essa fase da juventude e possivelmente, ele muda por causa da região, mas você comentou também que foi por causa do trabalho, né, isso é um outro marco na mudança da vida dele, acho que até pela mudança para São Paulo. Como que essa história se constrói?
R – A memória traz algumas informações. Essa vinda para São Paulo, ela se dá no momento em que ele se converte ao protestantismo, porque a minha família de origem é de umbandistas, então, ele vai para o lado oposto, né, e eu penso que ele tenha vindo para cá como uma forma de reconstruir uma vida para apagar uma outra, apagar um passado. E que muitos anos depois, vem também, corroborar com isso, essa história de que ele tinha uma filha fora do casamento, uma outra relação, né? Eu acho que aqui, ele foi uma pessoa muito acessível, embora fosse uma pessoa durona em termos de moralidade, etc., mas era uma pessoa boa de coração.
P/1 – E na história ainda dele, ele por ser o filho mais velho, de dez irmãos, ele cuidou d família trabalhando e depois, ele mudou de profissão, né? Como que é essa transformação assim?
R – O Banco do Brasil naquela época era meio que um emprego de elite, então na verdade, ele foi colocado nessa nova função por uma pessoa da família, um tio casado com uma tia minha colocou ele. Então, ele entra naquelas funções mais básicas, foi continuo, foi vigilante do banco e depois teve uma certa ascensão dentro do patamar de estudos que ele tinha. Eu acho que ele teve uma ascensão interessante lá no Banco. E a partir daí, ele passa a ter uma casa própria, ele começa… ele sai de uma situação muito simples para uma estabilidade melhor, entendeu?
P/1 – Isso em São Paulo?
R – Isso já em São Paulo.
P/1 – Ainda como núcleo familiar, como que são os costumes da sua família? Você tem outros irmãos?
R – Eu tenho uma irmã e tenho um irmão que também seguem a linha protestante. E quando eu decidi assumir a minha vida de casado, etc., houve um afastamento muito grande, então o meu relacionamento com os meus parentes de casa, de origem, hoje são muito distantes, nós não temos, assim, muita afinidade embora eu os veja de vez em quando e tal, mas o diálogo deixou de se estabelecer. Eu acho que isso é uma perda muito grande, sabe?
P/1 – Mas quando criança assim, como que você se recorda desse período com os seus pais, irmãos, a localidade onde vocês moravam?
R – Quando nós chegamos em São Paulo, nós viemos morar na zona leste, que era um lugar muito afastado daqui de São Paulo, na época. Moramos um tempo nesse lugar, até mais ou menos uns seis anos, aí fomos morar na zona norte, porque havia um programa do governo para construção de… como se fosse um CDHU para bancários, hoje chamado conjunto dos bancários que fica no Mandaqui, perto do Horto Florestal. Nós mudamos para lá, o meu pai adquiriu através do Banco um imóvel razoável lá e fomos viver lá, até mais ou menos, uns 12 anos, quando ele vende esse apartamento e nós retornamos para a zona leste, onde eu fiquei até assumir a minha vida, a minha estrada, o meu caminho, né? E em casa, o que eu me recordo, Marcos, assim, meu pai sempre foi uma pessoa muito… é o patriarca, ele é o provedor, né, então a palavra dele é a que era… mas por outro lado, também foi com ele que eu aprendi a tocar um instrumento, aprendi a escrever, a ler, me interessar por Literatura foi com ele. Então, ele era uma pessoa meio rustica de um lado e de outro lado, ele tinha uma certa lapidação, então foi uma pessoa que marcou muito a minha formação.
P/1 – E essa infância que veio da zona leste, o quê que você fazia? Como era a vida? Seus irmãos são mais velhos?
R – São mais velhos. Eu sou o mais novo de três oficiais, né? Meu irmão é um ano mais velho do que eu e a minha irmã, cinco anos mais velha.
P/1 – E você lembra da casa? Como que era a casa?
R – Essa casa que nós vemos morar, a primeira vez, logo que chegamos do Rio de Janeiro era uma casa que lembrava muito a casa da minha vó, aquele estilo de casa meio de interior, assim, não guardo muitas recordações, mas era uma casa com quintal, andar de pé no chão, bicicleta, essas coisas de criança, mesmo. Aí, quando nós mudamos lá para a zona norte, aí, eu virei meio que menino de apartamento, soltava pipa no ventilador, essas coisas que a molecada… não tinha contato com a rua, quase. Aí, quando a gente retorna para a zona leste mais uma vez, aí, o menino de rua volta, então aí, eu saio, vou soltar pipa, jogar pião, essas coisas da época, não se tinha toda essa tecnologia, então, criança tinha mais contato com essas coisas lúdicas, esses brinquedos e tal.
P/1 – Tem dessa época, brincadeiras favoritas, amigos?
R – Se eu falar aqui vão me incriminar, mas eu adorava fazer balão, cara. Fazer balão e soltar… falta de consciência, né, mas para mim era um grande divertimento fazer o balão, soltar, ver subir. A gente jogava muito pião, jogava botão, time de botão era muito…
P/1 – O balão era escondido dos pais?
R – O balão era geralmente na casa de um amigo que a gente fazia. Em casa fazia, mas minha mãe também nunca foi uma pessoa muito esclarecida nesse ponto, principalmente naquela época, né? Eu me defino, eu e pessoas da minha faixa etária, como pessoas da geração do medo, porque nós fomos criados soba ditadura, então era… eu escutava cochichos em casa: “Olha, fulano foi morto, foi encontrado com as mãos amarradas, com tiro”, mas tudo cochichado, dentro de casa, as pessoas falavam com medo. E quando nós íamos a igreja, porque era assim, o terror era levantar às seis horas da manhã pra sair da xona leste para vir aqui para a zona norte na igreja, cara, era uma coisa pra mim, traumática. E o trajeto que nós fazíamos, nós passávamos em frente do antigo DOPS e era um lugar sinistro, ali na Estação da Luz, você sabe, onde funciona a Pinacoteca, nós passávamos ali, toda aquela frente, aquela rua em frente a Pinacoteca era tudo cercado por cordas, era todo isolado e tinha uns caminhões, tipo tanque de guerra que eles chamavam de brucutu que era para jogar água nas pessoas em manifestações. Então, era cercado de cordas e com aqueles carros cinzas. Então, era um lugar assim, muito estranho, parece que você entrava num outro mundo quando passava em frente aquele lugar. Então, essa fase da infância para mim… eu acho que eu já tinha uma certa resistência à imposição religiosa de você ter que seguir aquela cartilha, que se você não segue aquela cartilha, você não é aceito no grupo, isso traz uma série de questões.
P/1 – Essa infância, você já sentia essa repressão tanto do ambiente externo, ditadura, quanto o interno, família, religião?
R – Sim. Tinha… a ditadura era uma percepção mesmo, uma percepção de olhar, de saber que tinha alguma coisa errada, né? E em casa, a repressão por uma imposição de um modo de vida que tinha que ser seguido à risca, senão, você tinha sanções.
P/1 – Você se recorda os momentos em que você começou a perceber isso, assim, que a religião era algo que trazia uma repreensão mais do que uma questão espiritual?
R – Tem uma passagem que me marcou bastante, que foi assim, eu e o meu irmão, nós éramos muito amigos nessa época e você não tinha revista pornográfica assim, não funcionava assim, então, você usava muito a imaginação, então, a gente tava desenhando como que a gente achava que era o corpo de uma mulher pelada. Meu pai pegou a gente fazendo esse tipo de desenho e desceu o cacete na gente, sabe? E o sexo sempre foi muito difícil em casa, se falar sobre isso, não é? Se assumir a sexualidade, sempre foi muito difícil, nunca teve abertura para esse tipo de conversa. Então, eu não sabia porque eu tava apanhando, o quê que tinha demais desenhar uma mulher pelada, como eu achava que era a transa de um homem com uma mulher em um desenho, né? não lembro como era o desenho, mas provavelmente, não era como… não tinha acesso a essa informação. E você apanhar por algo que você não sabe porque tá apanhando é muito estranho.
P/1 – E os amigos, como que era? Ainda tem uns que carrega até hoje? Como que era essa convivência com a amizade? A gente tá falando em qual período ainda? Antes dos dez anos ou na adolescência?
R – A minha referência de vida até mais ou menos os 12 anos foi em igreja. Igreja batista tradicional. Então, as pessoas que eu mantenho relação que eram desse período, elas também saíram da igreja, porque os que permaneceram houve um rompimento porque não há interação, não sei se você é filho de evangélica ou colega, mas no meu conceito, o evangélico… o protestante em si, ele é muito fechado no grupo e se você não segue as normas daquele grupo, você tá fora. O próprio rapaz que me indicou aqui o Museu da Pessoa, ele era da mesma igreja que eu e também saiu e nós fomos taxados de perdidos, estão no mundo e Jesus precisa salvar, essas coisas, né?
P/1 – Ainda na sua infância, você comentou que o seu pai tinha esse lado da Arte, né, da música, da literatura… tem algo que marcou muito você, que te fez ser um leitor ou que te fez ser um consumidor da música, por exemplo?
R – Falando da música, meu pai tocava harmônica, né, o que a gente chama de acordeom e a minha mãe cantava no coro, minha irmã também, então a música esteve sempre presente. A maneira como ele tocava me chamava muito atenção, me fascinava, ele ler, porque eu não leio partituras, eu sou um autodidata, mas ele lia partitura, os tempos e tal e aquilo me fascinava, ficava ouvindo ele tocar, cantava também, né? E tinha uma curiosidade também que ele tinha um projetor alemão de Super8 que inclusive, eu doei para o MIS, era muito bacana, então eu doei para o acervo do MIS essa máquina. Ele ia às igrejas passar filmes evangélicos, como no cinema, né, e era um acontecimento, porque tinha que montar o equipamento e as pessoas ficavam em volta, era um meio que Cinema Paradiso, entendeu, chegava lá, o pessoal todo em volta e eu era o filho do cara, né, do cara que ia projetar, então eu me sentia muito importante junto com ele nessas saídas, né? E a literatura, ele comprava muitos livros, tínhamos uma estante com… tinha uma coleção que até hoje eu guardo na memória chamada Tesouro da Juventude. Era uma coleção de 18 volumes que tinham várias coisas, por exemplo, como fazer um submarino, aí lá tinha instrução de como fazer um submarino de brinquedo. Eu lia aquilo lá, queria construir o submarino, lia, ficava em cima, assistia as Fábulas de Esopo, então o contato, essa coleção, em particular, me colocou muito em contato com o mundo da escrita, então para mim foi bastante marcante.
P/2 – O que o seu pai passava nesse Super8?
R – Eram filmes com temática protestante, evangélica, mensagens bíblicas, alguns eu guardo até hoje, “O Milagre dos Peixes”, é uma parábola de Jesus que ele chega na praia e multiplica os pães, então tinha isso em filme, carreteis desse tamanho assim, aquilo pra mim era uma coisa fantástica, era um outro mundo, cara. Por isso que eu quis, eu falei: “Poxa, eu vou acabar perdendo essa máquina”, então para guardar a historia dele, aí eu doei essa máquina e fez parte do acervo do MIS.
P/1 – Você chegou a algum dia passar algum filme escondido? Ou… assim, não tinha como, né?
R – Era difícil, porque era uma máquina antiga com dois… tinha a parte do projetor que pesava sei lá, uns 50 quilos, é pesada, muito pesada e tinha toda aquela… você colocava o carretel, tinha toda uma engrenagem assim, tinha todo um esquema de passar o filme entre a lente e a lâmpada, tinha que passar, depois tinha que ajustar, botar o foco, eu sei que era uma engenharia, tinha uma caixa de som, também. Mas eu cheguei a fazer sim, me aventurei a passar eu mesmo os filmes, em casa, escondido, que era curiosidade de garoto.
P/2 – Você falou que ele te ensinou a tocar também? Como que foi esse momento?
R – Ele nunc ensinou, eu aprendi assim, o convívio com a música, Felipe. Eu acho que o desenvolvimento de um ouvido mais musical, foi com essa… mas ele nunca chegou para mim e falou: “Olha Saulo, para tocar é assim, você pega assim e faz desse jeito”, mas uma das coisas interessante que quando ele morreu, eu falei para a minha mãe: “Mãe, o que eu quero do seu João? Eu quero o acordeom e eu quero os livros. Só. Se quiser vender a casa, não quero nada, eu quero só essas duas…”, porque foram coisas muito marcantes. E o acordeom tá comigo, os livros ainda não, mas o acordeom tá guardadinho lá.
P/1 – Quando você era criança, o que você sonhava em ser? O que chegou a passar na sua… você lembra na sua memória o que você pensava sobre a vida do futuro?
R – Olha, eu acho que hoje eu realizo um pouco o sonho de ser pesquisador, não como eu faço hoje, claro, mas por exemplo, uma coisa muito bacana que a gente fazia lá no conjunto dos bancários, as noites em São Paulo eram bem mais escuras e você via o céu com muito mais nitidez, né, e nós tínhamos uns amigos que nós sentávamos… até eu me lembrei quando eu entrei na salinha da pré-entrevista, que tem uns binóculos, né, que a gente olhava assim… a gente pegava aquilo e ficava olhando o céu e imaginando as estrelas e imaginando a distância de uma para a outra, desenhava os mapas, ali, a gente fazia como se fossemos, estivéssemos estudando o céu, a lua, então tínhamos essa imaginação. Eu acho que eu realizo isso hoje, quando eu faço as pesquisas, eu acho que é uma coisa na origem, aí foi e foi.
P/1 – Tem alguma história da infância ainda que você goste, queira contar desse momento da família ainda quando você era criança, com os irmãos?
R – Olha, eu acho que da família, quando eu era muito criança, eu acho que dada a repressão que a gente sofria, eu não tenho muitas lembranças assim, que me façam voltar naquele momento. Tudo era muito proibido, sabe, tudo era pecado, tudo era proibido, então era tudo muito rígido, então, eu acho que foi um momento muito de aprisionamento da criatividade, da criança, então, começo a me libertar quando começo a sair de casa.
P/1 – E a escola, como foi a sua primeira escola, primeira professora, primeiro dias de aula ou turma, quais são essas lembranças da escola?
R – A escola é um momento marcante porque foi um momento de ruptura, assim, de ficar… eu me lembro até hoje, o primeiro dia, as pessoas em geral, se lembram do primeiro dia de aula, cara. Escola mista do Conjunto Santo Antônio, essa escola funcionava numa garagem quando nós mudamos para o conjunto dos bancários. Se chamava Conjunto Santo Antônio, na época. Chorei muito, porque a minha mãe me levou até a porta dessa escola e falou: “Daqui a pouco, eu venho te pegar”, e o “venho te pegar” foi passando, então venho te pegar, dez minutos, 20, 30 e foi passando, aí eu comecei a chorar, abri o bocão dentro da sala de aula, aí a professora falou: “Por que você tá chorando? O que aconteceu?”, falei: “Minha mãe disse que vinha me pegar, mas me largou aqui, me abandonou”, aí ela me explicou, falou: “Daqui a pouco, ela vem”, tal, foi um momento marcante esse primeiro dia de aula, meio que de abandono, assim, foi uma sensação meio estranha.
P/1 – Como que era essa escola? Garagem escola?
R – Era um prédio que eu me lembre, como se fosse um sobrado, com duas portas, essas portas de bar, né, uma de cada lado e dentro, cada porta era uma sala de aula e ali, funcionava provisoriamente a escola e era uma escola que tinha… eu acho que devia ser um comércio anteriormente que funcionou nessa escola, nós ficamos ali acho que um ano, primeiro, a gente usava calca curta, né, aquele tradicional, a gente usava calca curta, meia 3/4 , uniforme, escola pública tinha uniforme e depois, construíram uma escola municipal que funciona até hoje, ali no conjunto dos bancários, chamada Gastão Montinho, depois nós fomos transferidos dessa escola provisória para essa escola definitiva.
P/1 – Tem alguma professora que marcou?
R – Olha, nesse período, a professora Valeria que recentemente, eu não sei porque cargas d’água, eu achei um cartão ela deixou comigo. Naquela época, ela me deu um cartão, eu não me lembro como foi parar na minha mão. Agora, uma marca que eu trago da… você fala na infância ou já pode ser um pouco mais adiante?
P/1 – Infância, adolescência…
R – Então, na adolescência, na zona leste, eu estudei numa escola pública, sempre escola pública, chamada Jornalista Francisco Mesquita, que posteriormente, passou a se passar Deputado Silva Prado. Deputado que foi imposto na época da ditadura e eu tive um professor, esse professor é o cara que marcou a minha vida, ele chamava-se Ernesto Emboaba. O Professor Ernesto Emboaba dava aula de Língua Portuguesa e o quê que chamava atenção nele? Ele tinha uma sereia na mão esquerda ou direita, não me recordo e uma estrela. Uma época em que tatuagem não era algo que você via nas esquinas, né, as pessoas não se tatuavam, existia um tabu em relação a isso. E o professor Ernesto Emboaba, ele entrava na sala, todo engomadinho, cabelo penteadinho para trás, assim, avental roxo, ele usava avental roxo e falava assim: “Olha pessoal, vou falar uma coisa para vocês, nem tudo que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, aí, ele começava a aula ali, né? Um dia, ele contou que ele era aluno de teatro, ele foi aluno de teatro do Ziembinski, eu nem sabia quem era Ziembinski, não sei se vocês conhecem. Foi um grande diretor de teatro polonês, radicado no Brasil e ele foi aluno desse cara. E ele contou uma história certa feita que me chamou muita atenção e eu relato essa história… durante a minha vida, eu passei a relatar essa história em diferentes momentos. Ele olhou para a classe e falou: “Vocês conhecem o Ernesto? Já ouviram falar de uma música chamada “O Ernesto?”, e ninguém… molecada, ninguém tinha essa informação, ele falou: “Pois é, existe uma música chamada “O Ernesto do Brás”, esse Ernesto do Brás sou eu”, ele contando, né? “Eu sou… na minha infância, eu fui engraxate na região do Brás, ali nas adjacências e uma pessoa chamada Adoniram Barbosa ia lá ilustrar os seus sapatos e eu sempre fazia esse serviço para ele e ele fez essa música em minha homenagem”, isso ele contando, né? E isso ficou marcado na minha vida, uma coisa que eu nunca esqueci, são flashes assim, eu vejo ele, perfeitamente, contando essa história. A influência desse professor na minha vida foi muito positiva, porque ele falava de metáforas: “Hoje nós vamos ter aula de prosopopeia”, então eram palavras que não faziam parte do nosso vocabulário, nem em casa, as pessoas não… e aquilo me fascinava, de onde que vem tanta informação, né? E acabou, acho que, gestando em mim essa vontade de ser professor e particularmente, professor de Línguas, né? Hoje, é a coisa que eu faço com o maior carinho.
P/1 – E ele realmente é o Ernesto?
R – Essa é uma incógnita que já recorri a contemporâneos meus, de época de colégio, que a tecnologia é fantástica por isso, ela nos reaproximou de muitas pessoas. E eu conto essas histórias, as pessoas não me dão o feedback que eu espero. Eu queria saber se esse cara é ou não, porque eu já ouvi outros Ernestos, histórias de outros Ernestos que dariam nome à música, mas para mim, eu não veria motivo dele mentir para uma classe, molecada, por que ele faria isso, né?
P/1 – E você chegou a ir atrás da música para escutar depois?
R – Não fui, porque sinceramente… eu li outros depoimentos… depoimentos de pessoas que fazem referência a uma outra origem do nome Ernesto do Brás. Mas pelo o que ele contava pra gente em sala de aula, a vida dele no Brás, ele contava algumas passagens, dificuldades, faz sentido que o Ernesto seja ele.
P/1 – Eu imagino que o Ernesto, pelas três características que você comentou, né, tinha tatuagem, tinha essa questão de falar dos Estados Unidos, tinha a questão da música, ele devia ser extremamente curioso, interessante, atraente como pessoa, intelectual, com conhecimento, mas ele também trouxe para você, acho que alguns questionamentos sobre a vida, como seria isso? Te abriu algumas portas, porque você vinha de uma família religiosa, de uma igreja para uma escola que tinha um professor que levava vocês a pensar outras coisas, seria isso? Como que é?
R – Eu não cheguei assim, a formalizar uma opinião, mas você falando, é possível que essa forma de ver o mundo que ele nos apresentava tenha despertado esse gosto, porque era fora, inclusive, de outros professores que apenas vinham dar aula. Não, ele vinha dar aula, mas além da aula, ele vinha dar outras coisas, outras informações, despertava a curiosidade. E era um cara seco, rígido, não era um cara assim, que chegava e abraçava o aluno.
P/2 – Quando a gente começou a falar de escola, você colocou como um momento de ruptura. Tem algum momento que você se recorda que você ativou para coisas que você nunca tinha… alguma coisa que realmente foi um momento chave li, que você leu um livro, ou teve uma aula ou observou alguma coisa que você falou: “Poxa, aqui eu mudei”?
R – Isso em algum momento do ensino fundamental, médio, assim?
P/2 – Ao longo dessa vida escolar.
R – Dessa jornada. Felipe, eu acho que no antigo ginásio, no momento em que eu passei a ter contato com outras… eu acho que pessoas que não seguiam a mesma linha de pensamento, a mesma filosofia de vida, né, momento em que eu via os meus amigos começarem a fumar, era cigarro, mas já era uma ruptura, né? Nós saiamos… infelizmente, né, falta de… nós saíamos para vandalizar também, é uma coisa muito… que para mim, era uma grande aventura, mas hoje, eu vejo que sair para quebrar vidro de casa, a gente fazia isso, molecada, né? Saiamos com vários ovos para atacar nos ônibus, pessoal vinha do trabalho, a gente jogava ovo… ficávamos numa curva estratégica, o ônibus vinha de frente assim, a hora que ele ia virar, a gente… todo mundo, dez, 20 ovos no vidro. Então, para mim, isso era fora, foi meio pelas avessas, mas foi uma ruptura, né? claro que isso não perdurou muito tempo, mas foi uma forma de ver que o mundo não era só aquilo que eu vivia em casa, que tinham outras faces, né? Não sei… é isso que você tava perguntando ou é alguma outra…?
P/2 – Em geral, mesmo.
P/1 – E essa ida até a escola, a gente tá num momento amplo, né, falando um pouco de fundamental, um pouco de médio, infância, adolescência na escola. Como que era ir para a escola, assim, como que era esse momento? Tinha alguma aula especial?
R – A mim, uma das aulas que me fascinavam era aula de Música, nós tínhamos Música naquele momento e tínhamos Educação Artística. Isso me marcava… e aula de Ciências também, pra mim, era uma coisa muito fascinante imaginar o mundo da botânica, por exemplo, né? Tanto é que eu nunca esqueci. Outro dia eu comentei com a minha esposa, perguntei a ela se ela sabia o quê que descia das anteras para o estigma, você sabe o que desce das anteras para o estigma? Ela falou: “Não, o que é?” “É um pólen”, mas nós tínhamos um amigo de sala que ele não falava pólen, ele falava “polên” e aquilo virou uma brincadeira e essa brincadeira ficou marcada na minha memória. Então, eu acho que a escola, para mim, de uma maneira geral, sempre foi um lugar de libertação, onde eu podia falar de outras coisas, convivia com pessoas que não pensavam necessariamente em Bíblia. E era o momento em que eu me realizava.
P/1 – Essa escola aconteceu também no período da ditadura, né? Tem alguma lembrança, alguma questão?
R – A ditadura, oficialmente, no Brasil foi até a promulgação da Carta Magna na Constituição, então eu entrei, também no ensino médio com essa marca, vamos dizer assim. O quê que eu observava? Uma das coisas que me marcaram muito, nós usávamos uniforme, todo mundo, era obrigatório, calca cinza, camisa branca, meia branca, sapato preto, obrigatório. Formação militar na hora de entrar para a sala de aula, fazia aquela formação militar e cantar o hino nacional. Então, todo dia, digeríamos aquela receita: “Brasil, ame ou deixe-o. O Brasil é o melhor pais do mundo, tudo aqui é melhor, tudo aqui é maior, tudo aqui é melhor que os outros países”, então a gente cresceu com esse estigma e onde foi implantado isso? Justamente naquele momento da formação. Então, eu percebo que as pessoas, hoje, que são da minha faixa etária, muitos ainda permanecem com essa… não se libertaram desse cerco ideológico. Chamaram seus filhos para bater panela nas ruas, aí, para depor um governo que foi eleito democraticamente, pedem a volta da ditadura, essas pessoas. pra mim, estão aprisionadas ainda naquele momento histórico.
P/1 – Vou avançar um pouquinho e entrar na sua juventude. E aí, tem algum fato da adolescência, infância que você…?
R – Tem uma… recentemente, eu conversei com uma amiga desse momento aí, a irmã dela me ensinou a beijar, cara, foi um momento (risos)… que eu não tinha noção do que era beijar. Aí um dia, a irmã dessa minha amiga, que infelizmente é falecida hoje, um dia ela combinou comigo: “Saulo, hoje na hora da saída, eu vou…”, a gente fazia o caminho sempre juntos, ela falou: “Hoje eu vou te ensinar a beijar”, aí ela me ensinou, aquilo ali pra mim foi uma marca de ruptura com a inocência da infância, vamos dizer assim, né, pra começar a adolescência, né? Era tudo muito idealizado, né, mulher para mim era um ser inalcançável, era meio romântico nesse sentido do ser inalcançável, né, do idealizado, então, amava a Sonia Márcia. Era uma menina com esse nome, mas eu nunca cheguei para essa Sonia Marcia e eu falei: “Eu te amo, quero sair, vamos transar”, nada disso, era tudo ali na minha cabeça, né? Então eu acho que essa questão do emocional, pra mim, foi um caminhar bastante difícil, dada… sei lá, eu tinha medo, medo do beijo, medo do abraço, entendeu?
P/1 – Esse primeiro beijo despertou…
R – De uma certa forma, sim, porque foi um rompimento, né? Eu era uma criança muito reprimida, então só ia para a igreja com a Bíblia debaixo do braço, eu não tinha vida social, não tinha isso, era tudo muito marcado e tudo muito pré-determinado e as minhas fugas imaginarias que me davam um certo folego, quando imaginava a lua, a distância de um planeta… então, eu procurava coisas que, vamos dizer assim, me levassem para, me deixassem distante daquele mundo opressor.
P/1 – Esse primeiro beijo resultou em namoro? Como foi?
R – Não, foi apenas um treinamento, mesmo (risos), ficou nessa questão…
P/2 – Foi bem sucedido o treinamento?
R – Parece que foi, porque… apesar de estar com muito medo, né, molecada naquela época era muito… é interessante como muda de geração para geração. Falar em beijo naquela época era uma coisa meio para adulto, assim, a criança não tinha… se tinha não fazia parte do meu mundo, né? Então, eu…
P/2 – E como que você saiu da experiência, quais as impressões?
R – Olha, eu vou te falar, eu devia ter uns 12 anos, cara. Eu fui dar o segundo beijo aos 18, então quer dizer (risos)… tive muito problema, assim, relacionamento… eu era muito fechado, muito tímido, então isso me afastou muito dos relacionamentos pessoais durante um tempo.
P/1 – E aí, a gente atravessa esse período, vamos um pouco para a sua juventude e como foi o primeiro namoro, assim? Foi aos 18?
R – Eu sempre começo, quando eu vou falar em juventude, cara, me vem uma música do Flavio Venturini, não sei se você conhece “Nossa linda juventude, pagina de um livro bom”, eu vejo com muito… então, há esse rompimento com o mundo opressor do protestantismo e entra nessa fase, pra mim, é o melhor período da minha vida. Então, eu passei a me relacionar melhor com as mulheres, né, isso aqui, o violão foi uma estratégia que eu encontrei de me aproximar das mulheres. Nunca fui um bom papo, assim, um cara sedutor, como se diz, ou… nunca fui, sempre fui um cara reservado, então quando ia nos encontros, conversar com os amigos, levava o violão, era uma forma de quebrar o gelo e me mostrar um pouco, né?
P/1 – Como que era essa juventude com os amigos, passeios?
R – Eu posso dizer que isso começa, pra valer, de uma maneira… porque até o ensino médio, os meus grandes amigos eram japoneses que não falavam português. Você imagina que amigo que é esse, como é que… a gente se comunicava meio por gestos, meio monossilábico, né, tem o Pedro Hadani é um cara que me marcou, o Claudio Matsu, eu era da equipe de tênis de mesa, eu sempre gostei muito de jogar tênis de mesa e jogava bem. Era o único não nipônico que pertencia ao clã dos… mas assim, o nossos relacionamento era muito infantil e não tinha muito diálogo, então isso se rompe quando no ano de 1982, eu prestei para Educação Física na Universidade Mogi das Cruzes. Aí foi… primeiro ano, eu ainda fui meio comportado, no segundo ano, eu conheci um pessoal do PT e aí, eu me envolvi… comecei a me envolver com movimentos sociais, né, uma dessas pessoas com as quais eu fiz amizade do nosso grupo, lá da Educação Física, a gente fazia tudo menos exercícios, né? Tomávamos todas, saíamos para as baladas à noite, tal. Eu passei a ter uma vida, vamos dizer assim, mais livre em termos de relacionamento e de poder, vamos dizer assim, me expor mais na casa de origem dos meus pais, mostrando que aquele caminho que eles tentaram me direcionar não era realmente o que eu queria para mim. Mas esses rompimentos, eles são sempre difíceis, traumáticos, né? E uma dessas pessoas, Rubens Xavier Martins, ele vive hoje em Diadema, foi um dos caras que me falou: “Saulo, você é um cara que toca, por que você não mostra isso para as pessoas?”, e uma noite no Bixiga… o Bixiga, na época, era um bairro muito boêmio, eu não sei hoje, acho que seria uma Vila Madalena hoje. Hoje, acho que é meio decadente o Bixiga à noite, nós íamos para à noite tomar cerveja, nós adorávamos tomar pinga com mel e íamos fazer um tour ali, cultural e ali, eu descobri que eu tinha potencial artístico que poderia ser mostrado com um certa qualidade, né, e que isso, talvez, pudesse ser um caminho de vida. nessa primeira saída para o Bixiga, eu compus uma música chamada “Olhando as flores do campo”, falava um pouco da… que aí, eu comecei a ter contato com a realidade de pessoas que viviam na rua, o artista desconhecido que fazia as suas poesias e saía vendendo de mesa em mesa, então essa realidade eu acabei sintetizando numa música que posteriormente, lá passou a fazer parte do nosso grupo. E foi nesse momento… e aí, começa uma outra… nesse momento de transição, eu conheci uma pessoa chamada Raimundo Cavalcanti, ou seu Raimundo como eu sempre carinhosamente o chamo era um músico cego. Então, a sementinha de trabalhar com cegueira hoje na pesquisa acadêmica foi plantada ali com o seu Raimundo. Ele era um contrabaixista, acho que era contrabaixo, acústico que ele tocava, depois passou a tocar cavaquinho, tal e nós conversávamos muito e seu Raimundo contava muito das histórias de vida dele, ele ouvia muito e me chamava muita atenção, falava: “Poxa, como é que será que o seu Raimundo lembra como eram as cenas da juventude dele, como é que eram as cores?”, e ele escrevia. E nos poemas… eu vou até fazer uma referência, não sei se tá aqui ou se tá no outro, eu faço uma homenagem a ele nesse meu trabalho acadêmico e ele fala da… aqui, essa poesia, ele escreveu e me deu e me chamou atenção isso naquela época lá atrás e muitos anos depois, eu coloquei uma homenagem que eu fiz a ele nesse trabalho. Ele escreve assim: “O inverno chegou com sua frieza e a natureza tristonha ficou. Até mesmo o sol fez se fugitivo com medo do frio, a tremer, desmaiou. Eis a natureza em sombras veladas, em angústias geladas a chorar lá fora. É a chuva que cai dos olhos da vida, que talvez, sentida, magoada chora. Ela chora, talvez com pena da gente, que rapidamente envelhece assim, cabelos nevados, frios corações, mortas ilusões, isso é o fim”. Aí, eu ficava pensando: “Mas como é que um cara cego pode falar em cabelos nevados? Como é que isso acontece? Como é que ele imagina cabelos nevados? O quê que é isso para ele?”, mas o nossos propósito ali não era falar em vida, isso era um bate-papo que a nós tínhamos, porque nós tínhamos… ele passou a fazer parte do nossos grupo de música. E nessas saídas do Bixiga, eu compus uma música que eu queria deixar registrada aqui, que é uma música bacana, bacana pra mim, tá? É chamada “Copos vazios”, que eu geralmente chamava copos vazios, até saber que o Chico Buarque tem uma música com esse nome, aí passou a se chamar “E à noite termina assim”. E o seu Raimundo era uma pessoa muito alegre, um pernambucano assim, bastante dado na conversa e ele adorava essa música. Então, eu chegava na casa dele para os ensaios, ele morava ali na Vila Mariana, na França Pinto. Ele falava: “Saulo, e os copos, como é que estão os copos? Estão cheios ou vazios?”, eu falava: “Depende, seu Raimundo, se for sexta-feira, estão cheios”. E era uma pessoa muito (corte no áudio) e eu fazia o violão, a base do viola e ele tocava, fazia o solo com o bandolim. Foi uma pessoa que me marcou muito nesse sentido porque a partir de então, eu passei a pensar que o meu caminho poderia não ser a música como profissão, mas sim, a investigação. Então hoje, eu me vejo uma pessoa, além de analógica, uma pessoa que trabalha com a arte, com a música e que por outro viés, trabalha com a investigação acadêmica. E isso eu acho que é uma construção de uma identidade, né?
P/1 – Só para entender melhor esse período, você começa com o grupo musical quando já estava na faculdade?
R – Sim, através desse Rubens. Ele foi o grande incentivador. Nosso grupo, inicialmente, se chamou Alma de Caracol que era uma música que fazia referência a uma letra de um grupo chamado Tarancón, que existe esse grupo até hoje, tem mais de 30 anos e esse Tarancón… a gente era assim, meio imaturo, aí passou a se chamar Quitanda mais adiante e seu Raimundo entrou nessa fase posterior.
P/1 – A faculdade era fora de São Paulo, né?
R – Em Mogi das Cruzes.
P/1 – Então você tava próximo, né?
R – Pegava o que a gente chamava de pinga-pinga, o trem do subúrbio, né, naquela época ele ia parando, tinham várias estacoes que ia desde o Brás, hoje não existem mais, elas foram suprimidas pelo metro, né?
P/1 – E como era na casa a relação com a família, do filho estar tocando música, que não era música de igreja, que estaria se tornando uma vida de juventude mais boemia?
R – Eu acho que se tornou um pouco mais conflituosa, porque você deixa de seguir as regras e você passa a se assumir, né? Até que um dia, minha mãe chegou e falou: “Enquanto você tiver aqui, você vai seguir as regras, senão, você tá fora”, aí isso também foi uma das coisas que me marcou bastante, porque ou você segue as regras ou você busca o seu caminho fora da casa. Era assim que foi colocado. Posteriormente, foi o que eu fiz.
P/1 – Tomou outro caminho? Não seguiu as regras?
R – Nessa mesma fase, eu fiz um mochilão por conta própria. Um dia eu cheguei para a minha mãe e falei: “Mãe, eu tô indo para a Bolívia”, aí fiz um roteiro e fiz uma viagem pelo trem do Pantanal que ainda tinha, que saía de Bauru, ele ia até Corumbá, em Corumbá, você atravessava a fronteira, pegava um trem que ia até Santa Crus de La Sierra, fiz esse caminho de mochila, sozinho. Conheci muitas pessoas, não tinha ideia de que eu tava fazendo um roteiro perigosíssimo, mas eu tava decidindo o que fazer da vida, né?
P/2 – Por que você escolheu a Bolívia?
R – Eu acho que tinha… já sofria influência desse regionalismo, o Almir Sater era um cara que me fascinava, até hoje, eu gosto muito do que ele toca. E ele falava… o “Tem do Pantanal” é uma música meio tema pera mim, então eu queria fazer o trajeto do trem do Pantanal ouvindo, era aqueles walkman, aquele negócio meio, sabe, gigantesco, com fita cassete, walkman. E fui ouvindo o Almir Sater no trem do Pantanal. Aí fui até Santa Cruz de La Sierra, de lá, fui para La Paz e de La Paz, eu desci pelo norte da Argentina, tudo de trem. Foi uma viagem bastante interessante.
P/1 – O quê que você buscava nessa viagem?
R – Eu acho que eu buscava respostas. Buscava esse eu conflituoso, o cara que fez Educação Física, mas não era aquilo, fez Sociologia, não era aquilo, tinha que… a resposta, como diz o Suplicy, está no vento, então tinha que sentir esse vento pra saber como interpretar a resposta, né?
P/1 – Encontrou ela?
R – Encontrei na visão do olhar de quem não enxerga, que é desse pessoal cego.
P/1 – Vou voltar um pouquinho, você concluiu a faculdade de Educação Física e daí, foi fazer Sociologia, como foi?
R – Conclui Educação Física, dei aula para saber que era o que eu não queria, aí, eu já tava bastante envolvido com os movimentos sociais, meio porra louca, meio bicho grilo da época e prestei Sociologia na Escola de Sociologia e Politica São Paulo, na ESP que fica ali na General Jardim, você deve conhecer, tem inclusive, pessoal de biblioteconomia, que… só que era só o casarão, não tinha aquele prédio administrativo bonito do lado. Era só o casarão. E eu fiz dois anos, mas aí começou a entrar muito em Durkheim e aí, eu falei: “É muito pesado para mim", não tô preparado”, aí eu dei um tempo, aí eu fui fazer Letras na PUC de São Paulo aí sim, ali foi a minha grande descoberta, né?
P/1 – Nesse momento já estava fora da casa da família?
R – Não. Ainda vivia com a família, mas já um vida bastante independente, né? Era mais um dormitório, mesmo, porque o que eu ganhava não era suficiente para me sustentar. Mas na PUC foi muito bacana, porque eu sempre digo que a PUC me ensinou que arte… que ciência e religião, elas combinam, você precisa saber como equacionar, mas não são excludentes. Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo o que foi mais bacana? Ali, realmente, para eu conseguir fazer o que eu queria, eu tive que me desdobrar mesmo, correr atrás pra poder fazer, porque sempre foi muito… o ensino na PUC sempre foi muito elitizado, naquela época já era, principalmente, financeiramente. Aí, eu tive que saber como fazer isso, né? E uma passagem que me marcou muito na Pontifícia Universidade Católica foi que eu pleiteei uma bolsa… eu fui orientado a… minto, desculpe. Eu tava fazendo uma iniciação científica sobre uma comunidade ribeirinha da cidade de Cuiabá, na região de Cuiabá, São… vou lembrar já, já. E eu estudava a questão ad interpretação cerâmica daquela região influenciada pelos índios e pela colonização portuguesa. E dali, eu fui até o gabinete do Florestan Fernandes pra pleitear uma bolsa pra eu continuar os meus estudos e quem bancou essa minha ida até lá foi um amigo vereador da cidade de Cuiabá que eu não tinha dinheiro, era um durango, quer dizer, era mais durango do que sou hoje, continuo sendo. Chegando lá, não consegui passar da assessoria, o cara me barrou na assessoria. Falou que não tinha bolsa, que não era possível o Florestan Fernandes me ajudar e etc. Aí, eu volto para São Paulo, procuro a reitora da faculdade, da universidade, lá tem a pró-reitoria, ou pelo menos, tinha pró-reitoria comunitária que era para atender casos de alunos com baixa renda, que não podiam pagar, que era o meu caso. E ela falou assim: “O Florestan Fernandes escreveu para a universidade, mandou uma carta dizendo que você esteve lá e que a universidade, por ter uma filosofia filantrópica e social deveria lhe acolher aqui com uma bolsa”, isso ela contando, só que ela era meio desbocada, eu vou abriu um parênteses aqui, aí ela falou assim: “Só que esse filho da puta já deu a bolsa para os apadrinhados dele, mas eu te faço uma proposta, você vem trabalhar com a gente aqui, faz um estágio na reitoria e você paga o seu curso fazendo esse estagio”, e aí, eu fui trabalhar na reitoria. E aí, foi muito bacana porque eu passei a ter contato com outras pessoas de um outro nível, ver como funcionava a universidade por dentro e na ocasião, nós tivemos a oportunidade de organizar o primeiro concurso universitário livre de poesia Brasil/Portugal, que me colocou em contato com muitas pessoas interessantes de dentro e fora do Brasil. E eu acho que esse foi o grande descobrimento que me fez decidir e falar: “Poxa, Saulo, realmente, a academia é o lugar que você se encontra”. E passei em investir na vida acadêmica, a partir daí, né? E aí, veio o mestrado, terminei a iniciação científica, aí eu fiz o mestrado em Língua Portuguesa, depois, fui orientado a fazer a linguística aplicada nesse trabalho com os cegos, né? E mais recentemente, eu tive o convite para fazer o pós-doutorado na Universidade de São Paulo que é o que eu tava conversando contigo ali sobre a audiodescrição que é um destaque desse meu trabalho de doutorado, né?
P/1 – Você consegue compreender essa linha do tempo desde as mudanças do curso até os temas que você foi assimilando nas suas pesquisas, principalmente essa questão da… você conta que foi na PUC que você descobriu que você, de fato, seria um pesquisador, é isso?
R – Isso, foi.
P/1 – E o tema, como veio essa…?
R – Até o mestrado, a minha ideia era trabalhar literatura portuguesa, talvez, influenciado por aquele momento do concurso, eu gostava muito de Virgílio Ferreira, Ferreira de Castro, o momento do Modernismo da literatura portuguesa que evoca justamente as questões sociais, procuram resolver essas questões, ou responder essas questões. Mas aí, nesse meio tempo do mestrado, eu estava iniciando o mestrado, o meu pai sofre um acidente, ele cai de cima da casa e tem uma ruptura de vertebra. E de cara ditador, absoluto, que mandava em tudo, ele passa a ser dependente porque ele fica tetraplégico, paraplégico e passa a ter uma outra relação dentro de casa, quem assume as coisas, a voz de comando é a minha mãe que sempre tinha sido submissa até então e isso me despertou para a questão do que é o contato diário com uma pessoa com deficiência que não era deficiente. E isso começou a gestar um incômodo, eu queria trabalhar alguma coisa que me respondesse essa inquietação e ao mesmo tempo, isso me fez resgatar lá atrás, o contato com esse seu Raimundo. Então, eu peguei a questão da deficiência motivada pela nova vida que o meu pai estava tendo com a minha experiência de jovem lá atrás em tempos de música com esse seu Raimundo. Aí, eu falei: “Poxa, por que não trabalhar a questão da cegueira? Como é que o cego enxerga? Como é que…?”, porque no frigir dos ovos, a minha ideia, e é assim até hoje, é produzir algo, pode ser redundante, mas é produzir algo produtivo. Algo que reverta em prol da sociedade, não apenas um volume acadêmico que fica numa estante ou num banco de dados de uma universidade para dizer que você tem um titulo de doutor, de mestre, de alguma outra coisa. Eu acho que o papel e a obrigação do pesquisador é produzir algo em pro da sociedade, é nossa obrigação. E eu vejo que hoje, esse meu trabalho tem esse potencial de desenvolver algo que possa ser útil para as pessoas, fora inclusive, do circulo acadêmico.
P/1 – Você disse que você buscava algo na sua viagem, né, com o trem do Pantanal, imagina a música, com certeza e o que você procurava na viagem do trem do Pantanal, você encontrou no cego…
R – Eu acho que eu encontrei muitos anos depois. Essas respostas não são imediatas, né? Eu acho que ali, essa viagem meio porra louca, sair de mochilão nas costas foi um plantio que veio florescer bem que talvez, uns 20 anos depois, uns 15 anos depois. Ainda bem que foi possível sobreviver, né, essa turbulência toda, porque não é fácil, você entra em crise existencial, você quer respostas e muitas vezes, você quer a coisa pronta. Eu fiz terapia durante muito tempo. Então, tentativas de solucionar essas questões existenciais, né?
P/1 – Vou voltar um pouquinho. O trabalho na sua vida, né, profissão, você se tornou pesquisador, mas já exerceu outras funções, outros trabalhos?
R – Sim, já exerci. Na década de 80, vou falar dos principais, né, eu fui funcionário do IBGE, era concursado, ganhava muito bem para os padrões, e decidi largar tudo para dar aula, para ser professor do Estado, eventual, na época, a gente chamava de ACT que é o eventual, cara que vai substituir… eu podia me dar esse luxo porque morava com os meus pais, mas era, vamos dizer assim, era uma atividade que me dava uma segurança financeira, mas não me dava uma satisfação pessoal. Eu trabalhava na coleta de dados para o INPC que hoje se chama INPCA Amplo, então não tinha sentido para mim chegar numa loja e ficar perguntando preço do terno e ficar anotando isso em planilha. Quer dizer, tem gente que faz numa boa, aquilo me incomodava: o quê que eu tô produzindo? Aí, eu cheguei para a minha chefe na época e falei: “Fulana, eu queria uma licença não remunerada para fazer uma graduação”, ela falou: “Não, não dá não, você é essencial aqui”, “Tá bom”, aí fui no departamento pessoal e pedi as contas e fui dar aula. Posteriormente, eu fui trabalhar na Universidade de São Paulo, na USP, trabalhei no Museu de Arte Contemporânea, era auxiliar de biblioteca e vivia um paradoxo, porque eu queria seguir a carreira acadêmica na PUC, ganhava muito mal na USP, então quer dizer, eu trabalhava numa universidade pública para pagar uma universidade privada para me sustentar. E fiquei também na USP durante um tempo como auxiliar de biblioteca, aprendi a fazer tombamento de livros, fazer catalogação, a ter contato com as obras de Brecheret, a gente vai conhecendo o mundo da… você vê que ele é muito amplo. E uma coisa que me questionava muito, essa questão da arte contemporânea, eu ficava pensando: que maluquice, o cara bota uma bolinha em cima de um quadrado e ele diz que é arte, aquilo pra mim era muito difícil, entrar na perspectiva do artista, de interpretar algo tão abstrato, que a arte contemporânea é muito complicada. Mas foi uma experiência bacana. Mas aí, eu sai da USP, voltei a dar aula, fui para a sala de aula e de lá pra cá, eu só vivo dando aula e fazendo pesquisa.
P/2 – Como que foi o seu primeiro dia em sala de aula, como professor?
R – Tem dois momentos. A primeira vez na minha vida que eu fui dar aula, eu fazia ainda Sociologia. Eu fui dar aula numa escola dentro da Cohab que não tinha vidro, no tinha porta e os alunos convidavam a gente para fumar maconha com eles durante a aula. Essa foi a minha primeira… eu imaginava que o dar aula era algo muito, vamos dizer assim, muito formal, né, muito… você chega dando as regras e não é isso, a gente aprende que não é isso. Você constrói, a aula é construída todo dia. Ainda hoje para mim é assim que funciona, dessa forma. E eu acho que você fazer parte da formação do ser humano é fundamental. Assim como o Ernesto ficou na minha cabeça até hoje, ele é vivo, porque ele vive na minha vida, enquanto eu viver, ele tá vivo. Eu acredito que eu tenha contribuído para outras pessoas serem bons profissionais, boas pessoas, bons pais, bons brasileiros e acredito que a vida funciona dessa forma.
P/2 – Eu tenho uma pergunta meio cretina…
R – Pode fazer, sejamos cretinos.
P/2 – Você tem naquele momento de transição da juventude, você lembrou uma música do Flavio Venturini, depois, na viagem para a Bolívia, você evocou o Almir Sater. Tem algum outro momento, por exemplo, quando você encontra o tema de pesquisa, etc., tem algum outro momento musical importante assim?
R – Mas você diz na fase de decisão, você diz?
P/2 – Posterior, assim…
R – Tem, tem. Recentemente, eu dou aula também na Faculdade Sumaré que fica ali próxima, eu toco… às vezes, tem apresentação que eu faço para os alunos, a gente toca, né, eu gosto muito de uma música do Frejat chamada “Segredos”, conhece? “Eu procuro um amor que ainda não encontrei”, então eu acho que a música, ela é muito marcante no sentido de que ela passa a fazer parte da nossa identidade. Até tem uma experiência que eu vou relatar a vocês que é recente, na sexta-feira agora, nosso grupo de pesquisa da USP vai para um asilo lá na zona leste, eu não recordo muito bem, Amália Franco, eu acho que chama o bairro. E uma parte do grupo trabalha com Alzheimer e eles estão descobrindo que a música, as informações musicais não são afetadas pelo Alzheimer, eles estão… e nós vamos tocar lá para o pessoal do asilo, então eu acho que é uma forma também de unir essa questão da musicalidade com a questão acadêmica, né?
P/1 – Mais algum fato muito importante nessa questão durante como aluno ainda, durante a faculdade?
R – Durante a faculdade? Uma coisa muito bacana, são sempre paradigmas, né, dois professores na universidade que me marcaram muito, quando falo na universidade, é a PUC , sem levar em conta a formação anterior. A primeira, nós tínhamos um professor, não nós, mas o Jornalismo da PUC tinha um professor chamado Flávio Di Giorgi, era um cara assim, todo desarrumado para os padrões, então ele usava aqueles ternos todo amarfanhado, camisa meio para fora da calça, um senhor, cabelo grisalho, italiano, bem liso assim, então a aula dele era a seguinte, ele dava aula de Romantismo no Jornalismo. Nós abandonávamos as aulas de Linguística, não sei o que pra assistir a aula do cara. Primeiro, ele dava aula de porta aberta, ele fazia… sentava com os alunos lá, fumava durante a aula toda, o cara era uma chaminé e recitava poemas gregos, recitava poemas latinos e escrevia tudo no original na lousa. Então, era um cara assim, que nos fascinava, a gente ia beber a sabedoria do cara, me marcou bastante. E o segundo, a gente ficava na folia de sexta pra sábado, porque nós tínhamos aula sábado, oito horas da manhã com o Mario Cortella, esse cara hoje que é um estrela aí, bastante… mas na época, era apenas um professor da PUC, então nós íamos assistir a aula de Filosofia da Religião com ele e era um cara muito interessante porque ele chegava na sala, ele usava na época, não sei se vocês já ouviram falar, usava uma capanguinha que era uma bolsinha amarrada aqui, uma bolsa aqui com os documentos, pessoal chamava de capanga, um giz e um apagador. Às vezes, o diário de sala. E nós ficávamos das oito até às 11 com o cara lá dando aula e ele falava de coisas que nos fascinavam, coisas como a questão… por exemplo, como que a televisão chegou para desunir a família de origem dele, como é que foi o processo, ele chegou e contou a história, ele falava dos pensamentos filosóficos e tal. Então, Mario Cortella… esse brilhantismo que ele demonstra hoje, você imagina ter aula com o cara ali ao vivo, né, então foi um momento também bastante marcante pra mim que eu deixo assim, como uma referência.
P/1 – Sem dúvida, esses professores moldaram a sua forma de exercer essa profissão de professor, né, carrega muito… você percebe hoje que o seu estilo de ser professor carrega muito de todas essas pessoas que você teve aula, que você aprendeu e até mesmo não só com eles em sala de aula, mas com o músico também, cego? Você consegue enxergar em você todas essas pessoas?
R – De uma certa forma, sim, eu acho que elas afloram no momento em que você consegue fazer, construir uma relação de interação. Então, eu acho que nessa relação de interação, de alguma forma, essas pessoas que fizeram parte da sua vida, elas florescem, elas aparecem. Quando eu conto a história do Ernesto em aula para os meus alunos, eu tô trazendo ele de volta, ele tá fazendo parte dessa construção, né? Quando eu conto algo mais elaborado, teoricamente, eu trago o Mario Cortella para aquele momento e a coisa fundamental que eu acho, que para mim é uma forma de vida, né, primeiro, nós sempre estamos aprendendo, então não é porque hoje eu faço um pós-doutorado numa Universidade de São Paulo, que eu sou melhor do que o meu aluno que tá sentado ali, do que um outra pessoa que esteja na rua. Isso só nos faz um pouco diferentes no caminhar, mas eu aprendo com essas pessoas e elas aprendem comigo. Eu acho que essa troca é o que motiva a vida. O ensino não pode ser ditatorial, não pode ser de cima pra baixo, jamais, ele tem que ser horizontal, claro que relevando as diferenças de formação, de acumulo de conhecimento, de letramento, mas porque a base é pensar que o outro é um ser humano como nós.
P/1 – Mudar um pouquinho o tema, lembra de mais alguma coisa desse…
R – Eu acho que eu só queria deixar registrado, ano sei se eu poderia deixar no final, essa música do seu Raimundo que ele gostava muito, porque é uma musica que além dele gostar, é uma música que reflete um pouco essa fase da boemia em que havia uma necessidade de se buscar uma resposta, então, não sei se posso deixar isso para o final, pode fazer agora, ou se não faz.
P/1 – Não, vamos fazer, sim. Vamos fazer já, então. Depois a gente vai adentrar de volta a sua história, porque ainda tem a sua família, né?
R – Tá bom. Então, vamos imaginar que isso aqui é um Ballantine’s, tá certo? Então, eu gostaria de deixar registrada justamente porque foi uma música que marcou esse período, né? Então, essa música chamava “Copos Vazios”, posteriormente, chamou “E à noite termina assim”, então, ela reflete um pouco essas andanças nossas pela noite, talvez, em busca de nós mesmos, né?
“Copos vazios/ sem esperar ilusão. Conversas infindas/ sorrisos e solidão. Mas um cigarro acabado/ na madrugada sem fim. Um homem sozinho que pensa/ amargurado de dor. Os botequins dessa vida/ mais um freguês com o seu gin. Sem o dinheiro para a conta/ e a noite termina assim. Saio pra rua vazia/ as luzes a se apagar. Com a garrafa no braço/ cantando a murmurar. Os botequins dessa vida/ mais um freguês com o seu gin. Sem o dinheiro para a conta/ e a noite termina assim.”
Então, essa era a música tema lá que nós saíamos à noite, retrata de fato essa solidão da existência humana, de querer buscar respostas, né?
P/2 – Vocês tocavam na noite mesmo?
R – Algumas vezes, tocávamos na noite, tínhamos assim, apresentações, mas normalmente, eram em espaços alternativos, porque éramos mero desconhecidos. Mas às vezes, tinha uma boquinha num bar assim, a gente ia tocar.
P/2 – Teve alguma dessas apresentações que foi bem bacana, assim, marcante?
R – Dessas apresentações, eu acho que teve uma bastante interessante que nós fomos a um festival na cidade de Pau Sul, conhecem? Para o lado de Ourinhos. E fomos de trem, fomos… só que o tipo de música lá era diferente, fomos tocar música regional, mas foi bacana, porque nós fomos com o grupo, todo mundo uniformizado de petista, aquele bando de gente meio porra louca, mas um meio Woodstock fora do tempo, né? Mas foi… eu acho que são experiências que vão marcando, que contribuem para gente compreender melhor a vida, a juventude, por isso, na nossa linda juventude que eu acho que quando você é jovem, vale, vale tudo nesse sentido.
P/1 – A gente acabou não entrando tanto na música nesse período da juventude, do grupo musical, teve outros grupos além do…
R – Nós tivemos o Alma de Caracol, depois tivemos o grupo Quitanda, que fez várias apresentações e depois, eu segui meio que uma carreira solo, porque algumas pessoas casaram, outras desistiram de música, mais um tempo da minha vida, eu ainda insisti em fazer… então, eu fiz algumas apresentações sozinho, como se fosse um show pessoal, aí depois, eu decidi realmente seguir a carreira acadêmica, aí, a música para mim hoje é… ainda faço música, componho, mas é mais um prazer pessoal do que modo de vida, né?
P/2 – Quais são os principais temas que você gosta de trabalhar?
R – Na música, você diz? Teve a fase dessa urbanidade que essa música é bem urbana, fala da vida e depois, eu me apaixono pela viola caipira e passo a trabalhar mais música regional. E tem uma música, em particular. No ano de 2010, eu sofri um grave acidente e eu tive essa experiência que as pessoas contam da morte, de você ir, mas não é o seu momento, você retorna. E eu fiz uma música também que traz um pouco essa experiência de cunho mais espiritual, né, porque eu sempre brinco com uma metáfora em termos de que eu era tão radical em termos de espiritualidade, talvez por esse passado repressor e que eu me autodenominava cartesiano, o cara cético, né e que precisaram abrir a minha cabeça, literalmente, para eu mudar. E realmente, eu tive uma fratura de crânio, fiz uma operação delicadíssima, eu só não tive o comprometimento dos membros porque a membrana cerebral que reveste o cérebro, ela segurou a pancada, porque o crânio abriu, mas mesmo assim, eu fiquei durante muito tempo me recuperando desse trauma. Mas nesse espaço vida–morte, né, que você vai e retorna, foi assim pra mim um divisor de aguas, então eu passei a ver a vida de outra forma. Não fico querendo convencer A ou B de que isso é o certo, mas para o meu caso, funciona assim, eu estive numa outra dimensão que eu não tenho muito clara como era, retorno e passo a perceber que a vida não é da forma como eu imaginava que fosse. A ciência não dá resposta para tudo, eu achava que até então, tudo estava nos livros, mas não é assim.
P/2 – O quê que aconteceu? Como que foi?
R – Foi um evento infeliz, eu fui atacado numa determinada circunstância, o cara bateu com um facão na minha cabeça. No momento em que ele bate com esse facão, há a abertura do crânio, mas eu não tinha a dimensão da gravidade no momento, só tive os reflexos, porque no momento que há essa invasão, o hemisfério esquerdo foi atingido, o braço veio pra trás, como se eu tivesse tido um derrame, ficou assim durante um tempo e eu tive que fazer uma operação de mais ou menos seis horas de cirurgia, hospital público e fui muito bem atendido. E fiquei na UTI durante 18 dias, mais ou menos. Então, eu acho que foi um interim, assim, que acabou me trazendo para uma outra perspectiva de vida. Eu acredito que… hoje, eu acredito que deva haver algum outro tipo de existência que não só a nossa material, aqui, né? Aí, eu compus uma música chamada “Entre Flores e Espinhos”, aí tem um clima assim, espiritual essa música porque a arte tem esse propriedade de nos colocar em contato com outras realidades, com outras dimensões.
P/1 – Essa história desse problema com essa pessoa com o facão é possível ser contada?
R – Não, eu prefiro assim, fazer uma referência genérica, porque eu acho que não conviria assim, eu sei quem foi, mas eu acho que na verdade, o evento em si me favoreceu a ver o mundo de forma diferente, né?
P/1 – Vamos entrar numa questão aqui, sua mulher, né, o seu casamento, sua filha. Como tudo começou, né?
R – Uma curiosidade é que o relacionamento com a minha companheira hoje, ele começa… vamos dizer assim, nós não nos conhecíamos e passamos a nos conhecer por um… foi uma situação engraçada, porque hoje, você tem os sites de relacionamento, né, mas foi num anuncio de relacionamento que a gente se conheceu, um anuncio de jornal, que a gente acabou… nos aproximamos e a partir de então, a gente começou a ter uma identidade, né, começamos a ter uma… sentimos que havia harmonia, né, porque até então, a gente conhece muitas pessoas, né, durante o nosso caminhar, muitas mulheres e tal, mas quando você encontra uma pessoa que é afim com você, é diferente.
P/2 – Como foi? O anuncio era seu ou era dela?
R – Era dela. Na época, nós tínhamos… tinha um recurso chamado classe line, a pessoa deixava numa secretaria eletrônica virtual, não sei como é que era, como funcionava, um recado. E eu não me recordo como eu cheguei a esse recado, mas eu procurava uma companheira para a minha vida, porque a minha vida já tava sendo resolvida em alguns pontos e em outros, não. E calhou da gente se conhecer melhor através desse anúncio, assim como eu conheci outras mulheres, também. E a partir daí, a gente foi construindo juntos a vida. Uma vida de família, mesmo. E já vamos para 20 anos.
P/1 – Você lembra da sensação ou do conteúdo dessa mensagem dela, que te chamou mais atenção?
R – O que mais me chamou atenção foi que parecia uma mulher muito segura de si. E não era um anúncio, assim, apelativo, tipo: “Sou gostosa…”, nada disso. Era um anúncio simples, objetivo, mas que me passava segurança, eu acho que isso que me pegou.
P/1 – Como foi ir atrás, responder esse anúncio?
R – Era assim, você acessava o anúncio, depois você deixava um recado pro anúncio e depois, a pessoa lia o seu recado e deixava… tudo via fone, era só telefone e tinha que ser telefone teclado, não… hoje nem existe mais esse telefone, você tinha dois tipos de telefone no Brasil na época, um chamava pulse e outro, tone. Pulse era aqueles de disco ainda, eu me sinto um dinossauro quando eu falo essas coisas. Pré-histórico, né, porque telefone de disco. Mas hoje você pega o celular, o que ele coloca lá a mensagem: discando, né? Você tecla um número no seu celular, pode ver que a palavra que vai aparecer é discando, porque era um disco, né, então… mas enfim, a questão é que a gente ligava para esse número, deixava o recado e aí, a pessoa retornava e deixava um recado para o recado.
P/1 – Você lembra do seu recado para a sua mulher?
R – Não. Isso eu não lembro. Mas eu lembro assim, que a gente marcou e aí, esse encontro foi um encontro meio estranho, porque você não conhece a pessoa, não sabe quem é, né? Aí, saímos para conversar, aí você começa a conhecer melhor a pessoa, né?
P/2 – Como que foi esse primeiro encontro?
R – Foi um encontro meio de reconhecimento estratégico (risos), saber quem é a pessoa, o quê que ela faz, saber que ela não vai se relacionar sexualmente com você no primeiro encontro é significativo, também, porque a gente não tava buscando uma mulher para transar, não era isso, era a busca de algo que talvez complementasse aquilo que tava sendo plantado lá atrás. E foi o que aconteceu, porque a partir daí, a gente foi se afinando, aí aos poucos, eu fui levando minhas coisas para a casa dela, acabei me mudando e ficamos… porque esse Paulino que é do nome dela, eu adotei recentemente, porque aí, nós nos casamos mesmo em papel, tudo, né? Porque não éramos casados, vivíamos mais ou menos 18 anos como companheiros, convivência.
P/2 – E qual o momento que você soube que era ela, no meio desses encontros, você falou…
R – Eu acho assim, quando eu não senti necessidade mais de sair pra noite, encher a cara como se isso fosse me trazer alguma resposta e que eu me sentia bem ao lado dessa pessoa. Então, eu acho que essas sensações, essas impressões foram importantes, decisivas, até.
P/1 – O que você levou primeiro para a casa dela?
R – Acho que foi a minha bicicleta. Eu tinha uma Elba na época, tinha aquele suporte… eu levei a bicicleta e nós andávamos muito pelo centro de São Paulo, não tinha essa cultura que agora o Dória quer acabar com essa cultura da ciclovia, não tinha nada disso, era uma selva mesmo, você tinha que andar no meio dos carros e a gente andava pela São João, ia até o Ibirapuera, andava por São Paulo. Então, esse conhecer eu acho que foi bastante importante, para dar uma base para essa nossa relação. E não era evangélica, outra coisa importante.
P/1 – Chegou a pedir em namoro? Como que foi o avançar desse relacionamento?
R – Eu acho que foi natural, não teve esse negócio de pedir em namoro. Foi a convivência, mesmo. Foi uma aproximação natural, não teve… porque assim, era uma pessoa que já tinha também os seus relacionemos anteriores, né, não tinha… morava já… era uma pessoa independente, então, morava sozinha, tinha sua vida independente, então isso acho que facilitou bastante.
P/1 – Casamento, vocês chegaram a casar na igreja, papel, como que foi?
R – No ano de 2010, depois dessa quase morte, né, e retorno à vida, nós decidimos que seria importante ter, formalizar isso civilmente para a minha própria filha ter as garantias legais e tal. Então, nós casamos mesmo, aí eu adotei o nome dela e ela adotou o meu.
P/1 – Adotar o nome dela é significativo, é um ato de… para uma sociedade bastante machista, né, que isso quase nunca ocorre. Como foi esse sentimento seu assim, você se lembra como vocês conversaram sobre isso, sobre os nomes?
R – Não, a gente decidiu: “Vamos trocar…”, e para mim, foi significativo porque para mim também foi um rompimento. Na minha casa de origem, ninguém fez isso, eles continuam com o “Da Silva”, meu irmão, minha irmã, minha mãe. Então, quando eu digo que eu acrescento esse Paulino no meu nome é como se eu tivesse mostrando quem eu, realmente, sou hoje. Uma pessoa que cresceu, que passou a ter seus ideais, que hoje tem uma família constituída, né?
P/1 – E a filha, assim, como foi? Vocês queriam ter um filho? Como foi a chegada da filha?
R – Ela foi planejada mesmo, foi depois de um ano de relacionamento, mais ou menos. Nós percebemos que poderia haver uma vida comum, né? Isso deu uma garantia de que poderia ter um filho. Eu sempre quis ter uma filha, ela queria ter dois, mas nós ficamos no um, mesmo. Uma filha, eu queria ter uma mulher, daí nasceu mulher.
P/1 – E como foi esse primeiro dia com a filha?
R – Nós tivemos todo um preparo, ela fez uma preparação no Hospital Santa Joana de hidromassagem, tinha todo um preparo para a chegada dessa filha. Agora, o interessante do nome da minha filha é que na época da PUC dos anos 90, uma das pessoas que participou do concurso de poesia que nós organizamos ficou muito amiga minha, chamada Manoela Frade e essa pessoa viveu no Brasil um tempo, teve um filho aqui, uns problemas pessoais, retornou a Portugal, mas a nossa amizade era muito intensa e para homenagear essa minha amiga, eu coloquei o nome da minha filha de Manoela, em homenagem a essa pintora. E claro que isso foi, quando eu conversei com a minha mulher, falei o motivo, era uma amiga, não foi nenhum caso, nem uma amante, nada disso, apenas uma amiga que nós tínhamos afinidades na questão da arte, então eu a homenageei dando esse nome a minha filha. Agora, ter um filho, não sei se você tem, mas eu acho que é o que eu tava falando na pré-entrevista, você passa, muda o paradigma de vida também, você passa a ter uma outra dimensão do que é um ser gerado a partir de você. E a responsabilidade de pelo menos os passos iniciais da vida dessa pessoa, você ser o responsável, né?
P/1 – E a infância da sua filha? Você quando criança, teve uma formação religiosa, mas o pai trouxe um pouco da música, o quê que você vê presente nessa infância, nessa construção dessa criança que faz muito parte da história da sua vida, assim? Como que foi esse pai Saulo? O quê que você fazia, como que você pensava? Como você tratava a sua filha e o quê que você fazia por isso, né, as suas histórias com ela?
R – A gente… minha preocupação sempre foi como é que eu vou dizer? Dar o que era melhor para essa filha, né, e nós… minha preocupação foi sempre em suprir, claro, além do lado material, eu acho que dar a ela desde a tenra idade, a oportunidade de ver o outro ser humano como ser humano, acho que isso é fundamental. Nós tínhamos um projeto onde nós morávamos chamado SOS Vida na época e a gente trabalhava com crianças carentes e de rua e a minha filha participava desde catatauzinha. Então hoje ela é uma pessoa que às vezes, ela para na rua e divide o almoço dela com uma pessoa de rua. Ela tem uma percepção do social, dessa necessidade de olhar o outro como um igual que eu acredito que tenha muito a ver com essa nossa construção juntos. E a parte musical, fiz uma música quando ela nasceu também. Então, a música esteve sempre muito presente. Então, eu acho que o papel do pai hoje, no meu caso, né, é você dar o básico para o seu filho, além do material, mostrar a ela o que é a vida, o que é mundo, o que são as pessoas, como é que as pessoas se inter-relacionam, né?
P/1 – Ensinou música para ela?
R – Ensinei. Durante um tempo, ela disse que ia levar, não sei o que, mas não… canta muito bem, mas tocar um instrumento, ela não toca, mas foi estudar na universidade que o pai estudou. Hoje ela faz na PUC, tá terminando o curso de Direito e acredito que tenha alguma influência aí nossa durante a infância.
P/1 – O nome da sua mulher e da sua filha?
R – Minha mulher chama Sandra paulino, minha filha, Manuela Paulino e Silva.
P/1 – Tem alguma história dessa família?
R – Eu acho que a gente tem histórico de opressão muito parecidos, sem entrar em detalhes, mas eu acho que a afinidade construída ao longo desses anos tem também como fator essa questão da origem familiar, de serem famílias difíceis, complicadas, a aceitação do nosso relacionamento por ambas famílias não foi tranquila, foi difícil e essa dificuldade, eu acho que fortaleceu esse relacionamento, porque éramos nós e nós. Então, não foi uma família construída assim, com essa proximidade de vó, de vô, de tios. Até houve a presença dessas pessoas, mas não como lago diário. Eu acho que o distanciamento nos proporcionou um fortalecimento interno dessa família, do núcleo familiar, né?
P/1 – Eu vou voltar em uma história antes da gente prosseguir para próximo do final que eu acho que faltou durante a sua infância. Você comentou sobra a história do trem que ia até a casa da sua vó, quando você chegava lá, a sensação de chegar na casa da sua vó, o som do trem, acho que eu queria que você pudesse contar essa história que tá tão viva na sua memória.
R – Foi importante você tocar nesse assunto. Eu sou um… nãos ei se existe o termo, mas uma espécie de “ferromaníaco”, eu gosto de trens, inclusive, eu tenho um blog chamado “Caminhos de Ferro”, e nesse blog, eu recupero um pouco da memória ferroviária na cultura, é um trabalho assim, bem pessoal que já rendeu bastante frutos, conheci muita gente legal. Então, talvez, essa história do trem… porque o trem era m motivo de alegria: “Vou para a casa da minha vó”, e lá na casa da minha vó, minha vó não tinha essa história de ir para a igreja, não tinha o ferrão, era um território livre – entre aspas – mas livre, né? Cada um… então, era menino, subia no pé de goiabeira, ia brincar de carrinho, não tinha aquele cerceamento, aquela constante vigilância. E o trem representava isso no momento em que meu pai fazia a brincadeira de que o som das rodas no dormente, do atrito, o trem estava dizendo que nós estávamos indo para a casa da vó, então ele fazia: “Pra casa de vovó, pra casa de vovó…”, lembra muito aquele poema do… é mais ou menos a mesma ideia daquele poema do Manuel Bandeira: “Café com pão/ café com pão/ café com pão…”, né? Então: “Pra casa de vovó, pra casa de vovó…” e isso ficou, pra casa de vovó esse nome de alegria, de boas lembranças, né? Inclusive nesse desenho que eu te disse que eu fiz, que eu disse para ele anteriormente que como eu não tinha uma imagem da casa da minha vó, posteriormente, eu obtive essa imagem, eu desenhei a cada conforme a minha memória lembrava. E hoje, a casa da minha vó, o terreno, ele existe sem nada, não tem construção nenhuma, é um estacionamento de caminhões. Então, eu fiz o desenho conforme eu imaginava, peguei um editor de imagem e sobrepus a imagem dessa casa imaginaria no terreno vazio, né? Então, aquela casa ali. Então, essa casa é a casa da lembrança, até a foto poderia chamar casa da lembrança, porque é o que mais marcou em termos de infância, de alegria. E eu desenhei a casa por dentro, então, o bacana é isso, porque você… como é a casa por dentro? Onde ficava a sala? Onde ficava o quarto? O quarto que eu dormia, o que tinha nesse quatro? Como era a disposição dos móveis e como era o cheiro da casa? Isso é muito vivo na memória. Então, por isso foi uma… pra mim, foi um momento muito importante da vida, né?
P/1 – Voltando a alguns temas que eu acho que são bem importantes na sua história, em algum momento da sua juventude, você quis ir atrás das suas origens, eu queria que você contasse como foi isso, porque te motivou, mas o que fez você perceber que você precisava saber mais sobre a sua história?
R – Vamos dizer assim, a motivação inicial foi a busca da cidadania portuguesa. Eu sabia de ouvir dizer que a minha avó era portuguesa, nunca li um documento dela dizendo que ela era portuguesa de origem, mas isso me motivou a buscar. E eu comecei a fazer alguns levantamentos, escrevi para algumas pessoas, parentes no Rio de janeiro para que me dessem algumas dicas, algumas informações ou posteriormente, algumas fotos e isso acabou me motivando a ir além da cidadania portuguesa, porque eu comecei a perceber que estava buscando a mim mesmo, conforme você busca as suas origens, quem são os seus ascendentes, de onde você vem, de onde eles vieram, como é que foi essa história, até chegar hoje, quem sou eu, quem é minha filha e a história das pessoas. Por isso que esse museu eu acho muito bacana, quem são as pessoas? Que histórias são essas que compõem a grande história do nosso país? Então, a partir daí, eu vi que… eu senti que a gente tem uma história pessoal e buscar essa história é buscar você mesmo e quando você busca você mesmo, você tá querendo respostas. Essa busca é pra buscar respostas, talvez, elas não cheguem como você espera, né? Mas hoje eu me sinto mais realizado sabendo um pouco quem foi o meu avô, quem foi a minha avó, mesmo que ainda mais para o oral, mas tem um caminho dado aí que a gente já tem mais ou menos ideia, né?
P/1 – Vamos caminhando… o hoje, como é o hoje na sua vida? Você publicou dois livros?
R – Eu publiquei quatro livros. Em 2005, eu até trouxe só para deixar registrado, esse aqui é a publicação desse calhamaço que é a tese de doutorado, que originalmente chamava “Construção das Identidades Sociais de Alunos deficientes nas Conversas sobre Textos”, então, aqui objetiva saber como que o aluno cego constrói a identidade dele, no momento em que ele interpreta o texto. Essa identidade na perspectiva linguística é a partir das pistas textuais, então por exemplo, saber como ele se concebe na sociedade, como ele próprio se concebe como ser humano. E foi muito bacana, eu aprendi muito com essas pessoas, eu acho que ao entende-las, eu entendi também um pouco de mim, eu acho que isso tudo tá muito relacionado. Então, eu não posso falar que esse é apenas um trabalho acadêmico, que eu busquei saber sobre o deficiente visual, mas acho que ao mesmo tempo, o momento que você faz a análise de dados, se aprofunda, você vê um pouco da sua própria história, não como cego, mas como ser humano, ne? Então, o deficiente visual, por exemplo, como é que ele se vê na sociedade? A imagem que ele constrói é negativa, porque as histórias de vida que eles contavam deles… porque é assim, o cara começa a interpretar um texto, mas ao mesmo tempo, ele começa a falar dele, então você sai da mera interpretação de um texto e passa a entrar na vida da pessoa. Então, em diferentes momentos, eles contavam experiências cotidianas, então, toda vez que essa experiência aflorava na conversa de depois na analise, você via que a identidade, a imagem social dele, que ele tinha em relação à sociedade era negativa. Então, o cego é sempre incompetente, sempre incompleto, sempre aquele que não produz, então por exemplo, uma menina narrou uma história: estava no ponto de ônibus, ela perguntou se aquele ônibus servia para ela. E a pessoa ao lado, que evidente, a pessoa que enxerga, ao invés de responder diretamente para ela, respondeu para uma outra pessoa ao lado dela, como se ela não estivesse presente. E outras situações. Agora, quando ele próprio fala a res[peito de como ele se concebe socialmente, ele fala: “Eu sou capaz”, ele fala: “Eu fui fazer tal coisa, consegui fazer, sou competente”, então ele constrói uma imagem positiva dele. E esse aqui eu queria deixar para o Museu, não sei se dedico a alguém, ou fica sem dedicatória, vocês depois decidem, mas que é a publicação dessa tese de forma um pouco mais simplificada, leva também um outro titulo, chamado “Percebendo ser”, então eu acho que a defesa dessa tese, pra mim, foi o grande marco de consolidação da minha vocação como pesquisador.
P/1 – O dia que você defendeu a tese ou o dia do lançamento do livro, como foram esses dias?
R – Dia da defesa foi um dia, pra mim, muito difícil em termos de vamos dizer assim, é como se tivesse no banco dos réus, toda defesa é você se colocar à prova, né, para a Banca. Depois eu fui Banca, várias Bancas aí, a gente tem condescendência com o candidato, mas é um ritual de passagem, você é obrigado a passar, então na condição de candidato ao titulo de doutor, para mim, foram três horas acho que de defesa, foi puxado. Você é colocado à prova e te causa uma certa apreensão, você fica: “será que eu consegui dar o recado?”, porque você faz a exposição, aí você senta lá no seu posto, ali na sua cadeirinha de… na sua cadeira elétrica e você fica ali esperando a condenação da Banca. Mas é claro, a gente sabe que às vezes, é uma mera formalidade, mas te traz uma tensão, te traz uma… agora, o resultado te traz também a felicidade do reconhecimento de um trabalho, acho que isso, também, é muito marcante, pra mim foi.
P/1 – Quais são as coisas mais importantes, salvo que você passou por toda essa história, o que hoje é o mais importante para você?
R – O que é mais importante? Mas em relação ao quê?
P/1 – Pode ser a sua percepção através da sua própria história, mesmo, o quê que hoje é a sua grande referência?
R – Eu acho que hoje… eu penso que a vida é mais simples do que nós imaginamos, nós a complicamos. E que a nossa vida, a nossa história de vida é um plantio, que em algum momento, a colheita será feita. Eu digo isso tanto em termos profissionais, como no caso desse trabalho, ou em termos pessoais, eu acho que esse caminhar é pontuado por uma série de experiências que acabam em algum momento desaguando nisso que nós somos hoje. Então, o trabalhar para mim, esse investimento que eu fiz profissionalmente falando, lá atrás, quando deixo a Educação Física, vou procurar Sociologia, pego o trem do Pantanal, depois entro em Letras e assim vai até chegar na defesa de uma tese de doutorado foi uma busca, um investimento. E hoje as respostas estão sendo dadas. O resultado, eu me acho um ser humano melhor hoje.
P/1 – Seus sonhos?
R – Meus sonhos. Eu tenho um projeto que eu investi há um tempo na realização, que infelizmente, não foi possível no campo profissional que é a construção de uma faculdade de educação inclusiva. Esse projeto existe e o meu sonho é que eu consiga um mecenas que um dia chegue e fale: “Saulo, vamos fazer essa faculdade?”, a faculdade em que o professor comece a ser formado pensando em inclusão e saia formado pensando em inclusão, porque eu acho que a base para se construir uma sociedade, de fato, inclusiva, de fato, justa, ela tem que partir de uma cultura e essa cultura tem que ser gestada em algum lugar. Então hoje, os cursos universitários que formam professores na escola para trabalhar em sala de aula, eles não dão essa base. Então, o meu sonho seria poder ter a graça de um dia, esse projeto sair do papel e ir para prática.
P/2 – E uma ferrovia que você quer fazer?
R – Aí, eu tenho uma utopia. Minha utopia é a seguinte, se eu fosse um cara cheio de grana… aí eu tô indo para uma viagem mesmo, né? Eu construiria uma ferrovia dentro… faria um circuito cultural ferroviário dentro de uma fazenda e possibilitaria que as pessoas fossem, tivessem acesso a essas informações. Eu sou membro da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, meu sonho é um dia trabalhar como maquinista lá, mas porque talvez lá atrás, quando eu ia para casa de vovó, o trem era uma coisa que era importante, então… e ele faz parte da nossa história, então eu acho que isso é muito presente. não sei se eu respondi, Felipe.
P/1 – Deixamos alguma história que você queira contar?
R – Alguma história? Eu acho que há sempre histórias, né? E aquela… sempre vai ter a história que não foi contada e vai faltar, mas assim, eu acho que aqui, primeiro, a história de vocês, eu acho que para mim é marcante a história desse museu, o propósito, essa dedicação, então, essa história de contar histórias para mim… hoje tá sendo um dia muito feliz, de deixar aqui um depoimento que talvez sirva para algo no futuro para alguém. Das minhas histórias pessoais, sempre haverá histórias, mas eu acho que nós, aqui, abordamos de uma maneira bastante interessante aquilo que foi mais marcante, mais importante, né, que é desde a infância, da casa paterna até hoje, a construção da minha família e essa passagem pela morte, pelo retorno, eu acho que isso dá uma dimensão bastante geral do que foi a minha vida. Eu tô bastante satisfeito.
P/1 – Você respondeu a última pergunta que seria: como foi contar a sua história?
R – É isso, eu acho que foi essa experiência divina, esse momento de que você se vê falando de você mesmo. Pra mim, é meio inusitado, contar de mim mesmo, de particularidades, porque a gente sempre tende a contar o que nos interessa e quando alguém pergunta algo que você não tá esperando, você tem que tocar em pontos que nem sempre são muito agradáveis, né? Abrir um relacionamento de família, problemático, isso nem sempre é tranquilo, como você mesmo disse, há pessoas que choram, se emocionam, né, porque cada ser humano é um universo, né?
P/1 – Então Saulo, a gente encerra o registro da sua história de vida, ainda tem um processo longo de salvaguarda da sua história, como eu já comentei antes. Em nome do Museu da Pessoa, do Felipe, do Gabriel e acho que de todos nós aqui do Museu, agradecemos a sua confiança no nosso trabalho e agradecemos a oportunidade de você deixar registada a sua história na história desse museu que vive de cuidar da história das pessoas desse país. Então, nós agradecemos. Em nome de todos nós, muito obrigado.
R – Eu também agradeço e saio daqui renovado e muito feliz de ter contribuído para esse acervo tô rico que eu acho fundamental para entendermos quem somos, né, nós brasileiros hoje.
P/1 – Obrigado.
R – Obrigado.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher