Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Josefa da Rocha Freire
Entrevistada por Antonio Domingues e Thiago Majolo
Sobradinho, 08/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV090
Transcrito por Edson Arruda
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 05/02/2009
P1 – Vou pedir para a senhora dizer o nome, o local de nascimento e a data de nascimento.
R – Eu nasci no Sento Sé, num local chamado Ilha do Tamanduá. Eu nasci no dia 18 de setembro de 1943.
P1 – E qual é o nome inteiro?
R – Josefa da Rocha Freire.
P1 – E o nome do pai da senhora, qual era?
R – José de Souza Freire.
P1 – E a mãe?
R – Vitória da Rocha Freire.
P1 – Qual era o trabalho deles?
R – Trabalhavam de lavradores.
P1 – E era na beira do rio?
R – Era. A gente morava na margem do Rio São Francisco. Aí, a gente veio para aqui por causa do negócio da barragem. Eles botaram a gente para cá. A gente saiu, sentiu muito. Analise que não é fácil para a gente nascer na margem do rio e parar no centro da fazenda, olhar para um lado e olhar para o outro e não ver rio. É muito difícil de a gente se acostumar. Eu mesma estou com 31 anos que eu moro aqui, não consigo me acostumar morando aqui porque a minha família, os meus parentes muito longe. Ficou muito difícil sair da margem do rio para vir parar aqui.
P1 – Conta para a gente um pouco como é que era a infância da senhora. O que a senhora fazia?
R – Eu trabalhava também na roça, trabalhava na roça. Eu ia para a escola, comecei a estudar garota. Aí, eu ia ajudar na roça, ajudar meus pais na roça. Tem trabalho também de casa, mas eu sempre ajudava na roça. E depois que eu fui crescendo também, eu fui sempre trabalhando em roça, me aposentei como lavradora. A minha aposentadoria é de lavradora.
P1 – E qual era o trabalha de roça do São Francisco?
R – A gente plantava era feijão, plantava batata, os mantimentos aqui tudo são comprados, lá a gente fazia era plantar. Tinha roça na beira do rio. Quando o rio enchia, a gente tinha que colher as plantas e, quando o rio voltava, a gente tornava a plantar de novo. Era assim o meio da gente viver lá. Era assim lá na roça.
P1 – E pescava também?
R – Pescava também. Lá eram os peixes escolhidos, não é que nem aqui que a gente pega os peixes desse tamanhinho (risos). Lá só pegava peixe grande, e aqui não tem mais peixe grande. Acabou surubim, pirá, esses peixes aqui não têm mais, não. Só têm esses peixinhos pequenos, o melhor acabou. Os outros, eu acho que ficaram nos lugares mais fundos do Rio São Francisco, não vieram para aqui, não. Foram tudo para a represa.
P1 – E a cidade, como era?
R – A cidade mais perto de que a gente morava... A gente era do município de Sento Sé, mas a cidade mais próxima era a Casa Nova, a gente vendia e comprava em Casa Nova. Mas era boa também essa cidade. Era bom, muito bom. As festas da igreja, a gente ia para Casa Nova, tinha festa de São José, a gente ia para a Casa Nova. Sento Sé ficava mais distante, e agora Sento Sé ficou mais distante do que Casa Nova, mas é bom demais. Quando for daqui para lá é melhor do que aqui.
P1 – E como foi o dia que contaram para a senhora que ia ter que sair?
R – Ah, o dia que eu saí de lá de minha casa para vir de mudança para cá, eu pensei que ia morrer. Quando despedia da família, porque eu fui uma das primeiras que saí, para mim foi horrível, foi horrível. Ainda bem que meus pais vieram comigo para aqui. Ficaram os meus parentes, filho, primo, cunhado, essas pessoas ficaram para trás. Mas foi horrível, foi horrível, eu pensei que não ia resistir (risos) no dia da minha mudança para aqui.
P1 – Por quê?
R – Demorou muito para me acostumar, como eu ainda não me acostumei. Demorou muito para me acostumar.
P1 – Mas como passaram a notícia para a senhora, para a comunidade?
R – Sempre ia uma pessoa lá avisar a gente: “Ah, vocês têm que sair daqui.” Levavam a gente para as agrovilas, mostravam como eram as coisas lá na agrovila, mas tudo mentira. Eles mostravam cada espiga de milho, mas, quando fomos para lá, não alcançaram. Somente mesmo para iludir as pessoas. Quem foi para a agrovila voltou. Ainda tem gente lá, mas muitos voltaram, muitos voltaram para cá, para Casa Nova, depois voltaram para Sento Sé, outros ficaram em Caldeirão Grande. Eu tenho uma irmã em Caldeirão Grande, passei trinta anos para ver minha irmã.
P1 – Dona Josefa, as pessoas não queriam sair?
R – Não, não queriam, não. A gente tinha o maior amor pela terra da gente, a gente saía só quando a gente morresse (risos). Tem que ir, né? Mas a gente foi quase expulso da terra. Foi como uma coisa assim expulsada, porque a indenização deles foi uma negação, foi uma migalha mesmo. A indenização que a gente recebeu lá não deu para construir essa casa, foi uma negação. O pessoal de Juazeiro lutou muito pela organização da gente, o José Rodrigues lutou muito pela organização da gente.
P1 – E as pessoas escolheram para onde elas iam ou não?
R – É, cada um escolheu. O meu marido escolheu vir para aqui, eu não queria, mas ele escolheu vir para aqui, e outros foram para lá, para a agrovila, levado pela chance que teve. Lá onde a gente morava, a gente via o rio e a navegação passar. Beleza, via o vapor passar, tinha parentes nossos que viajavam a bordo. Então, era uma beleza.
P1 – A senhora fazia a viagem no vapor?
R – Fazia. Eu fui à Pirapora em 64, eu fui de vapor pelo São Francisco. Era época da seca, passei 14 dias no São Francisco, de Casa Nova a Pirapora. Já quando eu voltei, o rio estava cheio, e eu vim em sete dias. O rio estava cheio, diferença grande, né? Viajei em sete dias.
P1 – Por que na seca o vapor para?
R – Porque na seca, ficam piores os caminhos para o vapor andar, porque fica seco, fica raso. Tem que procurar aqueles trechos mais fundos para a navegação. Com isso, acabou a navegação. Hoje, a gente viaja de rebocador. A navegação a vapor acabou, está tudo encostado. O vapor Saldanha Marinho está ali em Juazeiro, no rio seco.
P1 – O que a senhora mais se lembra dessas viagens?
R – O que eu me lembro mais dessa viagem?
P1 – Como era a viagem? O que acontecia?
R – Ah, era bom demais, era bom demais, gostoso viajar (risos). Era bom demais.
P1 – Mas, dentro do vapor, o que se comia, o que se fazia?
R – A gente ficava na primeira do vapor, num banco, como se estivesse aqui, na primeira do vapor. A comida era a de sempre, almoçava no vapor, tinha as cozinheiras para fazer o almoço. Tinha dormida. A gente dormia no vapor num quarto, como se estivesse em casa. No vapor, os vapores São Francisco, Benjamim, Barão, era bom demais de viajar a vapor. Era a mesma coisa de estar dentro de casa, só era no rio. O vapor no rio, em casa estamos secos, né? Mas é beleza viajar a bordo, sinto saudade ainda daquele tempo (risos). Como eu sinto saudades... É melhor do que a gente viajar de carro, todo prensadinho. No vapor, a gente está andando, está andando como se estivesse em casa, e no carro a gente está ali sentada. Nesse ano passado mesmo, eu fui para as festas de Bom Jesus na Lapa, eu fui de ônibus. É muito agitado ficar sentada.
P1 – E como era a paisagem do São Francisco?
R – Ah, legal demais.
P1 – O que a senhora via?
R – São as cidades que a gente passa na beira do rio. Beleza, viu? A cidade de Januária. É bonita demais a cidade de Januária. Achei legal a cidade de Januária, e outras e outras. É lindo demais.
P1 – A senhora descia nos portos para visitar?
R – Descia. Quando chegava na cidade, a gente ia passear na cidade. O vapor esperava, tinha hora marcada de sair e levava muito tempo a gente passeando. Era legal.
P1 – E o apito do vapor?
R – É! Dá muita recordação, viu? Quando a gente ouvia o vapor buzinar, já sabia que ele ia encostar, ia lenhar, porque tinha um lenheiro para eles lenharem. E a gente já ia correndo para o vapor, para ver um parente, a gente ia para o vapor. É bom demais morar na margem do rio para ver a navegação passando.
P1 – O que as pessoas sentem quando elas escutam o apito? O que as pessoas sentem?
R – A gente sente tanta recordação, porque é só recordação que a gente tem. Hoje, a gente não vê mais o apito do vapor, não se vê mais. Daqui é que eu não vejo mesmo, nem as barcas de motor eu vejo.
P1 – E Sento Sé foi toda alagada?
R – Foi. A cidade de Sento Sé, a cidade velha está debaixo d’água. Hoje, tem a cidade nova, também é bonita a cidade de Sento Sé, bonita. Eu tenho um irmão que mora lá em Sento Sé, e é muito bonita Sento Sé. A cidade nova é mais bonita que a cidade velha (risos). É mais organizada, é que nem Casa Nova. Na cidade, a Casa Nova fica mais organizada, é mais para frente.
P1 – Mas está na beira do lago ou não Sento Sé?
R – Sento Sé está à beira do lago. Casa Nova ficou para cima do lago, um pouco mais afastada. Agora, Sento Sé não. Sento Sé ficou na beira do lago. A gente vai para Sento Sé e vai logo para a beira do rio: “Vamos para o rio, vamos ver o rio!” É na cidade de Remanso. Chega em Remanso: “Vamos para o rio, para a praia de Remanso!” Casa Nova ficou mais longe, mas também não é tão longe. Mas, antes, era mais perto, antigamente era mais perto.
P2 – E as casas, as construções são parecidas com a cidade velha ou são diferentes?
R – São diferentes. Em Casa Nova, hoje, as casas são diferentes. Tem muita casa que é diferente.
P2 – Como era a sua casa na infância?
R – Minha casa na infância? Minha casa na infância era de taipa, era uma casa de taipa, era maior do que essa. O modelo podia ser a mesma coisa dessa, mas só a diferença que era uma casa de taipa, e essa é de alvenaria. Mas eu gostava, se eu gostava... (risos)
P2 – Tinha muita brincadeira no rio? Como era?
R – A gente ia banhar, nadar. Hoje eu não sei mais nadar, tenho até medo de ir para o rio. Pode me dar maior valor de dinheiro para atravessar o rio, que eu não vou. Tenho medo. Só atravesso quando passo de ônibus, de Juazeiro para Petrolina, mas de barca não vou. Tenho medo. Fiquei muito nervosa com o rio (risos). Parece que mais fundo o rio do que lá onde a gente morava. Tudo costume. Porque nasceu e se criou na beira do rio, a gente já conhecia aquele local que a gente morava. Era muito diferente de hoje. Hoje, a gente chega na beira do rio e já acha coisa estranha, porque a gente não conhece o local que está aquele povo. Agora, onde a gente morava, não. Conhecia, a gente banhava bastante. Hoje a gente, para banhar, tem que ter um banheiro, se não vai tomar banho de luto (risos). No São Francisco, a gente ia banhar, ia tomar banho, ia nadar, fazer exercício, ia nadando. Hoje é diferente, tem grande diferença do antigamente para hoje, é muito diferente.
P2 – Tinha muitas histórias de rio, lendas, essas coisas que o pessoal contava? “Ah, tem um caso ali de uma pessoa que sai do rio...” Aquelas histórias da infância? Tinha muita coisa assim?
R – Os mais velhos contavam muita história, mas eu não estou muito, muito consciente. A gente esquece muito daquele tempo de antigamente.
P1 – O nego d’água?
R – Tinha o nego d’água, tinha lontra. A lontra, a gente estava assim em casa e, quando via, lá vinha, descendo e, quando a gente saía para olhar, ela mergulhava e ela ia sair lá na frente. Ela não ficava para a gente ver ela, não. Quando havia que a gente estava vendo ela, ela tchum! Mergulhava, não ficava com a cabeça de fora para a gente ver muito tempo, não. Logo ela mergulhava.
P2 – Como é o nego d’água?
P1 – A lontra era o nego d’água?
R – Não. Dizem que o nego d’água é outro, a lontra é um rio. Nego d’água é outro. Nego d’água eu nunca vi, não (risos).
P1 – Mas o que o pessoal fala?
R – O pessoal que faz medo do nego d’água. “Não vai, se não o nego d’água pega. Se você for, o nego d’água pega.” Mas eu nunca cheguei a ver o nego d’água. Na lagoa, eu via muito desse, muitas vezes eu via a lontra, mas nego d’água eu não cheguei a ver, não.
P2 – Mas tinha medo dele?
R – Tinha. Quando os mais velhos contavam, a gente tinha medo, tinha bastante medo (risos).
P1 – E a senhora se lembra da primeira vez que entrou no Rio São Francisco?
R – A primeira vez eu não lembro, porque meu pai atravessava... Porque tinha uma irmã que morava desse lado, e a gente morava numa ilha. Eu nasci e me criei numa ilha, era Ilha Tamanduá. Ela ficava cercada, mas tinha bastante morador. Aí, a gente atravessava de barco da ilha para a terra firme. E a gente atravessando para terra firme.
P2 – Quanto tempo demorava?
R – Era logo porque, se estivesse ventando, era logo também que atravessava o rio. Porque não ficava muito distante, porque tinha a ilha ficava no meio. O rio era muito largo, mas tinha a ilha no meio. Aí, ficava um rio para um lado e o rio do outro, mas a diferença não era tão grande de largura do rio para a ilha. Era logo chegando. Também, se não estivesse ventando, ia a remo, botava a voga, e em um instantinho chegava no porto.
P1 – A senhora atravessava nadando também?
R – Atravessar o rio eu nunca atravessei, porque era muito fundo (risos). A gente tomava muito banho, mas era no porto mesmo, perto. Porque, quando era na nascente, o rio secava, ficava assim no cascalho. Aí, ficava raso, a gente ia até fora. Mas, quando chegava mais no ponto da navegação, era fundo, a água era escura. É escuro. Aí, morria gente afogada se brincava muito no fundo, e a gente pegava, virava barco. Agora, graças a Deus, nunca me aconteceu do barco virar comigo. Eu tenho muito medo do barco virar, mas, quando a gente vê o barco andando, aí emborcava, e as pessoas em cima gritando: “Me acuda!” As pessoas iam pegar outro barco e pegar aquela pessoa que estava aflita.
P2 – E essa ilha chamava Ilha do Tamanduá. Por quê?
R – Era registrada como Ilha da Inácia, mas eu não sei por que, não sei se pegaram algum tamanduá, eu não sei. Aí, o pessoal chamava de Ilha do Tamanduá, mas ela era registrada como Ilha da Inácia. É grande, muito grande. A gente rezava muita novena, passava quase um ano rezando novena. O pessoal de antigamente era mais devoto do que o de hoje. Hoje, a televisão tirou muito o pessoal da igreja, todo mundo fica só na televisão. Todo mundo tem televisão, naquela época todo mundo era devoto. A gente rezava mês de janeiro e, quando terminava janeiro, era a Nossa Senhora dos Navegantes. Depois, chegava mês de maio, era mês de Maria, nós rezávamos o mês de maio todinho, o mês de Maria. Chegavam São João, Santo Antônio, São João. Quando chegava setembro, era Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Quando chegava dezembro era Santa Luzia, era desse jeito. Quando faltava chuva, fazia promessa para chover, saía aquela devoção, no sábado à noite, rezando, era um costume. Aqui o pessoal não usa isso. Aqui o pessoal se queixa: “Ah, não chove, não chove.” Não tem desculpa porque não tem, porque Deus botou nós aqui e deu uma missão a cada um. Só que o pessoal não procura qual é a missão, ninguém sabe qual é a missão que Deus deu. Mas tem de procurar a missão que ele deu e que não deu, e fazer alguma coisa, se não fica parado. Que nem vocês estão aqui hoje, é uma missão.
P1 – A senhora falou em penitência.
R – Eu fazia penitência para chover, sabe? Quando estava cinza, o pessoal fazia aquelas promessas para chover e saía rezando. Saía com uma vasilha de água na cabeça, botava o santo no andor, saíam quatro pessoas, carregando aquele andor e rezando, rezando. Lá na ilha a gente usou muito isso, mas aqui o pessoal não usa, não.
P2 – E tinha festa lá?
R – Tinha, o pessoal gostava muito de fazer festa para São Gonçalo, porque São Gonçalo do Amarante, que mora em Casa Nova, a gente vai buscar ele lá para fazer a festa aqui (risos). Em 2005, a gente tem um São Gonçalo aqui, a gente ia buscar São Gonçalo em Casa Nova para a fazer a festa de São Gonçalo.
P2 – Como é essa festa?
R – Na festa de São Gonçalo, o pessoal vai dançar e faz comida para dar a todo mundo que está ali. É bem gostoso.
P1 – E a senhora, quando teve que sair de lá, poderia ter ido para a cidade de Sento Sé?
R – Era. Mas meu marido trabalhava em campo como vaqueiro. Aí, ele nunca quis ir morar na cidade, ele só quer trabalhar assim com criatório. Trabalho dele na roça e, quando na roça, é com criatório, trabalhar com gado, com ovelhas. É assim o trabalho dele. Ele nunca cansa de trabalhar com animais, ele gosta, profissão dele que ele gosta mesmo de trabalhar.
P1 – A senhora, quando a senhora olha para o lado, se lembra de onde era a cidade?
R – Ah, ontem mesmo estava falando para minha filha. Tem hora que eu me recordo do pé de juazeiro, cada pé de pau, eu me recordo do lugar que a gente morava. Eles não lembram porque, quando eu vim para aqui com eles, a Valdelice tinha oito anos, o Valdemar tinha seis anos. Eles não lembram muito, eram muito pequenos. Eles não lembram das coisas de lá onde a gente morava.
P1 – Mas, olhando o lago assim, a senhora se lembra de onde era?
R – Hoje, eu indo, por exemplo, daqui para lá de barco, eu não sei mais onde a gente morava, porque o rio pegou. Acho que deu umas 5 léguas de distância de água de onde a gente morava. Agora, já tem um outro lugar que dizem que a água está botando de fora, porque ele, só com água para as outras barragens, seca a represa. Tem muito lugar lá onde a gente morava que já está no seco, da rodagem que vai para Sento Sé está no seco. Tem muito lugar que vai para lá que já está no seco. Se tivesse a casa em que a gente morava, eu ainda ia lá, mas se secar é um perigo por causa da água. Se o rio lá secar, onde a gente morava, lá fica mesmo no rio. Aí, as outras cidades sofrem muito por causa da água, tem que chover mesmo para encher o lago.
P1 – Porque eles fizeram a barragem?
R – Eles fizeram a barragem acho que para dar valor às grandes empresas que vendem energia. Agora, analise só: tiram a gente da beira do rio, botam para as caatingas, e eles vão vender energia para as grandes empresas, porque energia daqui, muito grande mesmo a energia. Eles vendem para as grandes empresas, porque o homem gosta de destruir mesmo, porque tem muitos que gostam de destruir. O rio está sendo destruído, está acabando mesmo porque eles fazem a barragem e depois de muitos lugares para cima, que o rio já está para cima, aí fica acabando o rio, cada vez mais o rio fica menor. É difícil. Aqui para nós o rio está grande, para quem mora da represa para lá tem muita falta do rio, muita falta mesmo. O rio já está para lá de onde era o rio normal. Aí, fica muito difícil.
P1 – Como era o rio antes?
R – Antigamente, o Rio São Francisco era de um jeito só. Hoje, por causa das barragens que eles fazem... Não sei como eles têm maquinários que cortam o rio e não atrapalham o trabalho deles, né? Depois volta o rio ao normal de novo, a margem passa, o rio fica para um lado. Fica muito difícil o rio. Lá, quando era antigamente... Hoje, está cheio por causa da represa, porque a represa fica em Xique-Xique, para lá o rio já está se acabando. Em Bom Jesus da Lapa, quando cheguei lá, o rio antigamente agora está sendo a cidade, está sendo a cidade. Eu fiquei: “Meu Deus, o rio!” Caminhei um caminho distante para avistar o rio, e onde era o rio é a cidade, construção de casa, é casa, casa mesmo. E o rio está aquele bracinho. Aqui não, tem a represa de Xique-Xique para cá, a água está aí, do lago, mas de Xique-Xique para cima o rio acabou, que até para a navegação está difícil. Agora mesmo, veio o marido de uma prima minha que mora em Pirapora, veio de rebocador. Ele agora vai subindo, fazendo trabalho no rio, só vai chegar em casa em janeiro com trabalho de vinho, vai procurando botar naquela boia, a navegação, ver para onde tem que passar. E antes não tinha isso, não tinha negócio de navegação passar. Vai direto, e aí que vinha o rio. Aí, ficou muito difícil o rio.
P1 – Como que é rebocar?
R – Ele é um tipo assim, que nem uma barca. Tem a casa, tudo fechado, tinha que nem uma casa, e é a motor o rebocador. Mas ele só viaja no lago com as lanchas rebocadas porque ele não pode viajar só. Ele só fica dançando na represa. Da represa para lá, ele viaja normal, mas a represa tem muita água, e ele fica balançando muito, então tem que ir atracado, uma lancha de um lado e outra do outro, com carga. A lancha tem que ser pesada com carga, e no meio para poder navegar. Porque num lago não pode levar um vapor, porque ele fica só balançando.
P1 – A senhora chegou a ver os romeiros, as barcas?
R – Eu alcancei. Tinha um pessoal que estava lá e viajava, mas não viajar até Pirapora, não, viajava até Remanso e para Juazeiro. Eles tinham aqueles ônibus que viajavam, empurravam com aquelas varas, botavam no peito e empurravam para ela andar. Essas barcas eram com as varas, aquelas “varonas”, o homem para a vela aqui no peito para empurrar e a navegação ir para frente. Eu ainda alcancei muito, mas as outras, mais velhas que eu, não cheguei alcançar, não. Eu era menor, se eu vi, não me lembro. Tem muita coisa que passa, e a gente não lembra.
P1 – A senhora foi para Bom Jesus da Lapa?
R – Fui esse ano passado, esse ano quem foi foi meu marido.
P1 – Foi fazer romaria?
R – Foi. Fazia muito tempo que não ia para a Lapa. Eu fui no ano passado também. Queria ver o meu irmão, mas não fui. Ah, bonito também Bom Jesus da Lapa na festa de Bom Jesus.
P1 – E a senhora participou da festa?
R – Participei, passei dois dias lá. Ali, os padres se põem tudo em romaria, por causa das missas. É muito lindo Bom Jesus da Lapa.
P1 – Como é? Conta um pouco para a gente como é a romaria lá em Bom Jesus.
R – É aquele bocado de padre, aí vai, celebra a missa bastante. É só isso, como numa igreja qualquer, né? Só que vem bastante padre, bispo de outros lugares, se reúnem tudo ali. E também a gente. É gente em Bom Jesus da Lapa quando é romaria, é gente muita mesmo, porque vem gente de todo lado. É ônibus e mais ônibus cheios de gente para ir para Bom Jesus. Nunca fui foi ao Ceará, na terra do Padre Cícero. Dizem que lá também é muito bonito, eu não conheço.
P2 – Tem alguma coisa que a senhora viu no rio que marcou muito, uma coisa diferente, um barco que afundou?
R – A coisa mais diferente era quando um barco virava, porque eu não sei como a pessoa desvirava, porque aquele barco emborcava, ficava assim com o fundo para cima, e o pessoal segurava (risos). Acho que eu não segurava. Só o medo fazia eu me soltar do barco. E o pessoal se agarrava, se atracava, esperava chegar a gente para salvar eles. Agora do que eu gostava mais do rio era a gente se banhar, se banhar, nadar, porque era gostoso demais ficar no rio tomando banho. Podia passar frio, passar calor, mas era gostoso a gente tomar banho no rio.
P2 – Mas não tinha frio, frio mesmo?
R – Não tinha não. Aqui não faz frio, não, que nem em São Paulo (risos). Aqui não, que o calor desse jeito, daí para pior. Tem vez que a temperatura quer baixar no chão de calor. Enquanto não chove, não refresca, tem que chover muito para esfriar o chão, e a temperatura fica muito forte, forte mesmo.
P1 – Dona Josefa, me conta uma coisa, só voltando um pouco, só voltando à construção da barragem. Já que as pessoas não queriam, teve alguma organização, as pessoas se reuniram para tentar...
R – Não tinha, porque o pessoal pegou de surpresa. Porque a Barragem de Sobradinho, eu nem sei quem foi o presidente que planejou essa barragem, porque passou por um monte de presidente para chegar ao presidente que fez. Aí, o pessoal pegou de surpresa. O pessoal não conhecia. Agora, por exemplo, se tiver uma barragem no local, o pessoal está todo atento, de olho aberto. Mas a gente não esperava, foi uma coisa de surpresa, a gente estava despreparado. Mas, hoje, se tiver outra barragem, a gente já sabe como se organizar com uma indenização melhor, porque a indenização foi negativa, e ainda teve político que foi a favor da enchente, um deputado em Sento Sé ainda foi a favor da enchente. Foi. Era a favor das grandes empresas para dar lucro para as grandes empresas. Ele está preocupado com pobre? (risos) A gente que vive na roça estranha muito sair da margem do rio para o sertão. Se fosse um lugar “chovedor”, tudo bem, mas aqui não é “chovedor”. A chuva é chuva rara, tem vez que chove bem, tem vez que não chega, a chuva é fraca. Aí, a chuva vem de uma vez e o solo aqui é muito raso, não é aquele solo profundo, que sustenta. E aqui, se chover logo, se chover muito, o solo é raso, mata a planta todinha, porque ela sufoca na água. Chega a gente a pisar e a baixar a terra, atola ali na chuva, que é pouca. Eles diziam que, depois da barragem, as chuvas iam ser mais constantes, e as chuvas ficaram mais fracas. Em vez de chover muito, diminuiu. Quando o homem quer saber mais do que ele, muda sempre, está se vendo que ele está mudando o tempo. Tanto é que a chuva está mudando, a chuva não vem mais no tempo que a gente espera. Antigamente, a chuva era em novembro. De janeiro, ainda era um pouco, mas fevereiro e março, até abril, chovia bem, mas agora, não. Chega o mês da chuva, e a chuva foi embora. Deu uma chuva, e tchau, a chuva foi embora. Aí, fica difícil (risos). Se Deus está lá em cima, o homem vai fazer chover sem Deus querer? Porque Deus tarda, mas não falha. Ele chega na hora certa, se a gente chamar por ele, e ele chega.
P1 – E as pessoas? Como elas foram divididas?
R – Para serem divididas de um lugar para outro, o problema é com as famílias mais chegadas. A gente, tudo acostumada perto um do outro, ter que ficar distante. O meu marido mesmo tem um tio que foi morar na agrovila. Ele dizia assim: “Olha, meu filho, os nossos parentes vão ficar para trás.” Vamos encontrar outras pessoas diferentes, diferentes mesmo.
P1 – E como a igreja ajudou? A igreja ajuda bastante aqui, os bispos, a diocese?
R – Os bispos, tem as freiras, os padres. Mesmo as freiras ajudaram muito, nessa época. Mas elas ajudaram muito a gente, ajudaram muito.
P1 – O que elas fazem?
R – Elas organizaram uma gente para ir, para a gente adquirir a Igreja de São Sebastião e um reservatório para Nossa Senhora de Achiropita. Para a festa, eles disseram que o recurso está acabando, mas a gente conseguiu um tanto e participou da Achiropita e da igrejinha de São Sebastião, porque a gente lá era acostumado com a igreja, e o pessoal daqui não conhecia igreja. Só mesmo o padre conhecia. Foi uma luta para a gente conseguir. Aqui, a minha casa, o padre vem muitas vezes celebrar a missa, porque, na minha casa aqui, passaram muitos padres, foi o Padre Chiquinho, Padre André, parece que ele é de Portugal, Padre Almeida, Padre Pedro, Padre Belmiro, e o Padre Jaime foi derradeiro, que foi embora para Sobradinho, ele está chegando em Sobradinho. E também o padre Carlos, que hoje trabalha, ele saiu da batina, casou, ele trabalhava com empresa de ônibus, saiu da igreja e casou (risos). Aí hoje tem o Padre João. Mas a Irmã Catarina ajuda muito. De 15 em 15 dias, tem encontro aqui em casa para fazer a reunião com todo mundo. Mas já estamos organizando a igreja mesmo.
P1 – E agora com a greve do fome? E, então, Dona Zefa, agora está tendo toda uma questão sobre a transposição, o bispo está fazendo greve?
R – Respeito o que o bispo está falando, mas eu acho que ele está fazendo uma coisa para prejudicar ele mesmo, fazendo uma greve de fome. Ele tem condições de passar bem. Eu achei que, para ele fazer a greve, se todo mundo fosse participar com ele, se fosse passar fome lá com ele, mas eu vou apoiar ele com a minha barriga cheia? Eu respeito muito e apoio ele fazer isso por todo mundo, só que tem muita gente que nem merece, tem muita gente ruim no mundo. Mas eu respeito ele de fazer isso. Agora, só acho que ele está se esforçando bastante para fazer isso, fazer essa greve de tantos dias que ele já passou. Lá em Cabrobó, ele passou parece que 11 dias e aqui já está bem com os oito dias. Mas eu acho muito impulsivo, porque, se Jesus sofreu por nós, ele não quer que nós soframos, porque Jesus sofreu por nós, porque conta na bíblia o que Jesus passou. Então, o que Jesus passou por nós, ele não quer que nenhum filho dele sofra, né? Eu sei que a gente sofre também, mas eu acredito que nosso sofrimento é muitas vezes nós mesmos que procuramos. Sofrimento não foi Deus quem deixou para nós, e o bispo da cidade da Barra eu acho que está se esforçando muito em fazer isso, porque tinha muitos meios, porque eu acho que tem muitos meios de ele fazer um protesto, sem ele estar sofrendo. Acredito que, como bispo, ele sabe que tem muitos meios sem ser ele se complicando de passar fome. Não sei como a pessoa resiste tantos dias bebendo água. Eu não faço porque eu não aguento, eu não aguento, não. Um dia, eu sei que aguento bebendo água. Mais de dois dias em diante, eu não aguento, não. E parece que tem um pouquinho de anemia, eu não passo fome, e ele passa tantos dias assim. Ele não é Jesus para aguentar tanto sofrimento. Ele é um ser humano como eu, como vocês, eu acho que é muito sacrifício o que está fazendo por nós, muito sacrifício mesmo. Respeito, eu apoio o que ele está fazendo por nós, só que, muitas vezes, tem muitas pessoas que não merecem um sacrifício desses. Quero dizer isso: tem muita gente que não merece ele fazer um sacrifício desse. Eu mandei lá, e a gente assistiu o terço junto com ele, e domingo vai ter uma romaria, mas eu acho muito sacrifício, porque ele tinha muitos protestos, muitas maneiras de ele resolver isso. Eu penso assim: “Ah, o rio vai morrer, ele vai morrer...” Gente, Deus está no céu, ele vai mandar chuva. Se for para o rio morrer, nós vamos juntos, porque nós não vamos viver sem água, porque tudo que nós fazemos depende de água. Nós não vivemos em uma casa sem água, nós não podemos viver sem água, passar no rio sem água. Quanto mais nós fazemos tudo e dependemos de água, tudo depende de água. Não sei até que dia ele vai resistir fazendo essa greve de fome. E tem outra: quantas pessoas, quantas crianças e adultos que já passam fome no mundo? Que a gente vê na televisão falando, no rádio, pedindo ajuda, as pessoas que estão passando necessidade. Onde o bispo pode, ele tem condição de passar bem e fazer uma greve de fome? Eu acho que ele está se expondo demais, demais, eu sinto isso, que ele está se expondo demais.
P1 – Por que a senhora acha que ele fez essa opção?
R – Eu não sei porque ele fez isso, ele já passou uns dias lá em Cabrobó e agora ele veio para a Igreja São Francisco, não sei por quê. Agora ele voltou atrás. Ele sabe que, na cidade da Barra, o rio está se acabando e ele é de lá, e ele sabe que o rio está se acabando. Mas tem um meio de protestar de outras maneiras, sem ser expondo lá ele mesmo. Agora, se todo mundo fosse lá passar fome junto com ele, jejuar junto com ele, eu mesma não ia (risos). Eu não aguento, não é de hoje. Jejuar um dia eu ainda passaria, mas no outro dia eu não aguento sem comer. Então, seja o que for, mas sem comer não vai. Ele aguentava só com água, só bebendo água, como é que pode? Eu acho um pouco difícil que ele está fazendo por ano, mas mesmo assim eu respeito e apoio o que está fazendo por nós, porque eu não tenho coragem de fazer, e ele tem, e Deus vai proteger ele para ele resistir.
P1 – Qual será a outra forma?
R – Eu acho que ele, como bispo, tem outra forma, não sei dizer qual a forma, mas ele, como bispo, tem outras maneiras de ele protestar. Mas só que o presidente não vai, ele vai continuar com esse serviço, ele não vai parar, não, porque esse nome já tinha parado. Mas sabe também o que a gente sente? Que lá também não tem água, precisam também de água, e outra: que as grandes empresas estão lá, que querem água, que querem energia, e a energia de Sobradinho está indo para muito longe, pagamento longe. Então, se não tiver água, não tem energia, porque energia é água, né?
P1 – A senhora vive na caatinga, e o projeto diz que vai levar água para as pessoas que moram no lugar seco...
R – A dificuldade que a gente passa, que a gente passa aqui de água, eu também sei que, se não tiver água, eles vão passar. A água aqui vem de Sobradinho, então eu sei a dificuldade que tem a gente ficar em casa sem água. É como muitos pobres lá também passam a mesma dificuldade sem água.
P1 – Como é aqui, como funciona a água, como é que chega?
R – A água que chega de carro-pipa abastece aqui na cisterna. Chega e despeja na cisterna. Há um mês, tem vez que 20 e poucos dias, e, se faltar e não chegar, a gente tem de comprar para vir aqui, tem uma por aí afora que é ainda mais cara. E tem esses canais, mas tem os prefeitos que ganham dinheiro. Aqui mesmo, um canal, Canal da Batateira, que era para estar beneficiando aqui a gente, que já passou por três prefeitos, que teve um que governou oito anos, até hoje continua seco. Tem o canal ali do Salitrão que também vai beneficiar muita gente e está também da mesma forma que está aqui, e o dinheiro não sei onde está vindo, que o dinheiro venha não faz a construção, né? Eu muitas vezes não culpo o presidente, culpo quem está administrando aquele dinheiro. Eu não sei onde eles jogam, e termina o dinheiro, e o serviço não está feito.
P1 – E, quando a senhora veio para cá, como foi? Como foi que você chegaram?
R – Quando a gente chegou aqui, foi um ano que estava chovendo muito. Foi bom quando a gente chegou aqui, tinha gente que estava gostando muito, tinha bastante água no riacho. Quando secou, foi um sofrimento para nós, cavar a cacimbinha para o riacho para pegar água, esperar a água chegar para encher uma lata, e não era uma lata só, eram muitas latas que eu pegava naquela cacimba com dificuldade, para depois a gente lutar para as pessoas trazerem água no carro-pipa. Às vezes, não tinha com que botar, aí a Chesf [Companhia Hidroelétrica do São Francisco] dava um tambor para cada família. A Chesf vinha de carro-pipa e botava de casa em casa até fazer um tanto. Aí, chegava lá, botava lá no tanque, a gente chegava de lá, e para as casas. E que distância tem daqui para Sobradinho? A gente não tem água encanada e já podia ter água encanada. Você vê ali em Juazeiro, em Juazeiro Quatro, Juazeiro Oito, tudo tem água encanada. Fica muito mais distante do rio, e nós aqui de Sobradinho – a comunidade mais próxima é essa aqui – não temos água encanada. A gente depende da prefeitura e depende também do bolso da gente. Quando a prefeitura não chega, a gente tem que comprar, se não fica em falta. De outra coisa se não tem, substituir a água. Em primeiro lugar, a água.
P1 – Por quanto tempo a Chesf trouxe água?
R – Foi por pouco tempo. Aí, também Sobradinho passou a cidade, a Chesf foi-se embora (risos). Quando ela foi embora, já entregou para prefeito de Juazeiro. Aí, o pipa vinha de Juazeiro abastecer a gente, e depois Sobradinho, cidade, ficou Sobradinho, a gente sofrendo com os prefeitos, os prefeitos gostam de massacrar gente (risos). A gente só é boa na nova direção. Na hora de eleição, a gente é bonzinho, chega dando tapinha nas costas: “Eu quero o seu voto.” Promete mundos e fundos, que vai fazer benfeitorias de tudo. Passa a eleição, o tempo vai passando, vai passando, chega a eleição de novo, e a gente está no mesmo lugar, do mesmo jeito.
P1 – E como foi a adaptação? Vocês trabalhavam com o rio, né? Aí vieram para a caatinga.
R – Ficou diferente porque a gente só plantava na época da chuva. Passou a chuva, ninguém planta mais nada, não tem nada. Hoje mesmo, eu vivo da minha aposentadoria. Ainda bem que o presidente inventou essa aposentadoria para o pobre, o lavrador, porque aqui de roça é muito difícil. Tem de trabalhar nos projetos, plantando os projetos.
P1 – Como são os projetos?
R – Ali mesmo, perto de Sobradinho, tem um projeto, mas ali muito já venderam o terreno para projeto, tudo em Sobradinho. São plantas. Dão o ganho para o pessoal que trabalha lá, aí melhorou muito. Esses projetos ajudam muito, ajudaram muito a classe média. Ele é bom para os pequenos, mas aqui tem muita gente trabalhando nos projetos do outro lado. Então, é um meio de sobreviver. Quem não é aposentado tem que trabalhar fora, nos projetos. Todo dia, o ônibus vai levar, vai buscar.
P1 – É projeto de fruticultura?
R – É. Aqui plantar, para plantar sem chuva, não tem como, porque a chuva, quando vem de uma vez, às vezes é pouca, foi embora e pronto (risos). A criação está atrapalhando.
P1 – Mas os donos desses projetos são pessoas que vão trabalhar no projeto de...
R – É. Dos donos do projeto, né?
P1 – Quem são esses donos?
R – Não sei nem dizer quem são porque tem muitos donos de projeto. Tem um monte de gente aí, eu não conheço, mas tem muita gente aqui de Sobradinho que vai trabalhar nesse projeto.
P1 – E a criação de bichos?
R – Só cuida mesmo da lavoura.
P1 – E a criação de bichos aqui?
R – Ah, a criação de gado é fraca porque aqui é pequeno para criar, o espaço aqui é pequeno, porque não é que nem antigamente. Lá onde a gente morava, que ia trabalhar, o campo era livre, era o criatório, mas aqui já está tudo cercado, tudo cercado. Aí, não dá para a gente ter. Tem que criar tudo pouquinho, porque não tem espaço, falta água, falta comida, e o espaço é pequeno. Criar ave, a criação de ovelha, a criação de bode é pequena. Muito pequeno para criar. Não dá para criar muito, tem que criar pouquinho porque não tem espaço.
P1 – Como é que foram cercadas as terras aqui?
R – Aqui mesmo foi cercado, essa parte aqui primeira, a Chesf foi quem deu arame. Agora, a outra parte, para cima até o asfalto, era uma associação que a gente tinha aqui. Aí, teve o Projeto São Vicente, e o Projeto São Vicente ajudou muito, de laranja. Cada sócio ganhava cinco criações e uma vaca para a gente, se precisasse vender. Hoje, quem não vendeu tem uma vaca, tem a criação. Ajudou muito o Projeto São Vicente, uma associação. Hoje, tudo é a associação, cada organização, grupo, porque um só não resolve nada, só vai mesmo o grupo.
P1 – O vocês fazem na associação, como é que o trabalho?
R – O trabalho da associação? A gente se reúne, tem ali data do mês, por exemplo, dia sete, dia oito, vai aquele grupo de sócios, 20 ou 30 sócios que tiverem, vão debater os assuntos que tiver, da associação, buscar os benefícios, pedir. Vão pedir muitas vezes, e não vem. Muitas dizem, como o Projeto São Vicente nos ajudou muito, o arame, na criação, na vaca. Mas aí o tempo foi passando, foi fracassando, porque a associação hoje está fraca. O recurso vai buscar e não encontra, visse? “Tenha paciência, espere.” Ninguém tem paciência mais... Vai esperar?
P1 – E a maioria das pessoas que está aqui no entorno veio também de cidades alagadas?
R – Foi. O pessoal que mora aqui tudinho ou morava no município de Sento Sé ou Casa Nova. Aí, teve que se retirar.
P2 – Zefa, quando a senhora soube que tinha que sair, tinha que vir para cá, o que a senhora pensou? Pensou em alguma coisa, algum plano: “e agora o que eu vou fazer”?
R – Eu fiquei pensando assim: já que vai mudar, a gente vai para melhor, mas seu engano. Foi para pior, foi pior.
P2 – A senhora achava que iam melhorar as coisas?
R – É. Eu pensava que podia melhorar, mas foi tudo em vão.
P2 – Vocês vieram como para cá? Como foi o deslocamento até aqui?
R – Viemos de carro, a Chesf dava o caminhão, transportava as coisas para gente aqui, para o lugar que a gente ia. Também, se não desse, bem naquele lugar, ele transportava de novo e levava para onde a pessoa quisesse ir. Mas lá, quando me deram a casa para eu vir para aqui: “Vocês têm que sair dia tal, vocês têm que sair.” O que me dava era raiva, porque a gente tinha boa terra da gente. A gente quer bom lugar, em que a gente nasce, que a gente tem se criado, porque amou aquele lugar que deixou.
P2 – Foi muito rápido? Em quanto tempo todo mundo saiu?
R – Em 76, todo mundo que morava na beirinha teve que sair, ou saía ou a água cobria. E o pessoal foi saindo e a água já chegando.
P1 – A senhora viu alargar?
R – Não vi porque a gente saiu antes. Lá mesmo, o primeiro que saiu fomos nós. Nós saímos primeiro, eu não vi o alagamento.
P1 – E a agrovila, a senhora nem se interessou em ir para lá?
R – A gente nunca se interessou em ir para lá, não.
P1 – Por quê?
R – A gente sentiu que lá ia ser ruim. Tem muita gente que diz que lá é ruim, não sei, não tem água, bebe água de poço de água salgada. A água lá dizem muitos que é salgada. Bebe água do poço, o rio é muito distante, bem distante mesmo, e Bom Jesus da Lapa a gente está vendo, a agrovila é longe. É um pouco distante porque é mais para o centro. Não tem nenhuma água, só para criar criação mesmo, muito salgada, ninguém aguenta beber (risos). Chega a amargo, muito ruim.
P1 – No São Francisco, era poço ou vocês bebiam água do rio direto?
R – Lá, era água do rio direto, era só chegar, mergulhar a lata, botar na cabeça. A gente plantava cebola, mas era na lata. Plantava na lata, plantava alho, coentro, plantava verdura, mas tudo na lata. Agora é tudo motor, agora é tudo motor, ninguém usa mais lata.
P1 – A senhora acha que a água do rio ainda está boa para beber direto?
R – A água está muito poluída, muito poluída. Basta ser a sujeira que cai no rio, os esgotos, as cidades que foram inundadas, cemitérios, quantos cemitérios. E as cidades que foram inundadas estão todas debaixo d’água. Então, a água tem que estar poluída mesmo. Não tem mais água pura, cristalina, não. Está tudo misturado e para pior, né?
P1 – E como a senhora ficou sabendo do projeto das cisternas, a senhora foi a primeira?
R – O projeto da cisternas. O José Rodrigues ficava na diocese, ele falava no rádio que quem quisesse conseguir uma cisterna podia dar uma ajuda. Mandaram envelopes, um real, cinco reais, o que a pessoa pudesse dar, o que a pessoa pudesse dar de doação. Tinha que escrever para lá, dar o endereço tudo, e aí eu consegui a cisterna. E com o tempo, fui aumentando mais. Essa mesmo foi através de Tarcísio, que trabalhava na diocese. A gente estava aqui, ele pegou de surpresa a cisterna para a gente fazer quase de última hora. Foi uma correria para inaugurar tudo. Aí, a gente conseguiu a cisterna. Essa minha aqui eu ainda paguei, disse que a gente tinha que pagar, dar uma quantia para ajudar os outros, porque essa minha aí eu ainda paguei 250 reais para fazer. Agora não, agora não estou recebendo mais ajuda de ninguém. Agora é o presidente que está doando cisterna para todo mundo, e é muito importante que não tenha luta por uma cisterna, porque é bom demais. Porque, quando é a primeira chuva, a gente não pega aquela água, deixa limpar primeiro. Quando a gente vê que o telhado está limpo é que deixa cair na cisterna a água limpinha.
P1 – E fora da época de chuva?
R – Quando parou a chuva, e nós estamos usando aquela água, acabou, aí a gente tem que apelar pela prefeitura ou então para o bolso, porque uma cisterna, eles querem assim: com uma cisterna de água, a gente passa o ano, mas não dá, não tem de onde vir outra água, outro gasto, né? A gente tem que tomar banho, tem que lavar roupas, para todo o consumo de casa. Aí, tem que usar aquela água mesmo porque não tem onde pegar outra água para outro consumo de casa. Tem que usar da cisterna mesmo.
P1 – Quanto tempo dura a água?
R – Dá três, quatro meses. Dá tranquilo.
P1 – E, antes das cisternas, como fazia?
R – Antes da cisterna, aí, para abastecer, o carro-pipa. E a gente tinha que carregar lata até o tanque que a Chesf fez, o pipa botava lá, e a gente carregava de carroça ou mesmo com a latinha na cabeça. Eu mesma carreguei muita lata de água para trazer de lá para aqui, que hoje, se eu for fazer isso, acho que minhas pernas não dão mais, não. Botar assim cinco, seis latas d’água e vir caminhando de lá para cá cansa muito, é muito cansativo. Agora, eu estou mais tranquila porque eu tenho uma água em casa, mas tem que tomar aquele trabalho de trabalhar, agora recebo em casa.
P1 – O tanque era comunitário?
R – Era comunitário. Botava água lá, tinha duas torneiras, e as pessoas botavam uma lata e pegavam uma torneira.
P1 – E as pessoas se organizavam bem para usar a água?
R – Organizavam-se assim. Tem que ter muita higiene com a água. A água ali era para todo mundo, tinha que dar para todo mundo, mas tinha que ter higiene para pegar, usar vasilhas limpinhas para pegar. A luta era porque tinha as duas torneiras. Pegava na torneira mesmo, deixava cair na lata.
P1 – E a senhora, que foi a primeira, orientou as pessoas da comunidade?
R – A gente fazia reunião. Chamamos os moradores, eles foram participar. E aí veio a cisterna, todo mundo já tem cisterna em casa para receber água. Esperam Deus mandar chuva, deixando cair na cisterna.
P2 – E como foi o dia que vieram instalar aqui?
R – A cisterna?
P2 – É.
R – Quando o Tarcísio chegou, ele já chegou com o pedreiro. Voltou para Juazeiro, foi buscar o cimento, as coisas dele para levantar a cisterna, e a gente botou gente para cavar, para montar a cisterna. Tem que cavar no chão, aquela ali é funda. Aquela ali era para ficar com 2 metros e depois ela ficou com 1 metro e 80, porque era muito difícil de tirar, e tem que parar e levantar de onde eles pararam. Tem que parar e construir, mas Tarcísio já veio com o pedreiro. Vieram ele e o pedreiro, e foi rápido para a gente fazer e para inaugurar. Foi pego de surpresa (risos).
P1 – Como foi a primeira vez que vocês usaram o curso d’água? A senhora estranhou? O que a senhora achou?
R – Não, não estranhei porque aqui a gente, quando chega a chuva, sempre a gente botava uma bica, botava um tambor para pegar aquela água para os outros usos de casa. Eu não estranhei o gosto da água, não. A diferença tem da água que vem do céu para a que vem do rio, porque a água é poluída. Tem um gostinho diferente da água do rio para a água daqui.
P1 – E, fora da época de chuvas, eles colocam uma água na cisterna? Como que é, tem algum problema de não vir a água?
R – É. Tem vez que eles demoram, a gente tem que caminhar para lá, pedindo, pedindo, aí eles marcam: “Vai amanhã.” A gente espera, não vai, mas se disser “eu pago”, não tem demora. Para pagar, não tem demora. Logo, logo chega.
P1 – Mas é uma obrigação que eles tragam?
R – É uma obrigação que eles têm dar a água, porque é só o que a gente recebe da prefeitura é água, apesar que eles não trazem (risos). Seria bom que eles fizessem a ligação e a gente pagasse que nem a gente paga a energia, porque essa energia aqui foi através da nossa associação. Eu fiz o projeto e mandei para Salvador, e veio. E aí veio o projeto e parou no povoado. Eu fiquei aqui, me reuni tanto com esse povoado para falar de energia. Eu falei com o vereador, e o vereador: “Não, a gente vai conseguir.” Falei com o prefeito. A Chesf também me ajudou. Ela deu os postes, e já estão os postes ali na frente, os postes de cimento para substituir esses de madeira. Mas foi uma luta para conseguir, mas está aí (risos). Porque a gente não consegue nada sem lutar. Tem que lutar mesmo para adquirir as coisas, porque, sem trabalho, a gente não tem nada. Tem que lutar, tem que trabalhar para poder conquistar as coisas. É isso.
P2 – Estamos finalizando já, tá? A primeira é assim: quando a senhora era criança, a senhora tinha algum sonho: quero ser isso, quero ser aquilo? Tem alguma coisa que a senhora queria ser?
R – Não. Eu, às vezes, sonhava em estudar, mas não sonhava de uma profissão, porque a escola no interior não é como uma escola na cidade. Tudo do interior, professora do interior... Eu já estudei com professora formada daqui de Juazeiro, mas eu não tinha um sonho porque meus pais eram fracos para botar eu numa escola melhor, para eu chegar a me formar, para ter um sonho. E os meus netos até hoje têm. Eu nunca sonhei de eu ser uma pessoa de um alto nível, nunca sonhei. Sonhei que eu não fosse uma analfabeta, que eu fosse alfabetizada, e aí eu consegui, porque hoje eu sei ler e se inscrever. Eu não sou analfabeta (risos). Os meus netos, hoje, eles têm um sonho: “Eu quero ser isso, quero ser isso.” Eu não cheguei a pensar nisso porque era mais difícil para a gente sonhar.
P2 – E o que a senhora espera daqui para frente, do lugar, da senhora mesmo?
R – Eu espero que melhorem, que as coisas melhorem. Espero que Deus, um dia, dê melhores coisas. Pode ser que eu não chegue a alcançar, mas os meus netos alcancem dias melhores, porque a gente sempre vivendo, mas esperando dias melhores, mesmo que não consiga. Mas eu peço a Deus que melhore para os meus netos alcançarem coisas melhores. Eu não alcancei muitas coisas boas, mas espero que eles alcancem, porque eles merecem.
P1 – E um sonho para o Rio São Francisco?
R – Para o Rio São Francisco o meu sonho é que a navegação pudesse voltar (risos). Eu vejo o apito do vapor, eu vejo o porto de Juazeiro. Eu sonho em ver a navegação passar no Rio São Francisco, que o Rio São Francisco voltasse ao que era antes. Meu sonho é esse.
P1 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou que a senhora gostaria de falar?
R – Não, acho que não.
P1 – Não? Então, a gente agradece muito a senhora.
R – Eu que agradeço. Se eu falei alguma coisa errada vocês... (risos).
P1 – Imagina.
P2 – A senhora gostou da entrevista?
R – Gostei. Eu fiz duas entrevistas. Eu fiz uma, mas foi rápida. Aí, eu fiz outra, com telefone aqui na minha casa. Mas essa demorou mais.
P1 – E a senhora nunca tinha feito desse jeito com câmera?
R – Não. Eu fiz uma em Juazeiro com o menino, por computador, e a outra que eu fiz foi por telefone, que eu aqui e a menina lá do outro lado (risos).
P1 – Como foi lembrar a história de tudo?
R – Demora para a gente ir lembrando das coisas. Demora muito. Mas foi bom. A entrevista que eu dei também eles gostaram. Espero que a que eu dei também para vocês, vocês vão gostar.
P2 – Muito!
P1 – Com certeza, foi ótimo.
P2 – Obrigado, então.
R – Eu que agradeço.
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