P/1 – Dona Maria Lídia, bom dia
R – Bom dia.
P/1 – Primeiro eu gostaria de agradecer da senhora ter vindo aqui para essa entrevista. E pra gente começar eu queria que a senhora falasse pra gente o seu nome completo, a data do seu nascimento e a cidade em que a senhora nasceu.
R – Eu me chamo Maria Lídia Rodrigues Figueira. Nasci no dia primeiro de junho de 1943 na cidade do Funchal, Portugal.
P/1 – Fala pra gente o nome dos seus pais.
R – O nome do meu pai, Manoel Figueira e a minha mãe Maria Isabel Rodrigues Figueira.
P/1 – E a senhora tem irmãos?
R – Tenho um irmão que morreu e tenho uma irmã e um irmão vivos.
P/1 – E desses quatro filhos a senhora estava em que lugar nessa escadinha?
R – Eu era a primeira.
P/1 – A primeira?
R – Por isso que saí desse tamanho, fui a primeira, né? (risos)
P/1 – E conta pra gente qual era a atividade dos seus pais lá em Funchal?
R – Meu pai era padeiro e depois trabalhou 14 anos no Curaçao, na Shell, que é negócio de petróleo. E a minha mãe era do lar.
P/1 – E dona Maria Lídia, o que a senhora se lembra da sua casa lá em Portugal de quando a senhora era bem pequena?
R – Ah, eu era muito feliz lá porque lá a gente se divertia, a gente brincava descalço, comia fruta à vontade, era só ir lá no pé pegar. Era muito bom.
P/1 – Que frutas que tinha?
R – Ah, tinha uva, ameixa, pera, abacate, tinha de tudo que tem aqui no Brasil. Só caqui que era muito difícil de achar lá. Cereja.
P/1 – E como era a cidade?
R – A cidade onde eu nasci era uma ilha, chama Ilha da Madeira. Então é uma cidade pequena, a ilha também é pequena.
P/1 – E conta como era a vizinhança. Era pequeno, mas o que tinha em volta da sua casa?
R – Em volta da minha casa. Tinha a minha casa, tinha um terreno grandão que era onde minha mãe fazia plantação. E tinha uma casa do lado e uma casa do outro porque antigamente há 70 anos era diferente, as casas eram afastadas umas das outras, né?
P/1 – E do que a senhora mais gostava de brincar?
R – Ah, nós brincávamos quando a turma ia lá pegar as coisas que faziam, que plantavam, aí nós tirávamos, arávamos a terra, tudo e a gente brincava lá descalça que nem umas doidas (risos).
P/1 – E qual era a sua brincadeira preferida?
R – Por incrível que pareça, eu gostava de soltar pipa (risos).
P/1 – E como era o seu cotidiano de pequena?
R – Com seis anos eu fui pra escola, depois eu estudei e com 13 anos eu fui aprender a fazer crochê, ponto cruz, tricô, essas coisas todas. Eu ajudava minha mãe a lavar louça. Nós tínhamos coelho, galinha, porco, tudo isso, e a gente ajudava a minha mãe a fazer as coisas. Porque quando meu pai foi pro Curaçao eu tinha três anos e os meus irmãos que eram gêmeos só tinham um aninho.
P/1 – E qual era a sua responsabilidade de ser a filha mais velha, a primogênita?
R – É nada, eu era mais mimada do que os outros porque eu era pequenininha, ainda sou, né? Então, a minha mãe mimava muito.
P/1 – E do que a senhora se lembra de quando começou a ir pra escola? Como era essa escola?
R – A minha escola, quando eu estudei, na parte que era das meninas era só menina, não era mista, era menina-menina e menino-menino. Eu estudava na parte da manhã, eu fazia uma bagunça porque eu era bagunceira (risos). Naquela época ,os professores batiam na gente, todo dia, eu apanhava. Aí quando a minha mãe ia lá nas reuniões ela falava: “Pode bater porque ela é arteira mesmo” (risos).
P/1 – E que tipo de arte a senhora fazia, a senhora se lembra?
R – Quando as meninas passavam perto de mim, eu punha o pé assim pra elas caírem, jogava o caderno no chão. Naquela época pra escrever era com tinteiro, que são aquelas canetas que nós ficávamos com um caroço aqui (risos). Aí, às vezes eu jogava a tinta no chão, porque a gente usava avental branco, né? Aí sujava o avental da menina, era assim.
P/1 – E o que a senhora mais gostava de fazer na escola?
R – Lá na escola a gente entrava, dez horas acho que era, mais ou menos, porque eu entrava às sete e saía a uma hora. A gente tinha o lanche e depois ia pra aula. Não tinha brincadeiras, não tinha nada. Só que quando eu estudava eu não gostava nem de História, nem de Ciências, eu gostava era de Matemática.
P/1 – E a senhora foi crescendo...
R – Crescendo não, eu fiquei desse tamanho (risos).
P/1 – Mas foi ficando mais velha, como é que foram mudando suas atividades, como foi o final da escola?
R – Quando eu saí da escola, como eu já te falei a minha mãe me pôs pra aprender essas coisas, crochê, tricô, ponto cruz. Depois. eu fui aprender a costurar. Eu tinha bastante atividade. Eu fazia aqueles bordados da Ilha da Madeira e depois eu vim aqui pro Brasil, tinha 22 anos. Minha vida lá era essa.
P/1 – E a senhora fazia os crochês e tal para vender?
R – Era.
P/1 – E onde é que vendia?
R – Pros vizinhos (risos).
P/1 – E o que a senhora fazia?
R – Ah, eu fazia pano de prato, roupinha de bebê, blusinha de bebê, blusa pra mim, pros meus irmãos.
P/1 – E como é que foi a notícia da mudança pro Brasil?
R – Naquela época, os meus dois irmãos eram menor e tinha muita guerra. Quando eles serviam o Exército, Tiro de Guerra que fala aqui, aí eles iam pra outros países, pra África, esses lugares, tinha muitos que iam e não voltavam, morriam lá. Aí eu tinha um tio que já morava aqui e ele falou pro meu pai: “Vem pra cá por causa dos meninos”. Aí vieram meu pai, minha mãe e nós quatro.
P/1 – E como é que foi pra senhora, que já era moça?
R – Ah, eu chorava todo dia que queria ir embora. Eu não acostumava aqui. Porque quando eu cheguei aqui em junho, naquela época fazia muito frio, tinha aquela garoazinha que parecia gelo. Aí eu ficava com dor de garganta, dor de ouvido e chorava, eu falava pro meu pai: “Quero ir embora pra minha terra”. Meu pai: “Não, você vai ficar aqui”. Mas agora prefiro aqui do que lá.
P/1 – E conta como foi a viagem, arrumar as coisas?
R – Pra arrumar as coisas quem arrumou foi minha mãe. A viagem foi muito bem, eu passei muito bem no navio. A minha mãe que não passou porque acho que pelo cheiro do barco, mas eu passei muito bem, graças a Deus.
P/1 – E o que a senhora lembra dessa viagem?
R – Ah, eu lembro que eu ficava lá com o paquera (risos). Paquerando um italiano, o navio era italiano. Onde ele ia, eu ia atrás (risos). Mas era brincadeira, né? Aí, às vezes, ele ia lá e falava pra mim italiano e eu não entendia direito, mas se queria alguma coisa pra comer e tudo, aí eu falava que queria, ele me levava sorvete, essas coisas.
P/1 – E como é que foi a chegada?
R – A chegada aqui foi ruim, né? Porque tava uma chuva. Quando nós chegamos no Rio de Janeiro, eu olhei. Desculpa o que eu vou falar, não é que eu seja racista, mas na minha terra nunca tinha visto. Posso falar?
P/1 – Pode.
R – Nunca tinha visto negro, né? Quando eu cheguei no Rio de Janeiro, quando eu vi eu falei: “Meu Deus do céu, pra onde que eu vou?” (risos). Chegamos no Rio de Janeiro, o mar tava muito bravo, tava ruim o tempo e demoramos do Rio de Janeiro a Santos 12 horas de navio. Quando chegamos em Santos só tinha meu tio nos esperando, não tinha carro porque naquele tempo nem todo mundo tinha carro. Nós viemos de Santos até São Paulo de trem, aí chegamos em São Paulo, pegamos outro trem pra ir pra Santo André. Chegamos em Santo André e pegamos o ônibus pra ir pra casa, chegamos em casa era mais de meia-noite.
P/1 – E como foram todas essas viagens? A viagem de trem, depois o navio, ir conhecendo o Brasil.
R – Era novidade porque eu nunca tinha andado de trem, pra mim, tava tudo bom.
P/1 – E o que a senhora se lembra dessa sensação de ir conhecendo, tudo novo?
R – Quando meu pai chegou aqui, ele comprou uma casa, um terreno, só que onde eu morava era só mato, uma casa aqui e outra não sei onde. Acho que era tudo de barro, quando você ia pro centro de Santo André você tinha que levar um paninho pra limpar o sapato porque o ônibus era na rua de cima. Mas a gente vai acostumando, né?
P/1 – E como é que foi essa chegada e esse processo de ir se acostumando à cultura?
R – Nós fomos nos acostumando, aí tinha uma senhora que era brasileira, por acaso ela era morena, ela morava na casa do lado, aí ela começou a pegar amizade com a gente. Ela tinha um menininho pequenininho, aí o menininho ia lá na nossa casa, ela levava a minha mãe no supermercado, diversos lugares, pra explicar. Porque as coisas aqui, lá a gente fala diferente daqui, né? Então ela ia. Porque às vezes minha mãe pedia: “Quero isso aqui”, mas não sabia o que era. Aí ela que ensinou tudo a gente. Ela ficou colega da gente e era a pessoa que a gente tinha mais amizade aqui no Brasil, fora o meu tio. O meu tio era solteiro.
P/1 – E quais foram suas primeiras impressões do Brasil? De Santo André, de São Paulo, o que a senhora sentiu?
R – Eu ficava bem admirada porque lá onde eu morava, na ilha, o povo não é muito comunicativo, cada um estava nas suas casas, né? Só que eu achava aqui esquisito porque as ruas eram muito sujas e lá não, lá você não pode jogar um papel no chão.
P/1 – E como é que foi começar a vida aqui?
R – Eu fiquei oito anos que eu não trabalhava, fazia as coisas, ajudava minha mãe, tudo. Nisso, a minha irmã arrumou um emprego e meu pai e minha mãe não deixavam eu trabalhar porque como eu era pequena eles tinham medo de deixar eu trabalhar sozinha. Aí eu bordava. Tinha um senhor lá em São Paulo que eu vendia lençóis bordados a mão, aí eu bordava. Depois de oito anos, eu entrei aqui na EMS. Eu tinha 30 anos quando eu, vergonha né (risos), comecei a trabalhar. Aí fiquei 27 anos direto aqui. Fui cinco vezes em Portugal. Primeira vez que eu fui fazia 17 anos que eu estava aqui no Brasil. Ganhei uma viagem, não sei se foi de 15 ou de 20 anos, do EMS, eu ganhei uma viagem com acompanhante pra Santa Catarina, nós que escolhemos o lugar pra ir. Depois, quando fiz 25 anos, como eu queria ir pra Portugal eu ganhei a viagem pra Portugal e a viagem pra minha acompanhante, que foi a minha outra sobrinha.
P/1 – E dona Maria, antes do seu trabalho aqui, como é que era todo esse processo de bordar as roupas de cama, o que fazia, que desenhos tinha pra fazer?
R – Os desenhos vinham todos, era só bordar.
P/1 – Só bordar.
R – O dono lá, ele tinha uma loja, acho que era na Rua Oriente, no Brás. E antigamente eles vendiam muito bordado assim, da Ilha da Madeira. Aí nós bordávamos, ela ia lá levar e buscar. Só que quem ficava com o dinheiro era minha mãe (risos).
P/1 – E o que a senhora fazia fora o bordado? A senhora ia andar no centro, passear?
R – Não ia porque na minha época a gente não saía de casa porque o pai não deixava. Quando a gente queria ir num lugar assim, tinha que ir de fugidinha, sem ele saber. Porque quando a gente chegou aqui a minha irmã foi trabalhar, meus irmãos foram trabalhar, quer dizer que eu fiquei sozinha com meu pai e minha mãe. Eles saíam de manhã e chegavam à noite. E eu não tinha muito colega aqui porque eles não entendiam direito o que a gente falava. A gente falava as coisas pra eles e eles ficavam: “Ah? Ah?”, nem parece que fala português (risos). Então, não tinha muita colega, tinha assim umas vizinhas que a gente conversava, mas era eles na casa deles e nós na nossa casa.
P/1 – E a senhora chegou a conhecer a Farmácia Santa Catarina?
R – Eu ia lá direto, imagina só (risos). Como eu já falei, meu pai ficava ruim da garganta e do ouvido, aí ia lá e o Emiliano [Sanchez] receitava, dava uma injeção.
P/1 – E conta pra gente como era essa farmácia?
R – A farmácia? Ela ainda existe hoje, só que não é mais dele, né? A farmácia tinha uns quatro ou cinco funcionários, a irmã dele trabalhava na caixa. Aí tinha até um funcionário que trabalhava aqui que também trabalhava lá. E quando a mãe dele ficou doente eu fiquei uns 15 dias trabalhando na farmácia, eu já trabalhava com ele, né? Aí eu fui pra farmácia pra ficar na caixa porque a irmã dele tinha que olhar a mãe, tudo. Eu fiquei lá uns 15 dias. A farmácia era grandona. A maioria do povo só ia lá naquela farmácia porque naquela época tinha pouca farmácia, e todo mundo já conhecia ele, o Emiliano. Até hoje, se você falar pras pessoas mais antigas: “Você lembra da farmácia do Emiliano?”. Todo mundo lembra.
P/1 – E por que a senhora acha que todo mundo lembra? Por que ela ficou marcada?
R – É porque todo mundo gostava dele, né? Apesar dele ser ruim (risos), todo mundo gostava dele, ele era legal, ele era uma pessoa legal. Só que toda pessoa que fica nervosa solta os cachorros, né?
P/1 – E era grande a farmácia, tinha um monte de produtos?
R – Era enorme. Tinha, todo produto que você quisesse tinha lá. Às vezes ele até, que nem uma vez que eu fiquei doente, tive um tumor no seio, eu fui a tanto médico e ninguém me curou, foi ele que me curou. Só que ele falou: “Não fala pro médico que eu dei isso pra você”. E olha, eu sarei. Aí o funcionário dele que ia lá em casa dar injeção em mim, que tinha que tomar injeção.
P/1 – E como é que foi pra senhora começar a trabalhar?
R – Ah, pra mim foi um, sei lá eu. Eu sempre falava pra minha mãe: “Eu quero trabalhar, eu quero trabalhar”, ela falava: “Você não vai trabalhar” “Mas eu quero”. Aí um dia a irmã dele, que era irmã do Emiliano, que era casada com meu irmão, ela falou assim: “Ah, o Emiliano vai pegar gente lá”, porque era em Santo André antigamente, era pequenininho. Esse daqui também era tão pequenininho. Aí ela perguntou pra mim: “Você quer ir?”. Eu falei: “Quero”. Aí ela falou: “Então amanhã eles vêm te buscar”. Aí eu fui. Eu não tinha nem carteira profissional pra falar a verdade, eu comecei a trabalhar e depois de um mês que eu fiz a carteira profissional. Comecei a trabalhar como Auxiliar de Embalagem, depois já fui pegando as manhas porque até hoje eu sou assim, quando quero uma coisa eu quero, eu nunca falo negativo, eu sempre falo positivo. Eu queria aprender a trabalhar na máquina da pomada e quando as meninas iam ao banheiro eu corria e sentava lá. De vez em quando saíam umas tortas lá, aí elas chegavam lá e brigavam comigo. “Você não pode fazer isso aí, que se você machucar a mão nós é que seremos culpadas porque você não é operadora de máquina”. E eu falava: “Mas eu quero aprender, mas eu quero aprender”. Tanto que eu aprendi e depois fui ser Operadora de Máquina. Aí quando as meninas iam ao banheiro eu já ia pra máquina não ficar parada eu ia nelas, já ia nos comprimidos, ia naquelas que enchiam, não sei se ainda fazem Anecrom. Enchia metiolate. Não era metiolate, era timerozol que falava. Então eu ficava assim. Depois quando eu comecei a ser Operadora de Máquina já ia direto na máquina.
P/1 – E antes da gente falar disso, quando a senhora começou a trabalhar aqui na EMS onde que ela ficava? Ela já ficava aqui?
R – A EMS já. Porque lá era alugado, depois de seis anos que ele trabalhava lá tinha aqui, mas aqui era pequeno, só tinha uma parte que era onde fazia os comprimidos, os líquidos, aí ia tudo pra lá, os caminhões levavam pra lá para envasar lá. Depois de seis anos que eu vim pra cá, aí já estava um pouco maior e foi crescendo, foi crescendo. Quando isso aqui começou a crescer eu já trabalhava aqui.
P/1 – Antes da gente começar a entrevista a senhora contou um pouco que quando inaugurou aqui teve festa.
R – Teve.
P/1 – Conta pra gente como é que foi isso.
R – Então, primeiro teve uma missa lá na igreja, que a dona Helena, que elas frequentavam. Primeiro teve uma missa, depois fizeram uma carreata, veio todo mundo, veio até o padre. Aí chegou aqui. Isso aqui fora agora tem cerca, mas antes era de madeira. E aí teve uma festa, foi o dia inteiro festa, churrasco, tudo
.
P/1 – E como é que era aqui? Então teve a festa, mas aí o que tinha de construção?
R – Só tinha a parte que ele tinha comprado que era uma fábrica de biscoitos, era uma partezinha pequena. Aí aqui em volta era tudo terra. Como eu falei, aí na frente, em vez de ser grade era de madeira, a cerca que falava. Aí foi aumentando, foi aumentando. Depois quando eu vim pra cá eles começaram a fazer esse prédio aqui que não tinha, só tinha aquela parte, não tinha aquele outro prédio lá atrás. Só tinha aquela parte do refeitório e essa parte aqui dentro, que é onde fabricava os comprimidos e essas coisas todas. As máquinas que tinha lá vieram tudo pra cá.
P/1 – E quando a senhora começou a trabalhar como é que foi rer esse expediente, essa rotina de trabalho, levantar cedo...?
R – Eu gostava. Depois que eu comecei a trabalhar eu adorava porque eu saía de casa, porque ficava em casa, né? Quando eu trabalhava em Santo André eu levantava às seis horas da manhã, saía de casa às seis e meia, eu ia a pé, que pra ir de ônibus tinha que pegar duas conduções, era contra mão e naquela época não tinha vale transporte. Com a marmita aqui do lado, mas no primeiro ano eu usava lanche porque tinha vergonha de comer de marmita (risos). Aí eu ia e voltava a pé. A gente trabalhava das sete da manhã até às cinco e meia. E das cinco e meia até oito horas era hora extra porque tinha muito serviço. A maioria das meninas morava tudo quase ali perto, então a gente vinha tudo a pé. Fazia uma bagunça, apertava a campainha das casas dos vizinhos (risos). Nós éramos tudo que nem moleque, já era moço, mas tudo moleque. E era muito bom.
P/1 – Conta as suas primeiras atividades. A senhora já comentou, mas como é que foi começar mesmo?
R – Quando eu comecei os bancos lá eram muito altos, mas naquela época eu tinha as pernas boas, então eu subia no banco que era uma rapidez. Era assim, quando a gente chegava já tinha que pegar o banco porque não tinha banco pra todo mundo. Tinha mais ou menos umas 50 pessoas lá. Então a gente sentava, quando a gente contava essas coisas pra essas meninas, que elas têm tudo agora na moleza, elas achavam que era mentira, né? Aí a gente pegava aquelas barricas que já tinha acabado a matéria-prima e sentava. Eu comecei a montar as caixinhas. Nos primeiros dias quando chegava em casa eu pensava: “Acho que não vou mais trabalhar”. Isso aqui saía sangue, porque conforme a gente fazia assim, enquanto não acostuma, aquilo batia aqui e sangrava, eu vivia com os dedos amarrados. Mas depois quando acostumei, nossa, não queria mais saber de ficar em casa.
P/1 – E quantas caixinhas a senhora montava por dia? Eram muitas?
R – Ah, eram muitas. Às vezes a gente embalava, que nem pomada, às vezes embalava 25 mil, mas não era só eu. Era assim, ficavam três meninas em cima montando as caixinhas, depois ia descendo as esteiras pras meninas irem pegando e embalando.
P/1 – E o que a senhora fazia, montava caixinha ou pegava e punha dentro?
R – No começo nós tínhamos que montar a caixinha, depois que a gente já tinha prática nas caixinhas a gente começava a embalar. E também tinha assim, quando tinha pouco serviço, o Emiliano não gostava de mandar as pessoas embora, né? Aí a máquina que era de dobrar bula, em vez de ser a máquina, tem uma máquina velha lá, a gente que dobrava tudo na mão. A gente ficava o dia inteiro dobrando aquela bula. E tinha que ficar quietinha, não podia conversar, mas quando o chefe saía nós cantávamos um pouco (risos), contava umas piadas (risos). O Carlos [Sanchez] sabe tudo disso aí. Eu conheço o Carlinhos desde os três anos.
P/1 – Então a senhora viu ele crescendo.
R – Vi.
P/1 – Conta pra gente, dona Maria, como eram essas embalagens? A senhora se lembra do desenho, era embalagem do quê?
R – Tinha um produto que se chamava C Cálcio, que era aqueles envelopes que agora é que nem Energil, agora é tudo nos tubinhos, mas era naquele envelope de alumínio. Aí a gente tinha que ver se não tinha reforma, reforma é quando está quebrado, se o envelope está aberto. Tinha caixinha que ia dez embalagens, tinha caixa que ia 20, então na caixinha já estava escrito e as caixinhas já vinham tudo carimbadas, com preço. Que antigamente vinha o preço e a data de validade da caixinha. Era isso que a gente fazia. Fazia pomada, fazia vários comprimidos, fazia comprimido pra tudo, né?
P/1 – E a senhora se lembra da cor das caixinhas, como é que elas eram?
R – A caixinha do C Cálcio era branca com laranja, amarelo e escrito com a letra C Cálcio. Tinha uma pomada chamada Frixopel, a caixinha não era bem vermelha, é um bordô assim, mais ou menos. Tinha, deixa eu ver se eu lembro, são tantos anos... Neotricin, a caixinha era verde e branca. Tinha uma pomadinha oftalmo que também era verde, era uma que a caixinha era verde e branca e uma que era azul, conforme o produto. E tinha o Alecrom, que é que nem o Epocler agora, tinha o Alecrom que era uma caixinha verde, branca e no meio tinha dois frasquinhos daquele lá e a bula.
P/1 – E qual era o trabalho mais difícil de fazer? Montar caixinha, embalar ou ficar dobrando a bula?
R – Dobrar a bula era ruim porque a hora não passava de jeito nenhum. Embalado a gente ó. Quando eu vim pra cá nós fazíamos uma pomada que chamava Tridimicin. A caixinha era branca com as listras amarelas e uma vermelinha. Tinha dias quando vendia muito eu enchia 36 mil bisnagas, enchia e embalava, por dia, saía da minha sala.
P/1 – E como é que foi a mudança pra cá? Ter um trajeto mais longo pra vir trabalhar...
R – Foi. Porque quando veio pra cá veio uma turma só, eles escolheram as pessoas que eram pra vir, as outras não quiseram vir porque era longe, né? Porque naquela época a gente tinha que pegar o ônibus em Santo André, eram aqueles ônibus lotados, naquela época tinha greve pra tudo quanto era lado, enchente. Teve umas que vieram, mas falaram que não queriam ficar mais. Eu acho que de lá quem ficou aqui fui eu, a Teresa, a Olinda, o Osvaldo. A Olinda e o Osvaldo já morreram. Vieram umas 15 pra cá só. E aí a gente sentiu porque lá a gente não pagava ônibus. A gente vinha e tinha que pagar, não tinha vale-transporte e a gente que pagava com nosso dinheiro o ônibus. Pra gente economizar, a gente ia daqui a Santo André de ônibus, e de Santo André a nossa casa nós íamos a pé, gastávamos mais de meia hora andando. Trabalhava o dia inteiro e ainda ia a pé. Isso que era coragem (risos). Também nós éramos magrinhas naquela época. E trazia marmita. Depois foi quando começou, foi melhorando, crescendo. Depois, quando o pai do Carlos faleceu, o Carlos tinha acho que 25 anos, aí a turma lá nos banheiros ficava falando assim: “Vamos pedir pra mandar embora porque isso aqui vai à falência”. As mulheres, sempre tem umas pra dar pra trás, né? Aí depois o Carlinhos começou a dar vale-transporte pra nós, foi quando começou a vir o trolebus. Ele dava o vale-transporte pro trólebus e outro pra ir pra nossa casa. Aí já tinha restaurante, cesta básica, tinha tudo isso aí. Porque quando eu comecei, acho que nós ficamos mais ou menos uns 15 anos nessa vida, nós que tínhamos que nos virar sozinhas. E quando eu trabalhava em Santo André podia estar sol, podia estar chuva, nós íamos a pé e eu nunca perdi uma hora. A gente tinha que estar dentro da seção cinco minutos antes. O meu cartão, o chefe que já deixava tudo pronto pra mandar pra cá. Ele via o cartão das outras meninas pelo meu cartão porque o meu cartão nunca tinha falta, nunca tinha atraso de chegada, de entrada, nunca, nunca. E eu ia e voltava a pé. E o Carlinhos sabe onde que eu morava, ele sabe que era longe (risos).
P/1 – E conta pra gente, dona Maria, como é que foi começar a operar as máquinas, qual era a responsabilidade, a emoção?
R – As máquinas foi como eu falei, eu metia as caras, não queria nem saber. Uma vez eu trabalhava numa máquina que enchia os vidrinhos, era de vidro, né? Aí a tia do Carlinhos, ela era nossa chefe, ela entrou na nossa sala, viu nós conversando, falou assim pra gente: “Vocês estão conversando e a máquina tá parada! Liga essa máquina!”. E as tampinhas eram muito ruins porque era tudo manual, não tinha nada que nem agora, tudo moderno. Era tudo manual, as tampinhas eram ruins, eu fui fazer assim na tampinha, levei cinco pontos na mão, cortei a mão (risos). Aí quando voltei: “Ai você não vai ficar mais na máquina”. Eu falei: “Vou. Não é porque aconteceu uma vez que eu não vou ficar mais na máquina”. Eu fiquei, não tinha medo, eu não tinha medo de enfrentar as máquinas.
P/1 – Como que eram as máquinas? Eram grandes, barulhentas?
R – Não. Na máquina, a gente sentava naqueles bancos grandes, naquela época eu falei, eu subia o banco numa tranquilidade porque eu era magrinha, não tinha problema nas pernas. Aí a gente ficava no banco lá, com a bacia com água pra por as borrachinhas pra ficar molinhas, que eram as tampinhas. E a máquina ia rodando, uma punha os vidros, uma ficava no controle da máquina pra encher o líquido e duas ficavam pra colocar as tampinhas porque uma só não vencia, né?
P/1 – E aí ia revezando, cada vez uma fazia uma coisa?
R – É, revezava senão a gente ficava com os dedos doendo demais. E na máquina da pomada era assim. Tinha a caixa que vem as bisnagas e a gente punha a caixa desse lado, com as bisnagas vazias. A máquina ia rodando assim. Com essa mão nós pegávamos a bisnaga vazia, com essa a gente pegava a vazia e punha na máquina. E aí quando a máquina já ia passando com a bisnaga cheia, nós pegávamos com essa mão e púnhamos dentro da caixa. A gente fazia três coisas com as duas mãos (risos). Essa era pra pegar vazia, quem era canhoto ficava com essa, mas as máquinas eram ruins pra quem era canhoto porque a máquina rodava de assim. Aí a gente punha com essa e com essa aqui já tirava cheia e já colocava dentro da caixinha. E aí todo produto quando mudava o outro produto tinha que lavar o funil, que era onde colocava as pomadas, lavava tudo. Primeiro lavava com sabão, detergente, e depois lavava com álcool. E a gente tinha que usar luva, tinha que usar negócio nos ouvidos, usava touca. No começo era avental, depois já era com o uniforme completo. Quando mudava de produto, tinha que fazer toda essa manutenção na máquina. Aí tinha um aparelhinho que a gente punha a data e a validade, a gente tirava da máquina e a gente mesmo que punha. Quando eu comecei a trabalhar, eu era operadora da máquina, nunca chamavam o mecânico, que eu mesmo que arrumava. Aí até o meu chefe falava assim: “Eu nunca vi você chamar o mecânico”. Eu falei: “Eu mesma arrumo”. De vez em quando levava umas cacetadas assim no dedo, né? Mas não tava nem aí (risos).
P/1 – E que tipo de problema que dava na máquina? Que coisas você costumava consertar?
R – Às vezes, por exemplo, se a gente não conseguisse por a bisnaga dentro do copinho, que eram uns copinhos, se a gente fosse arrancar com rapidez ela travava, então ela soltava a mola e não funcionava, tinha que por a mola de novo. Eu conhecia tudo quanto era peça da máquina. Aquelas peças que os mecânicos usam, a gente tinha uma caixa com isso. Eu conhecia aquilo tudo.
P/1 – E como é que foi evoluindo a sua função? A senhora depois passou...
R – Primeiro, eu fui Auxiliar de Embalagem, depois, eu trabalhei uns três meses no Almoxarifado, fazia o balanço, todo mês tinha que fazer balanço. Fazia as fichas. Os produtos que a gente tinha que pegar pra fazer as embalagens, eu tinha que marcar na ficha a quantidade que saía, quanto que saía, quanto que entrava. Aí depois, eu fui Operadora de Máquinas. Quando eu vim pra cá, eu ainda trabalhei uns quatro ou cinco anos como Operadora de Máquina. Isso quando o Emiliano ainda era vivo, aí comecei a ser Líder. De Líder passei a Supervisora, aí terminei. Quando me aposentei com 55 anos, trabalhei um ano e sete meses. E agora estou em casa.
P/1 – E quais eram as máquinas mais difíceis de se trabalhar? Tinha uma que era mais complicada?
R – As dos comprimidos eram ruins porque elas eram muito altas e eu não alcançava. Então, quando as meninas queriam ir no banheiro, elas falavam: “Lídia, vem aqui!”, aí elas enchiam a máquina com os comprimidos e eu ficava, era só pra ficar olhando se não dava problema, se o alumínio não enroscava. As máquinas de comprimido eu não ficava muito porque elas eram muito altas, aí pra mim não dava porque eu tinha que sentar no banco, eu era baixinha e meu pé pegava lá na correia.
P/1 – E quais eram as suas responsabilidades como Supervisora? Como é que foi pra senhora começar a ter essa outra função, a olhar e acompanhar?
R – Primeiro, eu era Líder, né? Mas eu era Operadora de Máquina, só que eles puseram uma menina de Líder lá, ela não sabia fazer conta! Aí quando eles vinham, porque era assim, na época punha as caixinhas tudo assim e quando os rapazes vinham buscar pra por no caminhão pra ir pro Almoxarifado, tinha que contar a quantidade porque a gente enchia, tinha os produtos e tinha as caixas de papelão. Aí a gente tinha que marcar quanto que tinha dentro da caixa, o nome do remédio, tudo isso aí. E a menina não sabia fazer a conta, então ela vinha e falava pra mim: “Lídia, vem fazer a conta”. Eu era operadora e falava: “Você é a Líder e eu que tenho que fazer as contas? Você que tem que fazer” “Mas eu não sei, nunca dá certo. Toda vez que o rapaz vem buscar fala que tá errado”. Aí tinha um rapaz, que é o Osvaldo, o Carlinhos conhece muito bem, ele era chefe dos Líquidos que fazia xarope, essas coisas. Aí que falou assim, pro Emiliano: “Por que você não põe a Lídia como Supervisora? Puseram uma lá e ela não sabe fazer as contas, a Lídia tem que parar a máquina e fazer as contas pros rapazes levarem”. Aí eles me puseram como Supervisora. Tudo o que saía da sala tinha o bloco pra você marcar a quantidade, quanto que ia, quantos pallets tinha que sair porque já era pallet, punha no pallet direitinho pra ir dentro do caminhão. Por exemplo, se hoje ia ser um produto, um dia antes eu já dava a ficha, o que ia fazer, a quantidade. Aí eu já tinha que pedir pro Almoxarifado a quantidade dos cartuchos, da bula, tudo isso aí.
P/1 – E como é que foi pra senhora receber mais essa responsabilidade?
R – Eu fazia as contas tudo lá! Porque quando a gente é Supervisora é pior porque não podia conversar, se saía um pouco quando entrava as meninas tavam que parecia uma festa lá dentro. E a sala que eu trabalhava era tudo de vidro, até quando o Emiliano passava eu via. Elas não viam ele e ele via a gente, elas conversando. E ele me chamava porque quando a gente é Supervisor eles não brigam com as meninas, eles brigam com a gente. Aí me chamava aqui na sala pra falar, porque não sei o quê, ‘porque as meninas conversam’, ‘como você vai saber se elas estão embalando direito’, e que não sei o quê. Não podia mastigar chiclete, elas mastigavam e quando me viam elas escondiam o chiclete embaixo da esteira, era assim (risos). Você tinha que ficar de olho em tudo.
P/1 – E como era a relação com o seu Emiliano?
R – A relação com ele era assim, ele me conhecia, às vezes, ele chegava e falava bom dia, perguntava pela minha mãe, tudo. Quando ele tava bonzinho ele era bonzinho, mas quando tava bravo, sai de perto (risos). Sai de perto porque ele brigava mesmo.
P/1 – E como é que foi pra senhora a mudança, como foi o processo da doença do seu Emiliano e depois o seu Carlos assumir?
R – O seu Emiliano ficou doente, por incrível que pareça, ele morreu, a minha mãe morreu em dezembro, vai fazer agora 27 anos em dezembro, e ele já tava doente. Aí ele foi lá onde eu trabalhava, ele encostou na parede e falou assim: “Lídia, meus pêsames. Bola pra frente”. Daí a seis meses, ele morreu. Ele já estava muito doente. Depois o Carlinhos entrou. O Carlinhos já tinha prática, né, e também tinha muitas coisas que as pessoas ajudavam ele, tudo, os chefes todos, seu Augusto [Viseu], tudo isso aí. E aí foi crescendo cada vez mais. Até quando eu saí daqui, a gente saiu daqui na sexta-feira, na terça-feira nós fomos lá em Hortolândia. Nós fomos pra Hortolândia de carro. O carro foi nos buscar em casa e a gente foi. E pra cá a gente veio num helicóptero do Carlinhos, que eu fiquei enchendo ele: “Carlinhos, eu quero andar de helicóptero!!!”. Ele falou: “O piloto vai pra Santo André, então ele leva vocês”. Aí viemos eu e a minha outra colega que vai vir agora de tarde e uma outra lá. Não sei se tem, eu não lembro direito, eu acho que ele morava na outra casa. A gente também fez uma entrevista lá. Até a gente levou foto que a gente tinha de lá, que agora não pode tirar, mas antigamente a gente tirava escondidinho assim, as meninas lá nas máquinas. E a gente fez um comentário lá também, fui eu, minha colega. E essa minha colega que vai vir aqui de tarde, eu conheci ela, ela já trabalhava lá e até hoje nós somos colegas, tem 40 anos. A gente não se vê muito assim, mas a gente se liga pelo telefone, a gente fica às vezes meia hora, uma hora no telefone batendo papo, lembrando daqueles tempos que nós vínhamos aqui. Pra você ver como nós éramos. A gente saía daqui, a gente trabalhava o dia inteiro, pegava o ônibus, ia pra Santo André ainda dar umas voltinhas (risos). Ia nas lojas. A mãe da Teresa, que vai vir de tarde, falava assim: “Mas o que a Lídia e a Teresa vão todo dia no centro de Santo André”. Porque nós tínhamos hora marcada pra chegar em casa, oito horas nós tínhamos que estar em casa (risos).
P/1 – E dona Maria, conta pra gente como é que foi conhecer Hortolândia? Ver tudo aquilo que virou a EMS.
R – Quando eu conheci Hortolândia, ela era pequenininha, né? Teve uma vez que fizeram a festa de Natal lá e os funcionários daqui foram tudo pra lá, nós fomos pra lá, passamos o dia inteiro. Tinha a casa do Emiliano e tinha onde estava já fazendo o prédio lá, só que não tava muito grande. Depois que mudou umas partes daqui que foram pra lá, agora está enorme. Já fui lá duas vezes. Mas não conheci tudo porque é muito grande.
P/1 – E como é que foi quando alguns funcionários saíram daqui pra ir pra lá?
R – Eles queriam que eu fosse pra lá, mas eu falei: “Ah não, é muito longe”.
P/1 – E como é que ficou aqui?
R – Aqui ainda ficou bastante gente. Porque lá foi, quando eu saí daqui ainda tinha a Seção de Comprimidos, tinha a Seção de Líquidos. A primeira que foi pra lá foi a Seção de Pomadas, a seção que eu trabalhava. Depois eu saí e foi mudando, foi mudando, nem sei o que tem ainda aqui dentro. Mas a gente era assim, as pessoas daqui, as meninas eram todas muito amigas, na hora do almoço nós conversávamos. No fim de ano, teve uma vez que teve festa aqui também e nós fizemos amigo secreto, fazia tudo. No aniversário as meninas faziam festa surpresa pra gente, era assim.
P/1 – E o que significam 26 anos de trabalho? O que significa pra senhora todo esse tempo de dedicação à empresa?
R – Ah, significa muito porque eu morava na casa dos meus pais, aí eu juntei um dinheiro e cinco anos atrás eu comprei uma casa. O Carlinhos me dá o convênio, me dá cesta básica, pra mim e pra Teresa porque nós fomos as primeiras funcionárias, nós pintávamos os bancos que nós sentávamos. Como eu já falei, quando não tinha serviço ele não gostava de mandar embora, então a gente tinha que fazer o que tinha pra fazer, pintava. Naquele tempo a parede não era azulejo, a gente pintava as paredes, os bancos, lavava o chão, tudo. Banheiro, o pátio, a calçada, que até um dia eu estava varrendo a calçada e falaram assim pra mim: “Tão pequenininha já é margarida” (risos). A gente fazia de tudo, tudo o que tinha pra fazer a gente fazia e nunca reclamava.
P/1 – E como é que foi pra senhora, depois desses anos todos de trabalho aposentar, para de trabalhar?
R – Foi muito difícil, ainda fiquei uns quatro meses. Eu levantava às quatro e meia da manhã. Levantava, arrumava minhas coisas, tudo, pegava o ônibus na rua da minha casa cinco e vinte da manhã, pra entrar às sete horas aqui. Seis horas, seis, seis e quinze já estava aqui na portaria. Aí foi muito difícil, os primeiros meses, nossa, chegava aquela hora eu acordava, sentia uma falta, era muito ruim. Mas aí eu tinha umas sobrinhas pequenininhas, elas iam lá pra minha casa e elas me divertiam. Mas os primeiros meses foram muito ruins pra ficar em casa porque quem ficou 27 anos nessa vida, pra cá e pra lá, quando sai de repente. Mas foi muito bom, aí me aposentei tudo. Graças a Deus o dinheiro que eu ganho da minha aposentadoria dá para eu viver, eu sou sozinha, não pago aluguel, nada.
P/1 – E o que a senhora gosta de fazer durante o seu dia?
R – Agora não faço nada, né? (risos). Eu levanto oito e meia, se estiver frio é às nove horas. Aí eu tomo meu café, se tiver roupa pra lavar eu lavo porque eu sujo muito a blusa. Aí vou lá no portão olhar a turma passar. A rua que eu moro é muito calma, então às vezes eu falo pra minha irmã: “Hoje aqui não vi ninguém” (risos). Aí depois eu entro, faço o almoço, almoço, limpo a cozinha. Faço caça-palavras, faço crochê nos paninhos de prato pra dar pras sobrinhas que são casadas. Quando não to com vontade de fazer crochê, eu vou pro sofá e durmo. Durmo umas duas horas, levanto, faço um café. Vou lá fora de novo molhar minhas flores, minhas plantinhas. Ah, e assisto a novela das seis e depois quando acaba a novela vou tomar banho, aí eu não janto que só como lanche à noite, sete e meia, quinze pras oito, porque tenho que tomar um comprimido oito horas então eu já aproveito pra estar com a barriga cheia. Eu como umas bisnaguinhas integral, um café com leite, uma fruta. Aí vou assistir televisão e vou dormir onze e meia, meia-noite. E assim é a minha vida.
P/1 – E a senhora não gosta de sair pra passear?
R – Gostar eu gosto, mas a minha sobrinha... Eu tenho duas sobrinhas que são filhas da minha irmã, elas que olham mais eu. Tem duas que moram em Hortolândia, então elas moram longe. Tem uma que é professora e também trabalha o dia inteiro. Quando às vezes, de sábado, elas ligam na minha casa: “Tia, quer ir no shopping?”, eu falo: “Quero” “Então vamos” “Mas vocês vão levar a tia?” “Tia, vamos”. Aí eu vou pro shopping. Quando eu já to cansada de andar no shopping eu falo pra elas: “Eu vou sentar aqui e vocês vão fazer o que vocês querem, depois vocês vêm aqui me pegar”. E assim. De domingo, a minha outra sobrinha, que elas são irmãs, ela vai na feira pra mim e depois ela já me leva pra casa da mãe dela, que é a casa da minha irmã. Essa minha sobrinha é solteira. Aí às vezes ela fala: “Tia, vamos no Walmart?”, lá vou eu. Sábado eu fui fazer compras com uma, no domingo fui com outra (risos). Fomos na loja que ela tinha que comprar uns presentinhos pra ela, aí a gente foi. E a minha vida é essa. Só que é assim, eu entro na garagem dentro do carro, saio da garagem dentro do carro. Eu falo, não vejo ninguém. Por isso que elas me levam no shopping, nesses lugares. Às vezes a casada vai jantar fora: “Tia, quer ir junto conosco?” “Vou”. Aí eu vou porque senão a minha vida é essa. Onde eu moro é uma casa, mas é como um apartamento, se você não abrir a porta da sala você não vê nada, só vê o corredor que vai pra lavanderia e o céu, porque eu moro perto da Petroquímica. E a Petroquímica faz muito barulho no ouvido. É assim.
P/1 – E as suas sobrinhas que moram em Hortolândia também trabalham na EMS?
R – Uma trabalha. E uma outra trabalha lá no fórum. Mas essas duas são casadas já, tem uma que já tem até neto. A minha sobrinha mais velha vai fazer 47 anos. E tem uma que trabalha na EMS. Ela já trabalhou aqui, depois mudaram pra lá e ela trabalha lá.
P/1 – E o que foi uma coisa, ou algumas coisas que a senhora aprendeu durante os anos de trabalho na EMS?
R – Ah, eu aprendi assim porque como eu falei eu vim praqui com 22 anos, eu ficava só dentro de casa, não ia pra lugar nenhum, só ia na igreja de domingo. A minha vida era essa. Quando eu saí, eu conhecia tudo. Se me perguntasse o nome das ruas eu não sabia, mas até hoje eu sei, é que não dá para eu ir, mas sabia ir nos lugares todos. Eu ia no médico sozinha, eu ia no oftalmologista sozinha, fazia tudo sozinha, mas agora aconteceu da minha perna ficar desse jeito porque eu pus prótese aqui no quadril, depois de três anos que eu tinha posto prótese eu fui entrar na porta da cozinha tem aquele degrauzinho, virei o pé e quebrou o tendão do pé e eu tive que operar o tendão. Eu fiquei três meses com o pé engessado e a minha irmã ficou os três meses na minha casa porque eu não podia fazer nada, até pra tomar banho tinha que ser ela porque não podia molhar. Em três anos, fiz quatro cirurgias, fiz da vista que eu usava o grau muito forte, aí eu operei o pé agora. Estou com esse quadril que o médico quer por a prótese, mas eu não to com coragem porque eu sofri muito quando pus esse. Porque coloquei em novembro tava muito calor, aí as minhas costas ficaram cheias de ferida porque só podia ficar de barriga pra cima, tinha que fazer tudo na cama, quando ia tomar banho tinha que ter uma cadeira daquelas de banho, tinha que me levar pro banheiro, a minha irmã que dava banho. Vinha uma vizinha fazer o curativo, eu sofri muito. O médico, tem um mês que falou: “Vamos por a prótese nesse quadril”. Eu falei: “Não, deixa ele aí, dói, mas não tenho coragem”. E a gente escuta tanta coisa que as pessoas vão pro hospital e morrem, eu não quero morrer ainda, não (risos). Mesmo de bengala ainda quero viver bastante (risos).
P/1 – E dona Maria, conta pra gente o que significou, ou qual foi a importância do seu trabalho na EMS? Qual a importância que a senhora acha que foi a sua dedicação pra EMS?
R – Pra mim foi muito bom porque você pensa bem, se eu nunca trabalhasse, como ia ser minha vida? Meus pais morreram, meus irmãos têm as suas casas, mas não são bem de vida. Eu ia ter que morar na casa de um, na casa de outro, ia ser jogada. Assim eu tenho minha vida, tenho minha casa. Eu não tenho carro porque não dirijo, porque se conseguisse dirigir. Naquela época, eu falava pro meu pai: “Pai, eu queria aprender a dirigir”, ele falava: “Ah, você não pode”. Aí tinha um vizinho que morava em frente da minha casa que era paralítico da cintura pra baixo e ele dirigia. Eu falava: “Como é que ele consegue e eu não?”. Tinha que adaptar o carro. Tem tanta gente mais baixinha do que eu dirigindo. Depois a minha vista também era muito fraca, senão eu tinha um carro. Se eu tivesse um carro, ai que beleza. Eu ia rodar (risos). Mas a minha vida tá tranquila agora, graças a Deus, fora o meu problema da perna tá tudo bem.
P/1 – E qual que a senhora acha que foi a sua contribuição pra EMS?
R – Ah, a gente ajudou bastante coisa porque a gente via muita coisa que não devia fazer, mas aí a gente ajudava. A gente fazia pra não dar nada errado, pras meninas não fazerem embalagem, porque tem muita gente que gosta de sacanear a Supervisora, então em vez dela por um produto ela põe outro. A gente tem que ver tudo, mas foi muito bom, graças a Deus, nunca aconteceu isso comigo. Nem comigo e nem com as outras.
P/1 – E como era a sua relação com as outras colegas?
R – A gente sempre tem que dar uma bronca nas meninas porque você não pode conversar na hora do serviço. Aí eu chegava, o meu chefe que era o seu Augusto me chamava: “Ah, eu passei lá e as meninas estavam conversando”. Eu falava pra elas, como ele era português, então: “Ô seu Augusto, o senhor quer que eu faça o quê? Que eu tampe a boca das meninas?”. Aí eu falava pra ele: “E tem que ir no banheiro, às vezes tem que pedir as coisas, então tem que sair de lá de dentro”. Mas quando eu saí elas falaram que eu era ruim: “A Lídia é ruim”, elas não falavam pra mim, falavam pras outras. “A Lídia é chata porque a Lídia é ruim, ela briga com a gente”. Eu falava: “Eu brigo com vocês porque eles brigam comigo. Vocês que fazem a coisa errada e eu que tomo?”. Quando eu saí, daí uns 15 dias elas ligaram na minha casa: “Ah Lídia, nós estamos com saudades de você”. Eu falei: “É, mas vocês falavam que eu era ruim e agora estão com saudades de mim?” (risos). Mas eu conversava com as meninas todas, de todas as seções. Nós éramos amigas, conversávamos assim. Às vezes eu fazia aniversário e elas iam na minha casa. Ainda tem uma menina que trabalha aqui que eu era supervisora dela, acho que ela tem uns 20 anos que trabalha aqui, ela ainda trabalha aqui.
P/1 – E como é ir pra senhora ir na farmácia e ver aquele tanto de produto da EMS?
R – Agora eu não vou mais naquela farmácia porque é longe, não é que é longe, indo de carro é perto, mas eu compro na Cooperativa porque é mais barato. Os médicos acham que eu sou rica. O remédio da pressão é 105 reais. O remédio que é feito aqui no EMS é 46 reais, é tudo assim. Então eu vou lá porque lá tem o desconto do aposentado. Não dá pra ir na farmácia porque é muito caro.
P/1 – E qual é a importância desses produtos que a EMS fabrica pras pessoas?
R – Bastante coisa, eu mesma tomo bastante comprimido daqui da EMS. Às vezes me dão outro, eu falo: “Não quero esse não, eu quero o EMS”. Aí tinha uns farmacêuticos que me conhecem: “Ah, só porque você trabalhou na EMS você quer desse?” “Não, é porque esse daqui eu sei que é bom, né?” (risos). Mas os remédios que eu tomo é mais comprimido pra pressão, pra diabetes e colesterol, só isso que eu tomo.
P/1 – E qual é o seu sonho?
R – Meu sonho é viver bastante anos. Queria morrer com 80 anos, mas se for mais pode ser.
P/1 – E qual que a senhora acha que é a importância da EMS em fazer um projeto como esse de registrar a trajetória de colaboradores pra comemorar os 50 anos?
R – Ah, eu acho muito bom porque assim eles veem como que começou. Que nem o Carlinhos era moleque ainda, ele ia lá quando era em Santo André, quando veio aqui também já era mocinho. É assim, as pessoas que não conhecem veem como era. Porque agora elas têm tudo na mão, agora tem até ônibus pra levar elas, antes não tinha nada disso aí. Quer dizer que a gente que construiu isso aqui. A gente fazia de tudo e a gente nunca reclamava, nunca era de falar: “Ah, não quero fazer isso aqui”. Que nem lavar banheiro, até banheiro eu já lavei e nunca falei: “Ah, eu não vou lavar banheiro porque não sou faxineira”. Faxineira é uma pessoa igual a mim. Então a gente não reclamava, antigamente as coisas eram mais difíceis, não é como agora que é tudo moderno, todas essas coisas modernas. Quando era lá em Santo André, carregava os caminhões, só tinha o motorista, não tinha ajudante. Nós pegávamos aquelas caixas. Ó a minha bengala (risos), nós pegávamos a caixa, púnhamos aqui no ombro e ia carregando, ia três, quatro até atingir o caminhão. Quando os motoristas chegavam lá falavam: “Ô, vocês não vão vir ajudar?”. A gente ajudava os motoristas até carregar caminhão. Era muito bom assim. A gente era como o ditado que fala: “Nós éramos pobres, mas nós éramos felizes”. Porque acho que o que é bom pra gente é a felicidade, né? Não adianta você ter tudo o que você quer se você não é feliz, não é verdade? Nós éramos felizes. Eu chorei que nem uma danada quando eu saí daqui, mas agora já acostumei.
P/1 – E a senhora chegou a comentar das viagens que a senhora voltou a Portugal. Como é que foi essa volta?
R – A primeira vez que eu fui a Portugal tinha 17 anos que eu morava aqui. Quando eu cheguei lá eu já achei meio esquisito, né, porque já estava acostumada com a bagunça aqui. Porque lá é assim, você está na calçada, se você quer atravessar a rua, você põe o pé em cima da... Lá eles falam, como é? Passarela, é a faixa. Se eu ponho o pé na faixa eles param o carro pra você passar. Eu já estava acostumada aqui nessa bagunça, né, ninguém para. Aí as minhas primas falavam: “Vai, atravessa!”, eu falava, “Não!” “Atravessa, você não tá vendo que tá tudo parado?”. Eu falei: “Vai lá no Brasil que você vai atravessar pra ver”. Depois de quatro anos, eu fui lá de novo. Deixa eu ver, as duas primeiras vezes eu fui sozinha, depois a terceira vez eu fui, que até esse meu tio também foi, nós fomos em seis, fui eu, a minha irmã, a minha sobrinha, meu tio, a mulher dele e o neto. Porque nós temos parentes lá. E todo mundo tem casa, as casas são grandes, então podia ir de bastante (risos). E a quarta vez, eu fui com a minha sobrinha, foi quando eu ganhei a passagem. Como eu queria ir pra Portugal, eu já tinha até comprado a passagem, né? Eu falei pro Carlos, porque tinha uma viagem internacional. Eu falei: “Ah Carlos, eu vou pra Portugal, você paga a minha passagem e a passagem da minha sobrinha?”, que era um acompanhante. Aí ele pagou. E a quinta vez, eu fui com a minha irmã. Eu ia de quatro em quatro anos e depois a última vez acho que já tinha três anos que tava lá. Agora já não vou lá tem 13 anos. Eu fui lá no ano 2000, que a turma falava que o mundo ia acabar e eu falei: “Se acabar vai acabar aqui primeiro do que lá” (risos), que as horas são diferentes lá. Elas sempre falam: “Ah, vem aqui, vem aqui”, não tenho coragem. Dez horas de avião com esse problema na perna não dá certo.
P/1 – E como é que foi voltar e rever a família, rever a terra?
R – O primeiro ano que fui eu não gostei muito de ir. Não acostumava com o leite de lá, lá eles usam muito azeite, então adivinha o que aconteceu (risos), haja banheiro. E pra mim, até as minhas primas falavam pra mim assim. A primeira vez que eu fui ainda tinha uma tia, mas agora só tenho primas. Elas falavam assim pra mim: “Você não está gostando daqui da tua terra?”. Eu falava: “Ah, não”, eu queria ir embora. Deu os 15 dias, se me desse a louca, eu já tava quase indo na agência e falar: “Vou embora”. Mas aí fui a segunda vez e quando fui na terceira vez já tinha bastante gente que morava aqui, então eu já tava acostumada, a gente fazia uma bagunça lá. Aí a turma falava assim, porque a minha sobrinha é brasileira, a mulher do meu tio também é brasileira e o neto, então vê que a fala é diferente, né? “Esses daí são brasileiros”. Eu falei: “São mesmo, por quê?” (risos). Porque lá é cheio de frescura, né?
P/1 – Então dona Maria Lídia, eu acho que com isso a gente encerra a nossa entrevista e gostaria de agradecer em nome do Grupo EMS e também do Museu da Pessoa.
R – Tá bom. Eu espero que se o Carlinho vir essa entrevista, que eu desejo um Feliz Natal para ele e um ano novo, que acho que vai ser só em janeiro, já passou o ano novo.
P/1 – Se a senhora quiser deixar um recado pra esses 50 anos de comemoração.
R – Carlos, eu espero que você consiga viver muitos anos e que dobre de 50 pra 100 anos. Que você continue muito feliz com seus filhos, sua mulher. E a mãe dele, que é a dona Ana que é viva ainda, e que continuem sempre assim. E que ele coloque os filhos dele, porque acho que tem um filho que já tem 15 anos, que ele ensine os filhos dele pra continuar, pra EMS nunca acabar, pra continuar cada vez maior e mais forte.
P/1 – Tá certo dona Maria Lídia, então muito obrigada pela sua entrevista.
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