Projeto Pessoas
Depoimento de Marcelo Ramalho Machado
Entrevistado por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 08/05/2018
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV672_Marcelo Ramalho Machado
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
MARCELO-T01
P/1 – Pra gente começar, Marcelo, eu queria pedir pra gente fazer um exercício, que é fechar o olho, eu vou fechar também, então não vai ficar todo mundo te olhando, mas fechar o olho e começar a se aproximar e ver assim, qual é a primeira imagem que te vem, a primeira imagem que você lembra da sua vida. E aí, você lembra de respirar. Então, pode passear um pouco com a sua lembrança, como se ela tivesse passeando e vai buscando lá, assim, essa imagem, pode ser uma imagem, uma sensação, um lugar, pode ser só um som, pode ser só um cheiro. Inspira e sente o ar entrando e passeando, entrando pelo nariz, descendo pelo seu corpo e voltando e saindo. E respira de novo, sente esse ar entrando, passando pela cabeça, descendo e a próxima vez que você respirar, quando descer o ar, você vai recuperando aos poucos o seu acordar de hoje: o quê que você fez, levantou, cada passo do que você fez, abriu o olho, levantou, falou com alguém. E cada um dos passos que você foi dando, tenta ver os detalhes. Enquanto você vai imaginando isso, você vai tendo uma consciência do ar que entra e do ar que sai, como se ele fizesse esse ritmo do seu acordar, do seu se vestir, pegou o carro, ouviu música no caminho, o quê que você viu no caminho? E esse ar, ele vai como se diminuindo o ritmo do que você fez, como se ele desse quase uma slow motion, pegou trânsito, decidiu ir por um caminho ou por outro, o quê que você pensou, saltou, estacionou e cada pedaço, você vai diminuindo o ritmo com a respiração, trancou o carro, pegou uma bolsa, entrou aqui, quem foi a primeira pessoa que você falou. A segunda coisa que você fez. E em cada respiração, você pontua um desses movimentos, chegou nessa cadeira e quando você chegar nessa cadeira, então você respira e quando expirar, você tira tudo isso, é como se você expirasse todo esse movimento até chegar, como se cada vez que você respira e a respiração passa pelo corpo, você tirasse todo esse dia dessa manhã e a próxima vez que você inspirar, é como se você puxasse aquela primeira imagem que você lembrou da sua vida, você inspira ela e expira esse movimento da manhã como se fosse uma… ela vai crescendo dentro de você e o dia da manhã vai saindo. E quando ela for crescendo dentro de você, se for um som, pensa mais nesse som, como ele é, se for um toque, se for passos que você escutou, se for uma cena, uma sensação, inspira e passeia por esse som, por essa sensação. É boa? É ruim? É angustiante? É paz? É nada? E vai entrando com a sua imagem pelo seu corpo todo. Não esquece de respirar e quando você tiver bem confortável com essa imagem, com essa sensação, com esse momento que você trouxe, você na hora em que quiser, pode voltar.
Então, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Eu queria começar perguntando seu nome, lugar e data de nascimento.
R – Bom, meu nome é Marcelo Ramalho Machado, eu nasci em Araraquara em oito de junho de 1958.
P/1 – E qual que é o nome dos seus pais?
R – O meu pai, Arnaldo Ramalho Machado e minha mãe, Nilma Gomes Ramalho Machado.
P/1 – Então os dois tinham o nome Ramalho?
R – A minha mãe absorveu o nome do meu pai no casamento. Originalmente, minha mãe chamava-se Nilma Guimarães Gomes.
P/1 – Ah, então Ramalho Machado era o nome já do seu pai?
R – Da família. É.
P/1 – E antes da gente começar a conversar um pouco sobre eles, eu queria que você pudesse me contar um pouquinho qual foi a imagem que te…
R – Então, a imagem é uma imagem do jardim da infância. O grupo escolar ficava na mesma rua da
minha casa, então algumas coisas entre a minha casa e o jardim da infância, que eram uma quadra e uma praça.
P/1 – E isso foi o que veio na sua…?
R – Vem esse misto, algumas vezes, eu já fiz esse exercício, eu não passo muito dai, eu devo estar falando em cinco, seis anos, né? Seis anos. Então, é aí que eu tenho a minha memória mais antiga. Aí, vem várias coisas, vem o jardim da infância em si, o prédio, a sala e algumas atividades do jardim da infância.
P/1 – E dessa praça, por quê? Você ia na praça?
R – Porque era uma praça, então tinha a nossa casa, uma esquina, uma quadra, atravessar a praça, é uma praça grande, uma praça cívica, é onde está antiga Câmara Municipal, hoje é um museu, assim, é bem onde… primórdios da cidade. E do outro lado, o grupo escolar. A praça é um lugar assim… depois, aconteceram várias coisas na minha vida nessa praça, nem tão importantes, mas coisas foram acontecendo nessa praça. Mas eu lembro desse espaço entre a casa e o jardim da infância e muitas coisas com detalhes, com cor, com tudo.
P/1 – Do jardim da infância?
R – Do jardim da infância, mas nada anterior a esse período.
P/1 – Então, já que a gente tá lá, vamos contar um pouquinho desse jardim da infância.
R – Bom, grupo escolar, na escola pública e bem no centro da cidade, uma escola tradicional e o jardim da infância tinha muitas atividades legais, assim, muito ligado a desenho, às artes, assim. E lembro muito de uma que nunca vi mais, era uma espécie de tapeçaria de papel, vinham umas folhas cortadas assim, de uma cor e você com uma agulha de madeira, você trançava umas fitinhas de papel e você podia fazer xadrez, diferentes variações de xadrez com essa fitinha de papel que transpassava a folha, nossa, assim, maravilhoso, um negócio muito gostoso de fazer, cores, tal. Lembro muito. Lembro de uma outra coisa que eu gostava muito, a gente descansava. Então, a gente debruçava sobre a mesa e tirava uma soneca assim, tinha um nome isso, mas vamos dormir, vamos descansar, eu gostava muito desse momento que debruçava sobre a carteira e tal…
P/1 – Não deitava?
R – Não, era uma pausa imposta, né, assim, pela professora. Mas acho que era uma coisa agradável, assim. Lembro disso, lembro de queimada no pátio com bola de meia. Lembro… minha irmã estudou lá, também, tinha toda uma coisa… era muito como estar em casa, assim, um lugar muito agradável, muito
P/1 – Então, era um lugar em que você se sentia bem?
R – Muito bem, muito bem. E as atividades eram legais, eu achava muito legal estar no jardim de infância. Nesse período, teve uma coisa que morreu uma menina da minha classe e tenho essa lembrança também, acho que era Léia, Leia geleia, sabe quando gera, assim, aquele bullying, né. aquela coisa… e ela faleceu ali, assim, logo na…
P/1 – Na classe?
R – Não, naquele momento da vida, né, não lembro porque ela faleceu. Mas é um pouco chocante pras crianças, assim, ter a morte e tal. Mas lembro muito da gente lidando com aquilo, as professoras, sabe, assim? Engraçado. Eu quase que me forço a pensar que aquilo foi duro.
P/1 – Por que não é assim?
R – Porque não é assim que eu lembro, eu lembro tudo muito agradável nesse jardim da infância, assim, nesse lugar super gostoso e tal, e muito próximo de casa, assim.
P/1 – Como que você ia? Quem que te levava?
R – A pé. Ia a pé com a minha mãe, ia a pé, assim.
P/1 – E ela que te buscava também?
R – E às vezes… é, ou qualquer outra pessoa poderia me trazer pra casa, era muito perto. A vizinha poderia me trazer ou quem… não era um problema, assim, voltar pra casa, duas quadras, a praça… muito tranquilo, tudo, assim…
P/1 – E aí, voltando para a sua casa, como que era a sua casa?
R – Minha casa era uma casa que era assim, mais ou menos no centro da cidade e ela era uma casa que tava bem na frente do terreno, tinha um pequeno jardim com umas roseiras, uma entrada lateral que seria para uma garagem, ela não foi feita para garagem, mas quando o meu pai comprou o primeiro carro, foi ali que estacionou e a partir de então, no fundo, um super quintal.
P/1 – Com grama, assim?
R – Não, com arvores, pinheiros, um quintalzão assim. Tinha uma mangueira muito grande, a primeira coisa, depois… entre esse lugar meio garagem, tinha figo, depois, tinha mexerica, laranja, duas… mexerica do Rio, mexerica mesmo. Aí tinha um cajueiro no meio que era um galho deitado e depois, ainda tinha lá no fundo, no galinheiro tinha uma jabuticabeira incrível. Era um lugar bem legal. Uma casa muito… era uma casa velha, não era muito grande, assim, mas ela tinha esse quintal incrível, assim, incrível!
P/1 – E dentro…
R – Ia até o meio da quadra, um quintal bom, mesmo.
P/1 – Ela ficava assim, de frente pra rua? Era uma rua…
R – Então, ficava de frente pra rua, mas com jardim, uma entrada assim, uma casa meio velha e era interessante, na Rua Seis, em Araraquara, as ruas… Rua Um, Rua Dois, Três… Rua Seis. Como tava… a Rua Seis era a ligação com essa praça, então algumas coisas aconteciam nessa rua, por exemplo, Corpus Christie, então fazia aquele tapete de serragem, café, caco de vidro, né, fazia aquelas… pra passar a procissão… então, passava na frente da casa. Então, por exemplo, eu me lembro desse cheiro do café, da serragem, porque os meus pais permitiam que as pessoas guardassem as coisas de véspera e a minha mãe fazia café e virava-se à noite fazendo esse tapete. Era o dia em que a gente dormia mais tarde e tal e ficava essas coisas, sacos assim, em casa, dos enfeites que outras pessoas iam enfeitar a rua, né? Então sabe esse lugar muito… vamos dizer assim, da cidade, assim, você tinha a vida da casa com a cidade e essa… jardim, eu tenho lembrança muito forte também nesse jardim, que é uma lembrança traumática, de quebrar o braço, correndo ali, logo nesse momento, quebrar o braço, correndo ali nesse jardim em frente, assim.
P/1 – De frente, não o do fundo?
R – Não o do fundo. O do fundo, só tenho lembrança boa do quintal (risos). meu pai acendia uma fogueira em junho, a gente fazia uma festa pequena. Festa junina dentro, chamava vizinhos, tal, acendia uma fogueira. E essa jabuticabeira era uma coisa assim, mítica, porque além dela ser uma excelente jabuticabeira, ela logo que você subia depois da primeira forquilha, ela tinha um galho horizontal. Era possível ficar sentado na jabuticabeira, chupando jabuticaba assim, com o pezinho balançando, sabe, uma coisa…
P/1 – Quase um filme!
R – É! O cajueiro também tinha essa formação estranha, tinha um galho horizontal, assim. O cajueiro… teve uma praga, né, no interior do Estado de São Paulo, que dizimou os cajueiros, um ácaro. Eu lembro… desse cajueiro… também desse quintal já sem o cajueiro.
P/1 – Morreu também?
R – O cajueiro morreu, por conta… como tinha esse galho horizontal, como a gente era criança, gostava, até fazia tipo um balanço, assim. Então, esse quintal era incrível, né, muita árvore, manga, muita fruta. A coisa do galinheiro. A gente ficava muito, brincava muito.
P/1 – E a gente, quem?
R – Eu e a minha irmã.
P/1 – Você tem uma irmã?
R – É. Eu tive um irmão, também, mas esse irmão também faleceu, eu tava com nove anos, ele tava com quatro, ali na casa ainda, a gente tava. E aí, é um pouco o fim dessa casa, desse período, a gente acaba mudando.
P/1 – Então, deixa eu só voltar. Então, você tem uma irmã mais velha ou mais nova?
R – Eu tenho uma irmã mais velha e tive um irmão mais novo.
P/1 – Como chama sua irmã mais velha?
R – Beatriz.
P/1 – Beatriz e o seu irmão mais novo?
R – Chama Luiz Arnaldo.
P/1 – Então, ela tinha o quê? Mais dois anos? Como era? Ela era…
R – Ela tem mais dois anos que eu.
P/1 – Aí, você…
R – Eu, daí teve uma pausa e daí, o Luiz Arnaldo, cinco anos mais novo do que eu.
P/1 – E o quê que aconteceu? Você lembra dessa…?
R – Eu lembro. Eu lembro (risos). Aconteceu que não sabia-se o que ele tinha e aí, aconteceu um período muito difícil, que foi um período onde meus pais viajavam muito pra levar em médicos, hospitais e tal, com ele. Primeiro, Ribeirão, né, que Araraquara não tinha grande medicina, então Ribeirão Preto é onde tinha e depois, aqui em São Paulo. Ele teve um tumor no cérebro, na cabeça, mas demorou muito pra diagnosticar, ele teve todo tipo de sintomas correlatos ligados a isso e sofreu muito, muito pequeno, sofreu muito, assim. Meus pais viviam muito fora com ele, nessa coisa de hospital, médico e tal. mas aí, tinha a minha avó que cuidava da gente e tinham as minhas tias, porque eu lembro que primeiro, a minha avó ficou conosco na casa…
P/1 – Vó materna? Paterna?
R – Mãe do meu pai. E ela cuidou da gente e depois, teve um momento, não me lembro bem porque que nós fomos para a casa das minhas tias, ficar na casa das minhas tias, que era mais no centro, ainda, bem na rua central.
P/1 – Você lembra quanto tempo durou essa…?
R – Deve ter durado em torno de um ano.
P/1 – Essa doença e essa…
R – Esse périplo por hospitais, médicos, essa busca de entender o que tava acontecendo e ele sofrendo. Aí, ficou um tempo aqui em São Paulo, tinha uma vó aqui em São Paulo também, ficou… meus pais ficaram na casa da minha vó porque meu irmão ficou internado, ele acabou fazendo traqueostomia e fazia punções, todo tipo de tratamento muito dolorido para uma criança de quatro anos, assim. Não conseguiam acertar o que ele tinha, acabou falecendo. Aí, foi um trauma porque a minha mãe ficou muito… quase um ano a minha mãe ficou assim, muito sem… ficou deprimida, né? Ficou deprimida, primeiro ficou um período grande na cama, aí depois ficou deprimida e tal. Agora…
P/1 – Você?
R – Eu me lembro assim, primeiro, eu me lembro de brincar com ele assim, meu irmão mais novo. E lembro desse desaparecimento, digamos assim, dessa coisa que a gente não sabia… sabe, não se explicava muito pra gente. Alguma coisa grave estava acontecendo…
P/1 – Você sabia disso?
R – Eu sentia isso, mas não se conversava muito, não se contava, eles não sabiam também, ficava essa dúvida, corre pra cá, corre pra lá, viaja, sai e sempre esse problema na cabeça. Eu nunca fiz as contas com os negócios do meu pai, porque o meu pai, nessa parte da infância… o meu avô teve uma livraria, essa livraria virou um bazar que o meu pai assumiu e que transformou numa fabriquinha de móveis. Essa fabriquinha de móveis deu certo, eram móveis estofados, eles construíram, se associou, arrumou um sócio, e fez uma fábrica de móveis maior, que num primeiro momento, deu muito certo, assim, ele começou… e é um momento assim, de prosperidade, sabe, assim? Então, eu não sei o cruzamento exato, mas eu lembro que é isso. É mais ou menos nesse momento de prosperidade, então tem por um lado, todo chamamento do trabalho do meu pai, da coisa que tá dando certo, tarará, e dentro de casa, esse problema. É bem isso, mesmo, porque o sócio dele, eu lembro que sempre elogiava: “O Melo ajudou muito, se não fosse o melo ter cuidado das coisas, eu não teria tido esse tempo de ir atrás…”.
P/1 – O Melo era o sócio dele?
R – O sócio dele, é. Então, tinha essa coisa… Eu digo porque assim, a coisa da prosperidade, ela gerava muitas coisas, também…
P/1 – O quê que você lembra disso?
R – Eu lembro da fábrica que era muito legal, porque tinha um marcenaria grande, então era um lugar muito legal. Por exemplo, das coisas da praça, o meu pai, uma vez, por conta dessa marcenaria, ele fez uma pipa gigante, a gente chamava de papagaio em Araraquara, não usava a palavra pipa. Mas grande mesmo, assim, sei lá, talvez com aquele arco central do papagaio, talvez tivesse uns três pra quatro metros, assim. E foi empinar nessa praça e pôs o nome da fábrica, Capri. Chamava Capri a fábrica de móveis. Botou o nome no papagaio e subiu esse papagaio incrível, a criançada ficou maluca. Era tipo uma publicidade, né, super bem feita, assim, subiu, tiraram fotos, tal, foi bem legal. Saiu no jornal, pipa com o nome da… e então, tinham essas coisas da fábrica e depois, eles também… a fábrica apresentava sempre essas atrações, eles começaram a fazer barco na fábrica pra usar. Esse sócio dele…
P/1 – Pra usar o barco?
R – É, esse sócio dele ia pra uma represa, depois eu soube que essa represa fica dentro da fazenda dos Moreira Salles, lá em Matão e começaram com essa coisa de esquiar, pôr o barco, motor de polpa e puxar e tal. E aí, eles começaram a fazer as lanchas na fábrica, fazer a lancha, de motor de centro, pegava um DKV, botavam motor de carro e faziam barco pra esquiar. Isso virou um tremendo negócio, assim, no sentido do envolvimento que isso gerava, porque era muito interessante tudo isso.
P/1 – E você participava, você ia com ele?
R – Eu ia, mas aí, isso virou uma coisa grande porque esse grupo de pessoas resolveu se juntar e fazer um clube náutico em Araraquara e o meu pai tava nesse grupo. Assim, eu lembro que essa atividade do clube náutico, logo depois de que o meu irmão morreu, era uma coisa que teve muita energia concentrada ali, porque pra fazer o clube náutico, foi feita uma represa, assim. Se fechou um rio e se fez uma represa e pio, eu lembro do churrasco do fechamento da comporta, sabe assim? A gente foi fazer uma represa. Esse clube hoje é assim, é um clube que o paisagismo é do Burle Marx, esse clube virou um clube de dez mil associados, uma coisa louca, grande lá em Araraquara. Mas era um grupo de 20, 30 amigos que queria ter uma represa pra…
P/1 – Queriam esquiar?
R – Então, tinha muita iniciativa, sabe, eu lembro… muita iniciativa, muita iniciativa. Muita coisa de fazer coisas, sabe? Não era só o negócio da fábrica, dos móveis e estofados e tal, ali ia gerando situações, assim. Então, acho que esse vetor do clube náutico foi muito interessante quando depois que o meu irmão faleceu, assim, porque… a gente fazia piquenique, sabe, tinha… preparar a comida, lá não tinha nada…
P/1 – O seu pai trazia muito isso?
R – Trazia. Minha vó já trazia. Essa vó que morava… minha vó morava na outra quadra…
P/1 – Então vamos lá pros seus avós um pouquinho. Me conta nome dela…
R – Minha vó chama assim, Elisabela Maria Rosa.
P/1 – Elisabela?
R – Elisabela Maria Rosa Iecco, italiano, filha de um italiano. Depois, Elisabela Maria Rosa Ramalho Machado. Então, casou… ela casou com um… já veio o sobrenome, vinha pelo homem, né, o sobrenome sempre… patriarcado, vamos chamar assim. Então, o meu avô era de Araraquara e em Araraquara existia o bairro dos Machado. Então, você vê que Ramalho Machado, portugueses estavam lá já há bastante tempo. Mas desse avô, avô Bento que tinha a livraria, que o meu pai herdou e que virou bazar e tal, então o meu pai trabalhava com o pai dele…
P/1 – Na livraria?
R – Na livraria, depois, bazar, ele morreu mais ou menos cedo, não sei precisar quando. Então não veio muita história do Ramalho Machado, entendeu? Vinham as histórias da família do italiano que casou com uma sueca, né?
P/1 – O pai de sua vó?
R – A mãe do meu pai era filha de um italiano que casou com… e dessa família, que tinha 12 filhos, sobraram umas tias solteiras. Então, as tias que eu falei a casa das… esse era o grande núcleo familiar, do italiano com a sueca, com 12 filhos, cuja minha vó, mãe do meu pai era uma pessoa de fazer coisas, assim, muito…
P/1 – Como? Me conta um pouco…
R – Ela ficou viúva… ficou viúva cedo, sabe? Então, ela é uma pessoa que trouxe coisas assim… primeiro, ela lia muito, gostava de ler, mas ela lia as coisas muito malucas, assim. Então por exemplo, eu lembro dela ler sobre parapsicologia. Ela vinha aqui pra São Paulo fazer uns cursos com o Padre Quevedo, ela aprendeu a hipnotizar, entendeu? Então, ela… por exemplo, eu lembro da minha mãe proibindo a minha vó de treinar com a empregada, sabe assim (risos)? “Você não vai mais tentar hipnotizar a Luzia”, uma moça que trabalhava com a gente, tal. Então, era muito interessante. Ela foi pra… primeira pessoa que eu soube que foi a Amazônia, viajar de barco. Mas os barcos eram barcos… não são as gaiolas, eram barcos meio cruzeiro.
P/1 – Ela fez um cruzeiro pela Amazônia?
R – Você entrava pelo Rio Amazonas, né? Saía de Santos, subia a costa e entrava pelo… era uma coisa que… então, ela viajava. E em Araraquara tem a linha de trem muito presente, né? Ela tinha carteira quilométrica, que você comprava por quilômetros, digamos, comprava mil quilômetros e você ia batendo, apresentava a carteira e batia: São Paulo, 280 quilômetros. Eu lembro dela fazendo umas viagens completamente… ela falava: “A carteira quilométrica tem um saldo, eu vou até Rio Preto e volto” ‘Vai fazer o quê?” “Vou queimar o saldo da carteira quilométrica”, sabe assim? Uma vó que fazia coisas, tal. Então, isso era muito legal.
P/1 – Ela era carinhosa também ou era…?
R – Ela era uma senhora… era uma coisa europeia, assim, eu acho. Ela era carinhosa, queridíssima, me ajudou na vida, pessoa… mas ela não era assim, de… não lembro de afetos físicos, eu lembro de uma participação ativa na vida de fazer coisas, assim. Ela, por exemplo, era a pessoa que… nessa época em que o meu irmão ficou doente, ela punha a gente pra dormir, então ela falava assim: “Vocês querem uma história? Vocês querem fantasia ou realidade?”, e se fosse fantasia, ela contava, sei lá, João e Maria, uma história simples assim, ou realidade, ela contava um caso. E eu adorava os casos, sempre pedia realidade. Então, ela contava caso, assim, pra dormir. Era interessante, assim. A mãe do meu pai. Ela foi super presente na minha vida, porque gostava de estudar, assim, de ler. A primeira pessoa que falou de Yoga pra mim, pra eu conhecer o Yoga, mas por livro, não tinha feito curso. Lia sobre. Eu tenho os livros até hoje, dela. “Yoga para Cristãos”, sabe assim, umas coisas… adaptações dessas…
P/1 – E ela era, como italiana e tal, ela era católica?
R – Super católica a família. Super católica. Ser católico parecia coisa natural do mundo, sabe. mão era uma decisão.
P/1 – Então, como que isso era na sua vida?
R – As tias eram católicas, ela era católica, a procissão passava em frente da minha casa, a procissão que não passava em frente da minha casa passava em frente da casa das minhas tias, que era por exemplo, a de sexta-feira santa, que réu tinha medo, que era uma procissão com marcha fúnebre, né? Isso era tudo… A gente ia na missa.
P/1 – Todo domingo você ia?
R – Batizado, eu fui crismado, né? E eu estudei também, porque… Ah, outra coisa também que veio depois do falecimento do meu irmão foi o envolvimento com a Igreja dos meus pais, né, acho que precisava de um apoio, assim, espiritual, como se diz e eles participaram de um negócio que chamava o Cursilho de Cristandade, movimento que vinha da Itália, De Colores, que era uma espécie de renovação, modernização das relações entre as famílias e o cristianismo e tal. E junto disso, vinha um negócio que se chamava Movimento dos Folcolares, Folcolarinos que eu participei.
P/1 – O quê que é isso?
R – Era a geração nova, estudar o Evangelho. A gente fazia grupos de estudos do Evangelho.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Então, isso aí, eu fui com acho que 11, 12 anos.
P/1 – E você ia por que os seus pais mandavam ou por que você…?
R – Porque eu adorava! Eu achava muito legal, porque você lia o Evangelho. O Evangelho são parábolas, aquilo lá é incrível! E pô, e era assim: “A religião é viver o Evangelho”, “A religião está muito hipócrita”, “As pessoas não vivem os valores do cristianismo”, então você tem que ler o Evangelho pra você entender e pra você viver. Então, tinha que…
P/1 – E você tinha essa índole, assim?
R – Eu achava aquilo muito legal, porque pra mim, era uma primeira abordagem de uma coisa assim, filosófica, sabe, eu achava muito… ao mesmo tempo, foi bem junto ali da puberdade, inicio da adolescência. Então, veio também o negócio da Igreja muito forte, porque acabava que você lia o Evangelho, você ia na missa, ficava o envolvimento com a Igreja, né? E a Igreja não era legal, né, a Igreja era chata, né?
P/1 – Era chata?
R – Ah, era chata a Igreja. A própria missa, a confissão, tudo isso é muito…
P/1 – Mas você achava chato naquele momento?
R – Eu não gostava, eu gostava de estudar a Bíblia, essas coisas, eu achava legal.
P/1 – Você lembra de você pensando assim, sobre Deus e alguma coisa te…
R – Nossa, muito! Tanto é que eu comecei a estudar e nunca mais parei assim, até hoje, digamos.
P/1 – Sobre Deus?
R – É, porque daí, quando veio essa coisa da repressão que eu sentia, porque você começa a entrar na adolescência, você quer namorar, você quer… e a Igreja vinha tentando botar regras, né, o que era certo, o que era errado, confissão do pecado… e realmente, o confessionário como um lugar, assim, horrível, sabe, que você tinha que enfrentar, falar os seus pecados pra um cara que você não conhecia, o padre. Me lembro de ser expulso de uma igreja por um padre num confessionário: “Saia daqui e tal…”.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu confrontei, eu enfrentei o padre, porque você ia lá, era assim, pra comungar, você tinha que confessar, então era como que você tivesse que permanentemente estar pensando nos seus pecados e ficar pensando que você é um pecador, que as coisas estavam erradas, tal. Isso era um negócio que bem menino ali, já não gostei, confrontei assim, confrontei esse padre e aí, eu imediatamente, comecei… eu me interessei muito, muito, muito por orientalismo, digamos assim…
P/1 – Mas criança, ainda?
R – Olha, não tinha internet, né? (risos) Mas eu acho que já com uns 13 anos, eu comecei a ler a revista “Planeta”. E eu, nessa época, tive uma ideia, não sei como veio essa ideia. Eu comecei a escrever para os lugares, cartas, mandar cartas, mas para tudo quanto é lugar, Sociedade Teosófica, Eubiose, Rosa Cruz, Hare Krishna, comecei a mandar cartas para esses lugares e era maravilhoso, porque esses lugares que querem converter as pessoas, eles mandam folhetos, livros, então chegavam aquelas cartas recheadas, assim, eu achava muito bom receber cartas. Cheias de ideias, de coisas. E tinha uma livraria também, eu comecei a ler um pouco. Tinha uma onda muito forte de orientalismo, ali, Hermann Hesse, “Sidarta”, por exemplo, é um livro seminal, assim, é um livro que fez minha cabeça…
P/1 – Lobsang Rampa, você leu?
R – Lobsang Rampa. “Entre os Monges do Tibete”, né, “A Terceira Visão”, é engraçado, aí misturava já com por exemplo, Carlos Castañeda, já começou a aparecer uma coisa que era meio contra cultural, assim.
P/1 – Mas isso, você foi se envolvendo? Seus amigos também?
R – Não, muito sozinho, muito! Eu tinha um grupo, eu tinha amigos, mas essas coisas eram no silêncio do quarto, assim, sabe? Não era muita gente que gostava. Depois, eu tinha umas amigas que eu descobri que… tinha umas amigas que vinham para São Paulo comprar bottom na Freedom, sabe o que é um bottom? A Freedom foi uma boutique indiana que teve em São Paulo, então eles gostavam de bata indiana e bottom assim, com Shiva, Krishna, Vishnu, então eu começava a falar: “Você sabe o que é isso?”, elas curtiam… incenso (risos), que não era propriamente, entendeu, saber sobre aquilo, mas era um… esse misticismo que vem em torno. mas eu, particularmente, me dedicava a tentar ler as coisas nesse nível que eu tô te falando, assim, nada tão profundo. Acho que um pouco mais pra frente, já 14, 15, eu li o Bhagavad Gita, uma tradução que veio naquela… na coleção da Abril, eu acho que era uma coleção da Abril, não sei se “Pensador”, numa dessas coleções, a pareceu uma tradução do Bhagavad Gita, eu li. Mas fiquei mais nessa espuma, Lobsang Rampa e os folhetinhos e essas coisas. Eu gostava muito disso, assim. Achava interessante.
P/1 – Eu queria voltar só antes da gente seguir na sua adolescência, eu queria voltar um pouquinho, né, você falou da sua avó. E a outra avó?
R – A vovó Cici que era a minha vó daqui de São Paulo, minha mãe veio do sul de Minas. E eles eram uma família que veio pra São Paulo por que por um contato meio politico, o meu vô era getulista e teve um contato, veio trabalhar nos Correios. Deixaram abrir campo lá, Teixeira do Sul, um lugar bem rural, ainda, pra vim morar em São Paulo. Porque o meu vô conseguiu um cargo nos Correios. E eles passaram a ser bem cosmopolitas a partir dessa relação, mas minha vó acabou se separando do meu avô. No entanto, meu avô foi morar em Santos, acabou montando uma outra família. E ficou esse núcleo que era a minha avó com a minha bisavó aqui em São Paulo. Sendo que a minha bisavó era uma pessoa de hábitos muito tradicionais, eu lembro assim, por exemplo, dela ser até um pessoa claramente racista que vinha de Minas, acho que talvez numa herança de escravos… escravagista mesmo. E porque tinham comentários…
P/1 – O quê que você lembra?
R – Me lembro de comentários preconceituosos, que é uma coisa assim, eu estudei na escola pública em Araraquara, era bem misturado, assim sabe? Você tinha amigos, sabe, na época, se falava “de cor”, né, eu tive amigos negros, amigas, assim. E aí, eu lembro que ela falava “pretinho”, uma coisa bem assim… e a vó Cici, a filha dela optou por ficar com a mãe quando separou do…
P/1 – E por que ela se separou? Você sabe?
R – Eu não sei a história, eu não sei. Mas minha mãe sempre comentou que tinha muita influência dessa minha bisavó na separação dela e tal. E aí, a vó Cici, ela era o contrário da vó de Araraquara, ela fumava, ela gostava muito de contar piada suja, falar palavrão e era sempre muito legal viver essa outra vó, com outros valores assim, adorava falar palavrão…
P/1 – E ela tinha uma mãe tradicional?
R – E tinha uma mãe tradicional, mas tinha essa postura, assim, de… essa mãe tradicional, depois faleceu, ela ficou sozinha, também.
P/1 – E ela não trabalhava, nenhuma das suas avós?
R – A minha vó Isabel já não estava trabalhando, não. Se tinha trabalhado? Não, minha vó sempre foi prendas domesticas, em casa, criar os filhos e tal. A vó Cici também não. Minha mãe é que trabalhava. Foi professora.
P/1 – Então, ela teve a sua mãe, você tinha também tias?
R – Teve minha mãe, uma tia e um tio. Eram três. E éramos a família de São Paulo.
P/1 – Eles ficaram em São Paulo?
R – Todos, todos! Minha mãe foi pro interior.
P/1 – Como que ela conheceu o seu pai?
R – Então, essa bisavó tinha uma irmã que tinha casado com um homem muito rico, um usineiro da região de Araraquara, que tinha uma casa, inclusive, de gente muito rica e então, a minha avó vinha, às vezes, nas férias nessa casa, vinha passar as férias.
P/1 – Da irmã?
R – E aí, minha mãe começou a ficar amiga das primas e depois, quando ficou moça, vinha sozinha com as primas passar o verão em Araraquara. Conheceu meu pai num desses verões. Essa casa onde tinha essa tia, é uma tia que a gente não tinha muito contato, eram pessoas… assim, a gente era um universo bem classe média, eles eram já usineiros, pessoas que assim… eu lembro algumas vezes que eu entrei na casa, eu não me senti muito à vontade, eram pessoas de um outro feitio, sei lá. Mas era na frente do clube.
P/1 – Náutico?
R – Não! O Tênis Clube, meu pai jogava tênis, minha vó jogava tênis também. Araraquara chegou a ter quadra pública de tênis.
P/1 – Todo mundo jogava tênis?
R – Não todo mundo, mas digamos que uma parte ali da classe média, branca, tal, jogava. Minha vó jogou tênis, essa vó Isabel, Elisabela, a gente chamava de vó Isabel Ela jogava tênis e o meu pai jogava tênis, também e aí, a minha mãe conheceu o meu pai ali no clube.
P/1 – E aí, quer dizer, agora me conta um pouquinho dos seus pais, assim, como que era… você era mais próximo de quem? Como que eles eram? Sua mãe trabalhava, então, ela era professora?
R – É, ela foi professora assim, até… antes do falecimento do meu irmão, minha mãe já não tava mais professora, já tinha parado porque acho que para cuidar dos filhos. Meu pai trabalhava, tinha esses negócios e a minha mãe ficava com a gente em casa.
P/1 – E como que era com eles? Ela era… quem que você era mais próximo? Como que era a sua…?
R – Olha, a minha mãe, eu lembro como… principalmente depois que o meu irmão morreu, muito medrosa, assim, Lembro sempre da minha mãe tendo uma coisa de proteção que eu comecei a rejeitar na adolescência, não gostava, tinha muito medo, acho que perder um filho, não sei, acho que… tudo ela ficava… e o meu pai não, o meu pai dava muito incentivo assim, para fazer as coisas… e a minha vó que tinha esse lado de que… então ficou uma coisa com a minha mãe de muito… sempre, pedir direto para o meu pai qualquer coisa, porque o meu pai, eu sabia que ia deixar, ou ia apoiar ou ia… minha mãe era sempre um pouco…
P/1 – Na casa, então, ela ficava na casa, tinha empregada, como que era?
R – Por um período, teve sim, tinha empregada por um período, era uma casa de classe média, tinha a Luzia, essa moça que fazia o serviço domestico. Minha mãe cozinhava, a Luzia acho que limpava e lavava. Minha mãe cozinhava, fazia o almoço, fazia o jantar, se comia em casa duas refeições e…
P/1 – Você tem uma lembrança disso, eram momentos bons, ruins?
R – Era bom, era bom, a comida era boa. Eu acho que tem todo o universo de classe média, né, bem assentado, familiar, com a família por perto e…
P/1 – Eu queria explorar só mais um pouco essa morte do seu irmão, né? Então, de repente, ele desapareceu, sua mãe foi pra cama, você lembra você, isso como você sentia, sei lá, de noite, ou o quê que mudou na sua vida esse período?
R – Assim, é claro que você fica muito triste, você é uma criança, é difícil você entender a perda, assim, de um irmão. Eu lembro de ficar muito triste, assim, com o falecimento. A gente se recolheu num primeiro momento, minha mãe ficou muito deprimida, se recolheu muito. Tinha muita vida familiar e social, clube, sabe, a gente saía, tinha muita, essa coisa de procissão, missão, clube, era muito… a gente se recolheu, eu lembro desse recolhimento, um mês, dois, não era um período longo, mas eu lembro que era um período de pesar, assim, sabe, muito… isso foi muito chato, muito duro. E aí, eu lembro de um fato que é assim… bom, enfim, eu tenho lembranças muito boas da infância, mas a gente ia muito em praça, não tinha nada que fazer, uma noite quente em Araraquara, a gente ia em praça, simplesmente, sentava no banco, a gente brincava na praça, meus pais ficavam ali, eu acho que o meu pai fumava, ficava fumando. Depois desse recolhimento, eu lembro que chegou um dia, uma noite que assim: “Vamos sair, precisamos sair, não dá pra ficar aqui”, fomos pra uma praça, eles sentaram no banco como faziam, a gente brincando ali na praça, até que alguém veio e perguntou assim, do meu irmão pra minha mãe, sabe? E do jeito que perguntou, não tinha condição de conversar sobre o assunto, eu lembro: “Vamos embora, vamos embora”, todo mundo chorando, eu lembro assim da gente chorando muito. “Vamos voltar pra casa, vamos voltar pra casa”, sabe assim? Não tinha condição de lidar com aquilo. Eu me lembro… a lembrança forte e clara que eu tenho é dessa noite da praça, talvez, o que tivesse acontecendo ali como um todo, assim sabe, que não dava para conversar sobre o assunto, assim, porque minha mãe entrava em pranto, convulsão, chorava, não aceitava, a gente chorava, então ficava esse… mas é engraçado, porque teve esse período longo, né, porém depois começo já me lembrar do clube, de outras coisas que foram acontecendo…
P/1 – A vida foi andando?
R – A vida foi andando, é.
P/1 – E ela?
R – Ela guardou isso a vida toda, assim, né? Acho que ficou essa vida muito medrosa, muito assustada, essa coisa meio controladora, assim, de tentar… é uma leitura que eu faço, tá, eu não… eu senti em mim esse controle que eu não queria na adolescência, assim, não… tanto é que comecei em… enviando cartas, comecei a pensar em sair fora, sair de Araraquara, né?
P/1 – Por que você se sentia oprimido?
R – Eu sentia: o mundo é maior que isso, tal, assim, que ficava… comecei… assim, acho que já com 14 anos a pensar assim, antes do colégio, assim, que seria legal sair de Araraquara, tal.
P/1 – Você pensava o quê? Em querer vir pra São Paulo?
R – Não sei como eu pensava isso, mas eu tinha uma ideia de… é, São Paulo, São Paulo, eu me via fora. Porque no colégio, isso pra mim era um mantra, sabe assim, quando no colégio você tem uma espécie de coisa que: “Um dia, eu vou…”, com os amigos era meio fazer os planos. Uma vez, a gente fez uma viagem pro Rio, aí nossa, o Rio, talvez morar no Rio, tal… a gente viajava também vem isso, de carro.
P/1 – O que, nas férias, assim?
R – Nas férias, sempre que dava, a gente fazia pequenas viagens. Digo isso até porque meus pais sempre acharam… uma vez, a gente foi a Poços De Caldas e o meu irmão, quando tinha dois ou dois anos e meio, caiu num tombo numa escada, caiu e bateu a cabeça. Isso sempre ficava essa coisa: “Ah, deve ter sido quando ele bateu a cabeça em Poços de Caldas que ele passou a ter esse…”, pode ser um coágulo, alguma coisa assim, né? mas a gente viajava, então ficava essa coisa que fora é mais legal, o Rio é mais legal. São Paulo… tinha os primos aqui de São Paulo, lá é mais legal… eu tive vontade de sair depois de um tempo. É estranho falar, né, porque na verdade, quando eu penso na infância lá em Araraquara e tudo que aconteceu lá, nossa, eu acho que foi muito legal, sabe? Muito… é um lado do Brasil, porque o interior do Estado de São Paulo tinha uma condição material muito boa, assim, uma classe média… a cidade era muito boa, arruamento, arborização, praça, sabe? Praça, a gente tinha clube, tudo, mas era só ir para uma praça à noite, sentar, tinha árvores, tinha bancos, brincar na praça, escola pública, as coisas funcionavam muito, eu acho que assim, hoje eu penso que é quase como uma ilha de um Brasil, de um modelo ali que dava certo e tal. É claro que isso gerava muito conservadorismo também.
P/1 – Isso você lembra na sua vida?
R – Ah, eu lembro, negócio de controle social, né, assim, porque os grupos eram pequenos, fechados, né, então todo mundo sabia o que o outro fazia, tal e eu sentia que isso era uma coisa de controle, né, que tinha…
P/1 – Mas você tinha um grupo?
R – Eu tinha, a gente na adolescência tinha um grupo que era meninos e meninas, era bem bom assim, essas meninas que compravam bottom na Freedom…
P/1 – O quê que era esse grupo?
R – É um grupo de gente parecida comigo, até hoje. Eu sou amigo dessas pessoas até hoje, assim. A Marcia Gullo, que é a mulher do Ignácio Loyola Brandão, era minha super amiga, com a irmã dela, a Carla, aí a Tetê, que tinha um irmão que era fotógrafo, aí o Gilberto Pinheiro que era um cara ali do bairro, com o Devinho que mora em Portugal, hoje, mas a gente conversa, comum outro documentarista que trabalhou comigo em São Paulo, hoje ele tá em Brasília, o Renato Barbiere, essas pessoas, entendeu, pessoas muito que até hoje são pessoas até do meu meio, assim, estão ali. Araraquara teve uma certa florescência de uma coisa cultural, né, de onde vem Ignácio, de onde vem Zé Celso Martinez Corrêa, da onde vem a Dona Ruth Cardoso, da onde vem… olha, muita gente, assim, teve cinema, se fez longa, tinha um teatro municipal, tinha ópera, então o interior do Estado de São Paulo gerava essa condição, assim, de muita possibilidade, de desenvolvimento, quando eu penso hoje… agora, com o teatro municipal tendo sido fechado e demolido com o período que era da Ditadura Militar, uma coisa um pouco de censura, etc., com esse negócio de muita fofoca, você… os círculos eram muito pequenos, então todo mundo sabia da vida do outro, tal, tinha uma sensação de que aquilo ali ia se esgotar pra mim, que eu precisava sair de Araraquara. No colégio, eu comecei…
P/1 – Isso você tá falando com 14 anos, né?
R – Quinze, 16, sai com 17. Com 17 anos, eu vim pra São Paulo.
P/1 – Nossa, vamos só explorar esse período um pouquinho? Esses 14… eu queria entender um pouco mais assim, como foi pra você se tornando adolescente, sabe, a relação sei lá, sexo, drogas… como foi os seus contatos com isso?
R – Assim, primeiro tinha esse grupo na adolescência que envolvia meninas, porque até então, os grupos eram só de meninos, né, tinha muito essa divisão, menino, menina. Só mesmo no colégio que foi formada essa turma, como a gente chama, né, turma que tinham meninas, né? E é a época que eu lembro de começar a namorar mesmo, assim. Agora, existia uma divisão muito grande entre namorar as meninas e a questão do sexo. você não transava com as namoradas, ainda a iniciação era feita no puteiro, você ia na zona, um grupo de amigos levava na zona e você tinha uma primeira experiência com um prostituta, assim…
P/1 – Você lembra da sua?
R – Eu lembro. Eu lembro. Lembro aqui em São Paulo.
P/1 – Ah, foi em São Paulo?
R – Em São Paulo, porque eu tinha uns amigos mais descolados aqui, tal, já tinham uma banda de rock, chamada Cogumelo e eles levaram ali na Consolação, uma casa famosa, Casa da Olga. É engraçado, assim, era uma outra experiência, porque você… não era propriamente uma jovem, assim, você transava com uma mulher um pouco mais velha, que você dissociava muito da namorada, né?
P/1 – Mas era uma coisa tipo: “Eu preciso fazer isso”?
R – Com certeza, era uma coisa “Eu preciso fazer isso”, você tinha que, né?
P/1 – Mas você tinha curiosidade, você tava a fim…
R – Você tava a fim, mas era engraçado, né, pô, porque hoje em dia você vê que é tão normal, né, com a namorada, primeira experiência, não você tinha que ter a primeira experiência sexual, assim, então, tinha que resolver aquele negócio, você ia pra zona resolver aquele negócio. Eu lembro de uma experiência assim, sabe, meio… não fiquei entusiasmado, sexo, legal e tal. mas não foi um negócio que eu fiquei assim… eu ficava esperando… fazia uma relação do sexo com amor, de transar com a minha namorada, ficava um pouco com essa expectativa assim.
P/1 – E quando que isso mudou?
R – Isso mudou no final da adolescência, assim, já tive um namorada… teve um ano que… em 1970, nós viemos para São Paulo por um ano, quando acabou a fábrica de móveis, a gente veio morar aqui…
P/1 – Ela acabou por que não deu certo, assim, só?
R – Porque entrou a espuma. A espuma foi o fim do móvel. O móvel estofado do meu pai era um móvel de vinil com molas, era toda um coisa de marcenaria. Depois que viemos pra São Paulo, voltamos pra Araraquara, teve um ano que eu fui estudar na Vila, porque quando eu voltei de São Paulo, as classes eram meio por notas, primeiro A, B, C, D, E…
P/1 – Lá?
R – Em Araraquara. Quando eu voltei pra Araraquara, entrei na classe L que era a última, assim, e ali, eu realmente fiz uns amigos de um outro mundo, assim…
P/1 – Tipo?
R – Tipo um cara que andava com uma faca na bolsa, tal… aí, a diretora do colégio que conhecia os meus pais falou: “Marcelo tá aí entrando numa…”, e aí, aquela coisa, fui aconselhado a deixar a escola, não cheguei a ser expulso e fui estudar na Vila e na Vila, eu conheci um outro mundo que era menos a escola central, a principal, pública também, mas na Vila eu formei uma espécie de turma paralela e depois de um tempo, eu namorei uma menina que era da Vila e aí, a gente enfim, ficou juntos, transou, teve um namoro que envolveu… eu lembro como quase uma iniciação sexual, assim sabe, porque ela era realmente uma namorada e aí, a gente… era a primeira vez pra ela, então… quase que ficou pra mim como se fosse a minha primeira vez, também. Eu digo isso porque na minha turma, tinham coisas que eu compartilhava e coisas que não, então como eu falei toda essa coisa de espiritualidade era um negócio meu, não tinha muita coisa, tinha as meninas, duas que gostavam. E nessa turma também tinha uma onda muito forte, na adolescência, alguns pais deixavam pegar o carro, então, esses caras que pegavam o carro tinham acesso a meninas e tinha toda uma programação muito de namorar e tal e já de enfim, de sexo, de transar, de ter acesso à mulher muito mais… e eu lembro que assim, eu gostava de namorar, tinha uma coisa romântica e tal, eu gostava do envolvimento. Então, eu não participava muito disso, eu fiz um caminho meio… é engraçado porque tinha a minha turma, mas acabei namorando uma menina de outro circulo, onde…
P/1 – Mas era um círculo, assim, socialmente diferente?
R – Totalmente! Era…
P/1 – Me explica melhor.
R – Era classe média baixa o universo era outro, o mundo, os bailes, as músicas… era um outro universo assim, da Vila. Eu fiz um trabalho sobre a questão da ferrovia em Araraquara e eu descobri que Araraquara era dividida entre o centro e a Vila. A Vila era o outro lado da ferrovia, ali era diferente, a cidade era outra.
P/1 – Mas tinha uma coisa relacionada a cor, a trabalho, a origem italiana?
R – Cor, trabalho…
P/1 – Tudo?
R – Tudo! Mais branco, mais a classe média, mais essa classe média baixa, mais negra da Vila, era onde tinha o samba, onde tinha a escola de samba, onde tinham outras vivências, assim, era outro mundo. Seria como a zona sul no Rio, Karen, assim, e o morro. A diferença era que em Araraquara não tinha esse abismo entre esses dois mundos, era um pouco mais equilibrado. A Vila não era uma favela, era um bairro residencial, também tinha praças, também tinha escolas, era mais equilibrado assim, mas com certeza, a ferrovia funcionava como um rio no meio da cidade que dividia a cidade entre dois universos.
P/1 – Então vamos lá, ali você já tava interessado por alguma coisa como cinema ou desenho, nessa sua…?
R – Ah, tudo isso, né, eu desenhava muito, esse universo meu, das coisas que eu não dividia muito, tal, o desenho era a ferramenta principal. Então, eu desenhava, desenhava e desenhava. Eu mandei alguns desses desenhos pra vocês, tá? Além de fotos pra ver… tem um momento em que vira um desenho artístico, mas ele não é artístico. Eu desenhava as coisas que eu me interessava, eu desenhava bandas de rock, eu desenhava carros de automobilismo, eu desenhava cidades, eu fazia esquemas, eu fazia projetos, planos, assim. Eu usava como uma espécie de ferramenta da fantasia, assim. E depois, como eu desenhava muito, eu lembro que na adolescência, eu fui fazer um curso de pintura.
P/1 – Lá?
R – Lá. E aí, começou essa ideia de um desenho mais artístico, da arte, e tal. Eu comecei a descobrir essa… mas antes disso, eu já desenhava como uma espécie de brincar, né, ficar brincando sozinho, desenhar e tal. Gostava muito. Bom, tanto que depois, fui estudar Arquitetura por conta disso e tal…
P/1 – Por conta disso?
R – Desenhava (risos), a escola também tinha muito canal de expressão, assim, sabe?
P/1 – Essa na Vila?
R – Qualquer escola de Araraquara, eu lembro como lugares ótimos, assim. Sempre ótimos. Porque no IEBA, por exemplo, a aula de Artes, onde separava os meninos das meninas era muito boa, a gente fazia marcenaria, trabalhava com arame, fazia várias técnicas, aprendia coisas. depois também, o desenho era muito bom. lembro com carinho da professora de desenho. mas na Vila, por exemplo, o esporte era muito bom, então eu não consegui ser nem do time de basquete e nem do de vôlei no IEBA, na escola central, mas quando eu fui pra Vila, eu consegui entrar no time de vôlei. As escolas tinham muita coisa e na escola, eu me lembro também, no colégio, de fazer uma primeira coisa de comunicação muito forte que era… a gente… eu me juntei num grupo que queria ganhar a diretoria do grêmio, grêmio, centro acadêmico, ali e eu lembro que eu alavanquei a campanha, eu fiz a campanha, uma coisa bem de publicitário, assim, eu dei o nome da chapa e bolei uma campanha e lembro que o centro da campanha, você podia passar em todas as classes da escola e apresentar a plataforma e fui eu que apresentei a plataforma e tal. E aí, quando a gente ganhou, que a gente se elegeu, é engraçado isso, porque eu fiz isso mas eu não era nem da diretoria, uma espécie de assessor de comunicação, digamos assim. Quando a gente ganhou, primeiro, a gente conseguiu chegar na fanfarra e transformar ela em banda marcial. O pessoal já vinha tentando transformar, então, era assim, era uma delicia a fanfarra porque tinha todos os instrumentos de percussão, tal, né? E quem tava na direção do grêmio tomava conta da fanfarra. E a gente fez de novo o Festival de Música na escola, que era uma coisa que durante o período da Ditadura Militar tinha parado todo tipo de associação tinha parado. Aí quando chegou no terceiro colegial, a gente conseguiu voltar com o Festival de Música. E o Festival de Música foi pra mim… eu já vinha gostando muito de rock, de música, de coisas ligadas a esse universo, eu digo “coisas”, porque não é só a música em si, a ideia da contracultura já me fascinava, a ideia dos hippies, isso tudo, eu achava uma coisa fascinante, assim, por aquele veio meio Hermann Hesse fui entrando nesse negócio, assim. Mas entrando mesmo, no meu caso, porque eu acabei lendo um pouco do Herbert Marcuse, do Norman Brown…
P/1 – Nessa época?
R – Lá em Araraquara, através da livraria local, eu consegui, tinha um livro que chamava “A Contracultura”, Theodore Roszak, eu tenho até hoje, comprei na livraria com 15, 16 anos. Então, eu comecei a me interessar e aí, fizemos o Festival de Música, então o festival de Música era como um grito de libertação porque a gente podia fazer as bandas e tocar. Agora, isso já no terceiro, eu já tava com aquela mente, assim, as ultimas coisas que eu iria fazer, que eu iria sair dali, mesmo, assim, como sai naquele momento. Então, teve todo esse lado, né, porque… no ano que eu vim pra São Paulo, no prédio que eu morei aqui em São Paulo, tinha um menino que era filho de um pistonista da Sinfônica do Municipal, ele já tinha uma coleção de discos, ele tinha Led Zeppelin, ele tinha o Deep Purple, Beatles, Rolling Stones, eu vi isso tudo na casa dele. Quando eu voltei para Araraquara, eu já sabia tudo! sabe aquela coisa, aquela pretensão? “Preciso mostrar pra vocês umas coisas ai”, comecei a comprar discos e a me interessar muito também por… além de desenhar, eu me interessava muito por música, tanto que eu achei que eu precisava estudar, tal. E eu fiz umas aulas de violão quando eu era bem pequeno, mas não continuei. mas aí, uma das bandas que eu mais gostava era o Jethro Tull, tinha o flautista Ian Anderson e tinha aquele “Thick as a Brick”, um poema cantado, um poema: “Você não sabe como é se sentir espesso como um tijolo”, que era… era um menino, né, uma fala de um menino: “Espesso como um tijolo”, e eu… flauta, flauta e eu consegui a aula de flauta em Araraquara, mas era flauta doce na casa de uma senhora alemã e a gente tocava música da Renascença, tocava Escarlate, Händel, Vivaldi, Telemann, era outra coisa assim, que eu não podia compartilhar muito a minha aula de flauta com o mundo roqueiro, mas eu achava que era o canal, se eu não estudar música por aqui, vou ter que estudar violão ou piano, que a minha irmã tinha estudado, que parecia ser a coisa mais chata do mundo estudar piano, coisa mais difícil e a flauta doce era fácil, era bom, Dona Úrsula me recebia lá, a gente ficava tocando Dude, Greensleaf, sabe, essas musiquinhas… então, eu ia criando esses mundo paralelos, assim, com muita necessidade de alguma forma de expressão, de achar alguma coisa, de busca, era muita busca mesmo, o tempo todo, assim, seja lendo, seja… sabe, organizar, fazer o Festival, participar, muito assim. A dimensão dessas coisas contadas aqui, agora, pode ser um pouco maior do que elas realmente… o festival deve ter tomado três, quatro meses entre tudo. mas foi realizado, entendeu, a gente fez, a gente tocou. A fanfarra foi uma coisa maior, porque a fanfarra começou até depois se excursionar, ia pra festival de banda marcial em outras cidades e tal. mas era coisa assim, eu ia meio que pulando de atividade em atividade, assim, experimentando, assim.
P/1 – Então assim, você tinha uma vida fora muito ativa, né?
R – Muito, muito. E hoje eu vejo que ficava louco pra sair de Araraquara, mas não parava de acontecer coisas lá, né, usava muito o meu tempo assim, era muito…
P/1 – E na adolescência, você tinha o conflito com a sua mãe, por exemplo, queria sair, não ter hora pra voltar…
R – Ah, nós tínhamos horários, era bem essa coisa… eu lembro bem, assim, tinha uns horários, minha família mais ou menos monitorava, assim, sabia o que tava acontecendo comigo.
P/1 – Tinha conflito? Você teve conflito?
R – Tinha muito, né, porque horário você não quer, então tudo o que você não quer é ter horário pra voltar pra casa, né?
P/1 – Mas você peitava? Como eram esses conflitos?
R – Olha, peitava mais ou menos, respeitava, também. Sei lá, eu lembro de carnaval, carnaval não dava nem pra conversar, né, carnaval você… não era nem peitar assim, você fazia que não existia limite, né? Quando eu comecei no baile noturno, né, eu queria ir até a hora que acabasse e tal. E ia, e dava briga, tinha esses problemas, assim. É que também dava briga, a gente bebia, era adolescente, né?
P/1 – Você tinha uma relação com drogas também?
R – Tinha, a gente tinha verdadeiro… o mito das drogas. não tinha nem tanto acesso à droga, mas a gente achava que droga era uma coisa legal, fazia parte da contracultura.
P/1 – Mas vocês tinham isso? Vocês fumavam maconha?
R – Não tinha maconha em Araraquara, era raro, os meninos de São Paulo que traziam, então esse grupo que tinha a Banda Cogumelo que era… um da minha turma tinha esse primo em São Paulo, eles eram uma banda de rock, eles tinham acesso. Então, de vez em quando, a gente chegava perto de um baseado, assim. Mas tinha cogumelo de graça.
P/1 – No campo?
R – No campo.
P/1 – E vocês tomavam?
R – A gente tomava.
P/1 – Você teve alguma relação assim…
R – Tomava, não, a gente comia. Não tinha esse negócio de chá de cogumelo, não. A gente pegava uma manga verde e um cogumelo, comia um cogumelo e uma manga verde e pronto.
P/1 – E teve algumas dessas experiências que te marcou nessa época?
R – Profundamente! Eram experiências… assim, né, eu acho essa coisa da lisergia, tal, uma experiência muito interessante, a coisa de outras formas de percepção. Eu já tava muito interessado nisso por uma série de coisas através da Arte, através da… os discos traziam, né, você pegava “Mutantes e seus Cometas no País do Baurets”, o quê que era aquela capa? A capa era um delírio lisérgico, tudo isso tava o Yes, o Roger Dean, as capas do Yes eram viagens como ele dizia, então eu tava muito propenso a gostar dessas coisas. Eu ia gostar. Talvez, eu nunca tenha tido isso, e acho que foi bom, eu nunca me entupi de comer cogumelo, sabe, nunca… porque eu lembro que teve muito amigo que passou mal, muito mal e pra mim sempre foi uma experiência boa na medida em que eu sempre… teve uma hora que eu parava, comia um tanto ali, nunca comia… então, eu tinha uma coisa que eu lembro de pelo menos de duas experiências de profunda paz, tranquilidade, sabe, de você… cada coisa que você tá olhando ao seu redor faz sentido, o brilho de uma gora numa folha, o formato de uma árvore, você estar aqui sentado agora, uma plenitude, um sentimento de comunhão com a natureza, isso é uma coisa muito agradável, uma sensação de plenitude muito boa e eu me lembro disso com viagem de cogumelo, mais do que… a gente não tinha acesso a acido, eu me lembro da gente tomar acido na Califórnia, muito tempo depois e da coisa da bad trip, e tal que você ficava achando que a policia tá te perseguindo, nunca na adolescência, não teve isso pra mim com cogumelo. Agora, engraçado, é importante dizer isso, em Araraquara, muitas pessoas nessa fase transformaram isso no centro das suas vidas. Então, começaram assim, tudo era em torno de viajar pra poder comprar maconha ou puta, fim de semana tem que ir para a fazenda para comer cogumelo, ou misturar e aí, começar a partir para muita bolinha, bolinha: “Vamos tomar”, que era a coisa barbitúrico, comprava na farmácia… gente que… eu nunca tive muito essa índole, essa vontade, essa, sabe, era uma coisa assim, se a gente ia acampar na fazenda, a gente comia cogumelo, entendeu? E a gente sabia que para comer cogumelo, tinha que estar lá, acampado ou dormindo num lugar, porque não dava para comer cogumelo e voltar pra casa, porque eu fiz isso uma vez e eu me lembro de ter tido acesso de riso na mesa e não parava de rir, não parava de rir, meus pais comentaram dias sobre o que tinha acontecido comigo, porque eu ria tanto: “Por que você ria tanto?” e tal. Eu tinha essa percepção, para comer cogumelo, vai comer cogumelo, ficar lá, tem que ter o dia inteiro, dormir na fazenda… então, eu não tive muito… no carnaval, eu me lembro de ver variedade de bolinha e… experimentava lança-perfume, mas nunca ficava tomando barbitúrico, não… não fiz o centro da minha vida isso, assim, sabe? Eu achava que era uma experiência… e fiquei… e até hoje, eu olho, às vezes, se eu vejo um cogumelo, vou para a fazenda e vejo um cogumelo, eu olho com o maior respeito para o cogumelo, como uma porta mesmo, mas é uma coisa que você tem que saber como, quando, né? E tive depois, ao longo da vida algumas outras experiências muito fortes e muito especiais com o cogumelo, né?
P/1 – Com o cogumelo?
R – Com o cogumelo. Tive.
P/1 – Tipo?
R – (risos) Antes de me formar… os meus pais só viajavam no Brasil e perto, né? Sul de Minas, o Rio… a gente foi pra Foz do Iguaçu uma vez e cruzou por Paraguai e tal, muito longe e Brasília. Foi isso, assim. Quando eu estudei aqui em São Paulo, eu nunca tinha saído do Brasil. Então, antes de me formar, eu resolvi que eu precisava viajar, São Paulo estava parecendo pequeno (risos), eu senti que eu precisava conhecer uma outra coisa e tal. Então, eu tranquei, fiz todos os créditos, tranquei a FAU e fiz uma viagem grande de carona, grande! Sai aqui pela estação da Luz, fui a Bolívia, ao Peru, Equador, Colômbia, pela América Central, Guatemala, Belize, México, cheguei a Califórnia, fiz a Califórnia, toda a costa da Califórnia, então, Canadá, Canadá de costa a costa e tal, foi uma viagem muito interessante. Durante essa viagem, vários momentos eu encontrei lugares onde os índios, as pessoas têm cogumelos, tipos de cogumelos e eu sempre comia. Com essa minha parcimónia… sempre com essa minha parcimónia, assim, comia lá tal o cogumelo. E eu conheci em Machu Picchu uma canadense… foi até curioso, de repente, no meio de umas cholas, eu vi uma mulher loira que tinha uma manta como as cholas põem, com uma cabecinha loira, eu fui lá conversar com ela, ela morava no Canadá, na Ilha de Vancouver, Marcia Holl e a gente conversou: “Tô fazendo uma viagem, vou até a América do Norte” “Ah, vem até a minha casa”, me deu o endereço, em Machu Picchu. Eu fiz essa viagem, eu cheguei no Canadá e eu fui na casa dela. E eu cheguei na casa dela, na Ilha de Vancouver de carona de noite e a ilha não é tão grande, mas ela ficava ao norte, assim, Courtenay a cidade. E aí, bom, vou dormir, Victoria a cidade e fui pra periferia de Victoria pensando… eu já tinha viajado alguns meses, já tava bem descolado, dormia em baixo de ponte e tal, sabia como me virar e de repente, vi numa ponte um riozinho e um acampamento, pareciam ciganos e quando eu cheguei, não eram ciganos, eram Québécois, jovens que vêm do Quebec nessa época do ano porque eles têm o cogumelo que eles pegam, secam, fazem mantas de cogumelo com folha de papel alumínio, dobram, põem na mochila e voltam pra Montreal, Quebec pra vender esse cogumelo, então, eles chamavam de pickers, né, os colhedores e tal. Aí dormi nesse acampamento, eles não estavam comendo, eles estavam secando os cogumelos porque eles vendem pra viver daquilo, para fazer uma grana e vi que tinha cogumelo, quando cheguei na casa da Marcia Holl, de cara, ela… era um loucura, o marido dela já plantava maconha no terreno nessa época, era aqueles… já os egressos dos hippies, sabe, uma evolução dos hippies, assim, que a costa oeste tem. E a Marcia… eu falei: “Puxa, o negócio dos cogumelos e tal…” Isso é uma praga, esse negócio, esses caras vêm aqui, derrubam a cerca, a vaca foge, eu detesto essa época”, me deu assim, um tipo: não gosto de cogumelos. Aí fiquei lá uma semana com eles, foi muito legal, muitas vivências importantes. E aí, nessa semana que eu tava pensando em ir embora, ela falou: “Olha, quando você chegou aqui, você falou do cogumelo, tal, não sei o que. depois de amanhã é lua cheia, se você puder, você fica, não vai embora e aí, eu te mostro como comer o cogumelo”. E foi assim, eu fiquei e na véspera, ela falou: “Você vai fazer um jejum, amanhã você vai estar de estômago vazio e a gente acorda e vai comer o cogumelo”, dito e feito, acordamos, sem café da manhã, nada, jejum e depois da noite de lua cheia, a gente foi para o campo e lá falou: “Agora come” (risos) “Como? Quanto?” “Pega e come, você é que…”, e eu comi lá a minha dose, do meu jeito e foi um dia inteiro de uma profunda viagem, assim, que era pra mim meio que um balanço do que eu tava fazendo, do que seria a minha viagem, do que eu tava pretendendo, foi muita reflexão e esse estado da natureza, eles moravam numa pequena fazenda e no meio do dia, tinha um ônibus abandonado, tinha uma menina morando num ônibus e aí, eu fiquei com essa menina também, à tarde, e no fim do dia, mas não teve sexo, nada disso, a gente ficou junto, assim, conversando, tal… aí no fim do dia, a Marcia me achou lá, eu tava lá no ônibus viajando com… “Vamos lá”, aí depois, ela fez uma… era um ritual, assim, com pêndulos, fazia uma espécie de massagem nos pontos de energia, me fez uma série de perguntas, tal, o quê que eu tava pretendendo, o quê que eu ia fazer, foi me trazendo de volta e eu lembro que a decisão era que eu precisava voltar pra casa, assim, que eu ia voltar pra casa, que eu não ia ficar mais perambulando, assim, né? Quando você tá na estrada, você… passa muito pela cabeça que você pode ficar, você não precisa reconectar, né, porque nessa época, principalmente, a estrada era muito… vamos dizer, afetiva, você tinha muitos encontros, mesmo com alguma violência na Colômbia, algumas coisas assim, já tinha algum problema na América Central, Nicarágua já tinha guerrilha e tal, mas era boa a estrada, então… mas eu tomei essa decisão de voltar, essa conversa com ela e tal. E é engraçado, eu fiquei muito com a impressão… demorou pra eu voltar porque ainda cruzei costa a costa, fiquei um pouco em Nova York antes de voltar e terminar a FAU, terminar a Arquitetura. Mas as reflexões e essa experiência desse dia pra mim foram muito orientadoras, assim…
P/1 – Pra vida?
R – Pra volta, um certo sentido de voltar muito importante, assim, muito orientador. E é engraçado, né, de tudo isso, o cogumelo em si, talvez seja uma parte peque/na, né, muito mais importante a Marcia, né? O conhecimento dela, essa pessoa, conversa. O papel que essa enfim, substância que isso pode ter jogado nessa experiência contando agora para você, parece pequeno, né, não é isso, sabe? Então, eu acho que tinha esse lado meu assim, de me interessar por essas coisas, sempre com esse… assim, não era sobre as drogas em si, né, não era nunca sobre o cogumelo em si, era a busca, né, procurar um caminho, tentar entender alguma coisa.
P/1 – Agora, essa busca sua assim, a sua experiência com a busca é uma experiência do jeito que você conta, dá uma sensação que era uma coisa que você ia explorando. Mas pra você, era uma sensação de… ela era atormentada? Era uma busca, assim: “O que eu vim fazer aqui? O quê que eu tenho que ser?“, ou era uma coisa pacifica, de boa? Você lembra de…?
R – Eu lembro assim, atormentado não é uma palavra que se… que veste muito em mim, né? Assim, não me sinto um sujeito muito atormentado, tiveram muitos momentos de tormento, né? Inquietações, insatisfações e buscar porque aqui não tá bom, eu quero diferente, quero outra coisa. Como continua tendo, assim, não sinto que isso é uma coisa que parou na adolescência, eu sempre tenho uma inquietação de estar procurando, buscando e… sempre, sempre assim. Eu fico bem atormentado nos trabalhos que eu faço, assim, nos documentários, tal, tenho vários momentos de tormento e de dúvida. Agora, olhando pra trás, sem derivar muito e trazer pra hoje, eu tinha inquietações, sempre tem, mas ia lidando com isso, né?
P/1 – Nada que fosse… tipo: “Qual é o meu lugar?”…
R – Sinto uma inquietação geral até hoje, um “qual é o meu lugar?” até hoje, assim, sinto uma coisa que… mas por outro lado, aprendi que talvez, surjam coisas mais interessantes assim, tudo que vi acontecendo na minha vida tem, de alguma forma, essa força da inquietação, da busca, da não aceitação de como é, de querer uma outra… um outro lugar, de buscar um pouco mais… sinto isso até hoje assim, sabe? Mas não identifico isso como uma coisa da adolescência, assim ou da infância, num primeiro momento, não.
P/1 – Então, vamos dar uma pausa, que aí, a gente vai chegar em São Paulo.
PAUSA
MARCELO-T02
P/1 – Bom, vamos chegar em São Paulo, você decidiu: “Vou embora”, já tava decidido, né?
R – Aí, quando chegou o terceiro colegial, na verdade, eu queria muito fazer Comunicação, muito, achei que era a minha área Comunicação. E aí, os meu pais falaram: “Não, isso…”, meus pais não têm formação superior, tá? Meu pai foi técnico de Contabilidade a formação dele e a aminha mãe, Normal, professora, então não tinham tanta informação talvez que eu precisasse nesse momento: “Isso é muito vago, essa coisa de Comunicação, procura algo que seja uma profissão”, sabe esse raciocínio? E aí, com o negócio do desenho, Arquitetura se apresentou como uma possibilidade muito… e na esquina, tinha uma família cujo pai era um arquiteto, tinha se formado no Rio e era uma família cujo um dos filhos era meu amigo, o Renato Barbieri, era muito legal ir na casa deles porque eles tinham um nível cultural bem maior do que a média da minha família, então os irmãos mais velhos já tinham os discos que eu gostava, eu lembro que eu ouvi Piazola a primeira vez na casa dele, eles já misturavam música erudita com rock e com música brasileira, Desmonte eu ouvi pela primeira vez lá e o Doutor Nelson era arquiteto, formado no Rio, engenheiro arquiteto como se dizia e a Cecilia… a Cecilia Barbieri já estava vindo estudar aqui em São Paulo e eu achava as pessoas interessantes: “Eu gostaria de ser como eles, assim, um pouco esse modelo”. E durante o terceiro colegial, eu fiz semi que era cursinho à noite e prestei muito determinado e entrei aqui na USP. Foi uma coisa bem de foco, mesmo, assim.
P/1 – Era muito difícil, já?
R – Era difícil, tinha habilitação específica, a prova de desenho, linguagem arquitetônica. A minha professora de desenho que não tinha nenhuma preparação pra isso, mas ela procurou se informar, me ajudou: “Faz uns exercícios assim, treina isso, treina aquilo”, eu lembro que as coisas que eu treinei com ela que eu usei na prova e funcionaram, tirei nota nove, nove e meio, no desenho fui bem, fui bem e entrei. Entrei na FAU. A FAU era uma catedral do conhecimento, entendeu? Era um lugar que assim, era muito além da minha imaginação, era algo que… além do que eu poderia sonhar dentro dessas buscas, inquietações, porque num prédio do Villanova Artigas que é praticamente uma praça, o dia inteiro na USP, 150 alunos entravam. Então, tinha uma variedade de tipos de pessoas muito dividido na relação homens e mulheres, não era uma faculdade só de homens como era a Poli, muitos homens, ou só de meninas como a Psicologia, tinha um equilíbrio. Eu me encontrei muito assim, vivi muito intensamente o período da FAU, muito, uma biblioteca incrível com arte, com possibilidade, um laboratório de fotografia, uma maquete que a gente tinha acesso para fazer coisas com madeira, as aulas, projeto, a parte de comunicação visual, assim, sei lá, Renina Katz Pedreira, professora, Semiótica com o Décio Pignatari, sei lá, anistia, a volta dos professores que tinham sido com o AI-5, voltou o Artigas, voltou o Paulo mendes da Rocha, Carlos Lemos, História da Arquitetura Brasileira. E o cineclube na época muito mais legal que o cineclube da ECA, o cineclube da FAU tava muito bem estruturado, assim, ciclos do cinema marginal, novo cinema alemão, Candeias, Sganzerla, Wim Wenders, Herzog, e a gente vendo aqueles filmes. Aí, era uma quantidade de coisas acontecendo, meninas, namoradas, sabe? E aí, já relações mais assim, você não precisava praticamente namorar, você podia estar com alguém ou namorar, é muito mais livre, não tinha aquela divisão, as namoradas estudantes e a gente ia dormir na casa, na republica ou vinham… na minha, no começo não vinham porque só tinha homem, era uma turma de Araraquara…
P/1 – Então, você veio morar numa república?
R – Só de araraquarenses, oito caras de Araraquara e todos da Exatas, assim, físicos, dois do Instituto de Energia Nuclear, Química, eles riam muito do que eu fazia, assim, meus exercícios, dos desenhos, tinha muito bullying: “Tá fazendo desenhinho, casinha…”, porque eles estudavam, estudavam coisa seria e tal… mas fiquei um ano só, daí já fui morar com um companheiro da FAU, um colega e a gente… já vim morar aqui em Pinheiros, onde meio que eu tô até hoje, assim. E a FAU era ficar ali, pelo menos o dia inteiro, quando a gente não estendia a alguma festa à noite, alguma coisa muito intenso. Muito intenso, assim, muita possibilidade, e a rearticulação do movimento estudantil… no primeiro ano, se eu tive aula seis meses foi muito. Era pura assembleia…
P/1 – E aí, a sua relação com a politica nasceu…
R – Eu entrei assim, entrei porque não tinha como ficar fora, parava a faculdade, você tinha que participar das assembleias, acompanhar. A entrada na politica mais definitiva se dava se você passava a integrar alguma tendência. As diferentes tendências, trotskistas, maoístas, leninista, que eram braços dos movimentos mais ou menos organizados dentro da universidade. Na FAU, você tinha a presença muito forte da liberdade e luta que é ligado ao trabalho, né, de vamos chamar, trotskista. Eu cheguei a fazer grupos de estudos que era o jeito que você dava a entrada. lembro que um grupo de estudos que eu fiz era até o Matinas Suzuki que era estudante da ECA, acho, que veio ali. Mas eu não… eu comecei a ter uma tendência que eu identificava com o Anarquismo, mas comecei achar interessante as correntes anarquistas, que eram muito pouco organizadas na faculdade, na universidade nessa época, falava-se do Professor Tragtenberg na Física como um pensamento anarquista, mas não tinha muito isso. E comecei a ficar muito avesso às correntes majoritárias, a própria de luta refazendo, comecei a ficar muito dentro de uma politica de participação independente, que eu tinha que ser independente, que aquilo tudo ali era manipulação por parte de partidos, enfim, que aquilo ali não me dizia respeito no sentido de que parecia o fim de um pensamento independente, crítico e livre. Hoje eu vejo, ah, era mais uma irresponsabilidade, eu não queria assumir responsabilidade, mesmo, com a luta politica. Fui pras manifestações, estive na rua, participava das assembleias. dentro da faculdade, nós fizemos um processo de rediscutir o currículo, com professores e alunos rediscutindo o currículo da faculdade, tomei parte ativamente nessa rediscussão, fiz no grupo uma proposta de currículo para a faculdade, então participava, mas nunca assumi posição dentro das tendências e uma definição de posição politica, assim, mais aprofundada ou com vínculo, ou com a responsabilidade de um militante, isso eu nunca tive.
P/1 – Mas por quê? Por que você não se envolveu?
R – Olha, dentro da FAU, quando começavam as assembleias, as tendências vinham com o seu pensamento já pronto, porque eles discutiam antes, então essa instância para qual eu estava, eu via às vezes que tinha um embate de opiniões que não estavam sendo formadas ali, diziam respeito a alguma coisa que já estava sendo discutido antes. Isso, por principio, me incomodava muito assim, eu ficava com vontade de me contrapor a isso, às vezes, quase como um adolescente assim: “Os caras já vêm aqui prontos, eles sabem exatamente o que é, já discutiram esse assunto, eles já estão de posição fechada”. E tinha um jogo nas assembleias, delas se estenderem para que as votações fossem no final e muitas vezes, questões que me diziam respeito, eu achava que deviam ser votadas no corpo da assembleia quando você tinha a maioria dos alunos e me incomodava muito essa manipulação da votação nas assembleias pra aprovar propostas que acabavam sendo aprovadas, que já tinham sido discutidas antes, então eu via que tinha mesmo um trabalho de manipulação ou de pensamento prévio dentro de um dogma, dentro de uma ideia, uma ideologia, tinha uma coisa preconcebida que eu não tava participando e quando fui me aproximando, não me disse muito respeito, não me interessou, eu comecei a achar pelo contrário, que eu devia me… minha posição politica deveria se contrapor a isso, sempre votar a coisa independente, sempre tentar segurar que as votações nas assembleias fossem feitas durante o período e não no final com aquela empurração. Era muito incomodo pra mim o jeito como as tendências lidavam. Tava se reconstruindo a UNE, então tinha muito como intenção final a reconstrução da UNE e tal e tava havendo uma disputa de poder, é claro, para ver quem lideraria a UNE. E claro, isso tava sendo visto dentro da luta contra o regime militar e eu compartilhava das palavras de ordem geral, pelas liberdades democráticas, claro que sim, contra a censura, contra a repressão, né? E até aí, me participava até aí.
P/1 – E fora essa coisa desse envolvimento politico, o quê que é que você chegando em São Paulo, a FAU, que mais te fez descobrir… que mais você transformou na sua vida, né?
R – Olha, a FAU te dava possibilidades… se eu buscar o cala de expressão, a FAU transbordava de canais de expressão, de possibilidades de você achar pessoas parecidas com você e se juntar com grupos e eu, por exemplo, acabei montando um grupo em torno de um ateliê, chamava Ateliê Mãe Janaina’s, com apostrofe no final e s. E esse ateliê era um grupo muito bom, nós começamos em torno de uma atividade de aula de desenho para pessoas que queriam entrar na FAU chamada linguagem arquitetônica, mas ali nesse ateliê, nós fizemos também, olha, foi feito… um teve uma iniciativa de fazer uma geodésica de madeira, tinha um coral, tinha uma atividade de aquário, um japonês fazia uns aquários imensos, foi feito… era base de uma revista de cinema que chegou a sair, a gente quase fez uma revista de poesia que nunca saiu. Muita coisa. Se você… tinha dois quartos, então era um lugar que dava para dormir com a namorada também, era um lugar que… o grupo era todo masculino, mas tinham as namoradas, já frequentando…
P/1 – O grupo era todo masculino?
R – Éramos sete alunos homens, amigos.
P/1 – Por algum motivo, todo masculino?
R – Não, hoje a gente observa isso, na época, era uma coisa meio natural, você se juntava com os seus colegas, tal. E tinham as namoradas também. Então, por exemplo, no coral, eram mais as meninas e elas já estavam ocupando espaço e enfim, aí… mas eu lembro que a revista de poesia e de cinema também eram muito mais ativadas por homens, né, a Cine-Olho que é uma revista até… tinha essa proximidade, ela era de um grupo da ECA, não era do ateliê, mas o ateliê apoiava, às vezes, tinha reunião lá, eu, o Fernando Meirelles e alguns outros chegamos a escrever para fazer ilustração para a revista e então, tinha muita atividade e se não era na FAU, nesse ateliê, que começou a se mostrar como um grupo de uma possível iniciativa profissional que a gente poderia… é o que se chama coletivo hoje, ali acontecia muita coisa, muita coisa, então era FAU de dia, ateliê de noite, é uma época que junto com a coisa da abertura politica, durante esse período dos anos 70 e tal, a pichação foi totalmente reprimida, né, e então, é o começo do grafite, a gente começou com essa coisa de em vez de ir para a rua escrever, pelas liberdades democráticas, escrever uma poesia. Tinha esse tipo de… então, a gente olhava maio de 68 na França e falava: “Veja como muitos dos ditos são poéticos, não são propriamente políticos”, tem essa coisa poética-politica, tal. Com isso, a gente começou também a fazer intervenções urbanas assim. Eu fiz uma série pequenos atentados que era pintar monumentos públicos, assim, com tinta lavável, ir lá e pintar um monumento, sei lá, uma imagem e de repente, aparecia vermelha no outro dia, intervenções urbanas. Em torno do grupo da Revista Cine-Olho e mesmo com o apoio da FAU, a gente fez uma coisa muito legal nessa época que foi o roubo de uma escultura. Existia uma escultura do Flavio de Carvalho que era uma homenagem ao Garcia Lorca e ela tinha sido depredada pelo CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, isso acho que foi bem em 68, 69. E o Fernando leu em algum lugar que essa escultura estava largada num deposito da prefeitura em Cotia e aí, a gente se organizou, alugou um caminhão, fez uma série de documentos falsos e foi até o deposito e chamou o zelador, claro que tudo isso tinha sido pensado, o zelador veio, a gente falou: “A gente veio retirar essa escultura, o senhor assina aqui, mais aqui, mais aqui… essa via é sua”, o cara ficou completamente perdido ali na burocracia: “Pois não, entra por aqui”, botamos a escultura no caminhão e elevamos para a FAU. E na FAU foi feita a restauração, dessa restauração nem participei muito, participei do roubo. Tinha um que tinha o pai com ligação em metalúrgica, foi feita a restauração completa, era de metal. E depois, o Olavo Setúbal que era o prefeito de São Paulo, ele fazia um negócio que chamava Domingo Feliz, fechava a Paulista para o lazer. Aí, quando ela tava pronta, teve um Domingo Feliz, de madrugada fechava pra organizar, botar rampa de skate, sei lá, preparar as coisas, botar os cones, a gente de madrugada pôs, chegou na Paulista, o DSV tava lá: “Viemos trazer a escultura aí do Domingo Feliz”, abriram pra gente, a gente foi embaixo do MASP e concretou a escultura do Garcia Lorca embaixo da laje do MASP, concretou mesmo. Era de paralelepípedo, né, tirou o paralelepípedo, concretou a escultura lá embaixo logo de manhã e ficou, né? Aí, o pessoal que era da Cine-Olho tinha ligação com alguns jornalistas, Folha, Estado, não sei o que, os jornalistas já foram avisados, logo de manhã já estavam um pouco esperando, quando o Olavo Setúbal, prefeito, veio pra avenida, era uma data festiva, sei lá, e o Bardi já tava no museu espumando, o Pietro Maria Bardi, o diretor do museu: “O que é isso? Que absurdo! Isso não é arte, isso é ferro retorcido”, o professor ficou muito indignado e aí, veio o Olavo Setúbal e aí veio a imprensa e a gente falou: “Nós estamos devolvendo pro espaço público, a escultura”, tal. Isso, eu acho que foi das ações, assim, de intervenção arte urbana, a coisa mais significativa que esse grupo fez. Enfim, a gente estava muito com essa ideia das intervenções, de um ato que era artístico e politico que mexia um pouco com esses valores, assim, então a gente estava com esses pensamento bem… que eu acho que também são um pouco contra culturais, né, tem essa contravenção com espécie de valor, assim, de expressão e tal. Então, o roubo da escultura é uma das coisas que se fez no ateliê ou com o apoio do ateliê, apoio da revista Cine-Olho, a FAU, enfim, esse grupo que sabe, é difícil definir: foi o ateliê que fez isso… não, sei lá, o Fernando é muito o cara que teve a ideia, o Fernando Meirelles, mas o grupo enfim, se articulou. Sem a turma da FAU não teria tido a restauração, sem o pessoal ligado a Cine-Olho não teria os jornalistas fazendo a cobertura, sabe, foi toda uma ação. É interessante, né, porque essas coisas, elas sobre… você falou sobre conflitos, obre… nessa época eu tava com um grande conflito, eu não sabia muito bem o que eu ia ser. Eu tinha estudado na FAU, tinha sido muito intenso, estava tudo muito maravilhoso, mas eu não tinha assim, eu não achava que eu ia fazer Arquitetura, não era uma coisa que eu me imaginava fazendo, tinha gostado muito mais das artes, do ateliê, dessas atividades e tava um pouco em crise sobre: “E agora? O quê que eu faço?”, assim, foi exatamente quando eu terminei a faculdade, faltava fazer o TCC. Foi quando eu tranquei e fui viajar. A dúvida me motivou, entre outras coisas. Na verdade, pelo ateliê passaram algumas pessoas que tinham feito essas viagens, tipo, pé na estrada, tinha o Arthur, um amigo que tinha feito uma viagem de carro, tinha trazido um carro dos Estados Unidos por terra. Então, ficavam essas coisas na minha cabeça: preciso sair, preciso conhecer o mundo. E não sabia muito bem o que eu ia, exatamente, fazer, então… e as coisas que eu fazia apontavam numa direção muito pouco profissionalizante, né, essas intervenções urbanas assim, quer dizer, não era bem… eu tava… a minha vida estava cheia de expressão de possibilidades, mas que não apontavam pra uma profissionalização. E eu, durante o período da FAU, ela é publica, né, mas para morar em São Paulo e para alimentar, o meu pai me deu dinheiro, né? E ele dizia sempre que quando eu terminasse, eu iria trabalhar. No ateliê, eu conseguia fazer bicos, a gente fazia coisas de desenho, plantas, o curso de desenho dava algum dinheiro. O grosso ia para pagar o aluguéis e as despesas de água e luz, mas às vezes, punha algum dinheiro no bolso, completava o orçamento, pegava um bico ali, mas era muito pouco. Meu pai tava dizendo: “Olha, quando acabar, você tem que…”, tanto é que…
P/1 – E pra viajar, o dinheiro, como é que você…
R – Eu tinha uma moto, eu tinha uma CG, que era uma moto 125 e eu vendi essa CG e eu lembro que eu peguei 800 dólares, mas para sair do Brasil, você tinha que ter mil dólares, lembra quando era controlado o valor? Tinha que ter mil dólares e aí, eu pedi para oi meu pai e minha mãe falou: “De jeito nenhum! Você tá se formando, vai trabalhar, que negócio de viajar… não sei o que… não…”, meu pai ficou muito dividido, assim, ele achava interessante a ideia, mas não queria apoiar e aí, a minha vó me deu 400 dólares (risos), aquela vó me deu 400 dólares, eu sai com 1.200 dólares. E eu viajei. Pra chegar nos Estados Unidos foram seis meses, 600 dólares, eu gastei 100 dólares por mês. E aí, eu dei um pequeno golpe no banco para entrar nos Estados Unidos, porque a gente viajava com traveller check, se você perdesse esse traveller check, você era reposto, então na Cidade do México, eu perdi o traveller, o banco repôs, eu dobrei o valor, porque eu tinha o traveller pra poder entrar nos Estados Unidos, mostrar que eu tinha pelo menos mil dólares e depois, rasguei o traveller, tal, não utilizei, quer dizer, foi quase se usasse um empréstimo do banco, entrei nos Estados Unidos e ai, eu viajava e trabalhava nos Estados Unidos é muito possível trabalhar em cozinha, no campo… comecei a ter essa experiência, mas dentro dessa perspectiva de: “E aí?”, a viagem era também era um pouco isso: “O que eu vou fazer da vida?”, entendeu? Como é que eu vou resolver esse negócio assim? Pra onde eu vou apontar? Continuava desenhando muito e era engraçado, porque foi a fase demais de desenhar, na FAU você desenha muito, é uma ferramenta, você desenha o tempo todo, no ateliê, tinham alguns artistas, pessoas com desenho de muita qualidade, querendo ser artista, o Pisa até hoje é pintor, pintava, o Piochi era um grande ilustrador e eu desenhava também, mas era engraçado, eu não sentia esse impulso de que eu seria um artista plástico, sabe,. eu não conseguia também me ver nessa… foi a época que eu mais pensei nessa possibilidade de ser um artista, um artista plástico, mas algo me dizia que não, assim. Engraçado isso, eu não conseguia me ver nessa posição do artista. Viajei com essa inquietação e voltei com ela (risos), mas voltei um pouco mais determinado, aquela coisa: “Você tem que voltar, tem que terminar a faculdade, as coisas vão acontecer”. E quando eu cheguei de viagem, tinham três… assim, durante essa viagem… primeiro, durante essa viagem, quando eu estava em São Francisco, estava trabalhando já num restaurante, The Washington Square Bar and Grill, era ajudante de cozinha. Passou por São Francisco, o Fernando Meirelles indo para o Japão comprar uma câmera de vídeo. Ele tinha feito… ele ia fazer a tese de graduação dele na FAU um filme de média metragem. Ele fez uma conta, o orçamento do filme, ele descobriu que ele conseguia comprar duas câmeras de vídeo U-matic que era um sistema semiprofissional. E ele organizou da cabeça dele ir para o Japão comprar essas câmeras e voltar pelo Paraguai contrabandeando, ele mesmo, essas duas câmeras. Então, ele indo para o Japão, nos encontrou em São Francisco. Tivemos uma conversa, fomos ver umas coisas de vídeo-arte que estava acontecendo na cidade e ficamos falando um pouco sobre esse universo, cinema ou vídeo e ele foi e eu continuei, fui pras fazendas colher, fui lá para a Marcia Holl, enfim fiquei lá com ela, cruzei… quando eu voltei para o Brasil, o Fernando tinha primeiro vendido… ele tinha comprado duas câmeras, uma ele vendeu para o Zé Celso, no Teatro Oficina, o Zé Celso já tinha a ideia de um terreiro eletrônico, isso em 1980, que tem que ter o vídeo, tem que incorporar as novas tecnologias, o bárbaro tecnizado, como dizia o Osvald, o Zé já falava sobre tudo isso, o Fernando vendeu uma das câmeras pro Zé, pagou a dele e a viagem e tava falando: “Uma câmara só não adianta, tem que ter uma ilha de edição”, então quando eu cheguei da viagem, tava ele, o Paulo, eles estavam conversando sobre essa ideia de fazer… de ter uma produtora.
P/1 – Tipo, era ele?
R – Na verdade, era assim, ele e o Paulo e o Dario.
P/1 – O Paulo Morelli?
R – O Paulo Morelli e o Dario Vizeu Filho. O Dario Vizeu Filho estava duro e não tinha dinheiro. E aí, quando eu cheguei, eles estavam querendo comprar, cotizar, fazer uma sociedade para comprar uma ilha de edição, fazer uma produtora.
P/1 – E essa era uma ideia?
R – Era uma ideia, quando eu cheguei, eu cheguei, fui pra Araraquara, fiquei lá, era carnaval, fiquei lá uns 15 dias, matando saudades da família e vim terminar o meu ano, cheguei aqui em março e tinha essa ideia. Fizemos a produtora e tal e aí, quando eu sai do Brasil, já, saímos em quatro, mas foi separando. Um deles era o Beto Salatini que tinha ficado em Nova York trabalhando na Globo, já como assistente de edição na Globo. E o Beto tava lá e a gente tinha muita amizade: “Beto, estamos pensando em fazer uma… você não trabalha em ilha U-matic aí na Globo?” “É , tal…” “Estamos pensando e fazer uma produtora…” Genial, esse é o futuro, tô aqui trabalhando, a Globo tá montando escritório em Londres com o ___00:33:12____ vai ter ilha U-matic, é assim que as coisas funcionam no jornalismo hoje, é isso aí, não sei o que… e aí, ficou essa coisa: como que a gente vai… e isso uma discussão em março e aí, eu falei: “Eu vou entrar”, voltei para Araraquara e falei pro meu pai: “Olha, uma oportunidade incrível, estão montando uma produtora de vídeo, é muito legal, eu já vi isso aí fora, é uma coisa que tá mudando o cinema e tal, quero entrar, preciso…”, eu acho que o investimento integral acho que era 12 mil dólares, era três mil dólares para cada um. E o meu pai, de novo, igual na viagem falou: “Não, vai trabalhar. Agora você tá se formando, é hora de você trabalhar, eu não tenho esse dinheiro”, mas minha vó me emprestou o dinheiro (risos), minha vó tinha esse dinheiro e me emprestou, era um empréstimo, a gente fez um documento, meu pai participou, se era um negócio, se era um investimento, tinha futuro, eu ia devolver esse dinheiro pra ela. Fizemos um documento de empréstimo e tal e eu entrei nesse negócio. Tanto é que quando chegou em abril, eu repeti a viagem do Fernando, eu fui pra Tóquio buscar uma ilha de edição num contrabando planejado. Planejado que nem um roteiro, a gente sentava, como vai, por onde entra, o que faz, tal, tal… porque os custos de equipamentos profissional ou semiprofissional tinha uma taxação de quase 300%, enquanto as emissoras tinham isenção dos impostos, a Globo, a Record podiam trazer equipamentos sem taxa porque tinha uma concessão que a gente… e essas concessões do regime militar, pra gente, era como se fosse a palavra do demônio, era uma coisa que a gente lutava muito contra. Então, vamos fazer um ato politico, vamos contrabandear sem pagar taxa. Eu fiz essa viagem para o Japão porque na época eu lembro que assim, primeiro, eu tava me sentindo muito descolado pela viagem que eu tinha feito pela América e que eu tinha dormido em cemitério, que eu tinha me virado, que eu tinha trabalhado, eu tava me achando o cara que me viraria em qualquer condição, estava me sentindo muito senhor das minhas, sabe… são coisas boas, né, eu lembro de eu chegando em Araraquara depois dessa viagem e era o carnaval e eu encontrei uns ex-amigos: “Nossa, você foi, você voltou, você fez isso!”, aí estava assim num clube que eu não era sócio: “Vamos entrar, tá tendo baile ai” “Não, custa tanto”, eu falava: “Mas como assim, custa tanto? Vamos entrar, não tem esse negocio”, e eu entrava sabe assim (risos), sabe quando você tá muito programado de que as coisas não têm limite? E eu não sei como que eu entrava, sabe, tipo: entra de costas e parece que você tá saindo. E funcionava, sabe, eu tava muito determinado que as coisas não tinham muito esse limite assim, e fui pro Japão nessa e realmente, trouxe a ilha de edição e foi quando começou a Olhar Eletrônico com esse contrabando da ilha de edição.
P/1 – E aí, foi você…?
R – E aí, nos associamos, eu, o Paulo Morelli, o Fernando Meirelles e o Beto Salatini que tava fora, foi pra esse escritório que a Globo montou em Londres e ainda ficou uns três anos. Ele foi um sócio que como ele tava muito trabalhando nisso, ele viu a oportunidade, ele conseguiu mandar um dinheiro da parte dele, ele tava ganhando dinheiro e entrou de sociedade, mas nos todos os três primeiros anos que são os fundamentais ali para a formação da Olhar, ele estava em Londres. Ele foi um sócio distante.
P/1 – E aí, como é que foi esse inicio, né? Porque nós estamos falando de 80 e…?
R – 81.
P/1 – Ou seja, mil por cento de inflação, o Brasil tava difícil nessa época, né?
R – Tava!
P/1 – Vocês começaram… a ideia de vocês era profissionalizar, ganhar dinheiro… qual era a proposta?
R – A proposta era tudo! Era ser feliz, ser artista, ganhar dinheiro, fazer televisão, tudo! Não tinha limite pra o que a gente ia fazer. Então, a gente, realmente, começou a disparar para todos os lados, assim, a gente tanto fazia vídeos experimentais, fez vários nesse primeiro ano, como percebeu que tinham segmentos do mercado… então por exemplo, existia publicidade que era feito na época em 35, em cinema, mas ela precisava de edição de vídeo para fazer portfólio para copia. A gente começou a prestar serviço. E aí, tinha segmento assim, por exemplo, tinha casamento, festa que você gravava e montava…
P/1 – Vocês faziam também?
R – Fazíamos também. E também apareceu um mercado que era o vídeo institucional, fazer comunicação empresarial. Também fizemos.
P/1 – Quem que ia vender?
R – Quem ia vender? Puxa vida, era uma soma de relações, porque logo que a gente disse que tinha e começou a contatar o mercado publicitário, apareceram, naturalmente, alguns clientes. Não tinha divisão de tarefa na Olhar, todo mundo fazia tudo. A gente morava junto, né? Moravam alguns de nós, eu que era do interior morava numa casa na Praça Benedito Calixto e o quarto da frente era a produtora. Então, ia desde fazer o almoço, dirigir a Kombi, editar, fotografar, fazer roteiro, produzir, todo mundo fazia tudo! Era bem um coletivo. Era um pouco uma extensão do ateliê nesse sentido…
P/1 – E vocês tinham alguma proposta além de ganhar dinheiro ou trabalho, tinha uma proposta…?
R – Tinha uma proposta de fazer os vídeos… nós estávamos olhado de uma maneira muito crítica o cinema na época, a gente achava que o cinema não tava acontecendo, que as pessoas estavam paradas, que a Embrafilme já começa a crise final, Embrafilme termina quando?
P/1 – Em 92.
R – É, mas já tá apontando que não será um bom caminho.
P/1 – Acho que não tinha dinheiro mais, né, nessa época…
R – Falta de dinheiro. Então, o vídeo dava possibilidade de fazer, então a ideia de fazer… e a televisão começou a se apresentar como um grande objetivo, produção independente para a televisão. E mudar a televisão brasileira, a televisão brasileira tava totalmente estagnada, o projeto da Globo estava no seu melhor momento, mas era muito pós produzido, né, tudo era aquela estética do Hans Donner e muito controlado, o jornalismo muito controlado, um jornalismo que não tava refletindo a realidade do país, então a gente imaginava que a produção independente teria esse papel de mudar a televisão brasileira que era fora das emissoras que faria… então, o projeto passava um pouco por aí, eu digo um pouco porque também tinha que pensar em fazer o vídeo institucional da Colmeína ou do Chapecó, sabe? Em 82 eu lembro de gravar frigorifico em Santa Catariana para fazer… então, a gente tinha um pouco essa noção de que a gente tinha que fazer o próprio dinheiro ali, que a coisa tinha que ser autossustentada, assim. Não tinha mais… eu já tinha levantado o meu financiamento máximo com a minha vó, não tinha por onde sair, não tinha banco. Eu lembro que o Fernando e o Paulo tinham famílias estruturadas que teriam algum dinheiro… eram ricos…
P/1 – Eles moravam, também, nessa casa?
R – Moravam em São Paulo.
P/1 – Ah, não moravam na casa com vocês?
R – Não, a casa funcionava meio como um lugar para dormir com a namorada, para estar uns dias, mas eu morava mesmo.
P/1 – Mas eles eram diferentes, quer dizer, eles tinham mais dinheiro? Qual era a diferença?
R – Olha, não se via muita diferença nessa época. Olhando daqui, eu olho a minha origem de Araraquara de classe média e vejo o Fernando é diferente, família de fazendeiros e um pai médico muito esclarecido, um homem culto, que lia muito, bem diferente do meu pai. E bem diferente da minha vó também, que lia umas coisas meio disparatadas e ia meio que tateando o conhecimento de orelhada de uma forma independente ali em Araraquara. Mas pai professor da USP, gente bem estruturada, mas não tinha muito essa diferença, porque o Renato, por exemplo, Barbieri que morava nessa casa, ele vinha de uma família que talvez fosse um pouco parecida com a família do Fernando. Já o Dario que morava também, vinha de Manaus de uma outra realidade, ele era de uma família que não tinha essa realidade, mãe trabalhava, irmão trabalhava. O Agilson e a Patrícia vieram de Brasília, não lembro quem conhecia, vieram morar nessa casa, então tinha um casal que morava nessa casa. O Agilson trabalhava, a Patrícia fazia cerâmica, então… e tinha muita circulação de pessoas…
P/1 – E o Paulo morava fora?
R – O Paulo ia dormir em casa. Mas todo mundo cozinhava, todo mundo dirigia a Kombi, todo mundo fazia o trabalho, era muito essa coisa do coletivo, assim. A Olhar começou desse jeito, assim. E eu lembro que depois teve um momento que a gente alugou uma casa na frente para ser só a produtora. E eu costumo dizer que assim, vinham esses clientes, né, que nem eu falei, o cara da Chapecó e a gente editava lá as coisas, mas vinha também o amigo que tava vivendo de fazer pão integral. Então, tinha um amigo que é o Khel. É irmão da Maria Rita Khel, tal. Ele tava fazendo pão integral, então ele vinha entregar o pão integral e a gente se beijava nessa época, todo mundo se beijava e tal, tinha muito essa coisa e eu lembro que eu falo que a saída do olhar da casa foi o dia que o Khel beijou o cliente. Que ele vinha e deu um beijo no cara ali da empresa, o cara… “Não, vamos fazer um escritório separado cada casa”, mas do outro lado da praça, que era uma praça que também tinha o Lira Paulistana, que era um teatro independente com uma vida incrível, que tinha um jornal independente, que fazia eventos. Então, a gente ficava meio que conectado numa rede que começou a existir ali, a partir da praça com essas atividades, então essas coisas começaram a acontecer de uma maneira muito intensa. E na sequência, o Vídeo Brasil, quando a gente estruturou um pouco mais os vídeos experimentais e os vídeos artísticos e tal, surgiu o festival, que é o festival que a gente entrou com muita produção, imediatamente ganhou não só o primeiro prêmio, eu ganhei com o Fernando, “Marly Normal? que é um vídeo bem experimental, mas outros prêmios e também, nesse festival, o convite para ir para a televisão, fazer televisão feito pelo Goulart de Andrade. Então foi uma coisa muito… sabe, as coisas aconteceram muito rápido.
P/1 – O Goulart convidou vocês?
R – o Goulart, como homem curioso que era, foi ao festival de vídeo e viu o que estava acontecendo e viu o potencial de novos realizadores, ele tinha saído da Globo e ido para a TV Gazeta, aqui em São Paulo, uma TV local. E ele viu o potencial desses novos realizadores a fazer essa televisão que ele também tava tentando mudar, fazer de um outro jeito e fez um convite pra gente assim, falou: “Pô, vocês estão fazendo aí um monte de coisas, vocês não querem vim fazer comigo o programa “23ª Hora” na TV Gazeta? Mas foi uma coisa maluca, assim, ele convidou em uma semana, na outra semana, nós estávamos no ar para fazer um programa de duas horas. Claro que a gente não tinha produção para cumprir duas horas, então a gente resolveu fazer ao vivo, teve essa sacada: “Ao vivo, ao vivo, a televisão tá muito pós-produzida, muito editada, vamos fazer ao vivo”. E muito assim, estimulado por um outro jeito, o Glauber já vinha apontando na TV Bandeirantes através do programa “Abertura” um certo discurso mais anárquico e nós tínhamos um grupo de amigos vindos da ECA, que é a TV Tudo, que esse sim, tinha estudado Comunicação e estavam com uma articulação mais de politica, mesmo, de mudança da linguagem, de uma linguagem mais anárquica, mais aberta, eles tinham isso bem consciente, porque eles tinham estudado Rádio e Televisão que é o Tadeu Jango, o Valter Silveira, Nei Marcondes e o Paulo Priolli. Depois também, o Pedro Vieira. Era um grupo bem articulado, pensando também muito como a gente, que a televisão precisa arejar, precisa mudar e você vê que tinha esse pensamento um pouco corrente, porque era óbvio, a Globo estava naquele momento muito engessado, seja pelo viés politico do jornalismo, seja pelo excesso de edição, pós-produção, tudo muito empacotado, embalado e tal. Sem suor, sem vida, sem pulso, sabe? Então, vamos fazer esse programa, põe os vídeos no ar e a gente faz lá, entrevistas, performances. E o Goulart de Andrade não é que ele abriu a porta, ele escancarou a porta, ele falou: “Por favor, façam como vocês quiserem”. Não durou muito, foi um período curto de programas, mas muito intensos, muito importantes e o dinheiro não vinha, sabe, a gente fazia…
P/1 – O programa não era financiado?
R – Não, não era. Chamava “23ª…”, começava às 11 da noite numa TV local. Claro que tinha espaço.
P/1 – Quer dizer, ele abriu pra vocês, mas a TV não financiava?
R – Não, e nem ele, propriamente… ele fez um acordo que era se entrasse publicidade, tinha lá um x mínimo, assim, que era para pagar as… porque ele também editava as matérias na nossa ilha, então a gente… entendeu? Mas se não fossem esses outros serviços que iam meio que correndo em paralelo, naquele momento, o projeto não teria… mas a gente estava no ar, entendeu, então a gente estava se virando muito assim, pouquíssimo dinheiro entrando, mas a coisa acontecendo, nesse sentido de ter visibilidade, de ocupar espaço. Tanto é que logo que terminou, o projeto do Goulart na Gazeta acabou por falta de recursos, veio a Abril Cultural, alugou esse espaço, ficou com esse espaço, toda faixa noturna da programação da TV Gazeta pra fazer um projeto independente, aí sim, com muito dinheiro. E aí, eles viram o nosso trabalho e nãos chamaram pra colaborar, aí sim, era mais um acordo… tinha um contrato, a gente fazia reportagens especiais, foi onde nasceu o Ernesto Varella, uma série de trabalhos que esse sim, era pequeno o montante, mas era pago, era um contrato…
P/1 – E eram vocês como Olhar Eletrônico?
R – Olhar Eletrônico dentro da Abril Vídeo.
P/1 – Abril Vídeo?
R – Abril Vídeo, que era uma faixa noturna da programação da TV Gazeta, sendo que no domingo, essa faixa culminava com um programa que se propunha a competir com o “Fantástico” .
P/1 – Vocês?
R – Eles. Chamava “Olho Mágico”, deles, da Abril. E nós fazíamos quadros desse programa. Nós éramos colaboradores desse programa. O Varella nasceu dentro do “Olho Mágico”, como quadro do programa da Abril.
P/1 – E aí, vocês… a ia a produtora…
R – Aí a gente começou a enfim, assumir um programa só nosso, também, dentro da Abril. Essa coisa de prestação de serviços, de alguma forma, estava acontecendo. Começaram a aparecer os primeiros comerciais também, fazer alguma publicidade, que aí sim, tinha mais dinheiro. Então, muitas coisas começaram a acontecer. Alguns dos vídeos, eu por exemplo, fiz um vídeo com o Renato Barbieri e o Paulo Morelli que circulou muito chamado “Do outro lado da sua casa”, que foi premiado em festivais tanto dentro, quanto fora do país, então uma série de acontecimentos simultâneos que vão empurrando a gente pra frente, né? A questão da sobrevivência, do projeto financeiro e tal, ela é latente, as contas não se equilibram muito bem, tanto é que quando surge a publicidade, a publicidade vai tomando conta do Olhar Eletrônico, tanto é que tem um momento que a gente… a produtora já não tá mais praticamente fazendo produção independente, e tá fazendo muita publicidade, só que nesse momento, eu já não tô mais na produtora.
P/1 – Então me conta da sua saída da produtora.
R – Eu, realmente, comecei a achar que esse negócio de mudar a televisão brasileira e de ter outra linguagem era um desafio muito interessante. Na FAU você estuda projeto de edificação, Arquitetura, mas você estuda planejamento urbano também, e muito forte esse lado do urbanismo, do planejamento. Essa atividade de planejar, de pensar não o programa comunidade, mas a programação, a lógica da programação era uma coisa que eu tinha muito assim, eu gostava disso. E quando nós fizemos o ___00:51:01______ com a Abril, Abril Vídeo, depois que terminou, nós fomos procurados por um grupo que queria trazer a MTV para o Brasil e nos propuseram fazer o projeto para a MTV para o Brasil. Como o pessoal estava começando a fazer publicidade e tava querendo dirigir, ninguém quis fazer o projeto.
P/1 – Não foi uma ideia que vingou na produtora?
R – Eu assumi imediatamente: “Eu quero”, pelo planejamento, pensar, quanto custava, todo… porque era uma tarefa de escritório, você tinha que sentar, fazer o orçamento, fazer o planejamento, pensar quantas pessoas contratar, como implantar… ia ser dentro da TV Manchete, no Rio. E eu assumi essa tarefa e para assumir essa tarefa, eles me mandaram para os Estados Unidos pra aprender a fazer MTV. Eu fui para os Estados Unidos em 85 pra aprender a fazer esse tipo de televisão que era TV a cabo, TV segmentada, TV voltada para um público específico, com muita experiência do rádio. Programação modular, como o rádio que vai repetindo uma matéria-prima e às vezes, tem entrada de jornalismo, é como se fosse a FM. Todas as pessoas da edição da MTV americana vinham do rádio. E eu fui lá e aprendi a fazer isso. E o Olhar Eletrônico, lá, tocando a vida. O pessoal dizia assim: “Vai aí que depois eu vou”, eu iria na frente e depois eles viriam, mas no momento, eu era o único que tava nos Estados Unidos ou fazendo os orçamentos, pensando e eles lá, fazendo publicidades, outros vídeos, outras coisas. Mas eles viriam, estava combinado que eles iriam ser o grupo que… acontece que o acordo entre a MTV Network e os Bloch da TV Manchete, a parte financeira desse projeto não deu certo. E a gente estava com tudo preparado, eu tinha entendido muito daquilo, tinha… e não vingou essa projeto, então eu fiquei… 86 foi um ano meio perdido, porque eu não tava na publicidade, fiz uma campanha politica, tinha essa coisa do começo das campanhas politicas, que foi muito interessante, porque foi uma única que eu fiz também. Eu fiz, dirigi uma campanha que era o PMDB no Paraná, Álvaro Dias, governador. Ele foi eleito e eu percebi que não queria nunca mais fazer e realmente, eu nunca mais fiz campanha politica. Mas achei que não era aquilo, fiquei um pouco… quando veio um grupo desde daquela nossa passagem pela Gazeta, a TV Gazeta ficou como sendo uma espécie de território possível para ocupar um espaço dentro da televisão, porque era uma TV local. E aí, ela tá vivendo uma crise, um grupo ocupou, tomou a direção da Fundação Cásper Libero e resolveu que ia reformular a programação da TV Gazeta. E eu fui chamado para fazer parte de um grupo porque eu tinha tido essa experiência com a MTV, algumas pessoas sabiam, que iria pensar linhas para programação. Acontece que entre esses dois espaços, isso vai acontecer em 88, 89, acho que por volta de 87, uma pessoa que também me chamou pra trabalhar foi o Walter Clark. Quando ele saiu da Globo, no Rio houve a concessão de uma TV local, o pastor Fanini ganhou do Figueiredo um canal que iria ser de novo a TV Rio. E contratou o Walter Clark que tava meio decadente pra fazer uma nova programação. E o Walter sabia que tinham jovens talentosos fazendo… querendo mudar a televisão e chamou. Foi a segunda vez, depois da MTV que eu assumi esse papel de planejador e tal. Nesse momento, eu falei: “Puxa vida, se a MTV é um modulo-horário, que é um circulo, né, como FM, a gente podia fazer uma AM na TV Rio, que fosse uma programação modular mais parecido com a do rádio não só musical, que misturasse serviço, entretenimento e informação”, eu chamava o módulo, que nas rádios americanas é o clock, esse modulo-horário, eu chamava de pizza, eu falava: “A nossa pizza terá três ingredientes: serviço, informação e entretenimento”. Então, eu já tinha isso na cabeça, já tinha desenhado a pizza. Quando chegou na Gazeta esse grupo querendo mudar… eu fui pra primeira reunião, na primeira reunião eu falei: “O que tem que fazer nessa emissora aqui é fazer… acabar com a ideia de programa, fazer uma programação modular, você divide os centros de custo, porque não é fechado em um só programa, você contrata equipes para fazer horas de programação e ela funciona como um radio”, eu tava com a cabeça muito feita, sabe? Tinha ido para os Estados Unidos, eu tinha trabalhado com o Walter e imediatamente, no dia seguinte, me chamaram: “Olha, você não quer assumir a direção de produção e programação da TV?” E eu assumi. Eu tinha 30 anos.
P/1 – Aí, você no Olhar, você já…
R – Eu me afastei do Olhar. O Olhar lá, tava fazendo publicidade, começando a ganhar dinheiro e tal. E eu distante do Olhar.
P/1 – Só uma pergunta curiosa, a parte de dinheiro no Olhar, assim, quem ganhava como? Qual era o modelo?
R – Muito bom, a pergunta é boa, porque assim, todo mundo ganhava igual.
P/1 – Existia um pró-labore que vocês definiram, era isso?
R – Tinha um pró-labore que dividia. E depois, tinham umas faixas… depois de um momento, precisava ter uns assistentes e tal. Então, tinha uma faixa B assim, o menino que carregava o gravador, o assistente que cuidava das câmeras. Então, seriam uns dois ou três patamares, mas ficava sempre uma discussão interminável sobre se era justo, se não era justo, como é que podia melhorar. Quando a publicidade entrou no Olhar, ela trouxe também a profissionalização. E uma das maiores… como é que fala? Expressões da chamada profissionalização é a divisão de tarefas: quem vai dirigir o comercial? Quem vai fotografar o comercial? Quem é o diretor de arte? Então, começou a haver divisão de tarefa lá dentro. Foi o que gerou o fim do Olhar Eletrônico, porque começou que todo mundo queria dirigir, todo mundo queria não só fazer o comercial, como ganhar o melhor cachê. Então lá dentro deixou de ser um coletivo, começou a ter essas divisões de tarefas e começaram a aparecer os talentos, quem tem mais capacidade, as agências começam a identificar: “Não quero ela, quero você”, né? “Não quero A, quero B”, e aí começou um pouco de conflito. E eu tava totalmente fora porque eu tava na televisão, tanto é que quando acabou o TV Mix, esse módulo que eu implantei na TV Gazeta, quando ele acabou…
P/1 – Mix, era um mix de…
R – É, era um Mix, TV Mix. E acabou também, começou a dar muito problema de não ter dinheiro e o projeto era muito ousado…
P/1 – Na TV Mix?
R – Na TV Mix, teve um momento que eu optei por sair da emissora…
P/1 – Espera aí, a gente não explorou isso. Vamos terminar a Olhar. Na Olhar começou acontecer isso…
R – A Olhar tava lá começando a ganhar bastante dinheiro, mas acabando o modelo de todo mundo igual.
P/1 – E você quando foi para a TV Mix, você parou de ganhar na Olhar, ou não?
R – Eu era sócio, né? Eu tinha uma quarta parte, eu era uma quarta parte do investimento inicial. Não tinha retirada de… não dava para retirar, então eu parei. Eu tinha lá a minha participação, mas não vinha dinheiro, eu tava afastado.
P/2 – Chegou a devolver para a sua vó?
R – Eu devolvi metade do dinheiro para a minha vó. Eu devolvi um pouquinho mais do que 50%. E ela morreu antes. Mas sei lá, eu devia fazer que nem no Japão, que queimam notas de dinheiro no túmulo, eu devia ir lá queimar os outros 1.500 dólares no túmulo da minha vó, maravilhosa, vó Isabel, querida assim que me entendeu, me incentivou, né apoiou, me financiou, coisa incrível. Engraçado, nem você perguntou se ela era afetiva, ela era afetiva nesse sentido do carinho, ela era afetiva num sentido maior, assim, ela apoiava mesmo: “Vai por aqui…”, dava os caminhos e tal, muito legal. Aí, quando eu tava distante do negócio da publicidade, desse fim desse modelo mais coletivo, de divisão, etc., eu tava fazendo essa carreira aqui em televisão, mas também acabou, só que quando acabou, eu tive um convite para ir para a Cultura fazer a mesma coisa, aí teve uma crise politica na Cultura, depois de seis meses, também fui demitido da TV Cultura e no mês seguinte, a MTV estava de novo, tentando entrar no Brasil, quase pra colocar no ar, a Abril tinha comprado a marca MTV para o Brasil e o diretor de produção que ia botar o canal no ar estava em crise com a emissora, aí o cara que era o presidente, lá, o Roger Karman me chamou e falou: “Não da, o diretor de produção, nós temos aqui um problema, você não quer assumir?”, a dois meses da estreia, eu assumi. Então, eu fiz um ciclo assim, TV Gazeta, Cultura, MTV e são alguns anos, são uns três anos e a Olhar fazendo um outro caminho.
P/1 – A Olhar na publicidade?
R – Muito na publicidade nesse momento.
P/1 – Ganhando dinheiro, já?
R – Começou a ganhar muito dinheiro. Começou a entrar muito dinheiro, começou a usar película, fazer coisa em 35, foi construído um estúdio atrás da casa, realmente… sabe, na verdade, eu era sócio de um negocio que dava muito certo, só que a minha vida tava também dando muito certo pra um outro lado, eu tava tendo uma oportunidade na televisão, de mudar a televisão brasileira como eu imaginei que era…
P/1 – E a galera que tava na publicidade, Fernando, Paulo desistiram da televisão…
R – No momento da TV Mix eles vieram ajudar, então ficava…
P/2 – Quem que fazia parte da TV Mix na época?
R – Olha, mais como TV Mix, mas como diretor de produção e programação, eu trouxe 44 pessoas para a emissora, então os nossos opositores que era Tadeu… a gente tinha um antagonismo com a TV Tudo e tal, eles vieram trabalhar na TV Gazeta. Muitas pessoas da geração, gente que tava se formando em Jornalismo, muita gente, sei lá, Hugo Prata, Aline Sasahara, eu trouxe da Rádio Cultura o Serginho Groisman e botei ele no ar. Era engraçado, falavam: “Mas esse cara é feio” “Ele é um comunicador”, comecei a trazer e também a tirar pessoas, eu também demiti alguns programas, também tirei do ar programas antigos da TV Gazeta, fui fazendo, mesmo, uma mudança de geração. Foram 44 pessoas que vieram todos na faixa de 25, 30… Rogerio Galo…
P/2 – Quem que era o presidente da televisão? Era o Jorge?
R – O presidente era o Jorge da Cunha Lima, presidente da Fundação Cásper Libero e acima de mim, na televisão tinha o Marcos Amazonas, como um diretor geral. Tinha cargo, sabe, superintendência, direção, gerência, aquelas coisas de instituição ou de empresa. E eu tinha um cargo de direção, o Jorge da Cunha Lima era um grande incentivador, ele que montou o grupo de discussão de programação pro qual eu fui, ele que fez o convite pra… e discutia comigo, mesmo, me chamava… participou intensamente de várias decisões, ele era um presidente ativo, ele tava entendendo o que tava acontecendo e tava dando total apoio. Era o período pós-abertura, né?
P/1 – Nós estamos falando de?
R – 88, 89. Então, a gente tinha participado da coisa da abertura fazendo Abril. Programa do Goulart e Abril Vídeo era bem 83, 84, fizemos em 84 todas as manifestações pelas Diretas, o Varella se envolveu muito na cobertura, Osmar Santos no Anhangabaú, aqueles comícios, teve um momento que a Globo não transmitia, então a Abril tinha esse papel de falar das manifestações, porque a Globo ainda não tava dando essa noticia. Teve muito envolvimento nesse momento, assim, mas ali, a TV Mix já era… a gente já tava escancarando, assim, já tava fazendo uma coisa muito libertaria, muito.
P/2 – O quê que era libertária?
R – Libertária era por exemplo ter uma câmera… no meu módulo lá de programação, tinha um negócio chamado câmera aberta, a cada meia-hora tinha uma entrada d Avenida Paulista para quem quisesse vir falar, mas estou falando para quem quisesse, ao vivo. Então…
P/2 – Era aí que tinha o repórter abelha?
R – Então, isso também é ali. Mas a câmera aberta eu acho uma das coisas mais… porque era assim, a cada meia-hora, era só você chegar, não precisava nem você subir no prédio, ficava… a produtora ficava lá embaixo com a prancheta anotando: “Você, depois você, depois você…, e a pessoa podia falar assim: “Eu sou Dona Maria, eu faço bolo, comprem bolo, meu telefone é tal…”, como podia falar: “O sindicato dos trabalhadores do ABC está sendo reprimido pela sua posição na greve…”, ou e acontecia muito, podia entrar um cara e falar: “Caralho, vai tomar no cu”, falava palavrão, sabe, essa coisa que muito adolescente, assim? E eu lá, diretor: “Não, tira esse cara do ar, não pode, tem que controlar”, você vê que você fica tentando controlar o incontrolável. Mas isso é libertário, entendeu? A gente, realmente, abria para quem quisesse vir falar. E o repórter abelha também, porque na verdade, no Olhar Eletrônico, a gente usava U-matic, que era câmera com gravador separado, então tinha o operador de VT, mas quando eu cheguei na Gazeta, começaram… lançaram as Cancorders, que era câmera com gravador. E eu já tinha visto que tinha uma tendência no mundo de você eliminar a equipe de jornalismo e trocar por um câmera repórter. Tinha tido um filme chamado Max Headroom, uma ficção científica que apontava para um personagem que era câmera-reporte e no Canadá, já existia uma emissora fazendo câmera… falei; “Vamos implantar aqui, vamos…” “Não, quanto custa uma Camcorder Broadcast, como se dizia, profissional?”, não dava, “TV Gazeta…” “Vamos fazer com VHS, vamos fazer com…” “VHS o sinal é instável, não da para por no ar”, tinha todos esses mitos cunhados pela engenharia de televisão de que esses equipamentos não poderiam… o sinal era muito fraco, era horrível o sinal, uma baixa qualidade, mas era um sinal e era o sinal que a gente podia ter, uma câmera barata, amadora. E uma geração de pessoas que estava acabando de se formar, louco para fazer Jornalismo de uma forma mais livre, sem tantas regras. Então, acabamos que a gente conseguiu mostrar que o sinal poderia ser estabilizado, ele iria para o ar e ele tinha baixa qualidade, sim, mas que dava para fazer as reportagens. “Ah, mas aí tem que editar” Não, não tem edição. Edição você faz no gatilho, o próprio repórter que corta, o próximo faz…”, e tem que ir para o ar… então, a gente… isso dava muita capacidade de cobertura, porque era uma pessoa que podia entrar no ônibus e ir pra… sabe, tinha essas crises na Gazeta: “Não tem dinheiro pra abastecer as viaturas”, me dá dois reais pra eu pegar o ônibus e vai parar não sei onde, entendeu? Aí, também tinha os… o Jorginho tinha umas coisas, ele pensava assim: “Vamos comprar lambretas”, porque aí, ele ajudou esse nome abelha, ele ajudou a batizar e tal… aí, como é que chamava a dona da Fiorucci no Brasil? Ah, era uma pessoa assim, da moda, ela vinha e desenhava um colete para os abelhas…
P/1 – Gloria Kalil.
R – Gloria Kalil vinha trazer um colete pros abelhas, então de repente,. os abelhas tinham colete mas não tinham dinheiro para comprar fita, sabe assim? Era uma mistura de uma intensão muito moderna com essa coisa brasileira do precário. E a gente começou a assumir o precário muito, muito, como linguagem, como possibilidade, como revelação da nossa condição. E deu muito certo. A gente conseguia muitos momentos muito interessantes da quebra desse controle do discurso que existe por qualquer meio de comunicação, né? Eu mesmo, você vê, como diretor de programação, as ficava lá querendo controlar a câmera aberta lá na Paulista, sabe essa coisa? “Não deixa falar palavrão. Vai queimar”, por quê? Porque a gente tinha que prestar às vezes, contas para o conselho da Fundação, aí ficavam umas crises: “Essa molecada tá fazendo bagunça”, então eu falava: “Gente, é uma câmera aberta, pode falar de politica, pode falar de tanta coisa, pra que ficar xingando?”, mas você vê que alguma forma de controle você é levado a… então, os meios de comunicação têm isso quase como… é uma coisa intrínseca, né, tá dentro do… enfim… ali na Gazeta, a gente tava mexendo com tudo isso. Na TV Cultura, a gente… participei um pouco lá do Ra Tim Bum, começo do Ra Tim Bum, mas não fiz muita coisa e na MTV, eu senti muito peso empresarial da Abril, assim, essa intensão toda que eu vim cheio de energia, de gás, era um contrato com os americanos, eles tinham aqueles padrões, aquilo que eu sabia que tinha aprendido alguns anos fazendo nos Estados Unidos, aí eu comecei: “Vamos abrir para a música brasileira” Ah não, a MTV trabalha com segmento, é uma coisa mais roqueira”, e na época, rock urbano e branco, porque o thriller é que abriu a porta para o Hip-hop, para música negra, né? Teve um momento que a MTV se consolidou com o rock, não tinha música negra. Não tinha abertura para a música brasileira, eu falava: “Vamos trazer a…”, como eu fazia na Gazeta, geração, os independentes, consegui, botei “Parabolic People” da Sandra Kogut no ar, uma coisa do Festival de Minuto do Mazagão, fiz com o Tassio Eder Santos, o Netos do Amaral, programa da Rita Lee, consegui até algumas coisas, mas nada ia muito em frente, assim, porque tinha custo, quando a farinha, a matéria-prima daquele pão vinha grátis, que eram os videoclipes que vinham através do acordo da indústria do disco e tal. Então, teve um momento em que eles me chamaram: “Olha acho que…”, foi um acordo mesmo: “Você pensa de um jeito, a gente pensa de outro”, e eu sai da emissora. não pude dizer que foi uma demissão, porque foi muito amistosa, acertaram tudo e tal e nesse momento, quando eu voltei pra casa, não tinha mais casa (risos). A casa tinha caído…
P/1 – Lá na Benedito Calixto?
R – Não, a Olhar já tinha até mudado da Benedito, porque [ara fazer estúdio teve que mudar para a Pedroso, tal. Mas a Olhar tinha acabado por essa… caiu pra cima, né, a coisa da publicidade, realmente, trouxe… começou a haver cisão interna e disputa por cachês e por posições e quando aquilo começou a ficar tenso, eles tiveram por bom senso, acabar. Me chamaram, eu era sócio: “isso, assim…”, eu tava acompanhando de longe, né? Estava muito envolvido com a televisão. E aí, eu falei… na verdade, eu tava dentro da MTV quando isso aconteceu. Tinha acabado de entrar na MTV: “Eu tô aqui, MTV, isso aqui vai ser super legal, vai dar super certo. Boa sorte para vocês nos seus novos negócios e eu vou continuar a minha vida na televisão”, mas um ano depois, eu já tava fora da televisão. E com a saída da MTV, tendo passado pela Gazeta, pela TV local, pela TV pública e pela TV segmentada, eu percebi que eu era totalmente incapacitado para o trabalho em televisão no sentido de ocupar cargos, ter direção, dar a direção de planejamento porque ali, é um mecanismo de controle, esse controle, eu tinha que ser um controlador para ser esse diretor, esse executivo, tal. E o meu sonho de mudar a televisão brasileira ali já tava…
P/1 – Você já tinha desistido?
R – É, ali eu já sentia que não tinha essa mudança tão… que a televisão era feita por grandes grupos econômicos, com grandes interesses, interesses seja de opinião politicas ou econômicos, que esse sonho dessa geração… e eu tinha observado também o ciclo nos Estados Unidos, do inicio da TV a cabo, o livre acesso, todos os sonhos iniciais da TV pública e um pouco o quê que aquilo tinha dado rapidamente e o negócio tava imperando, o que dava certo era CNN, era MTV, eram esses grandes negócios e mesmo toda e qualquer iniciativa de caráter mais politico, público ou democrata aberto já tava começando a não ir bem nos Estados Unidos, então você vê que o sonho não ia muito longe, assim. O que deu para perceber é que esse sonho é uma coisa individual, né, que você tem que sonhar nas suas realizações e tem que colocar nos seus trabalhos de uma outra forma, né? Mas eu com 30 anos, achei que eu iria dar um rumo diferente para a televisão brasileira, assim, achei que…
P/1 – Aí, você saiu, não tinha casa…
PAUSA
MARCELO-T03
R – Virou mais profissional do que pessoal, né, mas tudo bem, a vida é assim. Tô dizendo isso porque no Olhar Eletrônico, além de morar e cozinhar juntos, a gente fazia Tai chi juntos de manhã. E eu continuava estudando. Agora estava interessado no Taoísmo, naquele momento tava… já tinha… quando eu fui comprar a ilha de edição nos Estados Unidos, no Japão, contrabandear a ilha de edição, eu consegui organizar a minha viagem que eu passei cinco dias cuidando de negócio lá da ilha, fui na Sony, pagar… e o resto, eu fui ver templo zen em Kyoto, eu fui… então, eu tinha esses interesses e aí, continuei. Na época da Olhar, eu fazia o Tai chi de manhã… teve um momento em que todos nos fazíamos, pegava a Kombi, acordava cedo e ia fazer Tai chi com o mestre Liu Pai Lin, um bom mestre aqui de São Paulo. E isso era muito importante, assim, uma coisa que corria em paralelo com tido isso que eu tô contando. Mas eu só te disse isso porque lá na igreja católica chinesa onde tinha eu conheci minha mulher.
P/1 – Então, eu queria voltar pra isso. Vamos pra isso um pouquinho?
R – Eu conhecia a Ian lá.
P/1 – Na igreja do…?
R – Na verdade, no subsolo da igreja, eles usavam o porão para fazer o Tai chi, que a igreja era um ponto de apoio da comunidade chinesa. Então o mestre Liu dava essas aulas…
P/1 – Isso era onde?
R – É no Itaim, tá lá a igreja. É engraçado, tem Maria no cavalinho, assim, aquela migração quando ela vai ter… de olho puxado (risos), tem uma imagem, assim, aquela Maria de olho puxado, muito legal. A Ian veio de Campinas, tinha se formado e ela era chinesa, falava chinês e ela veio pra esse grupo e o mestre Liu dava as aulas em chinês, então ele tinha que ter tradução e de repente, eu vi que aquela mulher incrível do lado dele traduzindo, falando chinês assim, eu fiquei completamente apaixonado ali, assim, foi uma coisa… eu acho que hoje eu fiz que ela representava um universo pra mim, sabe? nela, eu via ela, eu via o que eu tava pensando, via tudo, assim, sabe, minhas expectativas de entender um pouco mais as coisas, porque ela era a voz do mestre, né? E tem uma coisa muito maluca na minha vida de casado, né, a Ian tinha vindo morar em São Paulo, então ela tava morando numa pensão, então eu conheci a Ian em um mês, eu namorei a Ian um mês, no terceiro, ela veio morar onde eu morava, comigo, ela engravidou e a gente casou imediatamente. Foram três meses assim… ela é minha mulher até hoje (risos).
P/1 – Que lindo isso! No meio dessa sua história toda profissional, em que momento aconteceu isso?
R – 84.
P/1 – Então, bem no inicio da Olhar, inclusive?
R – É, 83… eu acho que o Vídeo Brasil é 83… no ano seguinte eu tô casando e…
P/1 – Tendo filho?
R – Em 84 a Renata já nasceu. Mas ali pegava que nem gripe, igual caxumba, Fernando também tá casando, o Paulo tá casando, o Renato casou no ano seguinte… todo mundo que casou já casou ali. Desse grupo, quase todo mundo no período de um ano e meio, dois casou. é engraçado. O Beto que tava em Londres não casou nessa época, não tava ali, não ficou contaminado. Interessante, né, essa coisa…
P/1 – E isso mudou a vida de vocês como grupo? Porque uma coisa é o trabalho, a publicidade…
R – Olha, assim, tive filho, né?
P/1 – Então, na sua vida mudou muito? O quê que mudou?
R – Mudou… talvez seja forçação de barra falar o que mudou, porque tudo continuou acontecendo ao mesmo tempo junto. Eu não sai da Olhar, eu não deixei de fazer as coisas que eu tava fazendo, a gente não tinha carro, eu e a Ian, eu descia do apartamento na Vila Madalena a pé pro… o carro era a Kombi da Olhar Eletrônico. Depois de um tempo, a gente comprou uma Panorama, quando veio a segunda filha, dois anos depois já veio a Fernanda, a gente comprou uma Panorama usada assim, vivia com muito pouco, apartamento pequeno, mas vivia muito intensamente.
P/1 – Mas você saiu daquela casa coletiva que era a produtora, você já tinha…?
R – Isso sim. Sim, quer dizer, quando a Olhar saiu da Benedito Calixto, acabarem as duas casas da benedito Calixto. Em 83, mais ou menos, cada um foi morar num canto e uma casa virou produtora na Pedroso de Moraes. Eu já tava morando… eu morei no Pacaembu, com amigas… teve um ano depois que eu morei numa casa no Pacaembu que era também uma casa dos sonhos, orava meninas e meninos, assim, todo mês uma festa, era uma coisa incrível, uma sala sem moveis que era uma pista de dança permanente (risos). Acho que é um pouco do Rio que você falou já foi nessa época, a gente já tava mais maduro, já tava sabendo das coisas e tal, tinha liberdade, tinha espaço, todo mundo já trabalhava um pouco e tal. E foi aí que a Ian veio morar comigo, nessa casa do Pacaembu. E eu sai da casa do Pacaembu para um apartamentinho ali na Vila Madalena para ser o nossos apartamento, assim, a gente ia ter filha, Renata nasceu ali, a Fernanda também.
P/1 – E a Ian trabalhava com você…
R – A Ian é fisioterapeuta, ela parou nesse período de trabalhar e depois, acho que quando a Fernanda fez um ano, ela retomou. Ela é fisioterapeuta até hoje, fazendo o que ela sempre fez, ela fazia RPG sempre, continua fazendo. Então, ela… todos tinham filhos pequenos, assim, então misturava um pouco, a gente… a vida foi acontecendo, tinha o trabalho na televisão, mas muitas vezes, a gente estava junto de fim de semana porque as crianças, sei lá, a filha maior do Fernando que é a Carol e a Renata têm a mesma idade, a gente ficava muito junto pra elas brincarem. O Agilson e a patrícia também tiveram filho, aquele casal que morava na casa, então também a agente se encontrava, tinha essa coisa um pouco de estar muito tempo junto dom os filhos pequenos e daí, depois a Ian voltou a trabalhar, era um outro mundo. Isso é muito interessante, a Ian, nesse momento foi tudo muito junto, mas depois, ela abriu um outro… porque ela era ligada a saúde, não a comunicação, né, e com uma educação chinesa, tal, ela abriu pra mim uma outra… um outro caminho, assim pra mim, muito forte até, presente até hoje, assim.
P/1 – Que é? O quê que é que isso…
R – Que é a vida na família, só que uma família sino-brasileira, quer dizer, eu tenho uma parte da minha família que são chineses, né? Que eu frequento, eu tenho a minha sogra que é uma pessoa querida, que é uma chinesa que veio do campo de Taiwan, enquanto que o meu sogro viveu… meu sogro se opôs… quando a gente quis casar, o meu sogro se opôs, né? Chinês só casa com chinês. Mas ela tava grávida, a gente ia casar de qualquer jeito, assim. E depois, que ele foi muito duro no começo, quando nasceu a primeira neta, ele virou um grande amigo e me acolheu. Então, tem esse lado da família assim, que é um lado de vida familiar… Araraquara também, a gente ia pra lá, tinha essa coisa agradável de ter os avós, Araraquara é uma cidade boa, mas muito a vida também desse lado da família da Ian, do lado mais chinês da… como as irmãs da Ian, a Tisan, um irmã que a gente é muito amigo, então teve filho na mesma época. Se não tava com os amigos estava com a cunhada, irmã da Ian que também tinha filhos da mesma idade. Então, a gente estava um pouco todo mundo numa fase parecida, assim. Mas esse caminho com a família é curioso, porque é o seguinte, quando a Ian veio estudar com o mestre Liu, ela representava esse universo de conhecimento, mas quando o meu sogro se opôs ao casamento, um pouco desse universo ruiu, até porque o meu sogro era muito amigo do mestre Liu Pai Lin e quando a gente pediu que o mestre intercedesse em nosso favor, ele no fez isso. Então também, o casamento foi um rompimento com o Tai chi, com… os chineses nesse sentido mais do conhecimento, do Taoísmo, tal e a ligação com a família, com os chineses., o trabalho, a coisa pragmática, a vida em família., sabe, eles saíram desse universo um pouco idealizado, né, a China como grande conhecimento antigo, a fonte de conhecimento e virou uma coisa mais sobre vida prática, como se come em casa, como que se trata das crianças. Chineses são super pragmáticos, têm muita cultura sobre a vida, a vida no sentido do cotidiano, da saúde, da alimentação, das coisas. Mas totalmente desprovido de conversas espirituais, sobre a vida cotidiana, sobre a vida prática e tal. Foi um rompimento muito grande nessa época, assim.
P/1 – E aquela sua busca espiritual de ler?
R – não tinha espaço para busca espiritual, estava tentando mudar a televisão e tinha uma filha pra criar (risos), não tem busca espiritual, nesse momento, não tem. O espirito tá ocupado, o sujeito tá muito ocupado nessa hora, você tá tentando mudar a televisão, você tá criando duas filhas sabe, assim! Foi muito intenso, um período da década de 80 porque tem tanta coisa que acontece na década de 80 de tal ordem sobre o lado profissional e sobre o meu lado pessoal, quer dizer, os meus desafios, né? A televisão… você tá muito exposto ao mundo de muita sociabilização, você encontra muita gente, você vê muitas mulheres, né, você tá sempre cercado, tá ocupando cargo de direção, sabe? E de repente, casado, com filho pequeno, então era uma coisa assim, quase que dois vetores, entendeu?
P/1 – Conflituantes?
R – Bastante conflituantes, bastante. Tanto é que na MTV, eu tinha umas práticas bem malucas assim, por exemplo, tinha show toda semana, os músicos internacionais vinham para o Brasil, tinha Hollywood Rock, as coisas acontecendo, Sepultura no Pacaembu, as coisas… e eu participava dos trabalhos e tinha umas práticas assim, por exemplo, eu nunca ia antes dos shows começarem, eu ia com os shows começados. Entrava sempre por trás, pelos bastidores e saía antes dos shows acabarem. Então, eu nunca deixava de participar, mas eu nunca fazia a balada completa, entendeu? Quer dizer, aquela coisa do sexo, drogas e rock and roll, eu não entrava
P/1 – E ela ficava ok com isso ou vocês brigavam?
R – Olha, era por ela que eu fazia um pouco isso, pelas crianças, quer dizer, para eu ter um pouco de vida familiar, porque senão, eu estaria na balada… então eu não entrava muito, entendeu, e aí, teve umas coisas assim que depois do apartamento, a gente conseguiu uma casa que eu aí a pé até a MTV, então eu conseguia… no meio da MTV, eu conseguia às vezes, almoçar em casa, sabe umas coisas assim? Então, fui equilibrando. Hoje, ela fala que eu viajava muito porque…
P/1 – Pra ela, você era ausente?
R – Ela achava que eu viajava muito. Quando você fala essa palavra “ausente”, ela fala que não: “Você não participava…”, mas eu viajava, porque depois, na década de 90, eu trabalhei numa agencia em que eu fazia muito trabalho internacional e aí…
P/1 – Só voltando, nesse momento, vocês brigavam porque você tinha o filho, trabalhava…
R – Ah, nós brigamos muito, assim, por coisas de todo tipo, como qualquer casal. Quer falar de brigas?
P/1 – Pode contar, se você quiser, assim…
R – Eu não me sinto muito incentivado assim, mas assim, eu não acho que eu estar casado até hoje é fruto só da harmonia, é uma batalha, né, um coisa que você resolve que tem companheirismo, que vale a pena. Porque a Ian… imagina, pensa esse cara aí do cogumelo, esse cara que quer mudar a televisão, muito idealista, sabe, pessoa meio… sou geminiano, sabe, muito aéreo, sempre cabeça muito meio voando, tal. A Ian foi um fio terra assim, maravilhoso na minha vida, sabe? A gente teve várias coisas que hoje eu valorizo muito que sem ela, não teria feito, porque a gente começou, vivia tudo muito difícil, né, a gente começou com o sonho de ter casa, por exemplo, e a gente acabou que a gente construiu casa, entendeu? Mas construiu assim, projeto meio feito por mim, amigo, a gente… nada era muito normal, quando a gente resolveu fazer casa, era difícil, São Paulo era cara, a gente resolveu fazer um pequeno condomínio de amigos, que era o pessoal do Olhar Eletrônico: vamos morar meio juntos. E a gente arrumou um terreno fora de São Paulo, na Granja Vianna, dois terre os, na verdade, um pra fazer estúdio, onde é o estúdio da O2 hoje e outro pra fazer casa. Então, a construção da casa também foi… teve muito empenho, porque eram amigos fazendo um condomínio juntos e eu acho que quem me estruturou para esse tipo de coisa era muito a Ian assim, porque nessa época, só para fazer a economia de fazer casa foi um negócio, assim, difícil, né? Juntar o dinheiro na época, pelo menos era assim, era todo o dinheiro de trabalho nosso, assim, não teve nenhuma herança, não teve nada, nosso. Então, a Ian era… sabe, chinês nessa hora vem muito forte, assim, sabe? Pés no chão, né? E tá lá, eu moro há 20 anos nessa casa.
P/1 – E a educação das meninas era você e ela?
R – Eu e ela… a Ian na educação das meninas teve… por muito tempo, ela defendeu a escola pública, ela dizia que a gente devia… e eu cedi um pouco esse meu lado do mundo… do Olhar, um pouco da FAU, que é a zona oeste paulistana e as meninas acabaram estudando no Vera Cruz. Hoje eu olho assim a posição da Ian e eu falo: “Eu devia ter ouvido mais a Ian”, porque tiveram uma boa educação, mas nesse mundo aqui da zona oeste paulistana, sabe? Então, com muitas… bastante elitizada assim, a educação das meninas. Engraçado que as meninas, um pouco saíram desse mundo, hoje são mulheres que não… a Fernanda até tem umas amigas ainda da época do Vera, mas a Renata rejeitou muito isso depois assim. E o universo, meu familiar com a Ian não participa… não é o sociocultural da zona oeste paulistana, do Vera Cruz, sabe? Todo um outro lado, assim, o que e uma maravilha você ter dentro de casa essa outra possibilidade, entendeu, de você entender o mundo de uma outra maneira, tal. Hoje, eu tô sentindo que me deu muita liberdade, assim, de não comungar o tempo todo daqueles valores ali, sabe? ter passado por agência… eu passei por agência, quer lugar mais onde tem uma cultura, né? Agência tem uma cultura, material de consumo, de valores, de se achar, né, publicidade no Brasil ocupa um espaço desmedido, ocupou, agora já acabou, mas na época em que eu tava ocupava, publicitários todos… nossa, quando eu tava na agencia, olhava aquilo e falava: “Hã?”
P/1 – Então, vamos voltar assim, tu saiu, não tinha mais casa para voltar de trabalho, né?
R – Isso, quando eu sai da MTV, não tinha a Olhar.
P/1 – E filho, casa…
R – É, aí ficou um ano bem difícil, bem preocupante. Na MTV, principalmente, nos dois primeiros anos, eu ocupei um cargo assim, tinha secretaria e estava dentro do plano de carreira da Abril, eu tinha carro, tinha aqueles… você assina nota em vários restaurantes, cartão coorporativo e tal. Em uma semana depois que você tá fora, você não tem nada disso e você… com a MTV com aquele glamour do começo, eu era convidado pra tudo que você imaginar, festas, shows… e na semana seguinte, o seu telefone não toca. Cai uma ficha assim, sobre quem você é e sobre o que você estava sendo, a pessoa jurídica e a pessoa física muito pesada, assim. Entendo muita gente que se perde nessa hora, porque você é o cara, entendeu, da MTV que tarárá, que vai nos lugares e que é convidado, e que é ouvido, você fala uma coisa interessante, você conta uma piada, todo mundo ri. E na semana seguinte, nada disso mais acontece, nada! E você não tem trabalho. Como o meu acordo de saída com a Abril foi correto, eu tive uns meses para me articular. Eu me juntei com dois amigos numa sobreloja ali na Teodoro Sampaio e falei… a gente não era sócio, cada um tinha o seu negócio, “Eu vou dirigir, eu vou tentar fazer um pouco de publicidade também”, e comecei a andar e procurar trabalho, assim como diretor.
P/1 – Internamente, você deprimiu? Você falou: “Porra…”
R – Ah, dei uma deprimidinha. Sabe onde eu deprimi pesado, agora que você falou? Deprimi pesado quando eu tive que sair do TV Mix. Tive uma crise de lombar, daquelas coisas de ficar na cama, de não conseguir levantar, tão tenso, tão tenso, tive uma das piores… a grande decepção pra mim foi… ali eu achei que eu ia mais… fazer um trabalho importante e tal e cheguei a dar um direcionamento importante, mas eu tive uma crise. Também tive um pouco essa crise porque material, a gente naquele momento ficou muito bem, as meninas pequenas, a gente se acertou, morava numa casa gostosa ali no Sumarezinho, estava fazendo um trabalho mais próximo de casam, às vezes, almoçava em casa, sabe? Uma coisa que parecia assim, mais… e de repente, tudo isso acabou… assim, eu me articulei meio rápido, assim, esse escritório… e uma das pessoas que estava precisando também de um espaço… eram duas salas, uma sala tinha uma secretária e um computador que os três dividiam, os três ficavam na outra sala e dividiam. E uma dessas pessoas que é o Pena Schmidt, é um produtor musical e um guru meu, guru da vida assim, e o Pena, nessa primeira semana nessa… a gente chamava de Loja 1, tinha um nome, sabe essa coisa de Loja 1, Loja 2, Loja 3… Loja 1, primeira semana, ele falou assim: “Marcelo, agora você tem que atender o seu próprio telefone”, parece uma bobagem, mas ele estava dizendo assim: agora ou você faz, ninguém vai fazer por você, não tem plano de carreira, não tem secretaria, não tem carro, não tem Abril, não tem… se vira negão, né? E ele era muito inspirador porque ele tinha sido braço direito do André Midani na Warner, no Rio e tava independente também. Então, ele tava muito com esse direcionamento: ou você faz ou ninguém faz por você. E me deu muita inspiração. Eu comecei a fazer.
P/1 – Aí, você não falou: “Nossa, eu tava lá nesse lugar e agora eu tô aqui no computador”? Ou você foi…
R – Não, e de repente era uma coisa assim, era nas quadras da Teodoro onde tem música e ali, era um ambiente meio roqueiro de verdade. Aí, eu olhava e falava: “Essa MTV tá muito… de playboyzinho pra realidade dos produtores independentes, para os roqueiros do mundo aqui fora”, e assim, me veio uma coisa de que agora eu faço o meu próprio caminho e tal. E veio uma coisa forte, sabe? Tanto é que eu já pensei em realizar, fazer documentários, tudo e nesse ano, inclusive, eu consegui através da Secretaria de Cultura dinheiro para fazer um documentário…
P/1 – Qual?
R – Chama “Sato”.
P/1 – Eu vi.
R – Então, é porque… você vê, as coisas e os caminhos, né, o negocio que tinha parado lá com os chineses e tal, eu acabei retomando com um professor de natação que era um mestre e zen que fazia o negócio na piscina, mas sem ritual, sem religião, era ali, prática de respiração na água, exercícios, estar aqui, boiar, nadar, mas era muito bom. E nesse ano, eu resolvi que esse cara… ele tava… começou, 90 anos, estava ali num momento um pouco já frágil, falei: “Tenho que documentar a vida dessa…”, e fiz esse documentário já se pensando nessa linha de fazer documentários e tal. Mas com a publicidade, quando eu comecei a circular mesmo pelas agências, uma vez eu passei pela DPZ e o Petit, um dos donos soube que eu tava lá e ele que tinha feito a marca do TV Mix e também, era a agência que tinha apoiado a MTV, ele sabia quem eu era. E quando me viu lá, me chamou, eu tava ,mostrando dois ou três filminhos que eu tinha para tentar fazer comercial lá no RTV. Aí, ele perguntou, fez mil perguntas e na semana seguinte, ele me chamou e falou: “Você já pensou em trabalhar aqui na agência? Queria te propor assumir o departamento de RTV aqui da agência e cuidar dos nossos comerciais…”, e nessa hora, apesar de eu estar começando uma reconexão como realizador, iniciando um trabalho, a oferta dele falou muito alto, assim, pela questão familiar, pela possibilidade de ter um bom, salário, de estar na agência, do que isso significava para a família, a ideia de fazer a casa, tudo isso. E eu aceitei, eu fiquei oito anos como produtor na DPZ trabalhando com os comerciais, etc. E nesse momento, eu me dediquei a fazer a casa e ainda no começo, eu nadava com o Sato, depois, o Sato morreu. Engraçado, né, o Sato fez minha passagem, o fim da MTV… o Sato, eu fui nadar com o Sato quando eu sai da MTV, agora que eu lembrei, porque a minha amiga falou: “Pô, você vai pirar”, eu tava deprimido, ela que me levou lá para… pensar outras coisas, será que foi isso? Ou eu comecei antes com o Sato? Pelo sim, pelo não, nessa passagem, o Sato foi, pra mim, família, o Sato tinha umas outras coisas na vida, sabe? E daí, eu fui pra DPZ, na DPZ fiquei oito anos.
P/1 – Nesse período da DPZ, então, o seu documentário, a sua vida independente a mudar a TV, você falou: “Tchau”?
R – Larguei tudo! Virei funcionário de agência. Larguei geral. Meu mote era construir a casa, cuidar das meninas e… foi muito interessante pra mim, porque… era a primeira vez que eu estava trabalhando sem nenhum vínculo afetivo, nenhum ideal, era um trabalho, um cargo, ganhar dinheiro, né? Teria sido perfeito se eu não tivesse começado viajar muito, porque começou uma fase muito internacional da agência e eles começaram a pedir muita produção internacional, eu comecei…
P/1 – Tipos anos 90?
R – Anos 90, fui muito a Los Angeles, Nova York, a gente tinha um fotografo em Barcelona que a gente usava muito e eu ia uma semana, duas, um mês, viajava. Como diz a Ian, essa época eu viajei muito. A gente pegou um momento também que era meio estertor da publicidade de cigarros, ali, a Souza Cruz e nossa, a gente ia pra África, fui a Antártica, fui ao Alasca, filmar em lugares assim, os produtores eram produtores de Los Angeles, produtoras grandes com estrutura. E foi uma experiência incrível! Eu fiz dois documentários, você vê que você não para, né, porque eu fiz making of, um making of é feito em 16, fotografado pelo Adriano Goldman, roteiro do Carlos Nader, o Fabinho Mendonca que é um diretor era o assistente de câmera e o Guilherme Airosa, som direto, hoje nata assim, de profissionais, era a minha equipe 16 para fazer o making of do comercial.
P/1 – Essa equipe foi você que contratou? Era seu…
R – Era my crew, não a super crew dos gringos, assim, que era… a Souza Cruz é que viabilizava isso, mas eu gosto muito desses documentários… recentemente, a Revista Trip fez uma matéria sobre a questão do cigarro, que ela é uma revista que logo se colocou contra a publicidade de cigarro e de bebida. E eu fiquei muito impressionado como os diretores que faziam os comerciais dessa época não deram depoimentos. As pessoas negam essa coisa, sabe? E eu lembro que eu falei: “Paulo – Paulo Lima lá da Trip – vamos embora, vamos falar”, e contei todas as histórias do período que eram histórias incríveis das quais eu me orgulho, né? Então, você veja, eu estava ali, na verdade, era um braço do demônio, né…
P/1 – Você se sentia?
R – Eu não! Nunca me senti, mas assim, para o julgamento geral, o quê que eu tava fazendo? Publicidade de cigarro, o que é isso? Matando pessoas? Você pode pensar assim, né? Eu nunca pensei assim, sabe? Internamente, eu nunca tive esse tipo de contradição, quando começaram os comerciais, essa fase internacional, eu achei muito estimulante ir para fora, conhecer, trabalhar com esses profissionais, enfim, era gente muito qualificada, eu via um estimulo, via uma coisa interessante a ser feita assim. Nunca tive… em 18 anos, nunca tive crise de consciência por trabalhar na publicidade, nunca! Foi ótimo pra mim.
P/1 – E foi bom pra você?
R – Foi bom, organizou a minha vida na parte material… o que tinha é que eu não conseguia fazer o meu trabalho, eu ficava o tempo todo pensando: mas eu tô aqui e eu não vou dirigir, eu não vou realizar… não sei, contando agora eu fico pensando assim: poderia ter ficado quieto lá, virado um publicitário rico, eu não sei, mas não sou eu, entendeu? Eu ficava pensando: eu preciso…
P/1 – Não era suficiente? não era ali que você queria?
R – Não, não era ali, não era ali, tanto é que quando chegou no ano 2000, eu sai da agência, tentei montar uma produtora para fazer publicidade e também outras coisas, e fui absorvido pelas outras coisas, entendeu?
P/1 – Mas por que você saiu da agência?
R – Bom, eu sai da agência porque eu ficava querendo dirigir, eu queria dirigir, então a agência: “Não, você tem que ser o produtor”. O combinado era que depois de um tempo, eu iria dirigir também. Às vezes, fiz… fiz alguns comerciais, mas poucos. E queria dirigir e eu queria dirigir e não era só publicidade que eu queria dirigir, eu queria voltar a realizar, fazer documentários. Quando eu fiz esses documentários, esses making of aí do Satanás, eu fiz com a maior alegria, falei: “É isso que eu gosto, eu tenho simpatia pelo demônio, eu gosto de realizar, quero fazer as coisas”, entendeu? Percebi que eu queria fazer, então eu queria fazer e chegou num ponto, depois de oito anos, bastante tempo, assim, eu senti que se eu não saísse da agência, eu nunca iria dar esse passo, voltar a dirigir, voltar a realizar. Então, teve um momento que por bem, a gente fez um acordo e eu sai da agência, montei uma produtora, mas essa produtora não deu certo assim, porque eu tentei fazer uma produtora para fazer publicidade e musical, documentário, tal. E teve um certo conflito, assim, pegou também ali a bolha da internet, aquela época dos anos 2000, o mercado ficou meio ruim, fechou acho que por dois anos. Fechou assim, a produtora não funcionou.
P/1 – E aí, nesse momento, quer dizer, os seus amigos de coletivo, né, o Fernando, o Paulo, cada um tinha ido para um lado, vocês continuavam juntos…
R – Bom, o lugar onde eu moro, esse lugar que eu construí, o Fernando é meu vizinho. A gente continua até meio compadre, sabe, essa coisa próximo, filhos próximos, cresceram juntos, a gente até hoje é vizinho, conversa, tem amizade. As pessoas da Olhar venderam os seus terrenos, que era o Renato Barbieri, Marcelo Tas para ex-colegas da FAU, então recompôs uma comunidade de arquitetos ali, onde a gente mora. Então, alguns amigos eu mantive, mas também outros perdi. O Renato Barbieri foi pra Brasília, perdi a amizade que eu trazia desde Araraquara, Marcelo Tas no começo, também foi para os Estados Unidos, ganhou uma dessas bolsas Fulbright, um coisa assim, foi estudar lá. Aí, o Fernando eu via pela proximidade de… e alguns trabalharam comigo na DPZ, eu contratava algumas das pessoas. Só que na DPZ, quando eu entrei, era muito um pedido de que assim, tinha muita corrupção, não é corrupção, é a coisa do BV na publicidade, o que você paga meio por fora e a DPZ não tinha isso e tinha um pedido de dar uma moralizada assim, nessa… então eu também ficava evitando de trabalhar muito só com os amigos… e aí, foi bom que eu conheci o mercado das produtoras em geral, comecei a circular muito, assim. Então, as pessoas me identificavam da origem do Olhar Eletrônico, me achavam simpático e estavam, claro, todos querendo vender os seus serviços para a DPZ. Então, eu dei uma ampliada de universo assim, não foi uma época mais de ficar ligado… tão ligado a esse grupo de origem, né?
P/1 – Então, me conta um pouco essa sua… você já esta em casa, as suas meninas já estão… sei lá, estamos falando de 2000, já, então, né?
R – 2000 quando eu saio da agência.
P/1 – É, e aí?
R – Aí, eu montei essa produtora que não funcionou… que na verdade, no primeiro ano, ganhamos até um leão em Cannes, tudo, mas teve problemas financeiros, não sei o que e eu com aquela vontade de não fazer só publicidade. No segundo ano dela, o João Marcelo Bôscoli, que tinha trabalhado comigo na agência, tinha montado uma gravadora chamada Trama, estava fazendo um programa de música brasileira, me chamou pra dirigir e eu já voltei a dirigir televisão, na qualidade de diretor. E na produtora, também, eu comecei, por exemplo, a produtora ficava no Itaim, numa quadra que tinha uma casa noturna que tava vivendo uma febre, Drummer Base, música eletrônica. E eu conheci um menino num elenco que virava as noites atrás dos DJs. E ele ficava gravando DJs que ficaram muito importantes, Mark, Patif, no mundo, hoje. E eu produzi um documentário desse menino que é um documentário super amador assim, metade do documentário tem foco, para você ter uma ideia de como é amador. Mas a MTV exibiu, que era o retrato de uma cena emergente de música eletrônica, então produzi isso, dirigi o… então, quando fechou a produtora, eu já tava me direcionando pra tentar realizar, fazer documentários, principalmente. E música, trabalhar com música que é uma coisa que eu sempre gostei. Os projetos demoram pra acontecer, né, então eu prestava algum serviço em publicidade também, fazia. Na publicidade nessa época, nunca consegui dirigir comerciais na qualidade daqueles que eu produzi, pegava uns B,C, segunda linha, mas dava pra ganhar um dinheiro para viver, assim. E dava pra esperar o tempo que os projetos de documentários levam porque a gestação num projeto de documentário é longa, né, você tem um tempão parado, não entra dinheiro e tal. Então, eu fui equilibrando o mundo audiovisual desses dois jeitos, assim, compondo com prestação de serviços, publicidade e a realização dos projetos que seriam os projetos que eu queria muito fazer, assim. É interessante porque eu acho assim, eu olho o trabalho que eu fiz hoje e eu sempre falo: “Eu não sou um puro”, eu não sou aquele realizador que tem uma obra no sentido de que tem um impulso original e que vai dando curso àquele impulso e ele vai se desenvolvendo e você vão amadurecendo, tal, eu acho que eu pulei muito de galho em galho no mundo audiovisual, estive em televisão, estive em publicidade, fui realizador, voltei a ser realizador, então… e quando você vê o meu trabalho, o meu trabalho é contaminado, assim, ele não é um trabalho assim, que tem uma linha de realização inquebrada e que tem uma evolução orgânica e natural. É tudo meio que aos trancos e barrancos, assim. Eu percebo muito hoje também deficiências na minha formação, porque eu não tive formação no audiovisual, eu sou arquiteto de formação. E acabei… como eu fiz na televisão, eu acabei também assumindo muito o lado do precário, do erro, do descaminho como um dado muito importante do meu trabalho, tanto hoje que praticamente eu planto erro nos meus trabalhos, eu dissemino o erro até no set, às vezes, o descontrole do set, tal, como uma… quase que como uma ferramenta, assim, da criação, assim, sabe? essa ideia de que você não deve controlar, de que você tem que de alguma forma, buscar que a expressão surja principalmente nos documentários de forma mais natural e que ela não tem que ser sempre dirigida, controlada, que as pessoas falam as melhores coisas no momento em que não propriamente estão no centro do take, né, ali no… bastante…
P/1 – Eu queria que você me falasse um pouquinho mais dessa coisa do processo de trabalho seu, então, o que você pensa…
PAUSA
MARCELO-T03
P/1 – Marcelo, o que eu queria era a gente fazer… dar uma respirada assim, acho que antes da gente começar, vamos fazer isso. Dá uma respirada. A gente fez um grande passeio que começamos lá em Araraquara, fomos parar lá em Vancouver, passamos na América Latina, muita coisa de torre na Paulista, muita produção, muita… fomos passando tudo isso. E a gente já tava começando a começar a apensar assim, todo esse movimento, né, da vida. Então, eu queria que você começasse a voltar pra hoje, pra aqui, agora, estamos aqui. Chegamos, fizemos a nossa…você fez todo essa viagem e chegando agora assim, olhando para tudo isso que você contou, o quê que você sente?
R – Tudo tem a ver com tudo, né? Eu tenho primeiro essa sensação o tempo todo, assim, de uma… de que as coisas vão se juntando de um jeito muito impressionante. As coisas se conectam, coisas lá de trás, de hoje, assim. E que no meu caso, as coisas foram acontecendo, né? Uma foi puxando a outra e engraçado, eu tive muitas oportunidades, né, me sinto um cara bastante privilegiado. Hoje eu olho assim, quem eu sou no Brasil, sabe, um cara branco que tem olhos azuis e tal que tem as oportunidades, que as portas se abrem, que tem as facilidades, tal. Eu tenho muita consciência desse meu papel, assim, sabe? De representar o que seria o mais fácil, o melhor lugar, onde os privilégios estão, onde as facilidades estão, tal. Às vezes, eu olho ao redor, eu vejo que não é assim pra maioria das pessoas, não é assim, esse não é o lugar comum. Por outro lado, essa é a minha vida, né, foi assim que as coisas foram… eu sempre procurei me dedicar às coisas que eu faço. Acho que todo mundo faz isso, mas tem gente que se acomoda assim, às vezes, tem uma coisa de preguicinha. Eu tenho preguicinha, às vezes, mas tentando puxar pra frente e fazer, essa ideia de realizar, de buscar, de estar sempre buscando esse lugar do movimento. E ao mesmo tempo, me parece uma contradição, assim, porque se você olhar, sou um cara que tô há 34 anos casado, eu moro há 20 anos na mesma casa, eu tô aqui na zona oeste, em Pinheiros, pra chegar nesse estúdio, foi pertinho, eu conheço boa parte das pessoas que estão aqui atrás das câmeras, eu tô mais ou menos no mesmo lugar, assim, né? Então, eu tenho a impressão… eu me sinto um cara que tem uma inquietação e uma busca permanente, mas ao mesmo tempo, me parece que eu tô mais ou menos num lugar bom, protegido em que as coisas funcionam de alguma forma, isso me incomoda um pouco, assim.
P/1 – Isso te incomoda?
R – Atualmente, sim. Porque eu acho que não é assim para a maioria das pessoas, sabe?
P/1 – Mas você diminui a sua trajetória quando você se olha desse lugar, como você se sente?
R – Eu não diminuo a minha trajetória, sabe, eu tento muito não ter uma… não ser hipócrita em relação as minhas coisas, assim, e às vezes, por exemplo, quando o pessoal fala “artista”, “Cineasta”, sabe, eu fujo muito desse lugar, porque eu acho que eu já fui publicitário, marqueteiro, motorista da Kombi, cozinheiro, pai de família… os vetores já foram tantas vezes outro. Quando eu olho um artista: o vetor desse cara é a criação dele, a vida dele e ele chega num lugar maravilhoso./ Eu sempre andei pra lá, pra cá, tal, mas é a minha trajetória, eu não diminuo, mas às vezes, eu acho assim, será que essas coisas aconteceram comigo? Será que elas seriam possíveis para as outras pessoas, assim? Então eu fico tentando entender as coisas que eu fiz e o que eu represento além do que eu tento representar, o que eu acabo representando. Um pouco isso assim, fico olhando para tudo: “Interessante, que conforto, né? Que mundinho bom que se passava em Araraquara, essa condição desse lado da linha do trem, a FAU, São Paulo, esse mundo audiovisual, assim…”, então isso é uma coisa que me inquieta atualmente.
P/1 – Isso te inquieta atualmente?
R – Me inquieta bastante, assim, sabe? Que lugar é esse…
P/1 – Então, você tá num momento… eu tô te perguntando agora, no seu momento pessoal…
R – Bastante, porque quando eu vejo as coisas que estão acontecendo politicamente, por exemplo, o Brasil, o mundo, tal, eu fico sempre pensando qual é o papel meu nisso tudo, o quê que eu… por que chegamos aqui? Sabe? Então, eu fico tentando, fico nessa inquietação de entender se é minha contribuição, se é minha realização, os filmes que eu faço. E dá um trabalho fazer esses filmes, às vezes, o último… por exemplo, quando ficou pronto, eu olhei e falei: “mas isso significa alguma coisa?”, sabe, isso faz algum sentido? Eu entrei numa crise de sentido com o último documentário…
P/1 – Qual documentário?
R – “O Piano que Conversa”, foi muito rejeitado por festivais, não teve um circuito, assim. E eu comecei a entrar numa: “Faz sentido o que eu tô…?”, a gente usa verba pública, financiamentos de um dinheiro que vem do CONDECINE que é uma taxação da indústria do audiovisual, tem sua lógica, mas aí eu tô fazendo esse trabalho, que isso… são inquietações que eu tenho, ainda, assim. E também fiquei… eu te falei, por exemplo, na universidade que eu tinha essa coisa com a politica, de tentar negar esse papel das tendências, né, eu tenho em relação a Academia a mesma coisa, o saber constituído, esse conhecimento cristalizado. As instituições, quase que todas as formas organizadas assim, achando que tem muita reprodução de mentiras, né, a gente vive num ambiente permeado por construções que são falsas, assim, né? Em torno do conhecimento, da produção de tudo, assim, sabe, as coisas me parecem um pouco absurdas hoje em dia e fico perguntando se eu contribui para fazê-las mais ou menos absurdas, assim, sabe? Então, agora eu tô fazendo um documentário bem assim, que tem a ver com a minha história, documentando…
P/1 – O que você tá fazendo agora?
R – Tô documentando a vida de uma jornalista que viveu 20 anos na China com a família dele. Mas só tô fazendo esse documentário porque sou casado com uma mulher chinesa, porque eu conheci ele através da família da minha mulher e porque eles, de alguma forma, são parecidos comigo, assim. Então, você olha aquela família poderia ser a minha família vivendo na China, tentando olhar esse mundo distante pelo olhar de gente muito parecida comigo, tal. Outro dia perguntaram… eu acho que foi uma conversa com a Minom, ela falou: “A gente fez um documentário e reparou que a gente tava documentando um homem velho e branco. E os festivais hoje estão falando sobre as mulheres, sobre as politicas indenitárias, sobre o transgênero, então a gente sentiu que tava fazendo um filme…”, e eu penso assim: eu também tô fazendo um documentário sobre um velho jornalista, que é um brasileiro de ascendência italiana. Então, me pergunto muito se o que eu tô fazendo faz algum sentido além de fazer sentido pra mim, realizar, ganhar o meu cachê, fazer a minha vida andar pra frente, assim… tenho essas inquietações ainda muito permanentes.
P/1 – E falando dessas inquietações, assim, muita coisa acontece na vida e a sua relação com você, né, ao longo dessas coisas, você olhando para momentos da sua vida e você olhando agora, o quê que você acha que mudou? Você olhando a vida, você colocando na sua procura inquieta, também, o quê que você… houve alguma ruptura? Tá tendo? Você se sente que algo se transformou essencialmente?
R – Essa pergunta… sabe que assim, talvez eu pudesse dizer que eu não mudei, eu sou muito parecido com o que eu sempre fui. Talvez fosse uma resposta bem honesta, assim.
P/1 – E isso te inquieta também? Ou não?
R – Bastante! Bastante! Tanto que eu não tô falando mais nada porque eu acho que essa é uma afirmação importante, assim. E no nosso projeto, fiquei interessado em falar sobre o silêncio porque eu acho que as coisas mais importantes estão amis próximas do silêncio do que da fala. Não sei o quanto eu mudei. Você viu ali nas fotos o eu pequenininho, assim? Acho que eu não mudei muito, acho que… e vira e mexe, tem gente que me conhece há muito tempo, olha pra mim e fala: “Oi, tudo bem? Puxa, você não mudou, você tá tão parecido”.
P/1 – E isso te bate…
R – Fundo!
P/1 – Fundo?
R – Fundo!
P/1 – Quem te cobra isso?
R – Eu sempre reparti o cabelo do lado, tá então, isso eu acho que ajudou um pouco (risos), mas não é meio preocupante? Uma vez eu tentei repartir o cabelo no meio, não ficou muito bom. mas é meio preocupante, sabe assim, eu tô brincando, mas eu tô te falando uma coisa seria assim, quer dizer, eu me acho percorrendo uma linha mais ou menos parecida, assim, ela de alguma forma… por mis que eu faça movimentos em muitas direções assim… agora, tem momentos que eu olho para isso e falo: “Que bom”, sabe? Eu sou assim, esse é o meu jeito, esse sou eu, desse jeito, não sou do outro jeito, sou desse jeito.
P/1 – E tem outros momentos…
R – Que fica esse inquietação: puxa vida, mas será que eu não tinha que ter mudado mais? Que deveria ter rompido mais? Dá para romper com tantas coisas, né, da para você ir muito longe, dá para você parar lá no Canadá e não ter saído de casa. Fui parar lá no Canadá, a mulher me recebeu na casa dela, me deu os cogumelos para comer e me ratou como a minha vó me trataria, sabe? Estava tão longe! Então, o que é isso? O quê que é? O quê que é essa condição de estar no mundo desse jeito, sabe? E juro, tudo que eu não quero é me colocar no papel de uma vítima, pelo contrário, de um privilegiado, de uma pessoa que foi tendo as possibilidades, foi ocupando, sabe? Ah, foi duro sair da MTV, mas no ano seguinte, eu me recompus, entendeu? As coisas vão… e aí, às vezes, eu olho a história das pessoas, né, nossa, acho que nem penso na possibilidade de ser, né, imagina o que é crescer num campo de refugiados, né? Ou mesmo na periferia da cidade de São Paulo. Não dá nem pra montar o projeto assim, sabe? Porque você tá numa condição tão louca assim, tão… então é um pouco estranho, sabe assim? Eu tô tentando ser honesto, falar com você e contar as minhas histórias, eu sou esse cara aí que você tá… mas às vezes, falo: “Nossa, que lugar do mundo assim, que…”.
P/1 – Às vezes, você falando isso, me vem uma imagem, vou compartilhar, quando você falou que queria sair de Araraquara, que Araraquara… que você queria mudar aquele limite daquela cidade, depois São Paulo… você tá falando isso, você se sente com essa coisa da vida na realidade, tem esses limites, como se fosse Araraquara, assim, você se sente com essa insatisfação, ou não é isso?
R – Não me sinto, não me sinto. Eu me sinto uma pessoa assim, eu sei compartilhar, eu sei entrar num lugar, de ver uma outra coisa, estar, trocar, não me sinto preso, propriamente, mas a vida de cada um é de um jeito, né? A minha é um pouco essa que eu tô te contando, assim, né? Hoje eu sou reconhecido no mundo audiovisual, assim, né, aqui no Brasil, pelo menos, as pessoas… muitas me conhecem, tal, assim. E bom, por um lado, eu me orgulho que a minha trajetória não é uma trajetória tão linear, tem muito acerto e erro, tal. Mas quando eu conto a história que nem eu contei aqui, as coisa dentro do assertivo, parece tudo meio que parecido, assim. A gente teria que ficar conversando aqui talvez mais do que uma tarde pra entender o quê que é isso, que inquietação é essa ou o quê que é ser tão… mas é um pouco parecido, assim. Eu gosto dessa foto, né, você pediu pra trazer…
P/1 – Isso.
R – Porque eu tô fora do meu lugar, eu tô longe, eu tô lá no meio de uma montanha, num lugar fazendo uma caminhada, no meio dessa viagem que eu fiz pela América, em algum lugar do Peru, depois da trilha inca, mais perto de Ayacucho. Esse cara que tá fazendo paz e amor tinha se sentido muito mal no dia anterior na montanha, achou que ia morrer, mas esse cara aqui que é local, apareceu e tinha coca, folhas de coca e deu um chá para ele, ele melhorou. E a gente tava bem solto assim, bem explorando um lugar desconhecido, tal, no meio da viagem, que pra mim, foi uma viagem bastante… de uma busca importante e tal. Então, eu acho que ela mostra essa condição assim, é uma parada para descansar no meio de uma caminhada, a gente sentou aqui… anoite anterior tinha sido muito difícil por causa que esse cara se sentiu muito mal. Esse aqui da barba. Então…
P/1 – Mas aí, quando eu pedi para você escolher uma foto, você escolheu essa?
R – Porque tem foto ali, eu, a minha mulher e as minhas filhas, eu adoto elas, eu poderia fazer a apologia da família. Tem ali fotos do começo da Olhar, com o Fernando, quando eu tava em São Francisco, ele indo buscar a ilha ou eu fazendo câmera na época que eu fotografava. Tem eu pequenininho ali com o meu pai e com a minha irmã em Araraquara, tal… mas achei que essa daqui era um meio de caminho bom, assim. Por sinal, eu tô no meio do caminho, no meio de uma trilha, num lugar do Peru.
P/1 – Então e uma foto de caminhada, né? Uma foto de busca…
R – Busca, caminhada…
P/1 – E aí, hoje? Qual que é a sua busca? Tem uma busca que você já falou, mas você conseguiria me dizer por onde ela anda?
R – Olha, tô botando bastante reflexão nesse documentário que eu tô fazendo nesse momento, fazendo uma pergunta que é sobre como que a China vê os estrangeiros e como que os estrangeiros veem a China? Acreditando que a relação que eu tenho dentro da família, ela vai ser uma realidade para muitas das pessoas nos próximos anos, que o mundo vai expor uns aos outros de uma forma muito radical, assim, como é que… porque a Europa vai ser cada vez mais invadida por imigrantes, os chineses vão se espalhar, vão ocupar espaço, seremos muitos e a gente vai estar cada vez mais exposto um ao outro. Então, eu vejo nesse documentário muita reflexão sobre esses embates, assim, entre diferenças. Isso é a minha busca profissional. O documentário tá nessa direção desse entendimento, assim. Eu, pessoalmente…quando eu não tô trabalhando, agora eu tenho netos, então se eu não tô trabalhando, eu tô com os netos, é um negócio assim, sabe, é uma bomba de ternura contra o peito, assim… é uma coisa muito legal, criança e ver a vida, de alguma forma, se refazendo, tal. Então, na minha a instância mais domestica e pessoal, eu trabalho muito, assim, sou uma pessoa que trabalha muito tempo, muitas horas e tal. Mas se eu não tô com isso, eu tô com a Ian, ou estou com os netos. Também tem um momento de bastante… é uma alegria, um carinho, um negócio gostoso, um amor assim, então… diria que as maiores inquietações estão nesse nível que é um pouco mais intelectual, reflexivo do trabalho, uma certa racionalidade e tal.
P/1 – Vamos voltar a isso que você contou, que tava fazendo o julgamento de contar que a gente fez uma das suas histórias possíveis, a gente contou aqui, fora essa sensação de você reconhecer isso aqui, o quê que te trouxe… esse exercício que a gente fez, né, de umas três horas, basicamente, quase quatro horas, né, de contar a sua história, que reflexão ou que sentimentos isso te traz?
R – Diria que um certo incentivo a parar para pensar. Isso que me trouxe. Porque como eu não paro muito, tô sempre fazendo coisas, então quando você faz esse tipo de entrevista, né, que você faz essa reflexão, conta algumas histórias suas, você fica pensando como seria importante talvez parar mais para pensar e olhar um pouco o que eu tô fazendo e… mas acho que isso não vai acontecer (risos). Tem uma inquietação meio… quando eu vejo, eu já tô lavando prato, sei lá… tô em casa, já tô fazendo coisa, tal, já tô… me movendo pra alguma direção, assim.
P/1 – E esse seu trabalho dentro desse documentário “Pessoas”, você já olhou alguma coisa…?
R – Então, eu olhei. Eu tô desde o começo achando que tem uma coisa que me motiva que é anterior ao trabalho… a gente conversou na nossa reunião, eu falei um pouco sobre o… a gente desviou para uma discussão sobre a verdade, que nos documentários não era bem isso. Mas eu acho que o discurso é muito… ele se reveste de estratégias mentais, psicológicas, etc., que nem sempre ele é a coisa mais verdadeira e espontânea que as pessoa possam… algumas construções são maravilhosas, né, ontem a gente estava falando sobre religião, que eu falei que alguém me perguntou, eu falei: “Olha, eu vejo a religião como uma construção e algumas são lindas, têm os vedas”, que bonito, né? Muito do que a Igreja construiu. No discurso de cada pessoa também tem uma construção. Eu como documentarista fico tentando achar momento em que algo se revela além ou dentro ou também, não só além. E fico achando que quando as pessoas param de falar, o silêncio tem… por ali… ali perto mora uma comunicação muito interessante, algo está sendo dito, assim, quando se cala. Então fiquei achando que essa é a motivação muito sincera no sentido da minha… daquilo que eu já venho um pouco pensando, tal, já venho sentindo, misturado com o trabalho que vocês fazem, porque vocês têm muitos depoimentos gravados, então, por muitos momentos, pessoas devem ter parado pra pensar por “n” razões, por medo, por dúvida, por emoção, pessoa quase não conseguir falar de tão difícil que é. Então achei que teria uma coisa muito interessante de ser visitada que são esses silêncios nesses 18 mil depoimentos, né? Essa é a maneira como eu tô pensando. Aí, eu já vi o que me mandaram, eu vi que é um pouco difícil, porque o que me mandaram tá editado, então muitas vezes, o silêncio é rejeitado na edição, né?
P/1 – É editado? Te mandaram editado?
R – É, me mandaram várias coisinhas editadas, mas achei ótimo, porque deu para começar, é o começo, a primeira pesquisa. Encontrei dois momentos de silêncios muito significativos ontem, vendo. E vi como vai ser difícil, tal, esse… mas hoje falando aqui, eu pensei que no bruto, talvez até o antes de começar a entrevista pode me interessar, o tempo que a gente ficou rodando, eu vi que já tava rodando, a gente ficou em silêncio, eu fiquei de olhos fechados e tal. Tudo isso pode vir a me interessar, assim, que são as coisas que as pessoas não falam ou os momentos em que elas param de falar. Muito interessado nisso, eu achei que era um tema bom. Difícil, ontem eu vi que é difícil, quando eu dei a primeira olhada nos depoimentos, assim, eu vi que… por exemplo, quando eu monto os documentários, vira e mexe, eu ponho esse silêncio, mas na maioria das vezes, eu tiro. Na maioria das vezes, quando você acha um vazio numa fala que você tá montando, aquele tempo você diminui. Tem uma… quase uma regra de ouro sobre o tempo da televisão, do cinema, não sei o que… e que claro, no meio disso, você percebe que o silêncio pode ser muito expressivo. mas não é regra, é exceção. Em geral, você corta o silêncio e junta os depoimentos. Acho que é um bom tema, achei que é um tema interessante. Até porque assim, em torno do silêncio, vão ter coisas que eu não domino: o quê que as pessoas estavam falando quando elas pararam de falar? Então, que seria o objeto não é propriamente o assunto, é um momento, uma epifania, uma emoção, uma… em qualquer filme, isso costuma ser uma coisa muito preciosa assim, tava tentando escolher isso, tô tentando esse objeto bem precioso assim, para montar com ele, para buscar e tal. Parece bom?
P/1 – Parece muito interessante! Só acho que eu, como controladora (risos), vou mandar para não te mandar mais nada editado.
R – Não, isso eu pedi já no primeiro e-mail, falei… só que aí, a gente precisa ver como vai fazer, porque talvez seja melhor nem mandar, a gente vir, porque algum… a gente precisa de tutor, a gente precisa de alguém dizendo: “Vai por aqui, vai por…”, vocês têm muita coisa, né? Eu preciso de orientação de vocês, não da, são 18 mil, a gente não tem como… tem que ter uma orientação sobre como que nós vamos procurar. E aí, vir ao Museu, ouvir algumas coisas…
P/1 – É, vamos conversar. Marcelo assim, você quer fazer alguma fala ainda? Você tem alguma…
R – Não, eu acho que a gente conversou bem, eu acho que poderia agradecer o Museu da Pessoa, a Karen, a Rosana, agradecer o Marco, a Minom, enfim… Não, acho que a gente falou de bastante coisa boa e puxa, dá pra continuar, né, conversando. Tem a coisa das fotos que suscita outro jeito de falar, outra memória, outro discurso. Espero ter atendido aos interesses do filme…
P/1 – Aqui é os do Museu, no caso…
R – Do Museu, que a gente não faca um discurso vazio, né, que a gente não…
P/1 – Construa o silêncio sem vazio, né?
P/2 – Até na metodologia, na entrevista, no curso quando eu fiz com você, o bom entrevistador, ele respeita o silêncio, nunca falar por cima do silêncio, porque às vezes, os entrevistadores, no começo, quando estão ansiosos para fazer um monte de perguntas, o primeiro silêncio que acontece, o entrevistador acha que perdeu a entrevista e começa a mandar pergunta em cima daquele silêncio que a pessoa tá usando para se reorganizar, para refletir. Mas isso faz parte até do treinamento, né, parar nesse silêncio. Por isso que e legal pegar o bruto.
P/1 – Porque também tem esses equívocos que é bom, a pessoa fica agoniada com o silêncio.
R – O que tem que eu entendo como entrevistador é assim, você tem isso, é muito importante. Por outro lado, você também tem que quebrar a perna do entrevistado, né, você tem que tirar ele do lugar, tem um certo desafio de tirar a pessoa daquele lugar, coisas que às vezes,, até tem propriedade, mas um lugar comum, aquilo que está se repetindo, tá falando a mesma coisa… então, às vezes, a provocação é muito importante, né, assim… na entrevista eu entendo que seja assim. Alguém me falou esse negócio sobre o ouvir quando eu fui fazer os depoimentos para o “Tropicália”, me falaram que… um amigo psicanalista falou… porque eu tentei mostrar como eu ia conduzir, ele falou: “Não faça pergunta nenhuma, simplesmente abre câmera e não pergunta nada”, achei bem radical.
P/1 – Você experimentou?
R – Até os 15 minutos (risos), até que dá uma coceira, você começa a entrevistar. é difícil, imagina, tá lá, chegar no Gil, Caetano, foi tão difícil, sem estar… eu fiz um pouco sabe essa coisa, é legal, ela funciona, ela poderia… eu teria que ter me aberto mais… eu teria que não ter o propósito de não estar contando a história do Tropicalismo. Eu teria que estar com uma disposição de ter sentado com eles para fazer um documentário que pudesse ir para onde fosse, que é uma coragem bem legal de se ter, assim, né, vamos deixar isso ir para onde for, vou segurar o rojão, que esses caras vão começar a contar sobre o gás que acabou ontem na casa dele, uma trivialidade, vou ter que aceitar e vamos ver onde isso chega. Mas eu tinha um plano original, então usei até só no primeiro tempo, no segundo tempo, eu cumpri a pauta, senão eu não ia ganhar o jogo, entendeu? Mas é muito interessante, ouvir é muito importante, né? Ouvir acho que tá no centro do método de vocês, né? Tenho procurado ouvir, também, mais do que a gente fez aqui, hoje, que foi que eu falei. Falei pra caramba.
FINAL DA ENTREVISTA
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