P - Boa tarde, Ricardo Bom, pra começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento. R - Bom, Ricardo Teixeira de Sousa, sou nascido em Alenquer, interior aqui do Pará, é pertinho, coisa de três dias de viagem de barco. Eu sou de 6 de junho de 1967. P - Qual é o nome dos seus pais? R - A minha mãe é Otília Teixeira de Sousa e o meu pai é Aureulino Bezerra de Sousa. P - Os seus pais são de Alenquer também? R - Já são falecidos, mas somos todos de Alenquer. P - Você se lembra da atividade profissional deles? R - O meu pai era alfaiate, a minha mãe era dona de casa com algumas saídas, para o artesanato também, ela fez algumas vezes artesanato. E excelente cozinheira. P - Você tem irmãos? R - Dez irmãos, somos uma família de 11 filhos legítimos e mais quatro de criação. P - Você consegue fazer uma listinha, assim, pra gente dos nomes, do mais velho para o mais novo. R - Dos legítimos era a Angelina, José Rui, Audiza, Epério, Aurelino, Auliza, Gilmar, Ailton, Luiz, eu Ricardo e o Alexandre, o último dos legítimos. P - Estão todos vivos? R - Todos vivos, todos vivos P - E dos não legítimos? R - Dos ilegítimos, todos vivos também, tem o Francisco, a Antônia, a Rosa e a Felipa. P - Vamos falar um pouco da sua infância. Você se lembra da casa aonde você morava? Foi em Alenquer mesmo que você cresceu? R - Nós todos nascemos em casa, com excessão do primeiro e do último. A Angelina nasceu ainda em hospital, por ser a primeira, e o Alexandre, por seu o último, já com a minha mãe com 43 anos, então, nasceu também em hospital. Mas sem ter sido na mão de médico, quando ele chegou já tinha nascido. E os demais, todos nasceram em casa, em mão de parteira. P - E você se lembra disso, alguma cena de estar nascendo irmão? R - Não, porque eu sou o penúltimo. Eu não vi nada disso, não Isso aí são os relatos mesmo da família. P - E a sua casa, você lembra como era? ...
Continuar leituraP - Boa tarde, Ricardo Bom, pra começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento. R - Bom, Ricardo Teixeira de Sousa, sou nascido em Alenquer, interior aqui do Pará, é pertinho, coisa de três dias de viagem de barco. Eu sou de 6 de junho de 1967. P - Qual é o nome dos seus pais? R - A minha mãe é Otília Teixeira de Sousa e o meu pai é Aureulino Bezerra de Sousa. P - Os seus pais são de Alenquer também? R - Já são falecidos, mas somos todos de Alenquer. P - Você se lembra da atividade profissional deles? R - O meu pai era alfaiate, a minha mãe era dona de casa com algumas saídas, para o artesanato também, ela fez algumas vezes artesanato. E excelente cozinheira. P - Você tem irmãos? R - Dez irmãos, somos uma família de 11 filhos legítimos e mais quatro de criação. P - Você consegue fazer uma listinha, assim, pra gente dos nomes, do mais velho para o mais novo. R - Dos legítimos era a Angelina, José Rui, Audiza, Epério, Aurelino, Auliza, Gilmar, Ailton, Luiz, eu Ricardo e o Alexandre, o último dos legítimos. P - Estão todos vivos? R - Todos vivos, todos vivos P - E dos não legítimos? R - Dos ilegítimos, todos vivos também, tem o Francisco, a Antônia, a Rosa e a Felipa. P - Vamos falar um pouco da sua infância. Você se lembra da casa aonde você morava? Foi em Alenquer mesmo que você cresceu? R - Nós todos nascemos em casa, com excessão do primeiro e do último. A Angelina nasceu ainda em hospital, por ser a primeira, e o Alexandre, por seu o último, já com a minha mãe com 43 anos, então, nasceu também em hospital. Mas sem ter sido na mão de médico, quando ele chegou já tinha nascido. E os demais, todos nasceram em casa, em mão de parteira. P - E você se lembra disso, alguma cena de estar nascendo irmão? R - Não, porque eu sou o penúltimo. Eu não vi nada disso, não Isso aí são os relatos mesmo da família. P - E a sua casa, você lembra como era? R - Lembro da minha casa de tijolo, sem reboco, muita gente pra dormir, então, muita rede e todo mundo dormindo em rede. Não tinha cama, mesmo os pais também não dormiam em cama, era rede. Era como esses navios que têm aqui que desce Belém a Santarém ou Belém a Manaus, que tem as redes. A nossa casa, parecia um navio destes de viagens daqui, era muita gente. P - E você falou que a sua mãe era cozinheira, como é que era isso? O que se comia? R - Ah, Alenquer sempre teve fartura. Eu digo que eu estava num paraíso até os dez anos de idade, porque com dez anos eu e a família toda, viemos pra Belém. Imagina, em Alenquer eu estava num paraíso até os dez anos de idade, foi depois que eu vim pra Belém que eu vi que eu saí do paraíso. Hoje, estou vendo isso, na época, se tinha fartura, não tinha falta de comida. Não tinha luxo, essas coisas, não Mas tinha o necessário pra viver com dignidade com uma vida simples de interior, nunca faltou comida, nunca teve essa situação. P - Você saiu novinho de lá, então? R - Nós viemos no final de 1977 pra 78, então, eu estava com dez anos de idade. Os três irmãos mais velhos já estavam morando pra cá, em Belém. Então, viu-se que pela família grande, e que as oportunidades eram maiores, enquanto em Alenquer a cidade sem grandes formações, escolas só até o primeiro grau ou o segundo grau, no máximo. Então, certas oportunidades eram maiores em Belém. Então, viu-se que era mais interessante e meus pais decidiram vir pra cá. P - E os seus pais são de Alenquer mesmo? Você sabe alguma coisa sobre a origem da sua família? Dos seus avós? R - O meu avô, por parte de mãe, era do Ceará, não lembro a cidade. Ele veio pra cá, como essa remessa toda de migrantes. O Brasil é praticamente colonizado pelos nordestinos, não é? Eu acho que todo brasileiro tem na sua origem um nordestino, então, ele veio pra cá, para o Pará, não sei em que ano, mas, ele viu oportunidades. Ele percebeu que havia uma grande dificuldade de transporte de carga, a carga vindo do interior ou das várzeas, no caso da colônia, era feita de forma muito precária, então, tinha falta desse transporte de carga. Ele percebendo isso, voltou para o Ceará, comprou uma quantidade de mulas e levou pra Alenquer. Com isso ele começou a fazer transporte dos produtos da colônia: a castanha, o cumbaru, a seringa, essas coisas todas e outros produtos da colônia. Ele começou a transportar pra Alenquer, ele fez também como comerciante, porque teve essa facilidade, com a junta de mulas que levou e ele cresceu rapidamente, transportando esses produtos do extrativismo, da floresta. Ele foi fazendo também a riqueza, o dinheiro dele e tudo. Chegou a ser dono de muitas propriedades em Alenquer. Teve condição de mandar filhos pra vir estudar pra cá, em Belém. Eu tenho tios que se formaram médico, advogado, mas as mulheres, na época, não tinham muito dessas oportunidades. Os homens todos se formaram, filhos dele, já as mulheres, todas se casaram e se tornaram donas de casa. Essa história é da parte do meu avô da minha mãe. Minha mãe, na realidade, é filha de uma primeira união dele. A mãe da minha mãe morreu enquanto a minha mãe estava jovem, acho que com 12 anos de idade, e meu avô casou-se com uma outra mulher, que também tornou-se minha avó, claro Mas, eu não sei a história da origem da minha avó. Só sei do meu avô. O meu avô, veio a falecer já com uns 80 e poucos anos. Quando faleceu, tinha ainda – eu acho – que duas casas em Alenquer, uma ou duas casas aqui em Belém, mas nada mais, porque ele soube aproveitar mesmo, nada de deixar herança para os filhos, ele foi usando o que acumulou, foi usando pra vida dele mesmo. Os filhos, ele preparou pra que ganhassem o deles. P - Deixa eu voltar lá para os seus dez anos, antes de você vir à Belém, no caso, você chegou a estudar lá em Alenquer? R - Eu estudei lá – eu acho que – a quarta série, depois vim pra Belém. É até interessante isso de vir pra Belém, porque a diferença de estudo, de cultura, a diferença de vida, é muito grande, do interior tão simples e da capital. Eu digo que vivi no paraíso até os dez anos de idade e, depois, fui expulso, porque eu tenho recordação de Alenquer eu ainda moleque, indo pra aula de manhã e chegava em casa, almoçava e, depois, tinha o dia livre. Eu ia para o campinho jogar bola, e subir em árvore, tomar banho no rio, brincar no mato, na floresta, entrar na floresta e brincar de índio, com uma liberdade, uma inocência que não era corrompida. Só aqui em Belém que a gente foi se deparar com violência, com estupro, com a sexualidade, com essas coisas todas, que a gente não tinha lá. Viver em Alenquer até os dez anos de idade, tinha essa coisa da casa e a família toda, os irmãos, a gente poder brincar, tinha jambeiro,e por incrível que pareça, muita gente não acredita, mas no quintal de casa nós tínhamos uma parreira, uma videira, o que é difícil de ter pra cá no norte, por causa do grande volume de chuva e calor, principalmente o volume de chuva, a terra é muito úmida. A gente tinha uma videira em casa que esparramava e a gente tirava cachos de uva, tinha um jambeiro maravilhoso, a gente ensacava os jambos com saquinhos plásticos pra pipira, um passarinho, não comer. Quando tirava aquele jambo, ele estava vistoso, bonito, perfumado, delicioso e doce. Minha mãe arrumava em tabuleiros e eu saía na rua pra vender. Ou vendia a uva também. A minha mãe plantava no quintal de casa feijão de corda e, depois, colhia isso e colocava na bandeja e saía pra vender também. Então, tinha essa peculiaridade toda. No quintal de casa tinha pupunheira, tinha coqueiro, tinha goiabeira, tinha o canteiro com hortaliças, tinha um galinheiro, tinha lugar pra criar um ou dois porcos sempre, criados pra engordar, e quando engordava a gente participava do abate, a minha mãe fazia chouriço. E o peixe Ah, a gente ia pescar, durante o dia nós íamos pescar uns peixinhos pequenos, sardinha, mandi ou lambari, alguma coisa assim. E meu pai usava isso como isca à noite pra pegar os peixes maiores. Então, tinha uma coisa que a gente não encontrou em Belém. Quando eu cheguei aqui em Belém, foi uma farra grande, nós moleques dizíamos: “Chegamos na capital Chegamos em Belém Carro, estátua, prédio”. Coisas que nunca tínhamos visto. Muita coisa diferente, ônibus e tudo. E aí, com o tempo, foi passando uns dias e fui sentindo algo como os negros sentiam, a saudade da terra,o mal de banto, uma tristeza no coração. Eu me trancava no quarto e chorava, horas a fio de saudade, porque eu não podia mais correr na rua, não podia mais subir em árvore, porque tinha fio de alta tensão. Não podia ir pra rua, porque tinha ladrão, tinha estuprador. Não podia mais tomar banho no rio ou no córrego, porque era poluído, contaminado, então, toda uma série de proibições que antes não tinha. P - E você se lembra da viagem, da mudança pra Belém? R - A gente veio com mala, cuias e paneiros com pato, com galinha, com marreco, com cachos de bananas, com saca de farinha, com biju, com um monte de coisas trazendo de lá de barco. São dois dias e meio a descida e três dias a subida do barco. Você saindo aqui de Belém em direção a Santarém, porque o barco não chega até Alenquer, no caso, de Santarém pega-se outro pra Alenquer. É uma viagem espetacular. Eu adoro fazer essa viagem, tantas e quantas vezes puder. Eu prefiro ir de barco do que avião, porque são três dias maravilhosos, de viajar no Rio Amazônas, subindo esse rio esplendoroso e chegar o momento de tu não conseguires ver margens. Têm momentos que ele é tão largo e momentos que é tão estreito, e a beleza do por-do-sol, do nascer do sol, arrevoadas de pássaros, as coisas todas espetaculares que a gente vai vendo, os ribeirinhos, a floresta, a explosão de cores, dos vários tons de verde. Essa primeira viagem está gravada na minha mente e se repete todas as vezes que vou, porque a paisagem é quase que sempre a mesma, ou não, é sempre uma experiência nova, mas sempre relembro daquela primeira experiência, porque tu estar num navio desses, tu ves o céu estrelado e esplendoroso Tu ves milhares de estrelas. É uma coisa maravilhosa Essa viagem, se todo brasileiro pudesse fazer, deveria ser obrigatória, tipo uma religião no Brasil, como é para os muçulmanos ir à Meca pelo menos uma vez na vida, também deveria ser obrigatório para o brasileiro pelo menos uma vez na vida fazer uma viagem dessas de Belém a Manaus que chega a ser cinco dias de viagem, mas é uma coisa espetacular uma viagem de navio dessas. P - Ricardo, uma curiosidade. Você falou da floresta. Assim, vocês contavam histórias? Tinham lendas que você conhecia? R - Tinham muitas lendas. Nós, enquanto crianças, tinhamos a infância de brincar de roda na frente de casa, as cirandas. Eu, por exemplo, com a minha filhinha de dois anos, eu canto pra ela as músicas da minha infância que me vem à memória. E graças a Deus, a minha sogra veio morar conosco, e ela vem também com um conteúdo maravilhoso de histórias, de músicas do tempo de infância, às vezes, ela está cantando e me puxa a memória, me faz lembrar de músicas que já estavam guardadas há muito tempo na memória. Meu pai nos punha na rede, a mim, os meus irmãos menores, ficávamos, assim, os quatro na rede com ele que cantava musiquinhas e contava histórias, lendas. E a Lenda do Muiraquitã, que é uma das coisas mais belas, pra mim é o maior símbolo da Amazônia mitológica e eu tenho uma ligação tão grande que tatuei o Muirtatuitâ aqui no braço, e a minha esposa tatuou na barriga. E a nossa filha nasceu com um desenhinho da lua no peito. O Muiraquitã é uma lenda que está na mitologia amazônica, com as guerreiras amazonas. Erroneamente veio a se chamar de amazonas pela comparação com as amazonas da lenda grega, mas são as mulheres guerreiras icamiabas, que na noite da lua cheia saíam à caça dos guerreiros mais fortes das tribos dos guaiaquis e traziam-nos como prisioneiros pra noite de amor Essa noite na tribo era uma grande festa, uma grande alegria, elas transavam com esses índios à margem de um lago chamado Iaci Uaruá [do tupi antigo îasy arugûá], que quer dizer espelho da lua. Iaci, que é a lua e, Uaruá, que é espelho. Então, às margens desse lago, tinha esse ritual todo de festa, ritual de fertilização também, era uma noite de cópula pra elas poderem gerar filhos, e após transarem com os índios, elas mergulhavam no fundo desse lago e traziam um punhado de barro que em contato com a luz da lua se transformava no Muiraquitã. E esse Muiraquitã era dado para o guerreiro com quem elas tinham transado, que era carregado num cordão, num colar. Foram encontrados muitos, esculpidos em pedras. A lenda tem várias versões, mas o Muiraquitã é o símbolo da fertilidade, da fartura, da felicidade, e tem todos os dons de felicidade provenientes de Iaci vinculados ao Muiraquitã. Quem carrega consigo [o Muiratuitã], como diz, é velado ao amor. E aconteceu uma coisa interessante, eu com a minha esposa, em julho do ano de 2005, resolvemos fazer o nosso pacto de amor. E, resolvemos fazer um selo de amor e colocar o Muiraquitã. Ela o tatuou na barriga e eu aqui no braço. Quando foi em agosto, depois de termos vindo Ilha de Maiandeua, na vila de Algodoal, um lugar espetacular, praias belíssimas, dunas espetaculares, é uma ilha encantada, uma magia maravilhosa, a gente decidiu: “Bom, está na hora de a gente ter o nosso filho” “Então, daqui pra frente, nada mais de camisinha, pronto”. Aí, em 8 de agosto, ela engravidou, em 8 de maio a criança nasceu, e nasceu com a lua no peito Ela tem um desenho perfeito da lua no peito dela, pega o mamilo e uma parte, quem olha de longe, vê uma lua cheia, quem se aproxima, vê uma lua quarto minguante. Então, é interessante como a lenda deu isso. E nasceu uma menina que é o grande troféu das amazonas. No caso das nossa índias amazonas seria uma menina, porque quando nascia menino elas [as índias na lenda] devolviam, entregavam para os índios, porque a elas interessava apenas as meninas. E aconteceu uma coisa interessante no ano passado [2007], encontramos um casal de amigos que tentavam há um tempo engravidar, eu estava com o Muiraquitã pindurado neste cordão aqui. Na realidade, o Muiraquitã é uma peça zoomórfica, tem tanto em forma de batráquio, no caso das rãs, do sapinho, ou de quelônios, no caso, no formato de tracajá, tartaruga. Ele pode ser de várias espécies de bichos, mas o mais comum mesmo, que se popularizou, é o Muiraquitã em formato de batráquio, que é um sapo. Ah, sim Tinha esse casal de amigos e e a mulher estava querendo mas não engravidava. Eu estava com o Muiraquitã feito em madeira que um artesão faz. E a gente conversando, e aí, eu contei pra ela da história do Muiraquitã, e eu disse: “Com a gente funcionou. Eu não sei se foi uma coincidência aqui. Mas a nossa muiraquitãzinha veio até com uma lua no peito”. É a Deusa Iaci que na mitologia, a lua, a Iaci é uma deusa. Então, eu peguei o muiraquitã e dei pra ela: “Toma isso daqui”. Porque também tem um detalhe, tu não podes comprar pra ti, senão não tem efeito, tens que receber de alguém, então, no meu caso, ela [a esposa] me deu esse [a tatuagem no braço] e eu dei o dela [tatuagem na barriga]. Então, tem esse simbolismo todo entorno dele. E dois meses depois, eles nos ligaram: “Oh, Ricardo, deu certo A Fernanda tá grávida” . Aí, eu: “Pô, mais uma coincidência”. Coincidência ou não, sabe lá o que é. Eu tenho essa ligação com a lenda, pela beleza ímpar. É uma crença de que isso tenha alguma coisa e várias coisas vão dando coincidências. P - Ricardo, vou voltar um pouco. Então, quando você chegou em Belém, como é que foi pra você iniciar os estudos? Como foi isso? R - Chegando em Belém eu me tornei um péssimo aluno. Eu era um bom aluno, mas a mudança de ambiente, de cultura, me prejudicou muito. Eu não tinha mais rendimento na escola, eu não gostava, comecei a a ser de certa forma agressivo com as professoras, mesmo assim eu fui passando de ano, fui estudando. Mas no primeiro ano, eu levei bomba aqui em Belém, depois, no ano seguinte, eu vim a passar de ano, e vim estudando até a oitava série com uma certa regularidade. Até, aí, um aluno medíocre, mas não tão ruim Mas eu sempre fui muito fissurado em leitura, eu sou um leitor voraz, eu tenho uma paixão muito grande por livros, sou, assim, de ler três, quatro, cinco livros ao mesmo tempo. Eu tenho um livro dentro do banheiro, eu tenho um livro na cama, eu tenho um livro no meu ateliê, eu tenho livros espalhados pela minha casa, sou um leitor voraz. Na realidade, parei de frequentar a escola, mas não parei de estudar, e continuo sendo um estudante. Acho que com 18 ou 19 anos eu resolvi mesmo largar, eu não tinha mais saco pra ficar entre quatro paredes, e aquela sistematização da aula, essa coisa toda eu não tive mais saco, eu parei de estudar Eu parei de frequentar a escola, mas sempre estudando, sempre lendo o que me interessava e tudo mais. Então, a escola em si eu abandonei, parei. P - Mas você estava com quantos anos, mais ou menos? R - Acho que 18 ou 19 anos. Mas também começando a farra, descobri também a vida, indo pra as ondas, curtindo as noites, a boemia. Eu comecei a frequentar a vida noturna em Belém, enquanto que os carinhas da minha idade estavam indo pras pipocas, os bailes típicos da idade, eu estava indo para os bares aonde tinha violão, eu frequentava já o pessoal de mais idade, era clube de artistas, poetas, escritores, músicos, o pessoal de teatro. Eu frequentava mais essas rodas, enquanto que o pessoal da minha idade mesmo estava nas pipocas, estavam nas discos, estas coisas todas assim. P - Mas e trabalho, você tinha começado a trabalhar? R - Não, eu trabalhava em casa com a minha mãe, por exemplo, nós passamos um tanto apertado aqui em Belém até 1981, foi quando minha mãe resolveu fornecer comida. Fizemos uma plaquinha, colocamos na porta de casa: “Fornecemos marmita”. E daí, foi que começou realmente a dar uma melhoria de vida. P - O seu pai? R - O meu pai trabalhava numa revendedora de carros, e em casa a minha mãe começou a produzir comidas. Então, eu e outro irmão saíamos pra entregar na redondeza, próximo de casa, as marmitas. E, assim, eu estudava à tarde e, antes de ir pra aula, eu saía e distribuía marmitas. Eu saía com sacolas com duas ou três marmitas de cada lado distribuindo pelo bairro aonde eu morava e os bairros circunvizinhos. Sempre andando, sempre indo e voltando, indo e voltando Isso daí durou alguns anos, até que a gente, a mamãe comprou bancas de revistas, nós tivemos três bancas de revistas e uma lanchonete. E daí, a vida começou a dar uma melhorada. Eu trabalhava com a banca de revistas, com essas coisas, indo comprar revistas ou ficava na banca vendendo. E o artesanato veio bem depois. P - Como é que foi aparecer o artesanato? Você já tinha algum gosto por isso? R - É, eu fazia alguma coisa com o artesanato, brincava com alguma coisa de artesanato, mesmo moleque em Alenquer,tinha a balata, um latex, que é tirado da mesma forma que a seringa, mas não é da família da seringa, tem gente que confunde e acha que é da mesma família por ser um látex, mas é da família das sapotáceas, da sapotilha. Então, chegava em Alenquer, uns blocos imensos de balata que tem aquele cheiro peculiar, quando eu vejo um colega aqui em Belém trabalhando, moldando a balata, me lembra dessa época da infância. E, nessa época, a gente tirava lascas dessa balata e moldávamos bonecos, moldávamos coisas e tudo. P - A balata, então, chegava na sua casa. R - Alenquer era como um entreposto, então, passava por lá. Os balatais ficam distantes da cidade. As pessoas que extraiam a balata. É uma árvore. Eles vão lá em cima, na árvore, fazem a sangria da mesma forma que da seringa, então é feita uma extração desse leite da balateira e, depois é trabalhado, eu creio que no fogo, feito lá os blocos de balata, e depois eram transportadas. É usado na indústria de borracha. Então, na época, em Alenquer, ainda saíam blocos e blocos, tínhamos uma cooperativa de extrativistas disso, e tirávamos lascas e levávamos pra casa. A balata tem que ser trabalhada em água morna, água quente, ela vai amolecendo. E nós utilizávamos em bonequinhos, boizinhos, e brincávamos com isso. E, também em Alenquer a gente fazia o nosso cavalinho, o nosso revólver de madeira, nós brincávamos com estilingue, brincávamos com pião, fazia o pião. Quase todos os brinquedos, nós criávamos. Não tinha brinquedos industrializados, brinquedos de plástico, era muito raro, a gente ver isso daí, ou quando via nem era interessante pra nós, porque a gente tinha essa possibilidade de criar os nossos brinquedos. Então essa coisa do artesão, eu acho que vem daí. E a minha mãe também fazia alguma coisa, ao menos fez arranjos de flores, arranjos de cebolas, de alho, essas coisas, fazia redes artesanais. Então, tem essa influência toda. Mas pra mim mesmo, o artesanato se deu depois de um tempo dessa onda de viver muito loucamente, de beber, usar drogas e viver uma vida de – desculpa a expressão – de “putaria”, de ir pra zona e essas coisas todas, e viver numa boemia pesada. P - Você tinha um grupo de amigos nessa época? R - Tinha os amigos, os grupos de amigos, as rodadas que se frequentava à noite. Eu sempre acabava indo a algum lugar, da boemia até o raiar do dia, e tomava o caldo de mocotó pra rebater, e depois a gente continuava com as cervejas, essas coisas todas. E, chegou um tempo em que eu me considerava ateu e muito envolvido com drogas e uma série de cargas. Eu acho que sempre tem um momento de mudança num momento de crise. A crise, sempre leva à possibidade de uma outra situação, de uma nova vivência, uma nova realidade, um novo paradigma. Então, eu tive lá um momento de crise, também num momento de loucura, eu disse: “Bom, acho que já chega, cansei dessa vida, eu vou dar cabo nisso aqui”. E aí, eu fui num brechó, comprei uma calça jeans velha lá, fui numa costureira, mandei ela costurar, fazer uma mochila, um saco pra mim de viagem com a perna da calça jeans, pus nas costas e fui embora. Eu não avisei ninguém em casa, na família, eu não avisei ninguém Eu tinha ido a uma distribuidora comprar revistas, entreguei na banca lá com o meu irmão e resolvi ir embora. P - Quantos anos você tinha? R - Eu vou fazer conta. É, 23 anos Então, aí, fui pra Marudá, que é de onde se atravessa pra Ilha de Maiandeua. Eu não consegui atravessar pra Algodoal e fiquei em Marudá, e conheci lá um cara que estava construindo uma casa de madeira, ele estava com uma equipe e estavam construindo uma casa. E ele me deu arrego lá, porque eu não conseguia atravessar. Eles sempre atravessavam de barco, mas estavam me cobrando caro demais e eu não estava com dinheiro suficiente. Acabei ficando lá, passei um dia, dois dias e o cara me levava lá na casa que ele estava construindo e me falava da fundação, de como é que se fazia a casa, como que estende, e eu acompanhava aquilo. Acho que passaram uns quatro dias. Eu lembro que pus as minhas coisas na sacola e estava indo pra lá com ele, aonde estava fazendo a casa, e eu ia dizer que eu ia embora mesmo, eu ia atravessar de qualquer jeito aquele dia. Aí, no meio do caminho, eu não sei como é que é isso que acontece, mas sabe a história de Paulo, na Bíblia, que lá diz que ele caiu do cavalo e tudo Nem diz isso na Bíblia aliás, que ele caiu do cavalo, mas é a história de uma luz que aparece e fala om ele e dá um insight. Ele era um cara que perseguia os cristãos e de repente se depara com Cristo e tem aquela história toda. E pra mim parece que aconteceu uma coisa parecida com isso, mas na época eu não tinha nenhuma relação com de espiritualidade, com religião. E como uma voz também me dizia: “Ei, não desiste Ei, ei, não desiste, não desiste, vai em busca Não desiste”. Alguma coisa parece que ecoava na cabeça, eu não sei se dizia isso ou se eu vim dar palavras pra isso depois, mas aconteceu alguma coisa assim. Parece que tudo mudou de cor, que tudo ficou diferente, me deu alegria, até então, eu estava meio chocho, eu estava down, um cara infeliz e triste. Mas parece que nasceu uma alegria, parece que a árvore ganhou cor, o sol ganhou cor, a terra ganhou cor, as coisas ganharam cor, ganharam luz, parece que a luz brilhou, alguma coisa, assim, me deu uma alegria repentina. Aí, eu fui com um cara lá que estava me acolhendo e disse: “É, mano, eu vou, eu estou rasgando fora, ‘sartando’ fora”. E ele: “Como é que isso?” “Não, eu vou embora”. Aí, eu tirei a minha carteira, dei pra ele: “Guarda pra mim isso aqui”. Aí, eu peguei, eu um dinheiro lá: “Não, eu só quero isso daqui. Isso daí, tu guardas pra mim” “Rapaz, leva pelo menos a tua identidade”. Eu digo: “Não, eu não quero a minha identidade. Eu vou em busca de uma outra identidade Eu não vou levar nada disso, não” “Mas tu vai pra onde?” “Eu vou entrar lá na BR. Eu vou pegar a estrada” “Não, toma lá o teu documento. Bicho, tu não pode andar sem documento” “Não, eu não quero documento, eu não quero nada, deixa por aí”. Aí, eu fui Eu fui pra BR. Eu passei à frente de uma tabernazinha e comprei lá uns dois pães. P - Em qual direção que você foi? R - Eu peguei a estrada, eu ia indo a caminho da BR, ou seja, o caminho de volta que ia pra Marudá, eu resolvi pegar de volta pela BR, na BR-316, que é Belém–Brasília. Eu comprei dois pães, e o que é engraçado, pães frescos, condicionei dentro da minha sacola, isso era de manhã, cedo ainda, e fui pra BR, quando deu meio dia, eu comecei a andar, me deu fome, quando peguei o pão pra comer estava todinho mofado, todo mofado Todo esverdeado, cheio de mofo. Coisa de poucas horas, ainda foi de manhã isso, foi por volta de nove horas que eu entrei, quando foi meio-dia, pô, três horas depois o pão estava todo estragado, eu falei: “Bom”. Eu joguei fora e segui. Bom, resumindo, no meio do caminho foram acontecendo muitas coisas inressantes. Foi um descer do pedestal, um aprendizado de vida até, porque quando eu entrei na BR também, depois do insight, eu acho que pela primeira vez, eu me virei pra Deus de alguma forma mais sincera e disse: “Pô, cara, eu não sei nem como falar contigo. Eu não sei nem o que dizer. Eu só sei de uma coisa, daqui pra frente, o que acontecer na minha vida vai ser bom, pode ser a pior desgraça aos olhos dos outros, mas eu vou procurar ver por trás de tudo a tua ação, a tua mão, ou seja lá o que for, mas eu quero crer agora que tu estás na minha vida. Então, pô, me conduz, me leva, me guia, faz o que for, porque eu morri agora, eu quero nascer de novo, eu não sei o que fazer, me dá uma luz aí, me põe luz.”. E foram acontecendo coisas engraçadas no meio do caminho, dois dias depois eu parei numa comunidadezinha, um cara me deu um Evangelho, e o nome dele era Amadeus. Aí, no caminho eu fui dormindo na rua. P - Você ia de carona? R - Eu ia de carona, dedando na estrada, parando em posto de gasolina, pegando carona com caminhoneiro, pedindo comida aqui, ali, ou trocando um prato de comida por limpar a frente de uma casa, por capinar a frente de uma casa. Eu chegava no posto de gasolina: “Pô, o teu banheiro está sujo aí Me dá o material, deixa eu lavar e tu me dá um prato de comida depois”. Então, eu ia assim. E não pegava em dinheiro, as pessoas iam me dar dinheiro: “Não, eu não quero dinheiro, não Me dá comida” “Não, mas você precisa comer depois” “Não, depois eu arranjo comida Eu não quero dinheiro, não”. Então, foram acontecendo coisas assim, famílias me acolhendo aonde eu chegava, tinha gente que chutava, tinha gente que ajudava, o engraçado é que uma vez eu disse assim: “Nessa experiência até sombra me negaram”. Já viu isso, negar sombra? Uma vez eu parei em frente de uma casa na BR e tinha uma árvore frondosa, e um sol de lascar, eu disse: “Eu vou parar aqui pra dar uma repousada”. E estou lá, sentei num banquinho de madeira que estava lá embaixo da árvore, quando uma mulher meteu a cara em frente da casa: “Ei, o que tá fazendo aí?” “Eu só estou descansando um pouco aqui” “Não, não pode descansar aí, não Vai embora, vai embora” “Não, senhora, eu só estou descansando um pouco aqui, eu já vou embora. Eu estou cansado, eu estou caminhando” “Não tem que descansar ai, não Vai embora, vagabundo Vai embora daí” “Não, minha senhora, é só descansando um pouco aqui” “Não, vai embora daí, não sei o que”, e lá vem ela com uma vassoura: “Vai embora Vai embora daí”. E foram situações engraçadas. Enquanto que tinham famílias que, às vezes, me acolhiam sem saber de mim, sem saber quem eu era, e me colocavam pra dentro de suas casas, me davam cama, me davam comida, me davam roupa, no dia seguinte eu já estava na estrada de novo. Então, foi uma vivência muito grande nesses seis meses de estrada. P - Você chegou até aonde? R - Eu saí de lá, de Marudá, peguei a Belém–Brasília, cheguei até Brasília, de Brasília eu quebrei no sentido de Minas e de Minas, fui até o Espírito Santo, Bahia, depois, eu vim voltando por dentro do sertão. Então, foram seis meses de caminhada. E na BR eu comecei a me voltar pra Deus. E é interessante, porque dava pra ver o cara na natureza, isso daí que a gente chama de Deus na natureza. Aí, nas plantas, nos animais, nas abelhas, nas formigas, em tudo dá pra ver, na água, na chuva dá pra ver a presença. Isso daí, eu consegui aprender a ver na BR, aprendi a ter essa contemplação da presença de Deus na vida, ou seja lá como se chame. Eu sempre gosto de dizer isso, porque cada um vai chamar de um jeito. Eu me virava e dizia assim: “Pô, me coloca alguém pra me dar uma luz. O que está acontecendo comigo?”. Eu também ficava meio atordoado. Algumas pessoas diziam: “Ah, esse é um chamado pra ti, Deus tá te chamando”. E eu sempre pedia também em minhas orações, quando eu orava, que me colocasse alguém pra me dar luz nisso, e aconteceu em Luziânia, em Goiás, eu bati numa casa, eu nem sabia que era casa de um bispo nem nada, eu bati pedindo arrego. Uma vez eu dormi na delegacia. P - Mas não foi preso, não é? R - Não, não Eu ia pediar lá arrego, porque, algumas vezes, eu bati em porta de padres ou em igrejas pedindo arrego, pedindo um prato de comida, um lugar pra eu dormir, um pedaço de chão pra eu dormir, que estivesse protegido da chuva ou da noite. Eu não fazia questão de cama, de nada, eu dizia: “Não, o senhor me dá aí um lugar pra eu dormir e eu arranjo um papelão pra colocar aí”. E, assim, quando acontecia de na igreja ser negado isso eu ia pra uma delegacia e pedia pro delegado, convencia o delegado pra eu dormir numa cela com os presos. Então, era uma coisa interessante, porque na noite ali, indo dormir com eles, na realidade, eu não dormia, eu passava à noite acordado, conversando com eles dentro da cela. Então, passava a noite conversando, eles contando de suas vidas e eu falando da minha. De alguma forma, eu acho que ajudava. Teve até uma situação de uma cara de uma cadeia, que eu já nem lembro mais por onde, e ele tinha matado alguém em Brasília e estava preso, e não deixavam ele entrar em contato com a família, avisar a família, nem nada, e o pessoal dessa família do cara que ele tinha matado em Brasília estava indo pra lá pra matá-lo, o delegado ia entregar ele pra essa família. Ele estava num pânico total, e me deu o telefone dele, pela manhã quando eu saí eu procurei um telefone e consegui avisar a família que ele estava lá. Eu não sei que fim levou, eu não sei se conseguiram salvá-lo, eu não sei se ele foi morto, mas teve umas situações assim. E, com o bispo lá Eu bati e pedi arrego e não quiseram me dar: “Não, não dá, não sei o que, não sei o que”. Porque tem muitos dos padres que são mortos, em muitas situações, hoje em dia e por isso eles já não acolhem mais as pessoas, tem muita gente de má fé também na BR. Na BR tem muita gente perigosa, muita gente violenta, muita gente que está fugitiva. Mas também tem muita gente que está perdida dentro da BR, muita gente que saiu retirante do nordeste, ou de algum outro lugar, foi pra São Paulo e pro Rio, ou pra algum outro lugar em busca de melhorar de vida e chegou lá e não conseguiu, teve má sorte, ou foi roubado, ou não teve emprego, ou foi por uma ilusão e não consegue mais voltar pra casa com vergonha de chegar como um derrotado. Encontrei muita gente assim, chegou um momento de eu estar andando com oito pessoas, oito homens me acompanhando, que era engraçado, porque a minha vivência era diferente da deles. Eu estava por opção, mesmo assim, a minha era uma passagem só, e eu sabia que eu ia sair daquela situação de alguma forma, estava em busca de alguma coisa pra me resgatar de lá. E eles, não Eles estavam na BR, vivendo mesmo, fugindo dentro da BR. Eu estava em busca de alguma coisa, então, eu sabia como sair, então, eu tinha algumas palavras pra dar pra essas pessoas. E nessa casa desse bispo, não quiseram me acolher, não quiseram me dar nada. E tinha um casebre bem na frente com material de construção, estavam fazendo obra, eu dizia: “Não, mas me deixa dormir pelo menos ali, eu só preciso me proteger do frio, da noite, porque está frio”. E estava realmente frio, era uma noite fria daquelas E não E não E veio um padre falar comigo, eu disse que era de Belém e veio uma freira franciscana com aquelas roupas pesadas, grossas, conversei com ela que disse: “Me aguarda aqui”, ela foi lá pra dentro e voltou: “Olha, eu me responsabilizei junto ao bispo pela a sua presença, eu acredito na sua história, eu acredito que você está sendo sincero, e ele concordou, desde que eu assuma qualquer responsabilidade do que você venha a fazer aqui dentro”. Eu digo: “Bom, não te preocupas Eu não vou fazer nada de mal”. Então, aquela noite ela me ajudou a lavar a minha roupa, a minha toalha e me deu um lugar pra tomar banho e, depois, um quarto pra dormir, comida e ela me trouxe um livrinho bem fininho, o título era: Ser Peregrino, Condição Existencial do Cristão. O autor do livro dizia que todo cristão é um peregrino, está de passagem pra casa do pai. Aí, então, ele relatava a caminhada que um pessoal faz da cidade de Igarapé, lá em Minas Gerais, uma cidadezinha próxima de Belo Horizonte, até Congonhas do Campo. É no período da festa de Bom Jesus de Matosinhos, se não me engano. Esse pessoal de lá dessa cidade, faz uma peregrinação até lá pra chegar no dia da festa do Bom Jesus de Matosinhos. Eu achei um relato muito interessante, as muitas coisas que ele ia falando: citações bíblicas e citações das palavras de Jesus e tudo. Quando eu falei de Jesus agora, eu lembrei de quando comecei a ler os evangelhos, eu lia, assim, eu digo: “Égua”. O égua é uma expressão nossa aqui, tá? É uma expressão típica nossa aqui de Belém, aqui do Pará. É égua. Égua Égua Ou então, pai d’égua. Aí, o pai d’égua já é o tri-legal do gaúcho, o bacana do carioca. O pai d’égua é muito mais que isso, assim, é pai d’égua Pai d’égua E o nosso égua é uma coisa, assim, usada pra várias situações: com raiva, com alegria, com dor: “Égua É Égua Éégua”. E assim vai. Se vocês ouvirem o égua por aí ele vai sair. Mas voltando, quando eu comecei a ler os evangelhos eu falei: “É égua É isso que é o cara, mano”. Eu comecei a me deparar com as palavras, com os ensinamentos, com a vivência que o cara viveu. Eu fui me identificando com as palavras dele, com a vivência dele e aquilo foi entranhando mesmo. Eu não tenho uma relação com Jesus como um Deus, como tem o cristão, o cristão ora, pede. Eu não tenho essa relação com Jesus, a minha relação com ele é de memória mesmo. Assim, os ensinamentos dele pra trazer pra prática da minha vida, no dia-a-dia. Então, orar, eu peço pra Deus, eu faço como ele fazia, ele não pedia pra ninguém mais a não ser Deus, então, eu faço como ele, o imito nessa situação aí. Não vejo que ele possa fazer nada por mim, não Quem pode fazer é Deus, com esse mistério todo aí. Mas voltando ao livro. E no livro, o cara falava isso, falava dessa caminhada. Depois de eu ter lido o livro naquela noite mesmo, pela manhã eu falei com a irmã Francisca. Irmã Francisca do Menino Jesus, se não me engano. É, filipina ou neozeolandesa, eu nem lembro mais também, mas era estrangeira. E quando foi pela manhã: “Irmã, quem é esse cara, eu quero conhecer quem é?” “É o frater Henrique Matos [frater Henrique Cristiano José Matos]” “Quem é esse cara aqui? Eu quero conhecer, é o cara que eu estou procurando, que eu estou pedindo a Deus esse tempo todo pra me dar a luz, pra me dar uma orientação, pra me dizer o que é isso que está acontecendo na minha vida, eu preciso encontrar com ele”. E ela meteu a mão no hábito dela, tirou o papel e disse: “Eu sabia que você ia querer tanto que está aqui o endereço dele, o mapazinho de como chegar até o retiro dele”. Foi intessante, realmente foi como se tivesse sido conduzido até ali, pra essa situação. Eu até então, na estrada, vinha pedindo sempre a Deus alguém: “Me dá uma luz, me põe alguém”. E de repente, me parecia que era esse cara realmente. Então, eu saí de Luziânia, no sentido a Belo Horizonte, já em busca dele. E, na realidade, eu fui até o Igarapé, que eles têm um retiro espiritual, um lugar belíssimo, de paz, de uma tranquilidade muito grande. Eu não sei como está isso hoje, que já se passaram uns 12 anos, desde quando estive lá morando com ele. É um lugar muito bonito, cheio de capelas feitas de pedra, muita água, e muita tranquilidade. Eu fui atrás do frater Henrique. Não o encontrei em Igarapé, fui em Belo Horizonte, e quando eu estava perto, já na rua da casa deles eu vi um moço passando e de cara eu vi logo que era um deles, eu digo: “Esse cara é um deles”. Pelo jeitão dele e tudo, brancão. Todos eles holandeses. Aí, me aproximei e disse: “Amigo, tu conheces o Frater Henrique? Sabe quem são os Fráteres aqui?” “Sei. Eu estou indo pra lá” “Tu és um deles?” “Eu sou”. E fomos conversando até lá, e quando o Henrique me recebeu, não sei, mas parece que já estava me esperando há muito tempo também. Me pôs pra dentro e me acolheu, me deu lugar de dormir, me deu comida, roupa limpa, me deixou super à vontade, eu participei da oração com eles às seis horas. É uma comunidade de religiosos que abriram mão de suas vidas pra viverem em comunidade de irmãos dentro da vivência da espiritualidade da igreja católica, abriram mão de suas vidas pessoais, da sua sexualidade e tudo pra viver essa proposta doida do Reino de Deus, então, que Jesus traz aí. Então, é uma coisa meio doida isso deles, mas bacana. O cara trabalha, e todo dinheiro que eles ganham colocam na mesma caixa, eles têm um ecônomo, que é escolhido de dois em dois anos um entre eles que vai administrar a economia da comunidade, da casa deles. Então, todo dinheiro que eles ganham entregam na mão do ecônomo, o que eles precisam, vão lá no ecônomo pedir. Mas como eles não têm luxo, eles não precisam de dinheiro pra tantas coisas, então, o dinheiro acaba sobrando muito pra obras assistenciais, as coisas que eles fazem de ajudar aos outros. Apesar de que eles têm um colégio também lá e ganham muito dinheiro, mas a vida deles é assim. E eu quis experimentar isso depois. Tanto que eu voltei depois, passei dois anos morando com eles, o que eu digo é que foram os dois anos mais importantes da minha vida adulta antes de casar, antes de construir a minha família. Foram dois anos pra serenar o espírito, serenar a alma, serenar a mente, serenar o corpo. Assim, ter leituras espiritualizantes. Eles tinham uma biblioteca maravilhosa lá, não sei se quatro ou cinco mil volumes, então, eu ficava louco com aquela biblioteca, quando eu morei com eles em Coronel Fabriciano, onde eles tinham uma casa de formação, coisa de 200 quilômetros de Belo Horizonte. Quando eu ia a Belo Horizonte eu levava pilhas de livros pra eu ler, eles diziam: “Nunca passou ninguém aqui que gostasse tanto de ler como você gosta”. E eu: “É a minha paixão, leitura” P - E de lá, você voltou pra Belém? R - É, aí, eu fui atrás do Frater Henrique e ele me levou pro retiro, e lá ele disse: “Olha, tu ficas à vontade aqui, faz do tempo o que você quiser”. Me colocou no ermitério, que é um quarto isolado com uma capelinha, uma parte bem isolada do retiro com uma área verde muito linda, com várias capelas, é o local mais isolado, e tinha lá só uma cama, um filtro de água, um banheiro e o oratório, Bíblias e algum outro livro. “É bem isolado de tudo, e você fica aí o tempo que você quiser, o tempo que você achar necessário. O horário da refeição é X hora, do café da manhã é X hora e da janta é tal hora”. É uma comunidade de irmãos, como tem as freiras, eles são dos irmãos. Eu passei dez dias. Em alguns momentos, eu ia com ele pra conversar. Meu primeiro dia foi até interessante, ele construiu um presépio, que é o relato de uma das passagens do livro de Isaías, depois do final dos tempos, onde tudo vai estar em harmonia, que o leão vai pastar ao lado da vaca, os bichos vão estar tudo em harmonia e o Cristo vai estar entre eles e os povos vão estar em paz. Tem uma cena belíssima, e ele construiu um presépio com essa cena toda. Em Minas Gerais tem artesãos maravilhosos, então, tudo era esculpido em madeiras, e é um negócio lindo, a gente passava horas na frente daquilo lá, tinha uma quedazinha de água, ele botava canto gregoriano. Na primeira noite que eu fui conversar com ele a respeito disso eu dizia: “Pô, Frater, eu não sei, está acontecendo isso e isso comigo”. Aí, eu relatei tudinho pra ele, ele só ria. Aí, eu ficava até meio chateado com ele, eu disse: “Pô, tu vens aqui pra falar e não fala nada, só ri”. Ele: “Mas eu não tenho nada pra te falar, Ricardo A coisa está sendo dita por ti, não é? Eu não tenho nada pra te falar, Deus está agindo na tua vida e é você que tem que interpretar isso tudo. Eu estou te dando as condições aqui pra que você possa estar em paz e poder entender melhor isso, mas Deus está agindo na sua vida, é você com ele nessa situação”. Depois de dez dias eu fui fazer a experiência de um relato que ele tem num livro, foi maravilhoso Os dez dias naquelas estradinhas de terra batida, de chão. Quando eu li Paulo Coelho falando que ele fazia chover, eu entendi. Dizem que o cara é doido, que ele diz que faz chover, mas, é, vamos dizer, é a minha loucura, eu voei. O cara diz que faz chover, e eu voei depois que eu li aquele livro que ele diz que fazia chover, eu digo: “Olha, e dizem que o cara é doido”. Porque teve um momento na estrada que eu voei, não é voar, assim, não Eu andei no ar. A paz de espírito estava tão grande, o bem estar interior era tão grande que eu andei no ar. Eu não sei, se era real, se era coisa da mente. Eu não sei, mas é uma das sensações mais maravilhosas que tive, a de estar tão em paz e estar tão bem, e foi nessa caminhada que ele me deu pra fazer. E tem muita coisa, têm muitas historinhas no meio do caminho, passados tantos anos e eu vou lembrando, e tem gente que diz: “Pô, cara, porque tu não escreve? Isso dá um livro”. Eu digo: “Pô, mas nem eu li todo esse livro. Ainda não consegui interpretar, porque cada vez vêm coisas e eu não sei se é pra escrever ou não, eu não sei se é pra dizer num livro”. Tem situações que vão se descortinando com coisas novas. Com a distância, a gente vai interpretando, vai entendendo aquela coisa da crise, porque a gente se desespera quando está em alguma crise, e a gente acaba fazendo besteira, quando, na realidade, deveríamos esperar e deixar o tempo passar, com a distância, com o tempo a gente consegue entender melhor as coisas. Quando eu fiz a caminhada eu voltei até ele de ônibus, porque ele tinha me dado um dinheiro, uma reserva pra eu voltar de ônibus. Voltei até ele lá e relatei tudo, coloquei tudo num papel, o que tinha acontecido, e voltei pra BR de novo. Aí, no meio do caminho, encontrei um cara que me falou de um Mosteiro Zen-Budista no Espírito Santo, na cidade de Ibiraçu. Aí, eu pensei: “Eu vou lá conhecer isso, já passei pela igreja católica e achei bacana, maravilhoso, mas eu quero conhecer esse negócio também”, e fui lá em Ibiraçu, subi a montanha lá, a serra. Pensei: “É um santo que está vivo aí”. Porque é um local que era uma fazenda de café, um completo descampado, uma montanha completamente descampada, que dentro da década de 70, com esse advento da onda hippie, do paz e amor, ele também entrou nisso daí, se isolou lá com amigos e pirou o cabeção também, foi pro Japão, se não me engan, e passou cinco anos, em mosteiros budistas, fazendo treinamento e voltou pro Brasil, lá pra essa serra e começou a plantar, replantar a mata nativa, ou seja, passados aí 30 e tantos anos depois disso, tu ves a floresta toda refeita. Então, o cara, fez uma coisa maravilhosa pra natureza, pra humanidade, não só pro Espírito Santo, mas pra humanidade toda, porque ele reflorestou tudo com a mata nativa, as espécies animais do local estão todas de volta, estão todas lá: tem tucano, tem macaco, tem tudo lá dentro daquela reserva. É um lugar belíssimo também, de uma paz e uma espiritualidade fantástica. Eu passei alguns dias lá no mosteiro, voltei pra BR e segui. Eu sempre seguindo a BR, eu sempre seguindo o caminho Eu fui até o litoral da Bahia, ali tem uma cidade onde dá pra atravessar pra Abrolhos, mas não consegui ir até Abrolhos. De lá eu voltei, peguei de novo a BR já por ali e fui voltando pra Belém pelo nordeste. Então, foi uma experiência gratificante, até hoje, ainda tenho coisas a ver. Eu estou falando aqui pra vocês e estão se passando cenas na minha mente de coisas que eu já tinha esquecido e que depois eu vou lembrar de novo. E têm sinais ainda pra serem entendidos, têm coisas que eu vivi que eu não entendi, que eu estou entendendo com o tempo. No meio dessa história toda, tem muitas situações. Teve um momento que eu me senti muito só, muito só E eu ouvi um córrego d’água, barulho de água, me embrenhei no mato e cheguei no lugar, uma piscina d’água com a água caindo de uma serra, um lugar maravilhoso Eu tirei a roupa, tomei banho, eu fiquei ali algumas horas, que até aí, nesse momento, eu já tinha pirado o cabeção, eu já estava falando com as plantas, falando com os animais, falando com a água, com o vento, com o sol, eu já estava ouvindo tudo, eu já estava conversando com tudo, a gente acaba pirando o cabeção, e quando eu saí disso, depois de ter andado um pouco, veio um gatinho: “Miau, miau, miau”. (riso) Um filhotinho, e se enrolou na minha perna, eu fiz um carinho nele e disse: “o que é que tu tá fazendo?”. Ele – olha só a graça – ele me disse que a mãe dele tinha posto pra correr todos os filhotes, que já estavam grandes o suficiente, pra cada um rasgar e tomar o seu rumo. Eu disse: “Tá, cara, então deixa eu ir embora”. Fui caminhando, quando eu estou caminhando, eu peguei uma certa distância e ele começou uma miadeira: “Miau, miau, miau”. Aí, olhei pra trás e ele veio correndo, eu disse: “Não dá pra tu ir comigo, eu estou nessa estrada e estou sozinho”. Ele: “Miau, miau, miau”. Aí, andei, ele veio atrás correndo e miando, miando, miando. Peguei a minha mochila, pus pra frente, coloquei o gatinho em cima e comecei a caminhar com ele. Eu disse: “Tu quer vim, então, tu vai me seguindo, cara, que eu não vou te carregar. Quer vim, vem comigo”. Ele vinha e, depois, começou o sol quente, ele começou a se esgueirar debaixo das plantas, debaixo dos matos, eu carreguei ele. Um dia todo com esse gatinho, foi um papo legal, uma conversa, um amigo que apareceu depois de muitos dias na BR sem contato com pessoas. Ele entrava no mato pra trazer de lá um grilo, comia e corria, e trazia um gafanhoto e comia. Experimentei alguns, é gostoso, gafanhoto, grilo, é interessante Na Ásia se come muito. Têm muitos doidos aí que fizeram experiências dessas, que se alimentam nos seus desertos por aí, se alimentam desses animais. E o gatinho me acompanhou o dia todinho até que eu cheguei num vilarejozinho pequeno, São José, se não me engano. E parei lá na frente de uma capela, orei um pouco e resolvi seguir o caminho, e disse: “Embora, gatinho Embora”. E era uma gatinha, na realidade, era uma fêmea. Aí, desci uma serra, uma ladeirazinha, e ela ficou lá em cima, eu disse: “Embora Não quer seguir?”. Ela: “Nhau, Nhau”. Eu fui até lá com ela: “Não quer ir mais, não?” Ela: “Nhau”. Tipo: “Não, eu vou ficar por aqui.”. Eu fiz uma crônica bonita desse encontro com a gatinha, eu tenho algumas coisas escritas disso, algumas crônicas desses momentos. E essa da gatinha é uma crônica muito bonita, porque ela acompanhou e foi até um lugar que achou interessante, onde já podia estar com alguém e fazer a vida dela, né, e lá ficou P - Aí, você seguiu sozinho? R - É. Então, eu voltei pra Belém. Eu tinha passado três meses sem fazer contato com a família. Minha família aqui pirou o cabeção, procurou em hospital, procurou em necrotério, procurou em IML [Instituto Médico Legal], procurou em tudo quanto é lugar. E eu só vim dar notícias, coisa de três meses depois. Isso, porque essa irmã Francisca lá de Luziânia foi que me convenceu a escrever uma carta pra família: “Escreve, dê notícias. Tua família está preocupada”. Então, o pessoal quando recebeu aqui: “Ah, não morreu. O filho da mãe não morreu”. Quando voltei pra casa foi a maior festa, a maior farra Eu estava negro, cabeludo, com a cabeça completamente virada. Eu passei um período aqui e pedi à Congregação dos Fráteres, mandei cartas a eles pedindo pra voltar e viver com eles. Foi uma situação sui generis pra mim, porque eles nunca abriram portas pra esse tipo de situação, pras pessoas que vão viver dentro da igreja católica, essas pessoas que estão vivendo nas comunidades, que estão vivendo nas paróquias, são aqueles jovens que já vêm de um segmento. E eu que não frequentava igreja, não tinha nenhum vínculo com isso, de repente, pedi pra entrar e eles me aceitaram. Foi muito bom, passei dois anos maravilhosos: oração, leitura, aprendizado. Eu passei aqui em Belém alguns meses em casa com a minha família, e depois eu fui pra lá, pra Belo Horizonte com eles, com os fráteres. Eu passei dois anos lá com eles e, depois, saí pela BR. A BR tem uma coisa, ela vicia, de vez em quando ela me chama. É um caso de amor. Eu digo pra minha esposa: “Às vezes, dá vontade de voltar pra BR”. Mas a minha BR agora, a minha estrada é com a minha bebezinha linda de dois anos. Oh, meu Deus Ela é a minha BR. Então, a BR em si, tem uma coisa muito interessante, tem muita gente precisando, tem muita gente perdida, desencontrada. Tem gente precisando de uma palavra, só de um empurrãozinho, eu conseguia isso com algumas: “Vamos conversar” “Pô, volta pra tua casa, a tua família está lá e vai te acolher. A tua família te ama, pára com isso, com essa idéia que tu vais ser um fracassado, um derrotado. Tu estás aqui, mas sejas vitorioso, volta pra tua casa, reconstitui a tua vida, a tua família, recupera a tua família, quantos não estão sofrendo?” E eu mesmo. P - Mas e o artesanato, como é que apareceu? R - Sim, Frater Henrique fazia artesanato lá em Belo Horizonte. As casas antes usavam muito piso com taco, então quando eram tirados esses tacos, ele aproveitava, limpava e fazia frases bíblicas com o pirógrafo. P - Foi aí que você aprendeu a arte? R - Eu o via fazendo e aquilo foi incutindo na minha cabeça, quando eu saí de lá e voltei pra Belém, eu passei em frente a uma loja e vi o laminado de madeira. O laminado, a madeira é cortada com a espessura de um milímitro, meio milímetro e tudo. E eu vi isso aí e eu associei. Aí, eu comprei um pirógrafo pequeno, comprei uma folha desse laminado e comecei a trabalhar com ele. E veio a idéia de criar o cartão de madeira, fui fazendo outros trabalhos e tudo. O artesanato entrou na minha vida pela necessidade, e claro, pela curiosidade. Foi paixão também, que a medida que eu fui descobrindo o artesanato, eu entrei na feira do artesanato aqui da Praça da República, aqui em Belém. P - Como é que foi isso? R - Depois que eu comecei a fazer o meu artesanato, eu levei pra apresentar lá, porque é bem rígido pra entrar na feira, tem que fazer demonstração na frente de uma comissão que avalia os trabalhos, e tem que comprovar que é produtor, que não é atravessador, você tem que produzir na frente dessa comissão. E aí, eu fiz isso e entrei na feira, desde daí, eu comecei a trabalhar com artesanato, e meus irmãos também. Quando eu voltei, os meus irmãos aqui estavam um vivendo pra um lado, um vivendo pro outro, todos meio aperreadosí, vivendo situações nada boas, eu chamei: “Vamos viver juntos. Eu vou fazer o seguinte com vocês, eu dou um ano pra que vocês se preparem, estudem, que vocês arranjem emprego e tudo. Pode deixar que eu sustento o barraco aqui, eu sustento a casa, e vocês têm um ano pra vocês se prepararem, vão estudar, vão se formar, vão procurar uma formação pra vocês depois estarem seguindo o caminho de vocês”. E eu fiz isso, aluguei uma casa e trouxe os meus outros três irmãos pra morar comigo, e eles ficaram também me ajudando, começaram a me ajudar também na produção. E depois de um ano, nada deles arranjarem emprego. Um deles eu ensinei bem. Eu ensinei, não Ele se interessou em aprender, aprendeu a fazer tudo que eu fazia, e também estimulei ele a entrar na feira do artesanato, ele conseguiu também o espaço dele lá. Os outros dois começaram também a trabalhar, e foi quando eu saí também, fui fazer uma viagem também, outras doidas viagens. Eu acho que foi quando eu voltei ao Espírito Santo. Depois desse período, eu voltei ao Espírito Santo, lá pro Mosteiro Zen-Budista, onde eu passei lá também uns três meses. Mas também não me agradou muito, apesar de ser uma espiritualidade muito bonita. É muito bacana o Zen-budismo. E o artesanato entrou nisso, e eu na feira, eu comecei a trabalhar com o artesanato, a participar das exposições, das feiras... P - Ricardo, dá pra você descrever como é essa arte? Você corta a madeira, como é o processo? R - Vamos imaginar uma tábua de madeira. Aí, você tem uma tábua da espessura de uns 20 milímetros, 10 milímetros, seja lá o que for. Uma folha de laminado é como uma tábua, mas em um milímetro ou meio milímetro, então, é uma coisa bem fininha, do tamanho de uma tábua. A partir dali eu comecei a criar o cartão de madeira, cortei, fiz um cartão comum, um cartão que se dá de aniversário, que se dá pra um amigo. Faço o desenho com o pirógrafo, passei a usar, a utilizar a técnica da pirogravura, Então, eu utilizo a pirogravura no cartão. Assim, sou um artesão urbano contemporâneo, não sou um artesão que faz um artesanato tradicional, eu misturo o rústico com o moderno, porque utilizo também a tecnologia de um computador, depois, as mensagens eu faço em papel reciclado, é impresso no computador, e a pessoa tem a possibilidade de escolher a mensagem, escolher o desenho do cartão, a gente cola dentro, eu faço um envelope com papel rústico também. E é assim, eu faço livros de madeira, que se tornam um diário, fica um trabalho espetacular, muito bonito. P - Essa madeira vem de onde? R - Essas madeiras, eu aproveito das indústrias madeireiras, que têm muitas. Então, são pontas que eles fazem pra exportação, são pontas que sobram e que são utilizadas depois na fornalha, pra aquecer a água, porque essa madeira pra ser laminada, os troncos têm que passar por uma espécie de um cozimento, eles ficam num tonel grande pegando uma temperatura, sendo cozidos e depois são laminados em máquinas de indústria pesada mesmo. Depois que corta, as pontas que vão sobrando, servem pra aquecer essa água, vai pra fornalha. Eu chego nessas laminadoras e eles me dão essas pontas desse laminado. Eu faço um reaproveitamento desse material. E aí, vai Tem do mogno, que hoje é proibido, mas desde quando foi proibido, agora, recentemente uma indústria, se desfez aqui em Belém, mudaram pra Bolívia, que lá está podendo tirar à vontade a madeira, daí, como aqui está muito rígida a questão da utilização, e o mogno foi proibido e era um dos fortes deles, eles desfizeram aqui a indústria, e sobrou lá uma quantidade de pontas de madeira e de folhas de laminado. Muito mesmo E, é assim, coisa que ia ser jogada fora, o cara lá me avisou, eu peguei um caminhãozinho, fui lá busquei e está lá em casa uma quantidade dessa ponta, desse estoque. É uma pena, porque eu não consigo ter certificação, porque é aquela coisa, pra você conseguir a certificação, você tem que ter indústria, e a burocracia em cima disso se torna uma burrocracia. É uma dificuldade... P - Que certificação é essa? R - A certificação pro uso, tem que ter uma certificação do IBAMA, pra madeira ser utilizada, por exemplo, eu tenho muita ponta de mogno, eu uso nos meus cartões, quando eu digo que é mogno, as pessoas dizem: “Mas está usando mogno? É proibido”. Que está proibida a retirada do mogno, está proibida a comercialização do mogno, o benefício. Está proibida toda e qualquer forma de utilização do mogno, mas como são pontas, são sobras, eu continuo usando. E é artesanato, não é algo de industrial. E eu continuo usando, até o dia que o IBAMA venha me dizer que é proibido. Eu vou brigar feio, porque é ponta de estoque. P - Mas você tem uma proposta, uma idéia quanto a uma área de reflorestamento? R - Quando entrei na feira, e eu sou muito curioso e gosto muito de leitura e de um monte de coisas, então, conversa com um, com outro e todo mundo têm idéias. Na feira do artesanato nós somos uns 300 artesãos associados. Nós temos 20 manipuladores de alimento, são artistas plásticos, temos uns 10 aquaristas, temos só uns cinco ou seis antiquários, uns três ou quatro jardineiros e o resto é artesãos, são muitos artesãos. Eu comecei a me interessar pela feira, pela associação, eu entrei, participei durante uma gestão, agora já tenho 11 anos como membro da feira do artesanato. Participei da comissão do conselho fiscal e fui me interessando pela política interna da associação, comecei a concorrer, perdi duas eleições pra ser eleito na terceira. Então, sou do tipo muito persistente também, quando eu quero uma coisa eu vou atrás até conseguir, ou então, eu desisto também Quando eu vou atrás e está difícil também desisto, não tenho “nóia” com isso. Até que fui eleito presidente da associação e comecei um trabalho, nós viemos organizando a parte contábil, administrativa que existia de fato, mas não existia de direito. O CNPJ inapto, não tinha prestação de contas adequadas. Fui ao Sebrae e pedi auxílio. E o Sebrae contratou um esritório de consultoria, colocou à disposição um consultor contábil e um consultor administrativo, eu coloquei a papelada toda na mão deles, 40 dias depois eles deram o relatório condenando tudo e me mostrando o caminho por onde ir. A partir daí a gente começou a organizar a parte contábil e a parte administrativa da associação. Luta feia, porque, tinha que rever conta de cinco, seis anos. Nunca tinha sido declarado o Imposto de Renda. Eram coisas feitas de forma amadora, uma dificuldade muito grande, multas a serem pagas, e a primeira certidão negativa de uma série de coisas. A “burrocracia” no Brasil é muito grande, é burra mesmo, uma coisa que atrapalha, atrasa. Eu acho que um dos grandes atrasos nesse país é a questão burocrática, a exigência buocrática é muito grande Então, fomos organizando essa parte e ganhando a confiança das pessoas, das empresas, dos órgãos, e mostrando o trabalho que a gente ia desenvolvendo. A feira do artesanato está com 21 anos, e a gente veio com a idéia da revitalização, a troca dos equipamentos. E fomos ao Sebrae também com uma idéia, o Sebrae disponibilizou lá um desingn, e junto com o desingn, a gente idealizou um modelo novo de barraca, que vem homenageando a Festa do Círio de Nazaré, que é a maior festa religiosa do Brasil, uma das maiores do mundo. A gente tem uma procissão com perto de dois milhões de pessoas nas ruas de Belém, uma coisa que até de falar arrepia, de tão belo que é. E olha, que eu não sou católico, eu não tenho prática religiosa disso daí, mas é emocionante. Quando aquela imagem da santa passa, meu Deus do céu Não tem evangelho que resista, voce se arrepia e se emociona de tão belo que é. É, outra coisa também que todo basileiro deveria ver, viver isso aqui. Então, nós vinhamos organizando, é, essa coisa. P - Como ficou o nome da associação? R - A Artepam, que é Associação dos Artesãos e Expositores do Pará-Amazônia, antes tinha um nome bem peculiar, acho que até bem mais interessante do que esse, era Associação dos Artesãos Expositores da Feira do Artesanato da Praça da República, quando nós fizemos a assembléia de revisão do estatuto, na discussão viu-se que éramos muitos artesãos de muitos desses rincões do estado, eu, por exemplo, sou de Alenquer, tem um que é de outro, outro de outro, então, tem gente de todos os municípios do estado praticamente, então, veio a idéia de mudar o nome da associação de artesãos porque representa todo o Pará. Apesar de estar ali dentro da Praça da República, mas a Associação dos Artesãos Expositores do Pará-Amazônia. Tem a própria palavra Amazônia que, segundo pesquisas feitas, é a segunda palavra mais conhecida no mundo, depois daquele refrigerante [Cola-Cola]. A Amazônia é a segunda palavra mais conhecida, então, tem um apelo comercial, um apelo de marketing muito grande, e estamos inseridos dentro da Floresta Amazônica, nós os urbanóides daqui de Belém. Não se percebe, mas nós estamos com a nossa cidade dentro da Floresta Amazônica. Então, aí, a gente vem idealizando coisas pra associação, a gente criou, por exemplo, a Artepam Fashion, que é um desfile de moda artesanal. Os artesãos da moda da feira produzem moda artesanal, roupas e assessórios, e sapato, bolsas. P - Você pode dar algum exemplo das roupas? Como elas são? R - Ah, roupas com fibras da Amazônia, roupas com estamparia, com coisas típicas da Amazônia, da nossa cultura, da nossa arte, da nossa floresta, essas coisas todas. Utilizando fibras e acessórios, utilizando castanhas, utilizando coco, utilizando sementes, osso de búfalo, chifre de búfalo, essas coisas todas: cuia, balata, tururi, toda a riqueza de matéria-prima que tem a floresta. São os filhos dos artesãos desfilando, filhos, parentes e aderentes dos artesãos. Fizemos seletivas e tudo e os filhos dos artesãos vão pra passarela. São treinados numa agência. A gente passa aí duas semanas de treinamento, de tudo pra depois irem pra passarela. E a gente monta na Praça da República uma passarela, apresenta no Iguatemi, aqui no shopping, apresenta no Espaço São José Liberto. Acho que é a terceira ou quarta edição que a gente esta fazendo. Quarta ou quinta edição, agora, esse ano É uma coisa que mobiliza. E o que a gente visa com isso? Na realidade, é muito mais divulgar a feira do artesanato, a gente consegue os nossos 15 segundos de fama na imprensa, porque a gente mobiliza a imprensa, chama jornal, televisão, rádio, tudo e faz parceria com o governo do estado, com o governo municipal, com o governo federal, instituições outras, como o Sebrae, instituições de ensino, estamos sempre pedindo que coloquem à disposição seus departamentos de comunicação, de jornalismo, pra estar chamando, mobilizando a imprensa. E fazemos uma promoção pra feira do artesanato. , E assim, nós vamos criando uma série de coisas pra promover a feira. Participamos de feiras externas, fora do estado, os nossos stands são sempre dos mais movimentados por essa riqueza do artesanato paraense, a diversidade de matéria-prima que a floresta fornece, a criatividade do artesão paraense, a riqueza cultural, a grande diversidade da nossa cultura, das nossas lendas, dos nossos ritos, mitos, os saberes tradicionais. Essa coisa maravilhosa dessa chuva que cai à tarde nesse calor, nesse tomar um tacacá com um calor desses, não é, que chega o caboclo dar uma pressão, que esse pessoal do sul toma um tacacá às quatro horas da tarde com um solzão desses e é capaz de desmaiar. Nós tomamos esse tacacá que chega a sair, assim, pingando de suor. É uma maravilha, dá uma pressão, então, tem essa coisa toda da nossa cultura, do nosso artesanato ser diferenciado do restante do Brasil. Os nossos estados aqui têm dimensões também continentais, o Pará é o segundo maior estado da federação, o Macapá está um pouco distante, São Luiz está um pouco distante, Manaus está um pouco distante, então, há pouca influência um do outro, e cada um vai tendo as suas próprias raízes. Essa coisa da cultura cabocla, da cultura ribeirinha, que a gente tem essa influência da cultura indígena, da cultura africana, com essa cultura européia, essa coisa toda vai criando esse caldeirão que é o Pará. Eu gosto muito de contar isso, me orgulha muito dizer isso. O Maestro Adelermo Matos, falecido já, foi um grande pesquisador da nossa cultura, e catalogou pra mais de 70 ritmos. Músicas e danças diferentes do Pará. Ele dizia, como cátedra, que o Pará é a maior província musical do mundo, por causa dessa grande diversidade de ritmos que tem na nossa cultura. E não duvido disso, não Agora, é uma pena que isso também venha se perdendo um tanto, pelo advento do evangelismo e tudo. Porque essa cultura toda, ela miscigena. Tem influência, muito ainda, da igreja católica, dos santos, os próprios índios misturaram, os negros misturaram isso e fizeram esse amálgama que é essa cultura toda, que tem um caráter religioso também embutido nela. E aonde chega a questão das igrejas evangélicas, pentecostais. eles vão relacionando isso com coisas demoníacas, com coisa de demônio, e esse maldito demônio que habita a cabeça dessa gente acaba fazendo com que essas pessoas abandonem essas culturas. Está acontecendo de a gente ter uma perda muito grande nisso daí, graças a essa ignorância religiosa que tem aí. Esse fundamentalismo religioso louco que está crescendo. P - Ricardo, volta um pouco pra falar pra gente do tacacá. O que é isso? Qual é o significado disso? Como que é? R - Eu acho que nomearia o tacacá a comida nacional, o prato nacional. Ele é tipicamente brasileiro, não se reproduz em nenhum outro canto do mundo. Não creio que tenha nada similar em qualquer outro lugar. Mesmo a nossa maniçoba, que tem a imitação em algum outro lugar, a maniçoba é outro espetáculo da natureza gastronômica também. Mas o tacacá toma-se numa cuia preta, que é pintada com uma tinta de uma árvore. Os fazedores de cuia pegam essa cuia e deixam ela mergulhada no mijo, no xixi. Os fazedores colhem o próprio xixi. A acidez do xixi vai fixar a tinta na cuia. Então tu vais ver a cuia quando você for tomar o tacacá. Não precisa se lembrar disso, porque depois ela é muito bem lavada. Se tu fores levar no laboratório, não vai encontrar resquício de urina, nada. O ácido úrico da urina fixa a tinta, é uma técnica indígena. E os fazedores de cuia da cidade de Santarém, fazem essas cuias e fazem uns grafismos belíssimos na cuia, que também já está disseminado no estado, em algumas regiões. Aqui nós temos o pessoal que faz grafismo em cuia e que faz um trabalho maravilhoso. Então, do tacacá, a primeira coisa é a cuia. E, pelo amor de Deus, não vá tomar tacacá de colher. Não tem que pagar esse mico aqui em Belém, de tomar tacacá de colher. O tacacá é feito com a goma, em algumas regiões vai se chamar de fécula da mandioca, alguns lugares vai se chamar de amido, tem vários nomes. Aqui a gente chama de goma, é a goma da mandioca. Dessa goma é feito um mingau que fica transparente parece uma cola, mas é um pouco mais consistente. O tucupi, que é o caldo tirado da mandioca, qualquer outro lugar do Brasil não se aproveita o tucupi, somente nós é que usamos o tucupi, que é o caldo da mandioca que se faz a farinha. É quando se espreme a mandioca depois de ralada, espremida. Aquele caldo que sai, é veneno, se for tomado aquilo cru, então ele tem que passar por uma fervura durante horas pra poder ser ingerido, pro veneno ser retirado e poder ser tomado. Então é a goma, o tucupi, o camarão e o jambu, que é uma erva também típica daqui, que é uma erva maravilhosa, afrodisíaca, rejuvenescedora, se você mastigar fica com a boca tremendo, dá uma sensação de quase anestesia na boca. Então é isso, basicamente se faz essa sopa e coloca, assim, a tacacazeira, coloca lá um pouquinho de tucupi no fundo da cuia, coloca a goma, talha a goma com a colher, dá a batidinha, depois coloca mais tucupi, pega camarão, coloca o jambu, dá uma mexidinha, aí: “Com pimenta ou sem pimenta?”, com uma pimentinha de cheiro, que é uma pimenta amarela, coloca-se dentro, come-se. No máximo usar um palito de dente, que passaram a usar de um tempo pra cá, quando está tirando lá de dentro as coisas. Mas toma-se o tacacá na borda da cuia mesmo. É uma coisa maravilhosa P - Voltando no artesanato. Vocês exportam? R - Na realidade, o artesão não exporta. Por ser associação, então, é produção individualizada, comercialização individualizada, não é como numa cooperativa, onde se tem uma produção conjunta, coletiva, e até uma comercialização coletiva. Alguma coisa da comercialização coletiva, é quando nós da associação procuramos espaços pra comercializar, e os espaços são pequenos e não dá pra ir todo mundo, então, os artesãos entregam pra associação o produto e a associação leva. E aí a gente tem uma equipe de pessoas que vão pra comercializar essa produção e, depois, a gente repassa o dinheiro e a sobra dos produtos pra cada um. Aí cada um vende os seus produtos. Tem artesão que exporta pra outros estados e pra outros países também. De vez em quando acontece comigo, eu dou uma sorte e aparece um cliente que pede 500 cartões de madeira pra levar pra Europa, pros Estados Unidos. Então, assim, tem alguma coisa de exportação. Vez por outra acontece. P - De onde geralmente são esses clientes? R - Eu já tive cliente de Portugal, dos Estados Unidos, da Espanha, Nova Zelândia. Às vezes, quando aparece, são algumas coisas assim. A gente precisa de mais divulgação, de mais promoção. O artesanato paraense, pela característica, pela peculiaridade que ele tem, eu sonho em transformar esse estado no maior pólo produtor de artesanato do país. Por causa dessa gama toda, dessa carga, dessa possibilidade. A gente vem trabalhando com a criação da Federação de Associações e Cooperativas de Artesãos do Pará, estamos na fase da criação do estatuto. A Artepam, na realidade, é a vanguarda, estamos sempre estimulando as outras entidades, provocando o governo e provocando isso e aquilo pras coisas acontecerem. Agora, estamos criando a Federação e estamos na finalização do estatuto. P - A Federação inclui todos os Estados? R - Todas as associações e cooperativas de artesões do estado, porque a gente já está em nível nacional, provocando também para a criação da Confederação Brasileira de Artesanato. Cada Estado tem a missão de criar a sua Federação pra gente poder criar a Confederação. Já existe um projeto que está tramitando no Congresso Nacional, pra questão da regulamentação da profissão do artesão. Agora, a gente está provocando o governo do estado pra se fazer uma política pública voltada para o artesanato, para o setor. Por que isso? O artesanato, hoje, envolve quase nove milhões de trabalhores artesãos no Brasil. Então, nós somos o setor com maior contingente de trabalhadores no Brasil. Não creio que tenha outro setor que tenha tantos trabalhadores quanto tenha o artesanato. Nós correspondemos a aproximadamente 3% do PIB [Produto Interno Bruto] nacional. Nós temos, o PIB nacional, com algo de um trilhão de reais, perto de 30 bilhões de reais é gerado pelo artesanato no Brasil, isso nas suas várias formas de produção, desde do produtor, do ajudante, daquele que comercializa. Então, é essa a movimentação estimada, isso é uma estimativa, a gente não tem esses números com dados oficiais. Então, a busca da criação das federações e da confederação, é pra que a gente tenha esse levantamento mais fiel possível pra podermos ter base pra discutir junto com o governo federal. Veja só, a importância de um setor desses, com um contingente tão grande de trabalhadores e nós não temos uma política pública federal, não temos políticas estaduais, não temos políticas públicas municipais. P - Tem até um passo anterior, que é sair da informalidade. R - Tem a questão da informalidade também, mas a própria questão da regulamentação da profissão. Tem alguns momentos que eu até duvido que ela seja importante pra nós, ou até de como ela poderá ser feita devido à própria peculiaridade do artesanato, do ser artesão. São saberes tradicionais, é coisa que pinta do nada. Tu vai regulamentar uma profissão, como é que tu vais dar um selo, dar um certificado de que aquela pessoa é um artesão, como é que vai ser feito, quem vai faze? Então, tem uma série de coisas que são um tanto complicadas, às vezes eu recuo. Tanto, que nós tivemos recentemente aqui em Belém o Contraste, o Congresso Nacional dos Trabalhadores Artesãos, e pouquíssimos artesãos do Pará participaram, vieram artesãos de várias partes do Brasil. O pessoal de Pernambuco é o que está mais envolvido com essa discussão. Eu, particularmente, não participei, porque eu ainda vejo que não seria o momento. Apesar de que alguns Estados já avançaram nessa discussão. Por que eu vejo que não é o momento? Porque a gente mal tem a nossa casa arrumada, e como é que a gente vai estar discutindo uma questão macro, uma questão nacional. Quando nós mesmos, aqui no Pará, a gente ainda não tem uma coisa estruturada. Então, eu penso assim: primeiro arrumar a casa, assim como a gente está fazendo em arrumar a Artepam. Bom, agora a gente partimos pra um outro passo, vamos usar agora a Artepam pra estar nessa luta aí de organizar o setor, e vamos estar com o município também de Belém para estar discutindo uma política pública para o setor junto com a prefeitura. Nós já começamos isso com o Governo do Estado. No ano de 2007, havíamos perdido o espaço com relação ao artesanato, mudança de governo, transição. Entrou gente despreparada, desqualificada, sabe, sem visão pro setor. O ano de 2007 foi perdido. Tanto, que em janeiro eu preparei uma carta pra governadora aqui falando, relatando o que estava acontecendo. Graças a Deus, a gente tem uma governadora que é sensível ao setor, que gosta do artesanato. Eu fui chamado lá, ao Palácio do Despacho, levei mais dois colegas artesãos, fomos atendidos pelo chefe de gabinete dela e relatamos tudo que estava acontecendo, imediatamente, foi criada uma coordenação estadual de artesanato. Mas mesmo essa coordenação ainda é pouco, porque nós só temos dois técnicos que trabalham nisso daí. Precisamos de mais gente, precisamos de mais espaço, pela importância que tem no setor. É um setor importante, pela geração de emprego, pela geração de ocupação, pela geração de renda e não exige tantos conhecimentos, não exige tanta capacitação, tanta formação para ser artesão. Qualquer pessoa pode ser, desde quando ela receba um tratamento e seja estimulada a produzir alguma coisa. Eu vejo que é um setor até estratégico, por causa desse resgate econômico que pode fazer pra uma grande parcela da população. E ele não está sendo olhado como deveria pelos governos, em todas as suas esferas. Então, a gente está numa discussão, junto com o governo estadual, pra que seja criada a política pública estadual do artesanato. Já está programado um seminário pra quatro e cinco de dezembro, onde a gente está pretendendo reunir pelo menos cem artesãos de várias associações do estado. Estamos começando a fazer um banco de dados realmente, catalogando quais são as associações, quem são os artesãos, quais são os artesanatos. Precisamos ter os números, porque com os números é mais fácil trabalhar e convencer o poder público a ter ações concretas, P - Ricardo, agora, nesse meio tempo todo do artesanato,como que apareceu sua esposa? Como foi isso? R - A minha esposa é a pessoa mais maravilhosa do mundo que tem. A minha esposa é o meu presente. Ela é uma pessoa muito persistente, que eu tenho uma grande admiração, um grande orgulho. Na realidade, ela me ganhou. Quando eu dizia: “Sai fora, não quero, me abandona, me deixa, me larga, sai do meu pé”, ela saía, mas depois dava uma volta, no outro dia estava de volta de novo, e já vinha com alguma justificativa, alguma outra bobagem. E, assim, graças a Deus, ela persistiu e insistiu em ter uma relação comigo, que a gente já está há uns oito anos. E não serão só mais oito anos, será a eternidade, porque não pretendo perder ela nunca mais, nem agora, nem na próxima vida, nem em quantas outras tiverem. P - Mas vocês se conheceram quando? Você já estava trabalhando com o artesanato? R - Já estava trabalhando no artesanato. Na realidade, ela é irmã da esposa do meu irmão. Então, quando eu retornei do seminário, voltei pra Belém, ela foi uma vez em casa, ficou sabendo que eu estava aqui, me viu e disse que se apaixonou. Daí, ela começou a arranjar motivo pra freqüentar a minha casa. E quando a gente oficializou o nosso namoro, eu falei: “Quero ir à tua casa, quero conhecer a tua família”. Ela relutou um pouco, mas eu fui à casa dela, falei aos pais dela que queria namorar com ela. Quinze dias depois nós fomos a uma praia aqui no Pará, em Salinas, é uma cidade próxima, praiana e a gente casou na beira da praia. Não foi casamento de igreja, de cartório, não Casamos na beira da praia: “Tu queres mesmo? Queres mesmo ficar comigo, doida” “Eu quero” “Mas, olha, é pra sempre mesmo. Tu queres?” “Quero” “Mas tu queres mesmo, pra fidelidade, tu vai ter um cara que vai ser só pra ti, não quero mais nada na minha vida, só você mesmo. Tu queres assim?” “Quero” “Então, vamos casar aqui. Vamos evocar a presença de Deus e fazer o nosso pacto aqui de amor , de fidelidade e pronto”. P - Qual é o nome da sua esposa? R - Raimunda de Almeida Pantoja, é a Raia, a minha rainha. O diminutivo de Raia é rainha, mesmo, é pra ser dona mesmo. E desde aí, ela tem sido a parceira, a companheira, a amiga, a amante, tudo. P - Você já falou da sua filhinha, mas você não falou o nome dela. R - Minha filha é a Sofia. A linda Sofia. Nosso tesouro precioso, também é outro presente de Deus pra mim, pra minha vida. Pedida com grande carinho, com grande amor. Pedi muito a Deus que mandasse uma filhinha dele, porque, na realidade, é filha dele. Ele só está me dando a possibilidade de criar ela. A responsabilidade é muito grande, porque não é minha, não me pertence, é dele. Ela é minha irmã, na realidade, minha irmãzinha. Eu tenho que cuidar dela, tenho que fazer com que ela se torne ou ajudá-la a tornar-se um ser humano pleno. P - Ricardo, olhando a sua trajetória, o que você diria que foram as suas principais lições? R - Viver é uma grande lição. Porque é o dia a dia, é o instante, é todo o do momento, é o agora, é o já. Eu adoro o presente. Não tenho apego com o passado, eu não tenho desejos do futuro, eu amo o presente, o já, o agora, porque eu acredito na eternidade, eu acredito que é aqui e agora, não tem isso de ir pra algum lugar ou vir de outro lugar, eu estou aqui e pronto. De onde vim não me interessa, pra onde vou também não me interessa, o que me interessa é que estou aqui. É aqui que é a vida, é aqui que é a existência. Então, a grande lição é isso... É viver. Eu sou meio porra louca, às vezes, eu sou meio agressivo, meio bravo, mas, às vezes, eu tenho o meu lado amável também, porque eu procuro viver todas as possibilidades da minha natureza, da minha personalidade, do meu ser, do meu jeito de ser. Eu não me reprimo sabe, se eu me reprimo em algumas coisas, são coisas necessárias para não causar problemas, mas eu procuro viver. Eu acho que a grande lição é viver mesmo. Tem muitas coisas, tem muitas experiências. É claro que a vida de uma pessoa não dá pra ser contada em uma hora, duas horas, ela precisa da vida toda pra contar a vida dela. Então, assim, é isso. Se tu me perguntasse agora sobre a questão da reserva, eu diria que é um dos sonhos também que me veio à mente que de que a gente tenha uma reserva extrativista de artesanato, da matéria-prima pro artesanato. A gente tem a floresta amazônica, essa coisa maravilhosa que o brasileiro não pode abrir mão, não pode perder, ele tem que se envolver, tem que brigar por isso, tem que se manifestar de alguma forma em prol da Amazônia, não é só pelo Brasil, mas é pela humanidade toda. Eu acho que amar a Amazônia é amar a humanidade, então lutar pela Amazônia é lutar pela humanidade. Então, a gente precisa ver a floresta amazônica também não só como um santuário intocável, mas como algo que a gente possa estar utilizando e mantendo pra posteridade. E têm condições, existem “N” experiências e “N” formas de fazer isso, de utilizar as riquezas, os recursos que tem a floresta sem precisar depredar, sem precisar acabar com ela. Têm muitas experiências com isso. Há uma oportunidade grande agora, porque vários governos do mundo todo estão atentos para isso e querendo também contribuir com a manutenção dessa reserva, desse patrimônio. Recentemente, o governo da Noruega esteve aqui para estar doando aí pro fundo da Amazônia, 500 milhões de dólares, em parcelas que serão investidas na manutenção, em criação de projetos e coisas que venham a dar a garantia da manutenção desse patrimônio. E, nós mesmos, artesãos, na busca da utilização da matéria-prima, porque um trabalho quando vai se tornando conhecido também vai tornando a produção maior, precisamos ter também uma segurança de que teremos esses recursos, de que nós mesmos não vamos acabar com esses recursos. Pra balata que é retirada lá na Calha Norte, na região do Baixo Amazonas do Pará, município de Monte Alegre, Alenquer, Prainha, é o único lugar onde tem as florestas com os balatais, ela é uma árvore endêmica, daquela região, só dá abaixo da linha do Equador, ou na linha do Equador. Então, a extração dela é cada vez mais dentro da floresta, porque uma balateira sangrada agora, precisa de muito tempo pra poder sangrar de novo, pra poder dar o látex de novo. Então, cada vez mais, é preciso se embrenhar na mata. As pessoas que vão extrair, entram e passam seis meses dentro da floresta extraindo. Levam espingarda, carne seca, sal, tudo e entram nos balatais e vão lá pro alto da floresta, pro alto das montanhas, dos cânions que tem dentro da floresta amazônica para passar seis meses extraindo e trazer essa balata que é cada vez mais difícil. Nós temos o pessoal do Miriti [tipo de palmeira], os brinquedos de miriti, tão famosos durante o período do Círio [A festa de Círio de Nazaré], que é tirado dos buritizeiros. E esses buritis estão ameaçados, porque precisa cortar a palha pra poder tirar, então precisa de manejo, precisa ter controle na utilização dessas florestas do miritizeiro pra poder retirar e não se acabar. Nós temos o tururi também, que é outra fibra, também tirada de uma outra palmeira e que precisa também ter controle. Está se tirando muito tururi, está se levando pro “Sul maravilha” [região sul do país] descobriu e está indo pra lá, e está sendo explorado pra fora, pra cá está ficando pouco, e daqui a pouco acabam as nossas florestas de tururi. O Tururi é uma fibra belíssima, marrom, que hoje os artesãos já aprenderam até a dar outras tonalidades, outras cores. E há vários outros tipos de matéria-prima que a gente tem que vão ficando, com o tempo, escassas e ameaçadas pela exploração predatória. Não só porque está sendo utilizada aqui por nós, mas porque outras regiões do Brasil estão descobrindo essa matéria-prima e está levando. Então, me veio a preocupação: “o que a gente vai fazer?” Então já que tem essa possibilidade toda da floresta, já que tem esse potencial todo e está começando a aparecer recursos pra isso, por que não pensarmos numa reserva, uma área dentro dessa floresta amazônica, que a gente possa ter famílias já tradicionais, que já estão lá e a gente criar uma cadeia de cooperativas? Porque eu já estou com a idéia, estou desafiando vários artesãos, para serem sócios de uma cooperativa, justamente, porque a minha idéia é de que a gente faça uma cadeia de cooperativas. Uma cooperativa dos extrativistas, das famílias tradicionais lá, até chegar a nós aqui, que somos a porta da produção e da comercialização disso aí. Essa idéia já está sendo também colocada pra dentro da política pública estadual, a criação de uma reserva. Agora, é claro que você precisa passar por sérios estudos. Por que? Onde? Quem? Como? Quando? Tem toda uma série de coisas. Mas a idéia já está aí, já está fermentando. E recentemente, eu falei com um grupo de mestrandos em agronomia florestal, todos jovens e falei dessa idéia. Eles piraram o cabeção, adoraram: “Pô, tem tudo a ver com uma situação dessas”. Eu estou esperando o momento de a gente sentar e começar a traçar um projeto, porque tem que fazer uma série de identificações, mapeamento e uma série de coisas. E depois vem a briga, que realmente é a de conseguir ter a a área pra ter isso daí. Mas eu vejo que é uma idéia inovadora e que tem tudo a ver com o contexto da grande diversidade do artesanato, da matéria–prima da floresta amazônica. Toda essa questão econômica e cultural tem aqui. E tem um grande apelo. A outra coisa dentro da questão da política pública, por essa grande diversidade, nós somos o estado, com dimensões territoriais, e Belém do Pará, é uma capital descentralizada. Se vermos no mapa, Belém está longe da maior parte da região do estado, então, me veio a idéia da criação aqui em Belém mesmo, de um mercado central do artesanato paraense, que a gente não tem, e que é nos moldes do nordeste, de algumas cidades, algumas capitais que tem no sul, sudeste, que tem um mercado central. Uma coisa, onde cada um dos 143 municípios do estado, tivessem o seu local pra ter representado o artesanato produzido, e até, eles poderem vender os seus produtos turísticos também, as suas coisas todas. Um grande mercado central do artesanato, é justamente, fazer do Pará um grande pólo produtor de artesanato. P - Legal. Deixa eu aproveitar essa questão. Sobre o DRS [Desenvolvimento Regional Sustentável] do Banco do Brasil, inclusive a gente chegou até você por indicação do Banco do Brasil, porque existe uma certa preocupação. O que você acha do Banco do Brasil estar se preocupando com uma coisa como essa, a questão do artesanato para o DRS? O que você pensa disso? R - É importante essa ação do Banco do Brasil e que outras instituições financeiras como o Banco do Brasil também venham a abraçar essa questão. Nós estamos com o DRS há dois anos. Eu sempre indico pra outros grupos de artesãos e pra outras associações, e até de outras manifestações, de outros grupos, que busquem o DRS. Mas eu sempre digo: “Paciência, porque a coisa é demorada”. Pelo menos conosco, que estamos há dois anos passando pela questão do diagnóstico, e fazendo o levantamento de tudo e mobilizando parceiros. A gente, graças a Deus, a Artepam, tem um peso, tem um nome, que quando a gente chama os parceiros, os parceiros vem. A gente diagnosticou várias das nossas necessidades, e está no DRS muitas delas. A nossas barracas estão nomeadas, estão dentro do DRS, um dos parceiros do DRS, não é o Banco do Brasil que está dando, mas esse parceiro faz parte, o DRS também influencia outros parceiros a estarem participando. Então, a gente está agora na expectativa da liberação do crédito, que é um crédito de dez mil reais pro artesão poder comprar matéria-prima e maquinário, pra ser investido no aumento da sua produção, da sua capacidade produtiva. P - Mas antes do crédito tem um processo inteiro a cumprir, como foi essa aproximação com o Banco do Brasil? R - Na realidade, uma associada é cliente do Banco do Brasil, conversando lá com um dos gerentes da agência aonde a gente está hoje, ele me ligou de lá pedindo pra conversar e pra saber se tínhamos algum interesse e eu fui lá com ele, pra ouvir o que eles tinham de proposta. Na realidade, nós tínhamos tentado isso, um ou dois anos antes, com uma outra agência, a fazer esse DRS, mas o pessoal não teve a mesma dinâmica, a mesma desenvoltura que essa outra agência. Nessa outra agência, viram com interesse o potencial, a capacidade e eles realmente mergulharam de cabeça, e vamos juntos. E estamos sempre em contato, sempre se ligando. Então eu fui lá e conversamos e começamos a fazer o levantamento, me deram aquele calhamaço de papel, de informações, Deus do céu, viu? P - Quando foi isso, esse primeiro contato? R - Agora em novembro eu vou fazer o bolo de dois anos de aniversário do DRS, eu digo: ainda não deslanchou com o banco. Mas a partir disso daí eu posso chegar por aí com outros parceiros e dizer: “Pô, nós temos como parceiros, esse, esse. Temos o Banco do Brasil, através do DRS”. Isso já dá peso na coisa, é como eu estar falando do Sebrae, apesar de termos as nossas arengas, as nossas brigas. É claro que eu tenho as minhas chateações com o Banco do Brasil: “Pô, esse negócio não sai, demora pra caramba”. Mas faz parte, e são os parceiros importantes que a gente precisa ter nisso daí. E a gente vai aí com esses parceiros todos, buscando com academias, no caso, universidades e tudo, órgãos públicos e municipais, estaduais, federais, a gente vai provocando pra participar. Então, é muito trabalho, é muito trabalhoso o DRS, mas dará bons frutos. Creio. A gente tem nossas expectativas desse crédito de dez mil reais que virá para os artesãos, pra investir na sua capacidade produtiva, isso vai dar uma alavancada muito boa. P - Bom Ricardo, a gente está chegando ao fim. O que que você acha desse projeto do Banco do Brasil resgatar a história a partir dos biomas Amazônia, Pantanal, Caatinga? R - Quando tu me ligaste e falou essa história de ser pessoas dos biomas e dar esse foco, eu achei muito interessante, porque dá um destaque para as necessidades desses biomas, que precisam ser preservados, precisam ser cuidados. Precisa ser explorado de forma razoável. Eu digo razoavelmente com razão, com respeito pra pensar na manutenção disso pras próximas gerações poderem estar usufruindo. E o registro disso é muito interessante, porque eu tô falando isso aqui em 3 de novembro de 2008, a essa hora, isso é um registro que vai ficar guardado. Imagina só as pessoas que estarão olhando isso daqui a 100 anos? Daqui a 200 anos, daqui a 500 anos ou daqui a mil anos, ouvindo esses relatos, ouvindo essas coisas todas, sendo levado daqui pra esse futuro, e nós já seremos o passado, e eles estarão vendo, tendo contato com essas informações, com a história, por que vai ser história, passa a ser história. Então, é muito importante esse tipo de registro. É, criar um acervo da memória do povo brasileiro, criar um acervo da nossa história e, de pessoas comuns, de pessoas simples. Não é uma estrela, não é um artista, não é um empresário, não é alguém de destaque que está aí, mas é um cidadão comum e, que está relatando experiências. Isso tem uma importância que é de emocionar, é de deixar arrepiado, porque é registro histórico. Eu não sei em que cidadezinha que acontece isso, eu não sei em que lugar, mas, se não me engano, é aqui no Brasil, eles colocam embaixo de um monumento de cem em cem anos, colocam registros. Eu acho que abriram há dois anos atrás, o que foi colocado cem anos antes. Lá tinham fotos, recortes de jornal, tinha certidão de nascimento, tinha um monte de coisa. Então, 100 anos depois, vai tirar e vai olhar aquilo, tem muita curiosidade, tem muita coisa interessante. Então, quando tu me falaste disso, eu pensei nisso: “Pô, é algo que vai ficar arquivado, que vai ficar guardado pra ser conhecido no futuro”. Parabéns a vocês pela participação nisso junto com o Banco do Brasil, de estarem desenvolvendo esse trabalho. E que vocês possam realmente levar isso a se tornar um banco de dados de consulta. P - E o que você achou de dar o seu depoimento? R - Bacana, é legal. Eu já vou pro meu terceiro mandato como presidente na Artepam. A gente acaba ganhando desenvoltura, porque vez ou outra, eu meti na cabeça, que no mínimo de dois em dois meses a Artepam tem que estar sendo falada na imprensa. Então, eu vou criando alguma coisa pra provocar isso com a imprensa. Aí, então, o foco sempre vem pra cima do entrevistado pra falar. E essa aqui é a minha história. Mas eu digo, assim, a desenvoltura, o estar falando aqui, estar contando, é interessante, porque é a primeira vez também que eu passo tanto tempo falando de mim. Também, não só de mim, de outras coisas todas, dessa minha vivência toda com a Artepam. Mas é gostoso, porque eu sou apaixonado por isso. Eu amo o artesanato, eu tenho uma paixão muito grande pelo artesanato. É paixão, sem grau de intensidade. A minha vida é isso, eu vivo e respiro isso, passo 24 horas, bem dizer, pensando no artesanato, pensando na Artepam, no que criar, o que fazer, as necessidades, os problemas que têm, as coisas pra resolver e que não dá, e o tempo é curto, “Poxa vida, não vai dar pra fazer isso, eu tenho que fazer isso”. E, às vezes, os colegas não estão podendo participar, porque não dá pra exigir a participação constante, a gente tem uma equipe relativamente grande, de 20 e poucas pessoas entre a diretoria e as comissões. A comissão de ética profissional, comissão de eventos, comissão central e, agora, vamos criar mais uma comissão, que será a comissão de comunicação e marketing, pra cuidar dessa parte toda da associação e da feira de artesanato. Mas as pessoas têm que produzir. Nós, artesãos, eu, por exemplo, enquanto presidente da associação, e os colegas enquanto membros, tem que participar de reunião. E é reunião segunda, terça, quarta, quinta, sobra só a sexta ou sábado pra produzir. Do sábado eu tenho que dar virada até três, quatro horas da manhã e tem que acordar às seis pra estar na feira logo mais. E, às vezes, acorda às seis ainda pra concluir alguma coisa que ficou por acabar. Isso virou rotina na minha vida, o tempo se torna escasso, porque a associação absorve muito tempo. Então, como a gente não tem outra fonte de renda, a associação não dá nenhuma fonte de renda, é trabalho voluntário, ele não é remunerado, a estrutura jurídica da associação não permite isso, então, a gente tem que sambar mesmo. Mas como eu disse, graças a Deus, eu tenho a mulher que eu tenho, porque ela me apóia e está comigo na luta, é massoterapeuta, então, ela também tem o ganho dela. A gente passou apertadinho um tempo aí quando a Sofia nasceu, até os dois anos da Sofia, porque nós havíamos acertado que ela não trabalharia, porque a bebê precisaria ter a presença dela, da mãe, do pai e nada de colocar na mão de gente estranha, nada de babá, nada disso, é a mamãe e o papai do lado mesmo. E, graças a Deus, a mãe dela veio também pra morar com a gente, e está dando uma contribuição maravilhosa, porque os avós na criação é fantástico, faz com que as outras sinapses se liguem na mente da criança e cria outras possibilidades. Então, a mulher maravilhosa que eu tenho ajuda porque também é compreensiva. É claro que, às vezes, faz as cobranças dela, a grana encurta e tudo, mas é assim, é essa compreensão que ela tem, de ver o potencial que é. As pessoas dizem: “Pô, mas tu não ganha nada, tu não ganha dinheiro?” “Ganho. O dinheiro em si, não, mas é o aprendizado, a experiência, a possibilidade de conhecer outras pessoas, de se tornar conhecido, não é busca de fama, mas é se tornar conhecido por causa do meu trabalho, porque é associado ao meu trabalho, à minha produção. Então, isso tudo é um ganho que vem, que eu vou tendo. E isso daí não tem valor, não tem preço.”. P - Ricardo, tem alguma coisa que a gente não tenha abordado e que você gostaria de acrescentar? R - Tem uma coisa engraçada, a feira do artesanato e a Artepam, se tornam objetos de estudo pra muitos cursos acadêmicos. Vem muito acadêmico pra estudar, pra fazer TCC [Trabalho de Conclusão de Curso], trabalhos de faculdade, e nos procuram pra isso. Então, quando eles vêm, eu digo: “Olha, traz logo o gravador e bastante fita, porque a história é longa e tem muita coisa, tem muita informação e precisa de horas a fio pra falar tudo” Outras coisas pra dizer, na realidade, tem muitas, mas, eu acho que o essencial pra nossa conversa, pra um bate papo, já foi dito. E creio que poderá ter outras oportunidades, de registros de outros momentos. P - A gente gostaria de agradecer a sua entrevista. Foi muito enriquecedora. R - Obrigado a vocês. Sucesso.
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