Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Benedicta Gonçalves Pereira
Entrevistada por Lenita Verônica Pires e Clarissa Batalha
São Paulo, 15/05/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa.net
Código da Entrevista: PC_MA_HV002
Transcrito por: Ana Lúcia Queiroz
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 – Vamos começar pela identificação. Qual o nome da senhora?
R – Benedita Gonçalves Pereira.
P/1 – A senhora gosta de ser chamada?
R – Ditinha, pelo apelido. Me acostumei desde criança.
P/1 – Qual o local e a data de nascimento?
R – Sete de fevereiro de 1937, em Itararé, Itapetininga.
P/1 – A senhora tem uma história com essa data?
R – Tenho. Então, essa data é assim: como papai era trabalhador da estrada de ferro, ele colocava dormente nas estradas, e eles tinham as turmas que andavam. Papai era da turma 20, e ele estava colocando os dormentes em Itararé quando a mamãe deu a luz, e ele não podia ir até a cidade para fazer o registro do meu nascimento. E passou-se um tempo, quando ele foi a mamãe disse o nome que ela gostaria que eu tivesse, que era o nome da mãe dela, Francisca, e a data. Mas foi falando, ele não escreveu. Papai chegou na cidade, foi no cartório, fez as compras que ele tinha que fazer, tudo, colocou no burrinho dele, no jumento. E quando chegou no cartório, ele disse assim: “É um nome de parente, é uma homenagem, eu sei como é que é. É Benedita”. E aí pôs. E a data de nascimento, a moça perguntou: “Quando nasceu sua filha?” Ele falou: “Foi numa terça-feira de uma festa muito grande que teve”. A moça falou: “Bom, festa grande que eu me lembre, agora nos últimos tempos foi sete de setembro, foi numa terça-feira”. Então, ele me registrou: sete de setembro de 1937, que era uma terça-feira, feriado nacional. Só que eu nasci em fevereiro, terça-feira, sete, feriado nacional carnaval. Houve essa confusão, levou anos pra gente descobrir. E ficou, nunca mudamos, ficou essa data.
P/1 – Fala um pouco de seus pais e avós. Qual o nome deles?
R – Então, meus avós eram, da parte da mamãe: Francisca e Euzébio Leonel; mamãe era Maria de Lurdes. Da parte do papai, papai diz que era índio, e que o pai dele – papai era João Vitorino – nunca ele disse o nome verdadeiro do pai. Ele disse que foi pego a laço e que foi criado por tios. E nisso nós não sabemos o nome dos avós. E o papai é bem índio mesmo, a feição dele, as unhas dele, o cabelo dele. Só que nós não corremos atrás da origem do papai, que nasceu em 1900 e faleceu em 2001, com 101 anos, saudável, lúcido e realmente foi levado por uma gripe forte que teve. Ele viveu bastante, né? Mas sempre lúcido, sempre saudável, sempre atuante. Papai era analfabeto convicto. Que ele sabia tudo e não precisava aprender a ler. Ele media as palavras pelo tamanho das letras: se ele ia para um bairro ele dizia, por exemplo, vou para a Vila Pasini, ele falava tem tantas letras. Aí eu fui morar em São Domingos, ele mediu as letras. Então, pra ele, ele tanto tomava para Vila Pasini, que ia pra um lado, como pra São Domingos que ia pra minha casa. Ele media o tamanho das letras. Mamãe, por sua vez, era uma pessoa muito culta. Professora leiga, na época dela não pode estudar porque ficou órfã, mas vivia em casa de professores, que era da tia dela, as primas. E nisso a mamãe se tornou uma bela professora, uma caligrafia sem igual, e foi dar aula nas fazendas da região, andava à cavalo quilômetros e dava aula. Uma classe maravilhosa, a da mamãe. E nisso conheceu papai, tentou ensinar, papai não aprendeu, não quis. Se casaram, tiveram filhos, viveram 64 anos muito felizes. Mamãe faleceu primeiro, o papai ainda pediu pra Deus ficar uns anos cuidando dos filhos. Ele que adorava a mamãe, mas dizia: “Deus é cedo; estou cuidando dos meus filhos”. E viveu mais uns anos. Então, foi uma família bonita, a do papai e da mamãe.
P/1 – E os seus avós. Qual a atividade deles?
R – Meus avós, mamãe contava que era de uma linha africana. A linhagem deles era da África. Ela conta que meu avô tinha cinco mulheres africanas e uma mulher branca. Então eles eram dos Leonéis. Então mamãe tem, parece que do lado de Leonel tinha um filho só. Leonel é o sobrenome do homem que seria o avô da mamãe, meu bisavô, ou meu avô. Era uma coisa assim. E o que acontece? Do lado da mamãe teve o meu avô que era Euzébio Leonel e teve as outras tias, outras famílias. Então ele teve filhas com negras, e filhos. E assim foi, é uma família grande. Em Itapetininga tem rua com nome, tem museus, tem teatro, tem coisa com o nome dos Leonéis: rua Ataliba Leonel, rua não sei o que Leonel. E, às vezes, encontro algum Leonel e falo: “será que é parente?” E eu pergunto e a gente não consegue se localizar. E o papai, não. O papai é João Vitorino Gonçalves, como eu não sei o nome – sei o nome da mulher que o criou, que é Maria Olinda. E esse Olinda, papai homenageou com minha irmã mais velha. E essa mulher papai diz que não tinha igual, sabe? E ela tinha lá os filhos dela, Standley, né, que exatamente um deles foi meu padrinho de casamento, Roberto Standley. Já são falecidos. Então, todos de Itapetininga. O que o papai e a mamãe fizeram? Eles pararam o passado deles e falaram: “nossa família começou aqui”. E começou realmente deles, do papai e da mamãe. O papai não deixou mais a mamãe exercer a profissão de professora, ela foi pra forno e fogão mesmo, que era uma cozinheira de mão cheia. Ela fazia os quitutes dela com o mínimo, mas que ficava com um cheiro maravilhoso, um sabor maravilhoso. Então, era assim. Então nós tivemos assim. Como foi que nossa família? Quando a gente perguntava: não, não. Eu e tua mãe. E aí foi. E as histórias que ele contava para nós, papai era um contador de histórias. Eu acredito que puxei meu papai. Mamãe dizia: você puxou seu pai. Ela era calada, culta e calada. Era uma dama. Até aí, foi a origem. Depois vem as nossas.
P/1 – Fala um pouquinho dos irmãos.
R – Meus irmãos. Eu e mais seis irmãos. Meus irmãos, o papai foi assim: por ele ser analfabeto a criação nossa, ele falou: vocês vão estudar. Nós moramos uns anos em Itapetininga e em 1940 viemos para São Paulo. E nós fomos para o Largo de Pinheiros, Rua Butantã. Lá morava a tia Maria Luiza, uma tia do lado da minha mãe que era dona de uma pensão. Essa tia mandou buscar mamãe e papai para auxiliá-la nessa pensão. Eu sofri muito, eu me lembro que eu tinha medo da campainha, medo do barulho do bonde que passava no Largo de Pinheiros, eu sofri tanto com os sustos do barulho, que vindo do interior para São Paulo, um silêncio, chegando aqui um barulho, eu fiquei uma criança cheia de vermes, lotada. De medo, medo, medo. E eu atrapalhava a pensão porque eu chorava muito. Tocava a campainha, eu gritava de medo. Então o que é que eles fizeram? Ela, com o conhecimento que tinha do Largo de Pinheiros, daquele pessoal lá, ela conhecia Jorge Rizzo, doutor Miguel Mirizola, que na época era famoso em Pinheiros, era um pediatra. E eles tinham uma chácara em Cotia, no portão de Cotia, onde eles precisavam de um caseiro. Aí pegaram o papai e a mamãe e nós fomos para Cotia. E o doutor Miguel Mirizola, me vendo com uma barriga enorme, assustada daquele jeito, chegou e disse para o papai: “Esta menina vai morrer, ela está com a doença de São Guido, doença dos macacos”, uma coisa assim. E disse que eu ia morrer. Aí disse: “Separa essa filha para não pegar nos outros”. Que era eu, a minha irmã mais velha Olinda, meu irmão Sérgio e minha irmãzinha Conceição, éramos os quatro. Aí meu pai falou: “Olha, doutor, se Deus vai levar um filho meu, leve todos. Eu não separo nenhum, pode levar todos”. E foi, fez uma garrafada à moda, que papai sempre tinha mania de fazer chá e remédio. E queimou chifre de não sei o quê, e botou hortelã, poejo e não sei o quê, e fez uma garrafada e me deu. Eu limpei o intestino, coloquei mais ou menos, num dia, 40 lombrigas. Papai pegou engarrafou, botou álcool e tampou. E eu estava, eu não andava, quando cheguei para essa casa em Cotia. Quando esse médico veio – porque a casa era deles, eles passavam o fim de semana nessa chácara – e aí João? Doutor, eu vou mostrar para o senhor a doença de São Guido da minha filha. E me chamou e eu vim andando, quando eu fui eu fui carregada, e eles foram passear, eles estavam andando e disseram: “Essa não é aquela menina?” “ É, doutor Miguel Mirizola, esta é aquela menina”. E nisso pegou a garrafa e mostrou, lotada dos vermes. Então, na verdade foi isso que aconteceu, ficamos nessa fazenda. Papai ali pegou muita cobra, porque dava cobra, tinha um cruzeiro no meio do quintal, uma cruz do tempo dos escravos, e tinha um redondo de um poço assim, e a cruz em cima. Quando o papai pegava cobra ele trazia para aquele quintal e todo mundo corria de medo e subia naquele cruzeiro. Principalmente meus tios, irmãos da minha mãe, que eram mocinhos na época. Morriam de medo. E o papai pegava as cobras em Cotia e trazia para o Butantã. E ele tem o nome dele nos livros de cobra, como um doador. Papai pegou muita cobra para o Butantã. Pegou lá em Cotia e trazia. Papai não tinha medo, ele cuspia, e pegava. Isso deixava a gente! Nós éramos fãs do papai pela valentia dele. Enganchava assim, pegava na mão e a cobra vinha. E todo mundo gritava e corria e o papai com a cobra na mão. E ele mascava fumo, por essa origem dele, que ele contava que era índio, criado a laço. A gente: “Nossa, esse homem é uma valentia!” E ele cuspia aquele cuspe e dizia: “É o fumo! Cobra não morde quem masca fumo!” E a gente acreditava nisso, né? E essa foi uma boa parte da nossa infância nesse local. Depois eles saíram de lá e vieram para São Paulo. Há vários fatos que ficaram marcados, eu até escrevi, a Vila do Mandiocal, escrevi uma página exatamente que retrata esse tempo, nesse local em Cotia, porque nós tínhamos um porquinho, chamada Chiquinha, e um bezerro chamado Diamante Negro. E eles eram tão caseiros que eles entravam na porta de casa e deitavam e ficavam olhando. E a mamãe dava banho na gente, e os bichinhos assistindo a gente tomar banho. Acabava de dar banho eles saiam um atrás do outro e iam pra onde o papai plantava mandioca e eles comiam. Um dia o papai achou que estava sendo roubado: “Tem alguém invadindo e comendo as mandiocas, levando as mandiocas, e eu vou me plantar lá e pegar quem está comendo as minhas mandiocas e roubando”. Aí o papai para surpresa dele disse que viu a Chiquinha, levantava a terra com o focinho; o Diamante Negro roia a mandioca comia. Na volta eles vinham, passavam na casa grande que é lá em cima, abriam a torneira, a Chiquinha esperava porque ela era porquinha, era baixinha, o Diamante Negro abria a torneira com a boca, a água jorrava, a porquinha bebia. E ele bebia no tanque mesmo e aí voltavam um atrás do outro. Papai falou: “Vocês não acreditam! São os dois que estão comendo a nossa mandioca!” Então a gente até escreveu a Vila do Mandiocal, relatando esse fato, que a gente contava isso para as crianças mais tarde e eles gostavam muito dessa história. Então foi um trecho gostoso na vida que valeu uma história. Fora o luar desse lugar, que nunca mais encontramos igual. Luar igual aquele, o açude do fundo da casa aonde a gente dava pão para as carpas subirem e comer. Ficou na história, ficou lá pra trás essa história. Aí viemos para São Paulo. Eu menininha, a gente já chegou naquela época que tava acabando a guerra, 1945, 46. Viemos morar na Rua Aldeia, hoje é Avenida Valdemar alguma coisa, na Cidade Universitária. Então, moramos lá, na época tinha muito cortiço – hoje eles chamam de condomínio – uma casa aqui, outra casa aqui, num quintal, para nós era cortiço. Hoje é condomínio fechado, é um pouco mais chique, mais colorido, mas é a mesma coisa. Uma porta dá de frente para a outra. E nós morávamos EMSG local, depois viemos novamente pra Pinheiros, morar na Rua São Manoel. Nessa Rua São Manoel mamãe pôde exercer um pouquinho a profissão dela de professora leiga. Porque as vizinhas pediram para ela ensinar elas a ler. E a mamãe fazia todo o serviço de casa e depois, à tarde dava aulas. Nessa rua tinha português, tinha italiano, tinha japonês. Parece muito com a minha rua agora. Tinha uns vizinhos estrangeiros. E a mamãe sentava e dava aula para essas pessoas. E ela ganhava muita coisa com isso. Mas isso, enquanto papai não chegava. Papai chegava, ela fechava livro, tudo, escondia. E papai dizia: “Não vem não, terreiro é terreiro, quintal é quintal, é a mesma coisa e se escreve do mesmo jeito. Você não vai me ensinar a escrever”. Então, para ele, as palavras... É como eu disse: “Ele contava as letras, mas tinha o sentido de terreiro. No meu terreiro eu crio galinha, no meu quintal eu crio galinha. Então não tinha que ter duas palavras, terreiro e quintal. Tinha que ser uma coisa só”. O espaço. Então assim vivia a mamãe com esse homem que era encantador, e ela passava por cima disso.
P/1 – Conta um pouco das brincadeiras de infância.
R – Nossa, estou escrevendo um livro a respeito disso. Porque esta Rua São Manoel era uma rua de brincadeiras. Muito gostoso! Lá a moradia era num quintal, várias casas. Nós morávamos num quarto só, então quando abria as camas tinha que passar por cima das outras camas, então nós vivíamos fora de casa. A nossa sala era o quintal. Então papai chegava do serviço, ligava o rádio. Mamãe ficava fazendo janta num espaço apertadinho. E ficavam os dois conversando. Nós víamos isso e saíamos. Nessa época mamãe já tinha mais dois filhos. Nós maiores saíamos e íamos brincar. Eu tinha uma irmã, a mais velha, que era estudiosa, a Olinda. Ela sentava e estudava. Eu e o Sérgio, meu irmão, já éramos mais levados, a gente já ia fazer arte. Furar pneu de carro, subir muro, pular muro, brincar de pega-pega. Então eu queria ganhar a corrida já tinha um método: amarrava o vestido no meio da perna, porque a gente não mostrava as coxas e não usava calça comprida, mulher usava vestido godê ou vestido franzido. E eu quando corria, as pernas levantavam, muito altas e eu dizia: “Vou amarrar!” Amarrava o vestido no meio da perna e eu apostava corrida com os meninos, e com esse meu irmão. E a gente brincava assim: campeonato de cuspe. Vamos deixar a terra bem fofinha, tinha aquele pó, mas era a terra que a gente passava a mão para ficar fofa. Quando ela ficava fofa andávamos à distância, enchíamos a boca e vamos cuspir. Aquele que cuspir mais longe é o campeão. Campeonato de cuspe! Aí a gente enchia, enchia e pá! Caia lá na frente. Na hora que ele caia no pó ele fazia uma bolinha tipo um bolinho, pronto! Aí era: “Eu ganhei! Eu ganhei!” Aí a gente ainda pegava com todo cuidado aquele bolinho de pó e cuspe. “Olha o meu bolo, olha! O meu ficou maior que o seu!” E era uma brincadeira. Depois a gente ia para barra manteiga: “Barra manteiga na fuça da nega, minha mãe mandou...” E aquela correria, e eu sempre querendo ganhar a corrida, a barra manteiga, não sei o quê. Era um moleque. Nesse quintal brincava de foguinho. E todo quintal tem um menina mais velha e bonita. Sempre tem uma menina bonita. E ela parecia para mim, uma fadinha. Ela era a Lílian. Ela era mocinha já, então quando ela aparecia: “Lílian, vem brincar com a gente!” Não, ela era a princesa. Então como princesa ela punha dois travesseiros naquele quintal, embaixo daquelas ameixeiras grandes, que o quintal tinha muita fruta. Ela punha duas almofadas, punha um lençol, e aquele luar vinha e penetrava assim, e parecia uma princesa. Nós éramos os escravos dela, que nem o Mil e uma noites, então a gente ia, corria, arrancava uma folha de bananeira ou uma folha de palmeira e dizia: “Vai escravos, me abanem!” Mas como ela era bonita eu tinha um prazer imenso de ver ela, assim deitada, a princesa. E eu abanando assim. E ela dizia: “Vai buscar uma banana pra mim”. A gente ia. Agora, gente pobre, mal tinha as coisas pra gente. E pra entrar em casa e pegar um pedacinho de qualquer coisa pra trazer para aquela menina e ninguém ver. Entrava assim. O que vocês querem aqui? Nada, nada. Um pedacinho de pão qualquer. A gente tinha que levar pra dar para aquela princesa comer. E nós fazíamos isso lá, de vez em quando, à noite. Nessa rua, São Manoel, aconteceu um fato interessante. Tudo lá era brincadeira: esconde-esconde, furar pneu de carro dos italianos feirantes, só que se alguém batesse na porta e reclamasse, diziam: “Foi a Ditinha”. E eu tomava uma surra e depois tinha que tomar um banho de salmoura. E eu não me conformava com isso. Aí veio um casal namorar no muro da nossa casa. O meu irmão: ”Ih, ele está com a mão na blusa da moça”. Era um escândalo isso, naquele tempo. “Tá mesmo, ele abriu a blusa da moça!” “Ah, vamos fazer uma coisa? Vamos achar um cano, vamos encher de barro e vamos soprar”. Fizemos, enchemos o cano de barro, água, fomos escondidos, subimos no muro. A hora que o rapaz está lá, nos maiores amores: pfuuuuuuu, aquele caldo de barro bateu no rapaz. Corremos, não tinha ninguém. E era um tzztzzz, você não via uma criança! Ninguém, mas a Ditinha que tinha soprado o cano. O rapaz bate na porta. (bate palmas). O meu pai saia, atendia e dizia: “Pois, não. Olha, olha aqui como nós estamos! Esses negrinhos jogaram água na gente!” Meu pai, sério: “Jogaram água? Eles vão tomar uma surra!” Mas papai era justo, ele tinha uma maneira de julgar de homem justo. Quando ele chamava a gente ele não dava um grito. Ele fazia assim, ó (assobia), quando a gente escutava esse fio (risos). Não, não foi. Aí (assobia). Se ele desse o terceiro era a morte. Então a gente no segundo chegava. “Senhor! Eu não fui papai!” Já chegava assim: “Eu juro por Deus, eu não fui, eu não fui, eu não fui”. Mas ele dizia: “Vocês jogaram água suja neles, vocês vão apanhar!” Aí a gente pedia para ele: “Mas a gente pode contar porque?” Papai não mandava calar a boca, ele ouvia. Hoje em dia: não interessa! Não, ele: “Tá bom, então conte o porquê”. Aí nós contamos: “Olha, papai, ele abriu a blusa da moça, ele tava com a mão lá, assim, assim” “Ah, foi isso?” “Foi.” “Então vocês fizeram bem.” Então é ele que vai. Ah, quando papai falava assim nós dizíamos: Graças à Deus!”Porque ele ia à frente, aí aquela descompostura no rapaz. Como é que o rapaz vinha desrespeitar a frente da casa dele? Com atos – hoje se fala obsceno – papai dizia, sem vergonha. E já rasgava o verbo. “Se você pisar aqui, seu filho desta, filho daquela, eu te desmonto”. E a pessoa ia embora correndo e nós dizíamos: “Isso que é um homem, isso é meu pai.” É uma valentia. Agora, quando a gente estava errado era a surra de chicote de amansar potro. E o banho de salmoura que a mamãe dava depois. Porque ele dizia: “Lurdes, dá um banho de salmoura para não ficar roxo”. Era uma surra e um banho. Essas são as brincadeiras que a gente fazia, fora as comidinhas, brincadeira de casinha, brincadeira de pegar florzinha de violeta e fazer o nosso perfume, cantando aquelas músicas maravilhosas, que a gente ouvia, sabe? E nós nos perfumávamos com o perfume que a gente mesmo fazia. Era muito gostoso. Quando mamãe fazia farofas de feijão, que ela punha farinha e feijão, a gente na brincadeira deixava sobrar um capitãozinho, que a gente amarrava com a mão, na nossa brincadeira, nosso bolo era aquele feijão com farinha de mandioca e comíamos gostoso o nosso bolo. E era gostoso. Agora, dia de chuva era ver o meu nascimento, né? Dia de chuva era fechadinho naquele quartinho, que não podia tomar chuva, a janela aberta, nós vendo o pingo cair, a enxurrada na rua e eu dizendo: “Olha lá como eu nasci, olha que maravilha, eu vim pela enxurrada”. E vendo aqueles sonhos gostosos.
P/1 – Conta essa história direitinho para nós!
R – Essa história! (risos) A gente amolava muito a mamãe. A mamãe lavando roupa, cozinhando, passando roupa, cuidando dos filhinhos e das coisas do papai. “Mãe, como eu nasci?” Eu queria que ela dissesse da onde a gente nascia, como a gente aparecia. Como hoje, as crianças têm curiosidade. Os meus irmãos não tinham coragem de fazer essa pergunta para a mamãe. E eu já tinha, né? “Mamãe, da onde eu sai? Como é que eu vim?” “Não, você veio pela enxurrada, uma chuva forte caiu, a enxurrada veio, veio, veio. E eu peguei você.” Eu digo: “Nossa, que maravilha! Então, eu sou filha da chuva!” Então cada chuva que tinha eu ia ver a minha vida começando ali na enxurrada. E vai a chuva passando e eu assistindo. Foi muito gostoso isso. Ela matava o assunto fácil. Ela não perdia tempo, foi a cegonha, foi o não sei o quê. Hoje em dia já mostra até os filmes, né, coisa absurda! Mata a inocência da criança antes da criança começar a sonhar.
P/1 – Conta um pouquinho do começo dos estudos, como foi.
R – Os estudos foi assim, muito gostoso. Eu era louca para estudar porque eu tinha essa irmã mais velha que era inteligentíssima. E o papai investiu tudo nela. Falou, minha filha vai para uma escola particular. Agora, a Ditinha e o Sérgio, que era meu irmão abaixo de mim, eles vão em escola estadual porque não dá para pagar. Então ele pagava uma escola para a minha irmã, na mesma rua, eu não lembro o nome da escola, mas a Fernão Dias, e eu ia para o Alfredo Bresser. Eu chegava na escola. Olha, por isso que eu fundei escola, por isso que eu quis ter uma escolinha. Por isso que eu chamo escola de escolinha. Eu acho um absurdo a criança crescer, ter uma simplicidade em uma casa, depois ir para uma escola grande, onde vem criança de tudo quanto é lado, com os lanches melhores do mundo, e a criança humilde chegar sem nada. Eu acho um absurdo isso. E eu ia, eu jamais chegava num dia de aula – não tinha lanche para levar – e como é que eu ia dizer para a minha mãe que ela tinha que me dar lanche. E eu não ia, eu ia sem lanche. Agora o cheiro daquele lanche das crianças! Aquele pão! Aquele recheio! Eu sempre olhei para a lata de lixo dos outros e era diferente da minha. A minha lata de lixo tinha folha e carvão e pó. A lata de lixo dos outros tinha casca de mamão, casca de laranja, casca de banana. Eu dizia: “Porque essa diferença?” Já no lixo tava a diferença. Mas eu disfarçava e não tinha visto nada. Jamais eu iria magoar a minha mãe com isso. E quando um vizinho dava alguma coisa, a mamãe não admitia que a gente comesse. Ela dizia: “Olha filho, isto está envenenado” E ia para o lixo. Jamais podia comer uma coisa boa, ou bolo, ou doce ou fruta que vinha do vizinho. Mamãe dizia, está envenenado. E tinha que comer o arroz e o feijão, com a farinha e o pão duro, que ela tinha. Então na escola eu ia sem lanche. Os pais mandavam os lanches. E eu ainda tinha uma professora que almoçava na sala de aula, ela tinha um prato enorme de arroz, feijão, um bolinho de carne e uma couve. Eu olhava para aquilo e tremia no meu lugar. Então eu agredia essa professora quando eu podia. Eu fazia o quê? Eu tava na sala de aula, eu dizia: “vamos brincar de peixinho?” Eu pegava um barbante e brincava: “Tira do meu dedo que vira um peixe, tira do meu dedo que vai virar um peixe”. E com aquele barbante que esticava, que brincava e punha o dedo, experimenta que você vai ver, enquanto o pessoal comia eu brincava, e nisso a professora achava que eu estava fazendo bagunça na aula dela, levantava e vinha no meio das carteiras, “Oh, sua espalha brasa, você está fazendo bagunça” e chegava na minha mesa e pá em mim. Eu não contava para mim mãe que eu tinha apanhado, porque se eu contasse eu apanhava de meu pai, aí isso ficou armazenado na minha lembrança. Eu fiz então na minha cabeça um namoradinho imaginário, que eu dei o nome de Carlinhos. Então eu ia pra escola pra encontrar o Carlinhos, porque o Carlinhos ia conversar comigo, o Carlinhos gostava de mim. E eu me achava uma menina muito feia, e eu achava então que o Carlinhos me achava linda. E eu chegava em casa e a minha irmã dizia, então eu não estudava. Imagina! Eu ia imaginar o Carlinhos me namorando, ficando comigo assim do meu lado, me fazendo carinho. Um menino lindo, que eu não sei quem é, eu imaginava, mas se chamava Carlinhos. Quando eu chegava em casa minha mãe: aí, como é que foi a escola? Eu fiz tal lição, nada nos cadernos, nem caderno tinha. “Ai, o Carlinhos não deixou. Porque o Carlinhos isso, porque o Carlinhos aquilo”. E o medo? O meu irmão outro bagunceiro. E meu pai pedia caderno, “Cadê? E cadê caderno?” Eu dizia: “Não enxergo papai, eu tô sofrendo da vista, as letras passam”. Meu pai imediatamente me botou no cangote, meu irmão, e me levou para comprar óculos. A Ditinha não tem lição porque ela não enxerga. Eu não tinha lição porque eu não gostava do que eu via, do que eu ouvia, eu não gostava. Pra mim b e p era a mesma coisa, eu era igual papai. Pra que um tá com a barriga pra cima, outro tá com a barriga pra baixo? O p e o b. Então, eu engasgava no p e no b. Porque, letra de forma: d, p, b. Eu digo: “gente, não é tudo a mesma coisa? Um tá com a barriga pra cá, outro tá com a barriga pra lá”. E ficava aquela coisa e repeti um ano, então. E foi a vergonha da família. Todos passaram de ano e eu repeti o ano. O “ene” e o “eme” me confundiam, três pernas, duas pernas. Que perna! E quando falavam em perna eu via perna no “eme”, perna no “ene”. Sabe? O que eu via eu projetava na minha cabeça e passava para o papel. Essa foi minha dificuldade inicial na escola, mas depois deslanchei, tive notas altas. Não pelos professores, mas para deixar o meu pai feliz. Minha mãe feliz. Eu vou mostrar pra eles. Sempre foi uma resposta, vou mostrar pra eles. Sem caderno. Aí teve uma hora que todos tinham que vir para uma festa; haveria uma festa onde eu seria a borracha. Por fim me escolheram pra falar uma poesia na escola, uma apresentação, e eu representava o Amazonas, eu era a borracha. Todos tinham que ir de branco nessa festa. Mas imagina se pobre pode dizer que cor que a roupa vai, vai com o que tem. A minha tia me fez um vestido azul clarinho, bonitinho, mas tinha que ser branco. Mas é o que tem. Eu fui pra escola como se fosse pra forca! Quando eu cheguei com meu vestido azul, todos estavam de branco e eu de azul. Na hora de declamar: “Você não podia ter vindo!” E eu: “Borracha não é branca, borracha é azul!” Aí foi meu grito. E se falar muito, como eu sou de borracha meu braço estica e chega aí. “Ah é? Você é toda de borracha?” ”Sou de borracha” Aí brecaram e pararam de brigar comigo por causa do vestido. Então a gente era lutadora, e quando alguém queria me atacar eu dizia: “Meu pai é índio, vou fazer um buraquinho no chão porque ele tá ouvindo toda essa conversa”. “Ah! Seu pai é índio? Não precisa fazer buraquinho no chão”. Já paravam. Comigo e com meu irmão não se metiam, porque a gente dizia: “Olha, se meu pai escutar!” E por fim, papai deu os ares da graça, com a minha irmã que pagava a escola, e como ele pagava a escola ele queria ela com nota dez, dez, dez. E minha irmã tirou nove e meio. E vai meu pai e diz assim: “Por quê?” E minha irmã vai e conta: ‘Papai, perseguição da professora” Ele pegou uma corda e falou: “Diga para a sua professora que eu vou lá dar uma surra nela”. E minha irmã contou, e as escolas fecharam o portão. E ele pegou uma corda, dobrou em quatro e foi lá pra dar na professora. E aí foi um Deus nos acuda, pro papai pular aquele muro pra dar na professora. Porque uma escola que se paga, criança não pode tirar menos que dez. O professor tem obrigação de ensinar. E depois não é isso, essas lembranças de escola e escola foram crescendo na cabeça da gente. Foi tão gostoso. É uma viagem! E era desse jeito. E o pior é que eu vou vendo as cenas e era muito bom. Ainda é bom.
P/1 – Então, descreve um pouco como era a escola onde a senhora estudava.
R – Então, Alfredo Bresser, na rua Fernão Dias, era uma escola com uma estrutura boa, aluna é que era levada mesmo. Um dia eu estava sentada numa sala assim, e eu fui assistir à aula, olhava o céu, as estrelas, as estrelas de dia? Eu via as nuvens passando no céu azul. Nisso eu vi um teco-teco cair. Eu disse: “Professora, o avião caiu!” Nossa senhora! A professora me pôs de castigo. “Você está de castigo porque você não está prestando atenção na aula, por isso você não sabe nada”. E eu fiquei de castigo. E, no dia seguinte, ela voltou e deu no jornal que o avião caiu mesmo. Eu só olhava pro céu, não olhava para nada. Fez assim, rodou, rodou e caiu. Eu não sei se estudar hoje está melhor. Eu acredito que esteja até pior, porque agora nem para as janelas você olha, porque você olha para o computador. Você ficar ali, eu sou muito contra. Como é que a criança vai criar? Eu acho que a criança deve se encaminhar mais com a natureza, com o chão, com a terra. Mas enfim deixa que cada um sabe. Os séculos vão passando, os anos vão passando, diz que tem que crescer. Então vamos deixar crescer. Quando achar que não dá mais, volta para o chãozinho, pra terra, pra arvorezinha, volta pra tudo. Então, minha escola era assim. Depois dessa escola, do Alfredo Bresser, eu acho que fui pro Castro Alves já. Porque acabei, recebi diploma, consegui sair dessa escola, entrei naquela fase de catequese, de primeira comunhão. Outra aventura, não podia fazer a primeira comunhão, não sabia rezar o Credo, foi bem nesse meio entre escola e cresce, e sai. E tira o diploma, sai da catequese uma coisa só, a mesma história. Meus pais pediam para os meus tios na Vila Mariana, que eles tinham mais condições financeiras, mamãe pedia para uma tia fazer minha roupa. Eu estava na idade de fazer a primeira comunhão e foi em Pinheiros na igreja Nossa Senhora do Monte Serrat. E os padres faziam um exame na gente, para saber se sabia o Pai Nosso, Ave Maria, o Creio em Deus. Enfim, o que a gente sabia? O ato de contrição. Uma criança pequena não sabe nem esses nomes, são tão pesados. Eu virei também catequista por causa disto. Eu fundei escola por causa da minha escola, eu virei catequista por causa do meu aprendizado de religião. Todas essas coisas fazem a gente. Quer transformar o mundo? Exerça. Vá lá e faça. Porque o povo não se mexe. O que aconteceu? Eu não aprendi nada. Porque minha mãe tudo falava, cruz credo! Tudo que era feio: “Cruz credo!” Mamãe tava assustada: “Cruz credo.” Credo era uma palavra pesada. “Credo, você fez isso? Credo!” Então, para mim, credo era uma palavra. Cheguei na igreja o padre quer que eu aprenda o credo. Falei, “eu não vou aprender credo nada”. O nome credo não vou aprender. Travei, não aprendi o credo. Então no meu exame, o Pai Nosso falei, Ave Maria falei, agora o Credo! Nossa! Aquilo foi um palavrão que o padre me disse lá naquela igreja, que é do mesmo jeito que é agora, que é a Nossa Senhora do Monte Serrat. Eu sabia o credo, eu não sabia. E, fala o credo! Creio em Deus pai todo poderoso... Eu não conseguia, travou. Você não está preparada para fazer a comunhão! Na véspera, no sábado. Primeira comunhão era domingo. Como eu ia dizer para a minha mãe? Eu nunca magoei a mamãe, não ia magoar. Mamãe tinha uma vida tão difícil, tão pobrezinha. E tão bonita, inteira, eu digo: “Eu vou magoar a minha mãe, não vou dizer que não posso”. Isso pequenininha, sem usar essa expressão: “Não vou magoar”. Eu dizia assim: “Não vou fazer isso com a mamãe”. E pronto. Sai a pé da igreja Monte Serrat, passava – a ponte era de madeira – não tinha essa ponte que agora que passa do rio pro lado de lá, era de madeira, fazia barulho. Já sofria para passar naquela ponte de madeira e entrava – nessa época nós morávamos o Jockey Club de São Paulo, na cocheira. E eu, mamãe chegou: “Pronto filha, você fez seu exame de consciência?” Ia sozinha e voltava sozinha da igreja. Não era como agora que as mães vão, a avó vai, as tias vão, todo mundo leva. Não, eu ia sozinha.
P/1 – Quantos anos a senhora tinha?
R – Nessa época? Entre sete e nove anos. Não era mais que isso. Aí a mamãe: “Você já fez o seu ato de contrição?” “Fiz!” Nem sabia. Então amanhã você vai fazer a primeira comunhão. Falei: “Então eu vou até a igreja e volto. Nem vou chegar perto. Me vesti toda com aquela roupa, aquela grinalda e eu fui, com aquela velinha. E eu não queria ir e a mãe: “Vai e vai”. E põe pra porta e vai. E eu fui para a igreja. Na hora da missa. Mamãe sempre disse para os filhos: “Vai”. E ela nunca foi, ela sempre ficou no fogão. Eu cheguei na igreja, tinha aqueles pilares, que tem, me escondi atrás de um pilar e falei: “A hora que acabar sai todo mundo e eu saio”. Estou lá, uma mulher viu e falou: Ai filhinha! Você tem que ir lá! E eu me segurava. Você tem que ir! E eu lá, dura. E todo mundo está abrindo a boca e eu olhei, e eu escondida, e ela me pôs lá na fila, eu fui uma das últimas, me ajoelhei, pus a mão. O padre, quando teve de falar assim: “Corpo de Cristo”. O padre fez assim com a hóstia e falou: “Você não podia estar aqui”. Eu abri a boca e comi. “Não podia estar aqui, mas estou”. E abocanhei o corpo de Cristo! E ele me olhando assim. Ele não falou “corpo de Cristo, você não podia estar aqui!” “Ah, tá”. E comi. Peguei. Eu sabia que não podia encostar a hóstia nos dentes. Fiquei lá, fui pra fila. Teve festa. Não fiquei na festa para não encontrar com o padre. Sai correndo: “Mãe, fiz a minha primeira comunhão!” Aí vai. Fui questionar a virgindade de Nossa Senhora. Eu e minha irmã dizíamos: “Mas nunca Nossa Senhora é virgem, imagine, como é que ela vai ter um filho!” E minha irmã falando, e eu falando. Minha irmã mais velha: “Ela é virgem porque é de São Gabriel? Não sei o quê.”Falei: “Não, não é, não pode”. Eu questionei: “Se ela foi mãe de Jesus não era. E foi essa questão, de dúvida na religião que me fez estudar o evangelho. Trinta e cinco anos, estudei com Ana Flora Anderson, Frei Gorgulho e aí hoje a gente é expert em Bíblia. Porque aí a gente foi tirar as dúvidas. E fui ser catequista para dizer como é que uma catequista tem que ser. Tem que mostrar um Deus, um Jesus. As rezas tem a vida inteira para aprender. Credo você tem a vida inteira para aprender o credo. Eu não estou para fazer decoreba de religião. Imagine. E aí foi. Então minha turma de catequese segue a igreja, foi em 1970, 71, 72, 73, 74, até 1979 fui catequista. Depois já fui para outros. Então a gente fundou escola porque... Comecei a trabalhar com escola porque puseram fogo numa escola e eu já era catequista e o padre precisou de alguém para dar aula. Fui. No que eu fui dar aula para cinco crianças esse padre falou: “A senhora, como puseram fogo na igreja, a senhora cobra” – não sei se era conto de réis – era cinco alguma coisa. Que esse negócio de dinheiro também me embaraça muito. O nome de mudança de dinheiro: se era conto, se era mil réis, ou outro. No fim, era cinco alguma coisa que eu cobrava por criança. E deu cinco crianças. “O dinheiro pode ficar todo pra senhora”. Eu olhei pra ele e falei: “nossa!” Só que ele me deu cinco crianças e eu passei para 75. Ele se assustou. Porque eu dava uma aula para as crianças assim, já era catequista que já ensinava diferença do que é Deus e do que é o mundo. Eu já pegava a flor, já pegava a flor de plástico, já comparava e dizia: “O que é de Deus? O que é do homem? O que o homem faz? Com insistência, o que é que Deus faz? Como é que de uma sementinha nasce essa maravilha perfumada?” Aí as crianças: “Oh!” Então eu já era assim como catequista. Como professora vinha pai, vinha avó assistir à aula. A igreja ficava cheia de gente em volta e eu dando a minha aula. E aí de cinco foi para 75 e o padre cresceu os olhos e eu falei: “Não, agora eu dou uma ajuda para o senhor”. Ele falou: “Não, não precisa”. Mas aí eu tinha que fazer aquelas festas pra ajudar pagar imposto, comprar terreno. E eu fazia macarronada. Aquelas festas paroquiais. Com dez quilos de carne 300 pessoas para comer. Eu começava com o bife enrolado, os primeiros pegavam a marmita com o bife enrolado. O segundo uma rodela. Aí saia metade da rodela. “Ah gente, vocês vão comer macarrão com molho!” Mas eles riam tanto que ai a gente começava: “Mas a senhora não falou que era macarrão com bife enrolado? Não sei o quê”. Eu falei: “Era, mas vocês aumentaram muito a quantidade de pessoas”. Então virava brincadeira, e a gente ajudou a pagar muitas contas, muito imposto de igreja. Enfim, nós fomos levando, fomos indo. Então, escola, igreja, eu fiz caminhar junto. Até que eu tive que ter a minha, por divergência de comunidade. Então começou escola paroquial São Domingos Sávio, a minha, e acabou a escola, aliás, na paróquia, escola São Domingos Sávio, por causa do bairro. Daí por divergência de comunidade, ciúmes e algumas coisas, porque ela crescia, mas crescia em volta de mim. Se era eu que fazia tudo era difícil crescer em volta de outra pessoa. E não podia, comunidade precisa crescer a comunidade, tudo então girava em volta de mim, então chegou a ponto de eu ter a minha. Me retirei, né, quando eu me retirei que eu cheguei em casa eu falei: “Você sabe bem, eu vou lavar uma trouxa de roupa para esquecer dessa trabalheira que a gente faz, agrada à todos”. Fui tirar a cortina, forro de cama, a roupa da criançada. Toda vez que eu tenho problema um tanque de roupa alivia. Eu invento roupa suja para poder descarregar ali, não é na máquina, é na mão. Então o que aconteceu? Chegou uma mãe com trinta crianças na minha casa. E falou: “Onde a senhora for a senhora vai ensinar nossos filhos. Comece sua escola”. Foi uma revolução em casa. Desmancha dormitório, compra cadeirinha, foi assim que começou o Larzinho São José. Aí eu fui na paróquia: “Vocês vão ajudar a dar um nome na minha escola”. Quando sair da paróquia foi ciúmes de paroquianos. Então quando eu precisei fundar eu voltei lá e falei, “padre, você tem que me ajudar a arrumar um nome para a minha escola”. Aí me deram vários nomes: São Rafael, que é um anjo bom, que cura, que faz. Não, isso me lembra do aperitivo de France, San Rafael, l'apéritif du France. Não tem um vinho que fala São Rafael l'apéritif du France? Falei: “Não, escola não quero esse nome.” “Ah, põe o seu nome, põe Ditinha, todo mundo gosta de você.” “Não, escolinha da Ditinha não tem graça.” Aí eu lembrei o quê? Me lembrei de São José, padroeiro da família, aquele que exatamente na dúvida que eu tive com Nossa Senhora, quando eu fui estudar a bíblia, eu vi a grandeza de São José. De entender o que ninguém entende, que é o avesso de São Gabriel, da Virgem Maria, aquele São José que entendeu e sofreu para entender. Que eu também custei para compreender, as dúvidas humanas, e ele venceu. Eu falei: “Esse homem merece. São José merece ser o nome da minha escola, porque é protetor da família”. E na época o padre que trabalhava na paróquia também se chamava José Benedito. Então falei, tem muito José e José é um nome forte, ele é alicerce seguro, vai ser o nome da minha escola. Aí ficou São José: Larzinho São José. Porque eu não queria escola. Larzinho porque é uma casa, mistura, sai da casa dele e vem para o larzinho São José, que é uma pequena escola onde ele vai aprender a fritar bolinho, fazer chocolate, vou dar agulha, vou dar tinta na mão da criança, não importa, a criança vai ser feliz. Hora da historinha é hora do caderno. A hora do “eme” eu fazia com eles o pula novelinho, e a letra ia acostumando e a criança ia vencendo as dificuldades do corpo dele. Cresceu assim minha escola. Então foram das falhas das escolas que frequentei, a religiosidade, que também houve falhas, que eu frequentei, que não nem da religião das pessoas que administram a escola e a religião, né? Dizer que eu não falhei. Eu também falhei. Não dá para lembrar onde estão as minhas falhas, mas eu tenho certeza que quem passou pela – eu fui 28 anos fiquei na minha escolinha, depois de 28 anos eu parei e me aposentei. Eu sou aposentada há dez anos. Então também professora leiga, também aposentada, mas os meus alunos colocam os filhos na escola, vem me contar, então eu já sou uma professora avó. Já sou quase professora bisavó. Porque os alunos vêm vindo atrás, nem me contam. Um está na China, eu tenho alunos na China, eu tenho aluno no Japão, eu tenho alunos no Canadá, eu tenho aluno... Outro dia eu estava numa festa veio alguém: “Dona Ditinha, a sua aluna está no Canadá, brilhando.” “Como é o nome dela?” Alessandra Milani. Eu falei: ”Jesus! Aquela menina, loirinha, linda, está lá.” Eu tenho um aluno que é um dos cinco maiores catedráticos de matemática, está nos Estados Unidos. Agora não estou lembrando o nome dele, meu aluno. A mãe chega pra me dar um abraço: seu aluno brilha! Aí eu estava no supermercado chegou uma mãe pra mim: “Juliano vai para a Alemanha, antes vem se despedir. É um gato, fez modelo, fez isso, fez aquilo.” Então, estão povoando a terra. Então, o primeiro ensinamento que é do amor, da partilha, estão levando. Não comia um lanche sem repartir. E uma das experiências que a gente tem na nossa escolinha, foi de uma mãe egoísta que passou e ela fez o seguinte: “Não dê seu lanche para ninguém, é só seu.” O menininho não deu. Minha mãe falou que não. Tudo bem, vamos respeitar, comam o seu. Lá o menino fez aniversário ela vai e trouxe um bolo. O bolo chegou bonito. Ele pôs a mesa. Vamos cantar parabéns para o fulano, que está fazendo aniversário. Não, para ele eu não canto, ele nunca me deu lanche! Não eu não canto parabéns! E o menino em frente ao bolo. Não eu não canto! Gente! Eram umas 50 crianças, eu sempre tive sala cheia. Eu tinha sempre uma auxiliar comigo. Era sempre uma classe de 45 para cima. E aí ninguém queria cantar para a criança. E ele chorando ali, e esta miserável dessa mãe conseguiu fazer isso. O filho sofrer porque ela é egoísta! Aí eu fui contando histórias para as crianças, falando que não, que tinham que ter bondade, que todos tínhamos que cantar para ele. Aí todos chegaram, e cantaram! E o menino parou de chorar e comeram o bolo. A hora que acabou, reunião com os pais. Eu passava uma cena com a criança tinha uma reunião com os pais. Olha, vocês fazem isso, isso e isso. E depois eu que preciso consertar os seus erros. E a criança sofre. Seu filho sofreu muito, foi muito difícil os amigos quererem cantar. Nossa, essa mulher pediu mil desculpas. Tenho certeza que para o resto da vida ela não errou mais. E assim foi. A história do feijão preto. Eu tinha uma turminha que trazia marmita, e tinha um bem pretinho e outro bem loirinho. Então fazia assim, a mãe de um fazia feijão preto e dava no lanche bolachinha negrito, todos os dias. Essa mesma comida, vinha arroz, bife, tal, mas o feijão era feijão preto, ela gostava, a família gostava. E o outro, loirinho, a família fazia polenta, molho vermelho, macarronada, molho vermelho. Um dia eu tô lá o menininho não queria comer, tava triste, o que era bem escurinho. Lindo, menino lindo. Tá um homão! Hoje ele fala assim: “Eu não vou comer, olha aí, olha aí prô – eles me chamavam de prô nessa época – Olha aí, prô! Olha a minha comida, é por isso que eu sou dessa cor! Olha a minha comida, é só feijão preto, é só bolacha preta! É por isso que eu sou dessa cor! Olha a comida dele! Olha lá, olha! O que ele come? Tudo é vermelho, tudo é amarelo!” Aí foi aquela coisa, chamei a mãe, a mãe sofreu muito. Eu falei: “Varia um pouco de comida! Eu vou fazer ele ter uma alta estima pela cor.” E aí fiz, contei uma historinha para ele, uma historinha gostosa. Eu contei a história de um garotinho que era bem pretinho e que ele ia na escola e todo mundo falava que ele era bem pretinho. E que ele um dia falou: “Ninguém gosta de mim por causa da minha cor.” E os meninos não gostavam mesmo. “Vai pra lá, você é preto! Vai pra lá, você não joga! Vai pra lá, você não pega o meu lanche!” Mas aí o que o menino fez. O menino chegou na casa dele, pegou uma palhinha de aço e foi tomar um banho, enquanto a mãe dele foi trabalhar. E nisso ele esfregou, esfregou, esfregou, esfregou que sangrou. E pegou uma febre e adoeceu, ficou de cama. Só que esse menino era o que mais fazia gol. Esse menino era o que mais fazia brincadeira gostosa. Esse menino fez falta na sala de aula e na escola. E os colegas diziam: “Cadê o fulano? O fulano não vem mais?” E aí a professora foi na mãe dele e a mãe dele falou: “Olha, ele tá doente. Por causa de chamarem ele só de cor, de cor, ele foi tomar um banho com palhinha de aço, se esfregou tanto, a água ficou cheia de sangue, ele ficou doente e está com febre.” [FIM DE CD] A professora contou. “Vocês são culpados! Passou isso, isso e isso.” Os meninos se encheram de remorso, foram lá, cobriram ele de presentes, carinho e ele voltou à aula. Então eu contei isso para esse menino e falei: “Não importa o que a gente tem aqui fora, se você tirar essa pele o sangue embaixo é vermelho. Pode ser do loiro, pode ser seu, não importa.” Aí ele se conformou: “Todo sangue é vermelho?” “Todo sangue é vermelho, do branco, do preto, do amarelo, do japonês, do italiano. O sangue é da mesma cor. Isso aqui é só uma capa para cobrir.” E ele compreendeu. E conseguiu, terminamos o ano com ele feliz. Então, era uma escola assim. A nossa escolinha também tirava traumas. Eu tinha uma menina, que ela veio para mim indicada pelos médicos do postinho do Butantã. Porque ela foi – não é seduzida a palavra – estuprada, mexida pela empregada, que era uma lésbica. Mexeram na criança, de tal forma de machucar. Só que a mãe, que era uma enfermeira, saia. Mas um dia ela esqueceu um documento e voltou e pegou a filha sofrendo. No que ela entrou, ela ficou louca, saiu correndo e um carro a atropelou na avenida. E ela contou isso para os médicos, e contou para todos, e todo mundo foi lá, pegou a criança, levou a criança para o hospital, fizeram exame e a menina fez assim: baixou a cabeça e não olhava mais para adulto. Parou de olhar. Ela veio para minha escola exatamente para eu tirar esse trauma dela, de não confiar em gente grande. E eu trabalhei um ano essa criança. E ela não olhava no meu rosto, ela torcia. Ao cabo de um ano de um trabalho de carinho, de amor, de aceitação de como ela era, ela olhou para mim e levantou o rosto e começou a olhar para as pessoas. Ficou mais uns dois anos ou três comigo e nunca mais. Então, são histórias que se desenrolam. Uma história também que eu gosto muito de contar é de um pai, ele trabalha na prefeitura de São Paulo. Tinha dois alunos. Caio e Carla. Bonitinhos, ele deixava os filhos lá comigo. Um dia chegou bravo lá na escola: “A minha filha está com uma mordida!” E mostrou o local. Na parte genital. Mostrou. Eu vi, falei: “Ué?’ “E ela fica com a senhora e a senhora tem que me dar conta disso.“ Eu falei: “Imagine! Funcionária nenhuma vai morder uma criança aqui.” Mas o senhor vai me dar um dia, confiando em mim, que eu vou ficar observando tudo o que acontece na escola e depois eu conto para o senhor. Então eu fui ver: escorregador a criança sobe, se um amigo morde, morde o bumbum. Porque a criança sobe no escorregador é o bumbum que tá lá atrás. A criança não sobe no escorregador de frente. Eliminei. Fui olhar a troca das tias, um monte de criança pra trocar, uma tia ajudando a outra, a calcinha noutra, a fralda outra. Não tem tempo pra tia chegar e ficar mordendo. E olhei o dia inteiro e a noite falei para o pai. Falei: “Olha, eu olhei minha escola, agora o senhor olha a sua casa que aqui não foi.” A menina com a cara deitada, roxa, assim. Ele falou para uma empregadinha que ele tinha de Ibiúna, falou assim: “Olha, eu vou sair para trabalhar e você pega as meninas na escola. Eu não vou poder voltar.” Quando a empregada saiu para pegar as meninas na escola, ele entrou embaixo da cama do apartamento. E abriu todas as portas, tirou móvel, de modo que ele conseguisse ver a casa. Ele viu o banho da menina. Primeiro ele viu a alimentação. A empregada dizia para a menina: “Come! Ah, você tá cheia, você tá gorda.” Comia ela. Não dava. “Ah, você come muito!” “Tia, me dá esse pedaço, me dá esse pedaço!” “Que dar para você, come isso. E dava o que queria. Diz que ele quase teve náusea, assistindo essa cena. E depois ele esperou a hora do banho e viu. A menina trocava a criança e ia e mordia, cheirava, fazia isso tudo. Ele jogou a cama pra cima. Falou: “Não matei porque não queria ir para a cadeia, Ditinha. Ele veio me contar indignado.” Ele disse: “É a minha empregada!” E a gente paga pra isso acontecer, dona Ditinha. “Eu fui lá em Ibiúna, falei com o pai, falei com a mãe, contratei, dava comida, dava roupa, pagava salário! Dormia na minha casa e tratava como um parente meu.” Eu falei: “Isso é pra você ver.” Então, quando vejo esses casos, desses filmes aí, eu falo: “Quanto um adulto precisa desconfiar de com quem ele vai deixar o filho.” Até por isso que São José cresce, Santa Maria cresce, a origem nossa é de zelo, é de cuidado. E eu, pelo amor de Deus! Eu exijo, eu sou brava. Quando quero assim. O dinheiro sempre chega, e quer tomar conta. Mesmo o São José, essa escola que cresceu muito. Quando o dinheiro quer dominar, eu falo: “Gente, não esqueça sua origem, por favor. Origem é São José. É muito forte.” Existem falhas, a gente sabe que tem. Tem sempre um que tem uma queixa, outro que tem. Por quê? Porque nós temos que contratar pessoas que vêm de outros lugares e de outras origens. E, sempre digo, o ser humano não nasceu ruim. O ser humano nasce bom, mas o mundo transforma. A inveja, a ganância, a correria. Você tem uma pessoa linda, maravilhosa, de repente aquela pessoa é um criminoso. Então é isso. Exatamente qual é a minha função? Educadora. Precisa educar. Você tem que ser uma educadora. De bons costumes, de bons hábitos, de amor. E para educar o que você tem que fazer? Se educar. A maior educação eu preciso dar para mim, para eu poder exercer aí fora.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho na história. A tua adolescência.
R – (RISOS) Adolescência! Olha só, a minha adolescência. Que bom que você lembrou desse pedaço. A minha adolescência foi muito interessante. Então, se eu disse pra você que quando eu fiz a minha primeira comunhão eu morava no Jockey, o início da minha adolescência foi no Jockey. Que eu já estava com meus onze doze anos. Moramos muitos anos lá. Papai trabalhava nas cocheiras e nós morávamos nos comodozinhos que deram pra gente morar para sair do aluguel. Dificuldade de aluguel há muitos anos que tem, né? Salário pequeno, o aluguel come tudo. Então, lá a gente não pagava. E eu cresci. E aí fui querendo ficar bonita, que eu aumentava a boca, cortava o cabelo contra o gosto do pai, levantava a gola e saia toda rebolando. Eu vejo essas meninas agora e vejo. Eu fiz isso! A gente nem sabe que tá ridículo. A gente tá achando que tá linda, maravilhosa. E cresci nesse Jockey, mas fui logo trabalhar. Com onze anos, com doze anos, com treze anos, eu já trabalhava.
P/1 – Qual o seu primeiro emprego?
R – Eu trabalhei numa tipografia. Não! Primeiro foi numa fábrica de macarrão na rua Butantã. Sai correndo de medo do dono porque o dono passava a mão nas funcionárias. E as funcionárias avisavam a gente. Eu entrei, tava trabalhando, na função mais simples. Eu fazia esse macarrão que é dobradinho, pegava aquela pilha de macarrão no braço, colocava o dedo assim,dobrava assim e fazia um quatro. Depois ensacava. Aí, elas conversando diziam: “Olha, ele passa a mão naquela, passa a mão naquela.” Ele vinha andando. Como eu tava na última mesa, eu nunca. Elas disseram que ele passava a mão em quem tava na última mesa. Mas conforme a gente ia subindo de cargo, nas funções, e fazendo direitinho o nosso trabalho, nós chegávamos na primeira mesa. E então eu fui trabalhando, trabalhando, trabalhando. Quando eu percebi, eu disse: “Nossa, quando eu chegar naquela mesa ele vai me passar a mão!” Eu saí correndo do serviço e cheguei lá em casa e falei: “mamãe, não quero mais trabalhar, tenho medo do seu fulano, e disse o nome do homem”. E contei o que ele fazia. Ela disse: “Você nem vai lá para receber, vou eu receber.” Minha mãe era bravinha, lá foi ela receber meu salário. Então trabalhei nessa fábrica de macarrão. Aí fui trabalhar numa tipografia. Para mim as máquinas falavam. Lep, lep, lep. Eu digo, meu Deus, essas máquinas estão conversando! E eu trabalhei muito tempo também, um aninho mais ou menos lá na tipografia. Também saí. Eu enjoava das coisas.
P/1 – A senhora ia a pé para o trabalho?
R – Sempre a pé. A gente saia do Jockey Club e vinha a pé até o Butantã. Eu saia do Jockey Club, se não me engano foi na Cunha Gago, esse emprego. Entre a Cunha Gago e a Fradique, foi lá que eu trabalhei nessa tipografia. Agora, quando eu sai de lá eu fui trabalhar numa concessionária da Real Transportes Aéreos, era a Carlos Mendes e Filho. Elas faziam transporte das bagagens de avião, de pacotes, enviavam pelo Brasil inteiro pela Real. Aquela aviação. Então eu usava o uniforme da Real Transportes Aéreos, mas eu trabalhava na Carlos Mendes e Filho. Eu exercia a função de telefone. Eu telefonava para as firmas e dizia: “Boa tarde, aqui é da Real Transportes Aéreos, sua encomenda chegou, tal, tal.” Então eu aprendi a decorar telefones, que até me ajuda até hoje com datas, que eu decoro tudo, sei telefone, RG, CIC, tudo eu sei, porque acostumei a lidar com os números. Lá fiquei até casar. Aí vai. Adolescência? Eu trabalhava na adolescência e morava no Jockey. Tinha muito medo, papai era muito bravo e não deixava a gente namorar. Ele dava em quem quisesse olhar para a gente lá. Ele cuidava de mim e da minha irmã, que éramos as mais velhas. Mas eu comecei a olhar um, olhar outro. E um dia nós estávamos em casa, e jogávamos dominó à noite, quando eu tava de olho no meu marido e ele em mim. Mas eu não gostava dele porque ele falava com muito sotaque de cearense. E eu falava: “Deus me livre!” E ele também me achava muito magra! Também falava: “Deus me livre namorar com ela!” Mas a gente tinha uma amizade. A gente jogava dominó junto. Eu, meu irmão Sérgio, a Olinda e ele. Ele crescia ali. E ele ia ser jockey, naquele tempo ele tava como aprendiz de Jockey. Na época, Jockey era como um jogador de futebol famoso hoje. E todo mundo ficava de olho nele, pela profissão que ele ia ter. E eu falava: “Deus me livre! Ele fala com muito sotaque. “Bichim”, não! Eu não.” E fomos jogar dominó e meu irmão me deu um empurrão na cadeira, aquelas cadeiras de ferro e abrir e fechar. E o papai dormia assistindo a gente jogar, para não fazer arte. Não podia ninguém fazer. Mas quando meu irmão me empurrou, eu estava com as pernas para cima e caí. E meu pai abriu os olhos e viu minha perna assim. Ela tá se exibindo pro Chico! Que o apelido do meu marido era Chico. Meu pai sempre chamou meu marido de Chico. Ela está se exibindo. E levantou, pegou uma cinta e me deu uma surra. “Você tá se exibindo! Isso é uma sem-vergonhice!” Eu apanhei tanto do papai. Foi um empurrão que o Sérgio me deu, pai! Que? Ele bateu. O Chiquinho: “Tá doendo? Não fale comigo! Você é o culpado, se não tivesse na minha casa não tinha apanhado.” Isso eu tinha o quê? Catorze anos, tomei a surra, no dia seguinte, a gente já saia no quintal, era a cocheira de cavalo, ele já tava cedinho: “Doeu, doeu?” “Não fale comigo nunca mais!” E fui pro meu trabalho, trabalhei, voltei e não falei mais com ele. Nesse um ano que eu não falei com ele – ele tinha 20 anos e eu tinha 14 – a profissão dele de aprendiz ascendeu, ele foi fazendo um sucesso, foi ganhando corrida, ganhando corrida, ganhando corrida. Quando eu fiz 15 anos ele já estava no auge da profissão. Bem sucedido.
P/1 – Quantos anos ele tinha?
R – Nós temos cinco anos de diferença. Eu tinha catorze ele tinha 19, quando eu fiz 15 ele fez 20. Olha só, todo mundo caiu matando em cima dele. As cunhadas dos amigos lá do nosso meio. O pessoal dizia: “Você vai casar com a minha cunhada! Oh, vou te apresentar minha irmã.” Essa coisa assim de jovem. E eu falando: “Deus me livre” e minha família me engolindo: “Vê o que você perdeu! Você precisa ser tão chata? Você não fala com ele? Você não olha pra ele? Olha, ele ta ficando rico!” E eu, “Deus me livre! Não quero saber”. Mais, aquele “Deus me livre” começou a doer em mim. Porque eu falei, olha o que eu tô perdendo, um baú de dinheiro. Ele ganhava dinheiro e comprava aquelas camisas de linho. Era moda comprar roupa na “Exposição e Garbo”, e ele ia e comprava e desfilava com aquela roupa.
P/1 – Como era a roupa da época? Como vocês se vestiam?
R – Olha, ele usava casaco de antílope. Era uma, eu chamo de camurça, hoje. Naquele tempo era antílope. Chapéu panamá, camisa de linho, aquelas calças cinzas, com aquele vinco bem passadinho. Ele usava uma boina de vez em quando, do homem. Eu, como mulher usava aquelas blusas de aeromoça, branquinha, que eu fazia aquelas golinhas assim, e tudo o que eu tinha eu fazia na mão, pra usar, e fazia bolerinho. Pode ver, na foto eu tô com bolerinho.
P/1 – Você costurava?
R – Na mão, não tinha máquina. Porque eu queria andar na moda e não tinha condição. Desmanchava paninho que vinha. Sabe, traziam aqueles sacos de roupa, que dão pra quem é pobre? Eu olhava bem aquilo, cortava tudo e fazia a minha moda. Meus boleros, punha renda de um em outro, punha a renda aqui. Eu fazia a minha moda. Cortava, fazia decote ou não fazia, mas era eu que fazia as minhas coisas, na mão. A gente fazia bolo, jogar em corrida de cavalo, vamos fazer um bolo? Bolo é assim: “Apostar em quem vai chegar na frente.” Cinqüenta centavos você, cinqüenta centavos ele, cinqüenta você e jogava no cavalo. E um dia eu ganhei um bolo que deu três e cinqüenta. Mamãe, vai em Pinheiros, compra pra mim um pano! Mamãe saiu e comprou um paninho branco. E eu ia trabalhar enquanto isso, nessa Real. Quando ela voltou fiz um vestidinho bonitinho, branco, na mão, com o dinheiro que ganhei no bolo de corrida de cavalo. E assim vai, a gente ia. Eu sonhava muito em ser jóquei, eu que queria montar os cavalos. E, às vezes, sonhava à noite e pulava na minha mãe. Porque, como o papai fazia? O papai fazia a mamãe dormir com as mulheres e ele dormia com os homens. “Lurdes, tome conta delas, que é para ninguém chegar perto de nós.” E ele tomava conta dos homens. E era assim, na cocheira de cavalos. E eu sonhava, eu pulava em cima dela. A mamãe tinha uma anca, uma cinturinha fina e um corpão assim. Africana, né? E eu pulava nela. A mamãe acordava e dizia: “Sai, sua bandida!” Ela acordava assustada, comigo em cima dela, tocando cavalo, achando que a mamãe era um cavalo. “Vai, vai ganhar!” Eu sonhava, isso já mocinha.
P/1 – Vocês dormiam na cocheira?
R – Era, morava na cocheira de cavalo. Por exemplo, esse espaço aqui era a nossa cocheira. O papai dividiu a metade com uma madeira. O papai, não, os empregados do jóquei. Dividiram a metade com uma madeira e dividiram a metade com o sote. E tinha uma escadinha de madeira que subia. A escadinha de madeira que ia para o “sote”, era sote porque não era sótão, que era grande, era sote porque era a metade. Lá tinha uma cama de casal pertinho do telhado, e uma cama de solteiro. Dormia a mamãe e os filhinhos pequenos e nós mulheres. Embaixo, nessa entrada, tinha um fogão de carvão, de tijolo, com a tampinha em cima onde ficavam as panelas. E uma mesa. E essa mesa vinha para esse lugar que era dividido e ficava a cama de solteiro do papai, as cadeiras, que é uma dessas que eu caí, com uma mesa. Nesse espaço vivia a mamãe, o papai, sete filhos, o meu tio Hernandez e meu tio Moacir. Que eram uns tiozinho solteiros, bonitinhos, irmãos da mamãe. E ali viviam. O ganho era pouquíssimo, papai ganhava pouco como cavalariço. E papai jogava truque. Então nunca tinha dinheiro no fim do mês, era terrível. Mas vivíamos bem, quando começamos a trabalhar, começou a melhorar. Conseguimos comprar um sapatinho, um brinquinho. Consegui comprar a brilhantina Royal, que a gente passava no cabelo e ficava toda! E ia ao cinema, a gente ia ao Cine Brasil.
P/1 – Então, continua contando as histórias da juventude, os passeios.
R – Então, esse tempo então, nessa cocheira que a gente vivia. E trabalhava, estudava e vinha para dormir. Essa época que a gente tava no Castro Alves. Estudava a noite. E a gente vinha cantando no ônibus, vinha assoviando “Cidade Maravilhosa”, e vínhamos lendo jornal dos outros que vinham na frente. A gente lia as notícias, as pessoas ficavam bravas, dobravam o jornal. Íamos pondo a nossa conversa em dia: eu, minha irmã Olinda e meu irmão Sérgio. Depois lá em casa a gente já chegava contando tudo pro papai, o nosso dia, e para a mamãe. E tomávamos um cafezinho quentinho, gostoso, com um pão quentinho. Aquele cheiro do café ficava. E aquele fogão de cimento e tijolo que tinha na cozinha esquentava a casa toda. E fora isso a gente ainda ia ouvir as histórias dos tios, que iam ouvir aquelas músicas argentinas, “Adiós, Pampa Mia”. Eles punham aquela música. Meu tio pintava e botava aquela música. (canta) “Adiós, pampa mia.” E quando eu ouvia isso eu associava à pintura, e ao tio, e àquela figura. E ainda criávamos um pintinho, nosso bichinho de estimação, que dormia no ombro do tio. Então ficava uma figura assim que não existe. A gente não pode imaginar isso! E nós dormíamos lá em cima e de cima eu olhava, via, e o titio estava pintando perto do fogão, minha irmã e eu discutindo nossos assuntos de adolescente. E o nosso final de semana, o programa, onde a gente ia? Nós íamos ao cinema. Quem ia pagar o cinema? Aí minha irmã convidava o Chiquinho, que é o meu atual marido, que é o Jóquei que o papai chamava de Chico. E ele ia ao cinema, mas ele queria ir perto de mim, e eu longe dele. Ele ia porque ele pagava o cinema. E ele andava muito perto da minha irmã, falando de mim. E meu pai via aquela cena. Minha irmã era gordinha. Eu era magra e alta e minha irmã era gordinha. E ele perto, falando, falando: “fala isso pra ela, diga que eu gosto dela, e tal”. E minha irmã: “ah, não sei o quê, não sei o quê”. E nós íamos. Chegava no cinema sentava longe dele, e via. Comprava um doce pra nós, ele ia dormir, eu ia para o quarto. Nisso, um dia – eu não falava com ele, ainda tava na briga da surra que eu tomei – eu tava perto dos meus quinze anos, minha irmã dizia assim: “Nós precisamos mudar do Jockey, isso não é vida!” Ela estava estudando para contadora, ela estava ficando numa posição, era secretária e tal. “Papai, é muito feio morar aqui, vamos alugar uma casa fora!” E o papai dizia:”Como é que eu vou pagar? Na época era mil e 500 contos, a casa. Aí nós achamos uma no Butantã, chamava-se Morro do Querosene, Rua F, número cinco. Era uma casa imponente, alta, dois quartos, sala, cozinha. Para nós era um palácio! Sair de uma cocheira e ir para uma casa daquela: íamos para um palácio! Apesar de que o jóquei era aqui e o Butantã era aqui. E nós aceitamos a idéia. Mas o quê tinha? Nós não tínhamos o dinheiro! Ela não podia pagar o aluguel sozinha, ela vai e convida o Chiquinho para ir: “Você paga a metade e vai como pensionista.” Na hora ele aceitou. “Você é Jóquei, é famoso, você também não pode viver morando em cocheira.” Aí ele aceitou, ir morar junto. E essa conversa, antes da gente ir, naquela preparação que estávamos vivendo, um dos colegas lá do serviço dizia: “Você vai hoje ver a Maria? Oh, você vai casar com a Maria, você vai ver!” Aí a minha mãe, quando cheguei no sábado à tarde, tô me arrumando: “Tá vendo, o Chiquinho vai ficar noivo da Maria, a cunhada do Amélia” – Amélia era o apelido do funcionário. E eu disse: “Vai nada, ele é louco por mim. Não, ele vai ficar noivo, você é muito presunçosa, ele vai casar com ela” “Mamãe, a senhora não sabe.” “Ele vai casar com ela sim!” “Então, a senhora me aguarde.” Me arrumei, me perfumei e fui esperar no portão. Era um quintal enorme, de areia, com as portas dos cavalos – nossos vizinhos eram os cavalos – nós ficávamos nessa ponta e na ponta de lá ficava o dormitório dos jovens onde meu esposo ficava. Era uma... Eu achava enorme, agora eu acho tão pequenininho o lugar. Mas era enorme a distância a percorrer, de lá até aqui. Eu digo: “eu tô de olho, a hora que ele sair eu vou para o portão”. Isso lá ele põe aquele casaco de antílope, aquelas blusas e se arruma todo cheiroso, porque vai sair, era sábado à noite. E eu falei, vou esperar no portão. Esperei. Assim que ele apontou, falei: “Você já vai ver a Maria!” Ele estremeceu todo. Eu falei: “Escuta, você vai casar com a Maria?” “Eu? Eu?” Nem falava. Esse da fotografia que vive me beijando (risos). “Eu? Casar com a Maria?” Falei: “Vai, mas tem uma coisa, você pode até casar com a Maria, só que o primeiro convite de casamento tem que ser meu.” “Ah, mas eu não vou casar com a Maria, porque eu não gosto da Maria”. E, e já ficou todo se derretendo para o meu lado. E a minha irmã, que era uma comilona, falou: “vai comprar alguma coisa gostosa para a gente comer”. Lá saiu ele correndo, comprar esses doces de padaria, esses confeitados, já trouxe um prato de doces. Eu entrei na cozinha e falei: “Mãe, vai chegar aqui.” “Você não presta, sua isso, sua aquilo!” Mas ele entrou e está até hoje. Ele era a paixão da minha mãe. Porque mamãe deixava todas as misturinhas pra ele, ela punha em vasilhinha. Porque ele sempre me quis bem, e eu também, né, só que a gente é mais, mulher é diferente, né? Era segura de mim. E ele é amoroso, ele diz: “Eu gosto dela, ela é a mulher mais...” Até hoje ele é assim. Ela é a mulher mais bonita, ela é; ele é de falar. Eu fico: “menos, menos”. E a gente vai. A minha netinha, minha bisneta fala: “Ah vó, como o vovô te beija, olha essas fotos.” Mas nas fotos, aonde ele chega, ele me dá um beijo. E ela vê: “Vó, fala para ele parar.” Falo: “Tá na foto, filha. Então, não tem como!” A gente vê muito. Então, minha adolescência foi namorar e me casar. E me casei com dezesseis anos.
P/1 – Conta um pouco do casamento.
R – Esse casamento foi assim. Então nós fomos para essa casa, na Rua F, número cinco. E a minha irmã continuou fazendo o páreo. Porque ele trouxe o docinho, mas eu não o namorei; ele me comprou um relógio, mas eu não namorei com ele. Ele tava presente, morava na casa. Depois foi assim: papai dividiu a casa. Como ele dividia a cocheira, ele dividiu a casa. Ele ficou no quarto da frente com o Chiquinho e o meu irmão Sérgio. Na sala, o corredor ficou minha mãe, meus irmãos e os pequenininhos, no quarto. Aí chegava em um banheiro e em uma cozinha. Então, a saída da frente era a sala. Meu atual marido tinha que passar pela sala e ir embora, ele era Jockey. O que ele fazia? Ele comprava uma lata de leite condensado para chupar de noite e dava uma para o meu irmão. E meu irmão era louco pelas roupas dele e ele emprestava. Pois, o meu irmão é técnico de avião jato, é tradutor de línguas, mora em Congonhas. A gente ri dessas histórias. Chico me ganhava dando as latas de leite condensado dele para eu chupar, só para beijar minha irmã. Era uma troca, assim. E o papai bravo, olhando. Punha uma mesa. “Senta Ditinha, fiquem aqui. Você borda seu enxoval.” Não, não sabia que a gente namorava. Era a vontade eu e o Chiquinho. E o Chiquinho veio pra mim sem namorar: “Vamos casar, bichinha? Vamos casar?” “Vamos.” Eu tava cansada de trabalhar e estudar, falei: “Bom, vamos casar logo”. E para casar ele ia me buscar no serviço, ele me trazia, ele me levava. E começou a beijar a minha mão aqui, beijar minha mão aqui. E eu digo: “Meu Deus, quando é que esse homem vai me beijar de verdade!” Ele ainda tá no cotovelo, eu queria que ele agarrasse, e ele ainda tá aqui no cotovelo. E era assim muito com medo. Isso passava meses, passava semanas, e minha irmã lá conversando com ele e papai vendo a conversa e em mim os beijinhos chegando. E eu já tava quase me atirando em cima dele, que eu era muito atirada, e me segurava, senão apanhava do meu pai. Quando a minha irmã: “Vocês não querem ficar noivos, vamos falar com o pai, vamos fazer uma festa de noivado.” Falei: “Vamos ficar noivos, vai.” Aí meu pai, quando chegava, ele sentava na mesa da cozinha, em frente ao fogão, e pegava o despertador e ficava acertando – que o papai acordava as cinco horas da manhã, quatro e meia – e ficava acertando o despertador com um pratão de comida. Ele ficava comendo, mamãe fazia. Ele e ela na cozinha. Nós ficávamos no resto da casa, não podia chegar perto deles conversando. Minha irmã chega e fala: “Papai, o Chico quer falar com o senhor.” “Quer?” “É, ele quer fazer um pedido de casamento.” Papai: “Ah, pode vir, Chico”, entra Chico. “Então, quais são suas intenções?” Diz o Chiquinho: “Ah, eu quero me casar”. “Quer se casar com ela? Então tá bom. Você vai casar mesmo, então tá bom.” Olinda! Chama a minha irmã. A minha irmã veio: “Senhor, papai.” Papai: “O Chico quer casar”. Diz meu marido: “Mas seu João, não é com a Olinda, eu quero me casar com a Ditinha.” E no tempo do meu pai, primeiro casava-se as filhas mais velhas. Ele pegou o relógio que estava na mão e o prato de comida, mandou na parede e soltou um palavrão. “Lurdes!” Minha mãe veio com o aventalzinho, minha mãe chegava assim, enxugando a mão: ‘O que foi, João?” “Você sabe disso?” “Não, eu não estou sabendo de nada, agora que eles estão falando.” ”Você sabe disso e você escondeu de mim.” “Oh, Di!” E me chama. Eu, muito levada, chego na frente dele: “Senhor, papai.” “É você, então?” “Eu o quê, papai?” “O Chico tá pedindo em casamento.” “É papai, ele quer casar, o que eu posso fazer?” Como se eu fosse uma vítima. “E você?” “Eu também quero, ué.” “Você quer casar com o Chico?” “Quero papai. Assim eu me livro dessa vida, essa casa pobre”, ele tá bem, “Eu já saio e paro com escola, e paro com tudo”. Trabalhar na Real Transportes Aéreos. Pensava em me livrar do trabalho. E vai, “Quanto tempo você quer se casar?” Nós não tínhamos nem falado em casamento, nem namorar a gente namorava. Assim, eu tô namorando. Nossa, não tinha nem chegado no ombro. O beijo tava no cotovelo ainda. Eu dou tanta risada dos namoros hoje, primeiro as meninas vão para o motel, depois que vai, fica dez anos junto e depois casa. Eu, ainda nem o ombro tinha beijado. Aí, vai, chegou meu pai: “Tá bom, se vocês querem casar eu dou um prazo.” Isso foi em novembro. Ele falou assim: “Vocês vão ficar noivos no dia do meu aniversário, dia 15 de dezembro, que foi de 1952. Mas, vocês quando ficarem noivos, nós vamos marcar para dali um ano.” Pegamos já uma folhinha e vimos que um ano não dava o aniversário do papai, que papai é de 15 de dezembro, deu 12 de dezembro. Papai, dá três dias antes. Não tem importância. Então, nós marcamos o noivado para uns dias depois, foi aí então que começamos a namorar; e aí já me deu entusiasmo de fazer o enxoval e casar, e para um ano depois o casamento. Papai pôs uma mesa no meio de nós dois e dizia: “Borda seu enxoval! E vocês fiquem conversando.” Ele ficava cochilando e nós dois com o pé embaixo da mesa pra um encostar no outro, por debaixo da mesa, porque o papai tava ali. Aí eu falava, “meu Deus, como é que eu vou namorar com essa fiscalização?” Aí, a gente fazia sinal, cinco horas da manhã, ele falava: “Levanta que eu vou sair pelos fundos.” Eu levantava, ia na cozinha. Ele vinha e dizia assim: “Deixa eu ver seu joelho?” “Mas o que tem meu joelho?” Ele falava, mostra o joelho. Eu fazia assim com o vestidinho, mostrava e ele saia correndo pela cerca, feliz que tinha visto o joelho. Esse era o noivado. Aí ele ia me buscar no serviço de carro. Eu falei: “Agora ele vai me beijar.” Ele ia me pegar na General Osório, que era meu emprego, na Rua General Osório. A gente vinha. Quando chegava na Avenida Rebouças era uma via só, e cheia de árvores. Então ele chegava e vinha me encostando, me dava um beijinho assim, o guarda apitava. O guarda pegou! Eu tava chegando aqui na Iguatemi, hoje é Faria Lima, naquele tempo era Iguatemi, tinha uma delegacia. Um guarda enorme, com uma bota enorme falou: “Desce do carro, vocês estão tendo ato indecoroso.” Ele falou: “Não, só dei um beijinho nela! Não, não pode nessa avenida dar beijo, encosta o carro.” E o motorista encostou o carro e o meu marido começou a tremer, porque ele conhecia o meu pai: “Ele vai matar ela e eu.” Papai era bravo, aquele chicote dele doía! E ele pegou, abriu a carteira, tirou uma nota enorme que ele tinha e falou: “Pelo amor de Deus, o senhor não nos leve para a delegacia que meu sogro mata a minha namorada”. E ele pegou aquela nota enorme, inteira, de um valor enorme e deu. O guarda dobrou, botou na carteira e falou: “Mas eu vou acompanhar vocês até o Butantã pra vocês não fazerem mais nada errado.” Viemos os dois tremendo no carro, o nosso carro tinha que subir o morro do Querosene, que é bem ali perto do Instituto Butantã, e viemos escoltados. Então descemos e não falamos nada para ninguém. Então a gente já namorou assim. Foi um namoro com casamento marcado, uma adolescência que se tremia. E minha ria quando eu contava pra ela: “Você é uma tonta mesmo! Você é uma boba!” E minhas colegas de serviço contando barbaridades do noivado delas e o meu tão chocho. “Eu vou desmanchar esse casamento, isso aí não vai dar nada, não acontece nada!” Aí um dia ele vai e aluga a nossa casa, mobília a nossa casa, bonitinha. Eu digo: “Ah, vou fazer o que as minhas colegas do serviço fazem. Vou bater na porta, vou entrar, não vou trabalhar.” Ele já tinha saído da minha casa, estava já mobiliando a nossa casa. Bati, falei: ”É hoje, eu vou aprontar! Entrei, quando eu cheguei na casa, que ele viu, eu entrei direto e falei: ‘Vem pra cá. E já me joguei na cama achando que ia ser aquela maravilha, que ele ia pular em cima.” “Sai pelo amor de Deus daqui que você vai ficar falada! Me botou para fora de casa, trancou a casa.” Eu vi aquilo: “Como é que eu vou casar com um homem desse?” Eu fiquei boba, eu fiquei brava. Tranquei a porta e fui para o serviço. Aí eu enfezei. Aí o motorista nosso, e vai para Aparecida do Norte, faz uma promessa para o padre, que nunca ia me beijar até o casamento. E eu não sabia da promessa. E eu oferecia, e eu chegava perto e ele virava a cara. Eu dizia: “Nossa, como é que eu vou casar com esse homem!” E eu fiquei muito brava. E no meu casamento eu indo pra civil, eu queria desmanchar. E o motorista vendo isso. Eu querendo desmanchar, e brigando. O motorista – de manhã foi o civil, a tarde foi o casamento na igreja – eu fui falei: “Fui para o matadouro, não me beija, não encosta na minha mão. Não sei se digo sim ou digo não lá no altar.” Casei. Na volta esse homem veio me agarrando, me beijando. O motorista: “Eu não acredito”. Aí foi onde me beijou depois de casada. Só depois ele me contou que era promessa. Aí eu falei: “Agora eu vou ter a lua de mel. Porque agora começou?”
P/1 – Agora a senhora conta como foi o primeiro beijo!
R – (risos) O primeiro beijo a gente nem acha graça. Porque foi tão assim, que agora tá o homem olhando no espelho. Mas foi, aconteceu o primeiro beijo. E já falei, vou me preparar para a lua de mel. Fale, rasga meu vestido de noiva, porque agora tem que dar seqüência. Do nada que aconteceu até agora, ele vai rasgar. E estou lá no casamento. E essa tal Maria foi no casamento. Essa que eu achava que ele ia ficar noivo e casar. E ele ficou todo encantadinho com ela lá. E interessante que no dia do meu casamento casaram-se ele e eu, nessa casa Rua F número cinco. Na outra rua, na rua E, um outro povo do jóquei também, o nome dele era Abílio e Maria Inês. Então, os convidados nossos vinham e davam o presente de casamento na rua de baixo – que lá era um morro – ah, lá tem festa de casamento. Chegavam e davam o presente de casamento. Só que a Maria Inês era loira e eu morena. E o pessoal que ia dizia assim: “O Chiquinho casou-se com uma morena.” Eles davam o presente de casamento e davam de cara com a noiva, que era loira, ela abria o presente, punha na cama. E eles falaram, “Ah, meu Deus!” E eles iam lá, tomavam o presente, iam lá, embrulhavam, davam pela janela e saiam correndo até chegar no meu. Quando chegavam no meu casamento, o presente chegava aberto. Não repara que o presente está aberto porque nós demos para a outra noiva lá embaixo. E foi essa novidade. E eu lá preocupada com o Chiquinho, aquela tal da Maria. Uma hora me disseram: ”O Chiquinho está no banheiro com a Maria.” Eu falei: “Meu Deus! A casa caiu.” Fiquei plantada no corredor pra acabar com o casamento. Não, saiu a Maria com outra pessoa, mulher, duas mulheres no banheiro. Mas era tudo para provocar em mim alguma coisa. Aí eu falei: “Ah, chega dessa festa, vamos para casa que eu quero ter a minha lua de mel.” O meu pai:”É cedo!” “Ah, papai, eu tô cansada.” O meu pai vai junto. Ai eu falei:”Papai, não precisa.” Eu desistia da Rua F e ia para a rua H, número seis, que era a rua da minha casa. Casinha linda! Meu pai desceu junto à pé, e eu de noiva, segurando o vestido e vou. Falei: “Pronto papai, chegamos em casa.” “Chico abre a porta para ela”, o Chiquinho abriu a porta. “Vai Di, entra.” Eu entrei, e fiquei: “Tomara que o papai vá embora logo.” Meu pai ficou dando aqueles conselhos de vida. E falava, falava. O papai falava mole. “Viu, meu filho, que não pode se desesperar porque a menina é nova, porque casamento é a vida toda, porque você..”. Falando um monte de besteira. Eu digo: “Papai, deixa de ser bobo, vai embora.” E papai nada de ir embora. E uma hora eu apareço no corredor, eu tô de noiva ainda. Porque eu tava esperando o papai sair pra ele vir rasgar meu vestido. Eu queria entrar no colo. Ele é baixinho, não ia poder me carregar. Queria que rasgasse o vestido, meu pai tá lá. Eu não sei o que a gente ia fazer, meu pai não ia embora. Apareci no corredor vestida de noiva, papai soltou um palavrão daqueles: “Vai já tirar essa roupa! O que você está pensando da vida?” Toca eu entrar, eu fiquei tão frustrada. Tirei a roupa, botei a camisola. “E deite e se cubra!” Eu vesti a camisola e deitei e me cobri e fiquei pronta. Me deu um beijinho, “até amanhã”, dormiu. Muito sem graça. Eu arrasada! Arrasada! Quando não a porta bate, acordei com a porta. Pá pá pá na porta. Falei “tem gente aí”. E eu dormi pela primeira vez com um homem do lado, vou abrir a porta, envergonhada. Meu tiozinho, tio Moacir. “Que vergonha, hein! Uma hora dessa, vocês dormindo!” “Que horas são?” “Umas três horas.” “Tio, pelo amor de Deus, desculpa, perdemos a hora. Três horas? Sete horas da manhã.” Meu tio veio tomar café com a gente e conversamos. Então, que lua de mel. Foi no decorrer da vida, no decorrer da passagem, foi um conhecimento lento, devagar, muito carinho, com muita atenção. Eu ia na casa da minha mãe, eu voltava. Então não teve esse afoito de eu vou descobrir, eu vou rasgar, eu vou apresentar. Não, muito respeito. Por isso, já está em 54 anos de casada. E eu dou risada. Eu não acredito que você casou virgem! Aí diz meu marido: “Eu também era virgem.” Assim, aí fico casada, acho que estamos fazendo errado porque eu não conhecia e ele não conhecia. Fiquei muito assim, quando ele falou que casou virgem. Falei para minha mãe. “Mãe, eu não engravido, vamos me levar num médico para ver se ele está fazendo certo?” A minha mãe com nenê no colo, que a minha mãe quando eu me casei ela ganhou um nenezinho, que é o meu irmãozinho Eusébio, que eu sou madrinha. Ela falou: “Minha filha!” “Mãezinha, por favor vamos no médico, vai que ele está enfiando no lugar errado, vai que tem outro lugar.” Minha mãe ria de vergonha de falar e me leva no médico. Chega lá, o Jockey Club era o médico nosso, tinha aquele ambulatório enorme. “Doutor Cortês, dá para o senhor examinar a menina, que ela está achando que o marido não está fazendo a coisa certa.” Mas o médico ria tanto. “Você não sabe” “Não, não sei. Sei lá onde que é isso, sei lá se está certo, eu não engravido.” Lá vou eu para aquela mesa ginecológica, fui examinada. “Tá tudo certo, vai embora pra casa, zóiuda!”. E eu assustada que tava. Voltei, falei:”Tá certo!” Levei ainda dois anos para engravidar, tive que fazer um tratamento.
P/1 – Quantos filhos a senhora tem?
R – Quatro filhos e depois, quando a minha caçula estava com doze anos eu adotei mais dois. Um com três, um com quatro anos. Hoje um tá com 38 e o outro com 37. E sou avó de todos os filhos deles. Então atualmente eu tenho seis filhos. Quatro meus e dois do coração. São dois filhos lindos que eu tenho. Então são seis filhos maravilhosos. Todos saudáveis, todos vivos. Cada qual me deu uma quantidade linda de netos e bisnetos. Netos eu tenho 17, bisnetos já vai para onze. Eu sempre contava doze porque tinha mais uma menininha que parecia que ia viver com um dos meus netos, filha, mas não deu certo. Então, atualmente estou com onze, um deles é a do Jéferson, esse que vem aí. A Sofia. Então família está aumentando.
P/1 – Como foi a experiência de ser mãe?
R – Ah, maravilhosa. Muito esperado, muito esperado. Assim, ser mãe para mim era sonho, porque já que a gente tinha todo esse amor, todo esse carinho. A primeira filha foi feita por mão de médico. Eu tinha útero infantil, tive que fazer um tratamento para dilatar o útero para eu engravidar. Quando eu engravidei todo o carinho da mamãe, que ia ser a primeira neta dela. E a simplicidade da mamãe, e o meu casamento com o Chiquinho que tinha um nível melhor financeiro deu assim: a família minha parecia assim que nós éramos os ricos. Não éramos, a gente era classe média. É que nós éramos muito pobres mesmo. Então tudo a gente repartia com eles, com a mamãe. Então a gente era muito importante pra família inteira. E aí fomos alavancando a família, porque tudo o que nós dois conseguíamos, os irmãos tentavam conseguir. Os tios tentavam conseguir, então a família inteira foi sendo chamada pra cima. Em virtude desse casamento. Papai sempre lutou para que nós comprássemos a nossa casa. Enfim, então foi um casamento gostoso. E a minha gravidez, com esse tratamento – eu tive que fazer uma operação de apendicite, mesmo grávida, eu fazia isso no Hospital Matarazzo, existia ainda esse hospital nessa época o Hospital Matarazzo que agora acho que fechou. E a gente ia lá e tinha um tratamento de primeira. A primeira filha minha ganhou enxoval de Portugal, porque meu marido era jóquei. Lá veio de Portugal o enxoval para ela. E vinha os amigos querendo dar nome. E era festa, era feijoada, era isso, era churrascada. Era muito bom. A primeira filha veio assim coberta de ouro. Depois o segundo também. Porque queriam me dar anel de brilhante, pulseira de não sei o quê. Porque era homem. Mais, eu não sabia o sexo. Só sabia a hora que nascia. A menina foi a hora que nasceu e o menino também. E assim foi cada filho, que foram nascendo. Foi bom, a maternidade para mim era desejada. Eu queria muito ser mãe.
P/1 – E o desejo da adoção desses dois filhos. Como foi?
R – A adoção aconteceu, no meio do caminho, conforme a gente foi casando e a vida foi ficando trabalhosa. Porque ele, sendo jóquei, foi ter amizade com gente que era da noite, gostavam. E a gente sofria de ciúmes, sofria muito por essas coisas, tudo. E eu tive um filho, dois filhos, três filhos. Aí eu cismei, não posso ter mais filho. E no caminho fiz um aborto. Mas me arrependi na hora e no ato. Porque eu achei um absurdo, eu tinha tanto medo de perder os três que eu já tinha. Deus tinha me dado, foi tanto sacrifício que eu tive que fazer tratamento. Aí veio a quarta filha, que é a Cristina, minha caçula, que eu deixei vir. E falei: “Olha Deus, quantos vierem eu vou deixar, nunca mais eu faço isso.” Mas não veio mais, parou na Cristina. Aí eu fiquei com muito medo. Tinha medo que um deles morresse. Tinha um amor nos meus quatro filhos. Aí eu falei assim: “Ah, meu Deus, eu vou adotar um filho quando eu puder. Eu pego um mais conservo os meus. Por causa da burrada que eu tinha feito.” Aí o que aconteceu? Esqueci. E fui mudando de bairro, mudando de bairro e vim morar aqui, nessa casa que eu moro, que é no Bonfiglioli, que eu a comprei em 1959. E lá fui freqüentar a comunidade, onde os filhos foram crescendo, fazendo a primeira comunhão e tudo. E nessa comunidade que eu fui ser catequista, fui tudo, eu ouvia as histórias. Esse padre José que tinha foi-se embora para a Irlanda, veio um outro que era um padre, que era médico, chamado padre Aníbal. E ele trabalhava no Hospital das Clínicas. E nos domingos ele contava casos. E num desses domingos ele contou o caso de uma mãe que tinha seis filhos, que estava terminal no Hospital das Clínicas e ia deixar seis crianças. E contou que ninguém queria, que eles estavam em um convento. E ele repetia a história: “Se algum de vocês estiver disposto, adotem.” Eu sempre com a palavra “Deus me livre”, que eu não falo mais, porque quando eu falo “Deus me livre”, é o que acontece. E eu dizia, “Deus me livre, agora que os meus cresceram, não quero nem pensar em adoção. A minha caçula está com doze anos, agora que a casa acabou o trabalho.” E eu de manhã trabalhava na escola paroquial, a tarde dava aulas, direto. Como professora leiga, fui muito ativa. Alfabetização de adultos, a noite. Eu trabalhava demais. Catequista de sábado e domingo. Eu não posso adotar uma criança. E estou na missa um dia, e o padre falava e eu dizia: “Não é para mim que ele está falando isso. Eu não posso, deve ter alguém que pode.” E a minha filha de doze anos dizia: “Mãe está perto das férias – foi bem numa época de férias, desde que ele começou a falar, de julho – vamos lá só olhar, nas férias, vamos ao convento?” Eu falei: ”Só olhar?” Vamos olhar, só olhar os meninos, como se a gente olhasse bichinho que olha e deixa, né? Aí nós fomos nesse convento Bom Pastor, caminho de Novo Osasco. Quando eu cheguei lá tinha um garotinho de três anos, vestido de anjo, aquela roupa brilhante, um cabeção desse tamanho, com a mão toda cheia de feridas, olhando na porta assim, com os olhos. Que a irmã deve ter dito: sua mãe vai pegar vocês. Que eu entrei com a Cristina, ele olhou pra mim e falou: ‘
“Mãe.” Falei: “Ah, meu Deus.” Catei o menino no colo e falei: “Eu só vim olhar.” Não, tudo bem, a senhora só olha, mas ele no meu colo. Eu falei:”Irmã do céu!” E ela: “Mãe, vamos levar. E olha que lindinho, vamos levar.” Falei: “Ah, eu vou levar.” Na hora. E eu podia pegar táxi. Nisso eu olho uma outra mulher com um garotinho de quatro anos, lindo. O menino andava, o cabelo fazia assim. Eu falei: “Ainda se fosse aquele, que é bonito. Esse aqui é tão feinho. Eu pensando e falando, porque a gente é muito idiota, viu?” Nisso a mãe que pegou esse menino, vinha para o mesmo bairro meu, é da minha comunidade, dona Alzira. Eu falei: “A senhora vai lá para São Domingos, eu vou de carro, se a senhora quiser vamos juntas.” Ela veio junto e viemos conversando. No bairro São Domingos eu a deixei, o Bonfiglioli é um pouco mais pra cá, e eu vim mais pra cá, para minha casa. Separei as crianças. Quando cheguei em casa eu já fui, pra ele: ‘Olha, aqui é lata de bolacha, se quiser coma. Para deixar ele à vontade. Aqui tem isso, faça.” O garotinho de três anos. Imagina! Abriu a lata de bolacha e comeu tudinho. Outra coisa, comeu tudinho. Ele comia, comia. Ele abria, ele comia, ele olhava para a comida, ele comia. Naquele dia ele lavou o chão com uma diarréia com vermes. Que foi uma coisa para limpar a casa, a cozinha. Eu falei: “Meu Deus!” E aquela roupa de anjo dele, botei num saco, dobrei – devia ter guardado até hoje – e aí fomos numa loja. Os irmãos que já trabalhavam, minha filha mais velha, meu filho e a terceira compraram roupinhas pra ele. Trouxeram, vestiram ele inteirinho. Ele virou o dodói. É o Jair, meu caçula. E ele foi fazendo um tratamento, porque ele sofria. E minha filha mais velha namorava um rapaz e chegava o aniversário de namoro ela fazia aqueles bolos de chocolate. Ela fazia, eu sei que não era aniversário dele, eu sei que ela fez um bolo de chocolate lá, numa data. Esse menino, a gente achou nas paredes as pegadas da mãozinha dele no escuro. Ele abriu o bolo, viu o bolo, comeu a metade do bolo e a gente sabia que ficava as pegadinhas dele, no escuro dele andando, fogão, parede, até a caminha dele. Tudo, onde ele dormia. Tinha dormido com a cara cheia de chocolate. E nós “Nossa! O que nós fomos arranjar!” E tal, e minha filha brava, limpando o chocolate que era do namorado, não sei o quê. E nisso, passa uma semana, a campainha toca, a mãe que levou o outro chega e fala assim: “Dona Ditinha, o Milton está há uma semana sem comer, porque era ele que dava comida para o Jair. Ele é quem dá comida e ele está chorando que o irmãozinho está morrendo de fome, eu trouxe.” Eu falei: “Por favor, entre.” Deixei eles entrarem na minha sala. Menina, eles se atarracaram num choro, de molhar a blusa e soluçar. Que chorou o meu marido, eu, os filhos, ela. Choramos todos na sala, naquele momento foi um choro. Eu falei pra ela: “Olha, Alzira, ou você leva o meu, ou você deixa o seu. Eu não separo mais os dois.” Aí ela falou: “Eu sou empregada doméstica, dona Ditinha, eu não posso ficar com os dois; a senhora fica.” Me deixou os dois e foi embora. Aí começou minha aventura. Tinha o quartinho deles, a caminha deles, tudo certinho. Eles eram levados. Esse, mais bonito, era um expert. Ele olhava minha colher e dizia para o irmão: “Olha, parece um espelho, isso vale muito.” Falava para o irmão. Quatro aninhos! “Isso deve valer muito dinheiro.” E o pequeno dizia: ”É, vale.” Aí meu filho vai e compra uma bicicleta para ele, triciclo. Quatro anos, pensou. Vão gostar do triciclo. Sabe o que eles fizeram? Desmontaram. E ele ia dar aula de manhã e dar aula à tarde, eles ficaram em casa, desmontaram o triciclo. E na rua da minha casa, na parte de baixo, tinha um ferro velho, começaram a vender as peças. Tinha um ferro velho numa extremidade da rua, na outra tinha um bar. Eles vendiam aqui, compravam doce ali e voltavam em casa. Porque eu deixei eles à vontade. Pois bem, venderam toda a bicicleta, mas quando eles foram vender a colher, que eles achavam que valia muito é que eu falei: “Oh, tão vendendo suas coisas.” Minha bíblia, eles fizeram aviãozinho. Que eu tinha maior xodó com a bíblia sagrada. Faziam aviãozinho. “Ó que papel bom, e voa e tal.” Picaram a bíblia. Aí falei para o meu marido: “Gente, foi uma burrada que nós fizemos.” Nós tínhamos uma perua Kombi. Vamos devolver. Eu trabalho de manhã, de tarde. Esses dois são levadíssimos, comem tudo o que tem, nada chega. E eu não posso por a mão. Falei, “não, vamos devolver”. Pegamos todas as roupas que compramos, fizemos a malinha dos dois e lá fomos para o convento. Chegamos no convento, descemos do carro de mão dadas com eles, e nós fomos chegar assim, ia vindo uma freirinha de uma capela. Quando a freirinha vinha andando, a irmã Laura, vinha andando, e nós com eles: “Ah, vocês, como vão? Nós vamos bem. Olha que lindo, como engordou, tá bonito!” “Ah, eu preciso contar uma coisa para vocês. Vocês viram da onde eu estou vindo?” Eu falei: “A senhora está vindo da capela. Passei a noite inteira de joelhos, agradecida à Deus, por vocês.” Eu falei: “Ah, meu Deus, por que, irmã?” “Por que vocês são os únicos que não devolveram, até hoje.” Eu olhei para o meu marido, meu marido olhou para mim. “E aí, me fale, o que vocês vieram fazer aqui?” “Nada, viemos visitar a senhora, olha como eles estão bonitos?” Viramos pra trás, pusemos no carro, eu costumo falar: “Nasceram aí, nossos filhos.” Aí virou, sabe, cada vez que eu conto essa história eu me emociono porque foram três anos curando as doenças deles, foram três anos dando educação que eles não tinham e foram três anos dando o hábito da nossa família, que eles são escarrados nossos filhos. Todo mundo fala: “Não, eles são filhos mesmo, mas foram nove anos!” Não foram nove dias nem nove horas. Olha, é tempo pra você se habituar. Eu me lembro de um dia que seis horas da tarde ...
P/1 – Continua contando.
R – Então, aí esses garotos vieram pra casa, de volta, foi então a nossa decisão de que eles seriam nossos filhos. Para isso, eu procurei o juizado de menores e disse que havia gente que dava pão, havia gente que dava roupa velha, a gente não gostava porque nossos filhos nunca precisaram que alguém desse nada, e dava roupa velha. E que eles iam a padaria pedir esmola, que era o hábito deles com três e quatro aninhos. Meninos de rua que pede as coisas. Chegava no meu ouvido. Aí o juiz que nos atendeu, ele disse o seguinte: “A senhora não tem uma cinta? Põe um prego atrás da porta e coloque a cinta. E aprenda uma coisa, quem dá o pão dá a educação. Vocês vão educá-los como os seus.” Quando esse juiz falou isso, eu entendi. Que se eu agisse com eles como eu agia com os meus, eles iam virar como meus filhos. E aí que realmente a coisa ficou boa, porque eles viraram nossos filhos. E uma das cenas, esse menininho de quatro anos que era o Milton, um dia teve um acesso de saudades da liberdade dele. Do chão de terra, da bananeira do quintal, da casinha dele. E ele soluçava, e eu escutei ele soluçando na cama. Era um beliche, eu tava fazendo o jantar e escutei aquele soluço, doído. Aí eu fui lá, era ele que tava chorando. Aí eu me abracei com ele. Chorei, chorei com ele e falei: “Olha, toda vez que você chorar eu vou te abraçar e chorar junto.” “Pronto, mãe, já parei mãe”. Então ele é casado, hoje, tem filhos moços, mas deu uma dor de barriga nele ele chega lá em casa. Um dia o filhinho dele prendeu o pipi no zíper. Ele foi no hospital, cuidou, na volta ele passou lá em casa, tocou a campainha e falou: “Mamãe, fulaninho prendeu o pipi no zíper, eu levei no hospital.” E ele tava tão triste, eu abracei meu filho e falei, “filho, doeu?” E ele soluçou e eu chorei junto. E falei: “Não falei pra você? Vamos chorar juntos.” Mãe já passou, o médico já cuidou, não foi nada. Foi embora pra casa e chegou. Então nosso combinado é esse. E ele também, eu tenho: “Filho, eu não consigo pregar um prego!” Ele chega. “Oh, filho, mamãe tá assim, assim.” E os outros filhos chegam a ter ciúmes. Mas são todos filhos. Todos filhos. Ele tem o mesmo gênio do meu filho mais velho. O Milton tem o mesmo gênio do Jorge. A fala, os ciúmes, as coisas. Ele tem o mesmo gênio. E as irmãs, querem bem a eles de uma forma assim. Então, ele fala assim: “Meus irmãos, eu penso – porque eles são em seis, né – eu penso que ele tá falando dos irmãos sanguíneos, não, ele está falando dos irmãos do coração.” E quando os outros chegam, falam: “Mas, Milton, você fala que ela é sua mãe?” Ou pro meu caçula, mas vocês falam. Agora eles voltam e dizem assim: “Poxa, que pena que nós não achamos uma família como vocês. Nós queríamos ser seus filhos.” Eles foram para outros lares, né? Nós não pegamos o vínculo amoroso. Agora, com o Milton e o Jair nós temos. Já houve a discussão do sobrenome. Que o sobrenome deles é um e o nosso é outro. E nós explicamos. Isso foi dito no juizado de menores. Que o maior tesouro que nós demos pra eles em matéria de tudo, foi exatamente o amor, o carinho, a casa, a educação. Eles são todos bem. Esse meu menino é tapeceiro, tem uma firma há anos. Ele é tapeceiro de mão cheia. A esposinha, os filhos. O mais novo, que é o Jair, trabalha na vidinha dele. Atualmente não está muito perto da gente, mas nós conversamos. Tem uma filha só que é linda. Final de semana vem passar com a gente. Diz ela que vem, vamos ver se vem. Então nós somos uma família muito unida e eles à nós. Vai torcer para que continue assim.
P/1 – Para finalizar eu queria que a senhora dissesse se tem alguma coisa que a senhora mudaria na sua trajetória de vida.
R – Não, nenhuma. Deus me deu tudo. Me deu filhos lindos, netos maravilhosos, todos formados, todos lindos, artistas. São lindos. Artistas, no bom sentido. São pessoas inteiras, nos ouvem. Nossos netos nos ouvem. Quando a gente fala que tá errado, eles sabem que tá errado. E agora vem vindo a terceira geração que são os bisnetos. Eu não sei se é terceira ou quarta. Mais, vem vindo. Lindos, maravilhosos, competentes, querendo saber das nossas vidas e nossos exemplos, e dizem que puxaram a gente. Me dá muita alegria. Dizem que sou eu que ponho o nome no papa. Certamente sou eu que dou nome ao papa. E dizem assim que eu faço coisas como ninguém, e eu nem sou essas coisas. Eles dizem: “Vovó, você é capaz de fazer, você faz.” E assim vai. Então nós temos uma família gostosa, gostosa mesmo. E eles, que fazem meus filhos? Eles não levam a mãe e o avô para restaurante, não. Eles trazem a família que eles adquirem porque agregam a nós e vem. Mãe, pode? Avó, posso trazer família tal? Aí vem, sentam com a gente, passamos natal, passamos ano novo. Hora com um, hora com outro. E assim, é uma família que tenta seguir os ensinamentos de Deus. A gente mostra o caminho que a gente acha que é o certo. É o que nós acreditamos, é o que nós seguimos. O Caminho de Deus.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa, nós agradecemos o seu depoimento.
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