Projeto: Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro - Banco Pan
Entrevista de Guilherme Gobato
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 12/09/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV994
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Guilherme, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Guilherme Gobato, nasci em 15 de dezembro de 1976, em São Carlos, interior de São Paulo.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Ida Fernandes e José Afrânio Gobato.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Eu os descrevo como um porto seguro. Família. Eu os descrevo como um cais no caos. São muito importantes, ambos, na minha trajetória pessoal e profissional e, embora eles não sejam, atualmente, casados, mantêm uma convivência amigável e isso que importa. A gente, enquanto família, se une pelo afeto e desejo de estarmos juntos.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Sim. Sei como se conheceram. Eu nasci no interior de São Paulo e, num certo momento da minha vida, vim pra São Paulo, capital, pra fazer faculdade. E tenho raízes no interior. Eles moravam, à época, em duas cidades vizinhas, uma à outra: minha mãe em São Carlos e meu pai em Ribeirão Bonito, que é uma pequena cidade ali, na região de São Carlos. E se conheceram no baile, no interior, numa outra cidade, pequena, ali, da região, chamada Dourados, um pouquinho pra cima da minha cidade. E aquela época de bailes, que era entretenimento comum ali da agenda social, com bandas e tal e eu lembro que minha mãe falou, ou meu pai falou que eles se conheceram ali, na escadaria do clube, salvo engano, se olharam, acho que dançaram juntos - muito normal à época – acompanhados e é isso, desde então, depois engataram namoro e, num certo momento da relação deles, há anos, eles se separaram.
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – Naquela...
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Entrevista de Guilherme Gobato
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 12/09/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV994
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Guilherme, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Guilherme Gobato, nasci em 15 de dezembro de 1976, em São Carlos, interior de São Paulo.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Ida Fernandes e José Afrânio Gobato.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Eu os descrevo como um porto seguro. Família. Eu os descrevo como um cais no caos. São muito importantes, ambos, na minha trajetória pessoal e profissional e, embora eles não sejam, atualmente, casados, mantêm uma convivência amigável e isso que importa. A gente, enquanto família, se une pelo afeto e desejo de estarmos juntos.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Sim. Sei como se conheceram. Eu nasci no interior de São Paulo e, num certo momento da minha vida, vim pra São Paulo, capital, pra fazer faculdade. E tenho raízes no interior. Eles moravam, à época, em duas cidades vizinhas, uma à outra: minha mãe em São Carlos e meu pai em Ribeirão Bonito, que é uma pequena cidade ali, na região de São Carlos. E se conheceram no baile, no interior, numa outra cidade, pequena, ali, da região, chamada Dourados, um pouquinho pra cima da minha cidade. E aquela época de bailes, que era entretenimento comum ali da agenda social, com bandas e tal e eu lembro que minha mãe falou, ou meu pai falou que eles se conheceram ali, na escadaria do clube, salvo engano, se olharam, acho que dançaram juntos - muito normal à época – acompanhados e é isso, desde então, depois engataram namoro e, num certo momento da relação deles, há anos, eles se separaram.
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – Naquela época, ou hoje? O meu pai é contador, desde a formação e sempre trabalhou com contabilidade, tem um escritório de contabilidade, que hoje é o negócio da família, sob responsabilidade maior da minha única irmã, mais velha e a minha mãe trabalha também como gestora administrativa desse escritório, já há mais de trinta anos.
P/1 – E como é o nome da sua irmã?
R – A minha irmã é Maria Carolina. Ou Carol.
P/1 – E como é a relação com os seus pais e com a sua irmã?
R – A minha relação com os meus pais e com a minha irmã vai sendo retroalimentada ao longo dos anos, de fatos cruciais que marcaram a nossa formação, núcleo familiar. É um núcleo familiar bem próximo de nós quatro, ainda que meus pais sejam separados, a gente mantém sempre a proximidade de encontros, de datas especiais, de celebrações, enfim, de festas em família. Eles não estão casados, mas ainda temos uma família formada e não fragmentada, apesar da separação entre eles. E é isso. Então, parceria. É sempre uma questão de nos unirmos ali, pelo afeto. Claro, com certas diferenças de comportamento, com personalidade, não é fácil você manter uma relação ao longo de décadas, hoje eu tenho 45 anos, então a gente vai, ali, construindo dia a dia, período a período. Mas felizmente é uma relação que passou por dificuldades, em específico, em relação a separação dos meus pais, há cerca de vinte anos, mas que nós fomos ali reinventando, nos distanciando, por vezes e nos aproximando também, evidentemente, nos momentos que mais se mostraram necessários. E um deles é o nascimento do meu único sobrinho, filho da minha irmã que, de alguma maneira, reinventou ali as relações e reaproximou, entre nós quatro, quem ali estava mais distante. Então, é isso. A gente realmente se une pelo afeto e pelo respeito, fundamentalmente.
P/1 – E como era essa relação, quando vocês eram pequenos, com a sua irmã?
R – Era uma relação muito próxima. Eu costumo – revisitando esses fatos – pensar que nós dividimos quarto até os meus vinte anos, mais ou menos. Então, era uma relação muito próxima de companheirismo, de sentimentos e aí, quando eu saí de casa, então, vindo do interior, para São Paulo, pra fazer faculdade e já passar a morar aqui, que eu tinha isso em mente: fazer faculdade e morar na capital, a gente ressignificou a nossa relação também, ficando fisicamente distantes e sentimentalmente, ali, mais próximos, ou às vezes mais distantes também, acho que temos que respeitar ali as nossas maturidades. Mas no geral, é uma relação próxima, eu acho, eu acredito que, por vezes, foi mais próxima, em alguns momentos; em outros, um pouco mais distante, tem esfriamentos normais, mas no resumo mesmo, da ópera, é uma relação saudável. Foi - já é – uma relação bem próxima e depois a gente acaba entrando na fase adulta, cada um de nós seguindo ali a sua jornada, mas fundamentalmente é uma relação de amor, de afeto.
P/1 - Guilherme, você chegou a conhecer seus avós?
R – Cheguei a conhecer as minhas duas avós, que já são falecidas, figuras matriarcais exemplares. E conheci um avô, o pai do meu pai, que foi o primeiro a falecer, quando eu era adolescente. E das avós, olhando pros dois lados da família, de relações matriarcais, de mulheres fortes, guerreiras, de mulheres muito simples, cada qual à sua maneira, de uma geração de mulheres do interior, que não tinham contato com grandes cidades, mas que tinham que estar ali, presentes, criando seus filhos e filhas e fazendo, então, esse desafio de criar uma família e mantê-la ainda mais reunida.
P/1 – E tem alguma história que você lembra, quando você era pequeno, com alguma delas ou com seu avô?
R – Eu lembro, eu posso enumerar, vou enumerar duas questões que remetem às minhas duas avós. A minha avó pelo lado de mãe morava em São Carlos e quando nós íamos visitá-la, geralmente a cada semana, ou a cada duas ou três semanas, porque a gente morava na cidade ao lado. Ribeirão Bonito é distante uns trinta minutos, de carro, pra mim era como entrar em um mundo novo. A casa da minha avó, onde a minha mãe foi criada e a gente entrava ali pela sala da frente, pela porta da frente e sempre à direita estava sentada a minha avó, vendo ali o seu programa da tarde, a sua TV e tal e era uma coisa de muito afeto, de muita espera, pra que isso acontecesse e a relação com a minha avó paterna, que morava na mesma cidade que eu fui criado e que a gente se via constantemente, a cada dia, a cada dois dias, a gente morava a uma quadra de distância e eu e a minha irmã fomos os únicos netos da minha avó paterna, então a relação de segunda mãe, de patriarca, é muito forte. E eu lembro com muita ternura, com muito carinho de ambas, pela convivência com a avó paterna, mas com muito afeto, carinho e saudades, muitas saudades de ambas.
P/1 – E pensando na sua infância, tem algum cheiro, sabor, data comemorativa que remeta a esse período?
R – Tem. Com a minha avó materna, o nome dela é Idalina, sempre o café preto com muito açúcar. Ela coava o café e já colocava açúcar junto com o café, na garrafa térmica e era um café muito doce, mas sempre sabia que quando a gente fosse visitar a minha avó, na casa dela, a gente ia tomar um café da tarde e o café ia ser muito doce e muito gostoso. Ela usava açúcar cristal, não usava açúcar refinado e isso vem muito forte. Em relação à minha avó paterna, Maria do Carmo, sempre cheirava a talco. Ela sempre se perfumava com talco. Então, a cada abraço, afago, carinho vinha também esse cheirinho gostoso de talco. E hoje eu até me pergunto quem usa talco, a não ser os bebês, mas as avós de muito antigamente usavam talco. E é uma memória sentimental muito forte.
P/1 – Guilherme, você sabe o porquê do seu nome, como escolheram seu nome?
R – Boa pergunta sobre meu nome! Eu venho da metade final dos anos 1970, acho que não nasciam muitos Guilhermes, tinha... tem, ainda está vivo, o cantor Guilherme Arantes e, se eu me lembro bem da história, minha mãe apenas gostou do nome e não me vêm à cabeça nenhuma história de algum segundo, terceiro prováveis nomes. É esse o nome que os meus pais gostaram, por sugestão da minha mãe, salvo engano e acabei levando, levo esse nome como meu.
P/1 – Você lembra da casa onde você passou a infância? Como que ela era?
R – Sim. Total. A casa existe, ainda, fica a uma quadra e meia da minha atual casa da família, onde a minha mãe reside, lá no interior e basicamente a estrutura, todo o jeitão da casa que eu passei toda a infância e adolescência estão muito vivas na minha memória, no quintal que a gente brincava, todo cimentado, mas o quintal que eu e minha irmã brincávamos, ou eu mesmo brincava, que circundava a casa toda. É uma casa do interior, então é uma maneira bem diferente de um apartamento de cidade média ou grande.
P/1 – Você falou que não morava em São Carlos, era Ribeirão Bonito. Como era o bairro, a cidade, naquela época?
R – Sim. Eu nasci em São Carlos, por questões de ter hospital mais estruturado, ainda hoje continua, para partos e eu fui criado e morei em Ribeirão Bonito, cidadezinha ao lado, uma pequena cidade do interior, de dez mil habitantes. E ali uma cidade ‘de primeira’. Ou seja, quando você engata a segunda marcha do carro, a cidade acaba. Hoje ela aumentou um pouquinho, mas entre nove a dez mil habitantes de área urbana. E a gente morava, sempre moramos ali na região central da cidade, uma cidade muito pequena, perto de tudo, onde todos se conhecem, onde você conhece o nome das ruas, de saber andar e a história de pessoas que dão nome àquelas ruas. De alguma maneira, fazem parte ali da história da própria cidade. Então, é uma cidade super fácil de andar e onde eu fui criado, distante uma quadra e meia de onde a minha mãe, atualmente, mora. Então, tudo muito próximo, tudo muito ligado.
P/1 – E quais eram as suas brincadeiras favoritas naquela época?
R – Olha, eu tive uma infância talvez com dois momentos importantes: eu comecei a trabalhar com meus pais, ali no escritório de contabilidade, aos nove anos e pouco, pra dez anos. E a minha irmã, aos doze anos, na sua época. Até então eu só tinha a minha obrigação, que era ir à escola e brincava ali com alguns colegas, amiguinhos ali da escola ou da rua de cima, da rua de baixo. Eu nunca gostei muito de futebol e ainda hoje não gosto. Enfim, há quem não goste de futebol, no país onde o futebol é o esporte nacional. Eu brincava mais de andar de bicicleta, na piscina da cidade, ali, do clube da cidade, então era mais reunir o pessoal, a molecada e ia nadar na piscina e, por vezes, eu também brincava sozinho, comigo mesmo. Tinha ali os brinquedinhos, montava ali algumas histórias imaginárias no quintal da casa que eu fui criado, montava umas cidadezinhas, umas histórias, umas garagens para carrinhos, essas coisas e aí, depois, começamos já a trabalhar no contraturno da escola, da educação, então acabei me dedicando mais a estudar, do que continuar brincando ali, dia após dia, mas finais de semana era mais livre, dava pra fazer as minhas brincadeiras de clube e andar de bicicleta.
P/1 – E como é que era nessa época, você ganhava salário, quando você começou a trabalhar? Como funcionava?
R – Sim. Desde o primeiro mês ganhando salário, cumprindo ali expediente. Eu ia da uma da tarde, às cinco da tarde. Eu estudava de manhã e o que eu fazia era o boy, o assistente ali, o faz tudo de serviços de rua, de buscar e entregar papel. Na época era muito papel, não tinha nada tecnológico, como hoje nós temos, tudo eletrônico. Então, era andar a cidade inteira, ali, junto com as empresas, com os clientes do nosso escritório de contabilidade, pra nós, porque era o negócio da família, ali da minha família do interior. Então, sempre cumprindo ali a jornada, horário, tenho salário desde o primeiro mês e, pra mim, eu achava aquilo o máximo, era uma das poucas crianças que já tinha ali um trabalho, uma ocupação, o próprio dinheiro, então mesada, pra mim, nunca foi uma realidade. Ganhava aquele ‘troquinho’ no mês do aniversário, enfim, alguma coisa que eu quisesse, estivesse ‘de olho’, mas salário mesmo, pra mim era uma coisa fantástica. Então, eu não gastava. Praticamente guardava tudo sempre. Naquela época não tinha nenhum gasto e mal gastava, que não fosse com a conta da poupança. Então, era ótimo.
P/1 – E quando você era pequeno tinha o sonho de ter alguma profissão, de ser alguma coisa, ou não passava pela sua cabeça ainda? Como que era?
R – É, eu não tinha muito definido. Tinha e não tinha definido. Então, imagina que o meu contato com cidades grandes, com a noção de país, era lendo um jornal diário que meu pai assinava, então eu lia ali, acabava lendo uma parte do Caderno de Economia, uma parte do caderno de entretenimento, que sempre refletia a cidade grande, São Paulo basicamente, é um jornal aqui do estado. E eu sabia que eu poderia seguir uma carreira no próprio escritório, ali, indo pra área de finanças e contabilidade e tinha, também pensava, pelo conhecimento, a parte de Direito, ser advogado e tal. Então, eu sempre tendia por essa parte. Muito mais por refletir atualmente o que eu fazia naquela época, essa coisa de burocracia, de números, então pensava que iria por esse lado, acabei indo, num certo momento da minha carreira, mas depois eu acabei me distanciando e chegando ao que eu faço atualmente, hoje, na área da diversidade, mas a gente vai chegar lá.
P/1 – Guilherme, me conta onde você estudou.
R – Eu fiz o primeiro e segundo graus na minha cidade, ali em Ribeirão Bonito, em escola pública. Apenas no último ano do ensino médio, o terceiro colegial eu fiz em uma escola particular, em São Carlos, indo todo dia num ônibus de estudantes, para ter mais chance de prestar vestibular à época. Aí fiz vestibular na época, uma carreira totalmente fora da minha realidade, fiz vestibular para fisioterapia, depois de um ano de cursinho passei em fisioterapia, ali na federal de São Carlos, fiz só seis meses, vi que não tinha nada a ver comigo, absolutamente. Até hoje eu me pergunto como é que eu fui pensar em seguir essa carreira. Enfim, hoje eu reconheço que é um momento de testar, ver... e me formei, então, fiz faculdade aqui em São Paulo, de Economia, aqui na USP, que é o motivo que me trouxe aqui à São Paulo, onde eu moro desde então.
P/1 – E voltando lá pra trás, qual é a primeira lembrança que você tem, da sua primeira escola?
R – A minha primeira escola, onde eu fiz até o final do ensino fundamental, à época era oitava série, hoje é nona série do primeiro grau, onde eu fiz também o prezinho, o pré-escolar, é um prédio de hoje mais de acho que cento e dez, cento e vinte anos, então é uma memória muito afetiva, numa cidade pequena todo mundo conhece todo mundo, basicamente. E a minha realidade girava em torno daquela escola, de conhecer todas as professoras, de todas as séries, porque isso também acaba entrando na minha noção de cidade, quando eu começo a trabalhar com a minha família, andando a cidade toda, conhecendo todas as pessoas por nome, sobrenome, o que faziam e isso acabava refletindo na própria escola. Eu conhecia todas as professoras, os professores e no prédio que hoje é histórico, em funcionamento, felizmente, a mesma escola e uma memória muito de entrar nas salas de aula com aquele assoalho. Era o primeiro andar, único andar, mas abaixo tinha outras salas administrativas. Então, sempre tinha aquele assoalho, aquele piso enorme de madeira e, às vezes, meio bambo, meio soltando em alguns pontos, então sempre tremia um pouco algumas carteiras ali, dependendo se essas tábuas estivessem mais ou menos frouxas. Era muito gostoso, muito de que aquilo era o meu mundo à época e a partir de então como tudo isso se expandiu, a partir daquilo.
P/1 – E quais foram as pessoas mais marcantes, dessa época, na escola? Tinha algum professor, algum funcionário, diretor, ou algum colega?
R – Minhas duas primeiras professoras. Hoje, atualmente, vivas. Professora do pré-escolar que, por coincidência, morava na frente da casa - e mora ainda – que eu fui criado e é a Dona Vicentina. E sempre tem aquela questão de primeira professora, professora do prezinho. E a Clara, a professora da primeira série. Então, já não estava mais no pré-escolar. Eu chamei de prezinho. Prezinho era como nós chamávamos ali o pré-escolar. Aí, quando eu entrei na primeira série do ensino fundamental, a Dona Antonieta, ainda viva, a minha professora da primeira série. Eu achava fantástica. Ela era alta, é uma mulher alta, mas a minha dimensão de grandiosidade física ainda era muito maior na época, porque nós sendo crianças, baixinhos, ali, pequenos. E aquela caligrafia na lousa, a rigidez e o afeto pelo reconhecimento. Eu era um dos alunos mais queridos e destacados ali da minha classe, então ela sempre, quando ia tecer algum elogio das melhores notas, eu estava ali, entre elas e aquilo me deixava superfeliz. São duas lembranças muito boas, das primeiras professoras.
P/1 – E de matérias, quais você mais gostava? Isso pode ser em qualquer época, da sua infância e adolescência, mas quais matérias você tinha mais afinidade?
R – Eu acabava indo bem em todas. Eu estudava bastante, era bem aplicado, organizado, aquela coisa que não era só pra tirar nota, tinha que entender de fato a matéria. Olhando hoje, provavelmente acho que Geografia me dava uma compreensão boa, de espaço, o que organiza aquele espaço, as relações ali existentes e também acabava tendo uma boa afinidade com Português, porque eu gostava de ler e escrever e, Matemática, não tinha grandes problemas com Matemática. Claro, não era fácil, mas sentando, estudando, entendendo, dava pra ‘levar’ bem.
P/1 – E o que mudou, quando você passou da infância para adolescência? Teve alguma mudança marcante, como foi?
R – Acho que a mudança mais marcante foi, de fato, ainda na infância, ter começado a trabalhar junto com a minha família, ali por volta dos dez anos. Então, ali foi um ‘divisor de águas’, de fato. Aquela foi, realmente, o que mais marcou, não foi nem da infância para adolescência, foi ainda no final da infância, ali, começando a trabalhar e tendo ali mais responsabilidades e é bom trazer aqui que o fato de trabalhar foi pra reforçar o nosso negócio familiar, a gente estava passando, na época, por dificuldades financeiras, então era muito importante termos os ‘olhos’ dos donos acompanhando ali os próprios acontecimentos. Então, eu marco muito mais a questão de começar a trabalhar ao final da infância e não vejo uma linha divisória entre infância e adolescência, porque digamos que a minha adolescência começou um pouco mais cedo, pela responsabilidade e pelas atribuições.
P/1 – E como foi esse momento, depois que você passou na faculdade de fisioterapia, de decidir que você não queria fazer? Como foi isso? E como foi ter passado, também, no vestibular?
R – Uma das sensações mais... uma das piores sensações foi ter feito, à época, o ano inteiro, estudando muito em cursinho, continuando a trabalhar com a minha família, estudando muito o ano de cursinho, pra fazer a carreira de fisioterapia. Entrei muito bem colocado na Federal de São Carlos, na Universidade Federal de São Carlos e quando eu achei, decidi: “Não, isso não tem nada a ver comigo”, aí meu ‘mundo caiu’. Não tinha mais perspectiva do que fazer a minha vida e tal. Isso, eu decidi faltando uma semana pras inscrições da Fuvest, o vestibular para as universidades públicas aqui de São Paulo. E eu estudei dois meses pra Fuvest, tendo largado a universidade e felizmente deu certo e entrei no curso que realmente foi ‘divisor de águas’ na minha formação acadêmica, que foi Economia. Então, não digo que foi uma escolha errada, mas foi uma escolha com o desenvolvimento que eu tinha na época, uma sensação muito de fracasso, de impotência. Como assim, o curso que você escolheu, que eu escolhi, não é o que você quer seguir pra vida? Então, de um horizonte de dúvidas surgiu ali uma oportunidade que se mostrou como uma escolha mais acertada, que tem a ver, mais, comigo.
P/1 – E como que você escolheu qual faculdade fazer em seguida a essa? Como foi essa escolha e por que a USP? Por que decidir prestar pra fora de São Carlos?
R – Eu fui criado nessa cidadezinha pequena de Ribeirão Bonito. Pra mim São Carlos já era uma cidade grande, já era sair dali da cidade que eu fui criado. E quando eu escolhi, à época, fisioterapia, era uma faculdade pública, federal, uma universidade federal e pra mim tinha que ser uma universidade pública, até pela questão financeira, de custos e quando eu decidi, olhando, qual curso eu iria prestar o vestibular, após a primeira tentativa infrutífera, eu olhei pros anos anteriores, já trabalhava ali no escritório de contabilidade, já tinha afinidade com números, já acompanhava, gostava de ler o jornal na parte de política, de economia, então eu fui no que eu estava, de alguma maneira, mais próximo. E acabei escolhendo Economia, porque Contabilidade achava muito específico e falava: “Vou fazer Economia, para ser economista, para entender tudo isso” e tinha que ser, novamente, uma faculdade pública e, à época, eu não sei como isso está hoje, tinha Ribeirão Preto, Economia na USP e Economia na USP de São Paulo. E por uma questão de oportunidade, eu pensei: “Eu tenho, se eu for escolher essa carreira, que ir pra uma cidade onde tudo acontece. Onde o cenário político, econômico da minha concepção de mundo é e também da concepção, hoje, do país, mas na época era muito mais concentrada, acontecia”. Então, eu acabei prestando apenas a faculdade de Economia em São Paulo e, por via das dúvidas, a faculdade de Economia em Araraquara, que também era uma cidade maior, uma faculdade pública ao lado da minha casa, ali no interior. Passei nas duas, mas eu queria, realmente, ir pra cidade grande e fazer essa carreira, essa faculdade de Economia e se mostrou acertado à época.
P/1 – E como foi a mudança para São Paulo?
R – Foi amedrontadora. Imagina que eu fui criado e sempre morei numa cidade de dez mil habitantes. E tendo passado numa faculdade pública, numa cidade de dez milhões de habitantes, com uma região metropolitana de, à época, sei lá, quinze, dezoito milhões de pessoas. Eu não conhecia nada em São Paulo. Tinha vindo algumas vezes, mas com alguma família, alguns parentes que moravam em São Paulo, a gente ia visitar esses parentes, mas era muito pontual. Então, eu não conhecia nada de São Paulo, da capital, da região metropolitana. Mas eu sabia que eu teria que conhecer, eu teria que entender como a cidade operava, me locomover sozinho. Eu já tinha vinte anos, na época. Pode parecer hoje uma grande idade, mas pra quem foi criado e sempre morou numa cidade de dez mil habitantes, ir pra uma metrópole, a maior cidade do seu país, era muito amedrontador, como eu disse. Eu lembro que eu ia de ônibus, da minha cidade até São Paulo e pegava as rodovias. Esse sentimento ficou presente por muito tempo. Quando o ônibus entrava ali nas marginais de São Paulo, o ‘meu coração vinha à boca’, vinha aqui, no pescoço, porque eu tinha uma sensação de medo, de insegurança, por ser uma cidade grande e também medo de falhar novamente, na escolha de uma carreira, numa universidade. Então, mas era muito mais um misto de tentar entender e dar certo numa cidade, numa metrópole, vindo do interior de São Paulo, mas uma cidadezinha pequena, então era... nossa, eu não pensava nisso há muito tempo!
P/1 – E onde que você foi morar, quando você chegou em São Paulo?
R – Eu não tinha nada de referência em São Paulo, então, quando eu vim morar, eu tinha que procurar uma residência, eu fiquei dois meses ali na região da Rua da Consolação, ali do lado do Centro, bem embaixo, um pouco pra cima da Praça Roosevelt, morei dois meses com o filho da vizinha da frente da casa da minha mãe. Ele já morava em São Paulo há anos e anos e aí eu ainda estava procurando apartamento pra ‘rachar’, pra dividir com outro colega de faculdade, que também era do interior, acabei conhecendo na primeira semana de aula. E aí, logo depois de dois meses em São Paulo, fui morar ali na Vila Madalena, que era muito mais próximo da Cidade Universitária, onde a USP está localizada. Aí morei nessa residência por dois anos e depois acabei vindo morar próximo da Avenida Paulista, onde eu resido nessa região, desde então.
P/1 – E quais foram as principais mudanças que estavam acontecendo na sua vida, nessa época? Como foi entrar na USP, viver a universidade?
R – Acho que tudo acaba se traduzindo em conhecer e se apropriar de São Paulo, da cidade. Então, é tudo um universo. Entrar numa universidade, vindo do interior e numa universidade de muito prestígio, enorme, à época. Ainda hoje tem, mas pra quem vem do interior ainda mais, entrar na USP era muito emblemático: “Nossa, entrei na USP!” Mas tudo caminhava por dois lados: pra entender a cidade, então eu lembro que eu fiquei acho que mais de um ano andando e me localizando na cidade, que foi o caminho dos ônibus e pelo meu guia impresso – olha só! – de ruas, com mapa Quatro Rodas. Guia de ruas mapa Quatro Rodas, com todas as rotas de ônibus, com todo o mapa da cidade, em formato de livro. E ao mesmo tempo que eu fui adquirindo mais, uma segurança maior de me localizar em São Paulo, saber andar entre a minha residência e algum ponto de interesse, a própria faculdade, de segunda-feira a sexta-feira, entender também que tinha que me aplicar nas aulas, em si, nos assuntos discutidos ali, a cada semestre e acabava ficando, no primeiro ano, o dia inteiro na faculdade, com aula no período da manhã, ficava estudando ali, mesmo na biblioteca, todos os dias, à tarde, depois ia pra casa, comia e ia dormir. Então, era uma questão, de fato, de ir adquirindo maior segurança em conhecer e entender a cidade e, também, de me firmar como um aluno aplicado ao curso que eu estava fazendo.
P/1 – Na faculdade, quais foram os momentos mais marcantes da sua trajetória?
R – Primeiramente, acho que o fato de não conhecer absolutamente ninguém, então eu tinha um medo do desconhecido, obviamente, acho que isso já é um pouco natural, mas o medo do desconhecido numa metrópole. Então, acho que um ponto fundamental é ter uma rede de contatos, ter colegas, fazer ali amizades, vindo de uma realidade totalmente diferente, de uma cidade pequena pra uma metrópole, entrando numa universidade pública, sem nenhuma rede de apoio direta aqui, na cidade que eu ainda moro, que é São Paulo, capital. Então, é fazer ali amizades, contatos, colegas, pra tornar, então, essa cidade que eu estudava, mas que eu não me sentia, até então, residente. Eu passei quatro anos estudando em São Paulo, mas eu moro no interior. Não. Demorei pra ‘virar essa chave’. Com essa questão de fazer, de fato, ter uma rede de apoio, de contato, de colegas, de amigos e amigas.
P/1 – E você voltava bastante pra sua cidade?
R – Religiosamente, toda sexta-feira ia pra minha cidade e a distância de ônibus de São Paulo para cidade onde eu fui criado é cerca de quatro horas de ônibus. Quatro, quatro horas e meia. Então, eu ia, religiosamente, toda sexta-feira e voltava domingo à noite. O porquê de - com raras exceções – ficar duas semanas direto aqui, às vezes, por uma questão de provas, ou mesmo algum compromisso social, de lazer: eu era muito ligado à minha avó paterna, a avó Maria e muito ligado àquele núcleo familiar. Então, era uma questão de ‘recarregar as energias’, a ‘pilha’, ter ainda o contato muito forte com a minha família durante a faculdade, então por isso que ao longo, mesmo começando a estagiar no segundo pro terceiro ano da faculdade, eu ainda assim voltava toda sexta-feira à tarde ou à noite, por uma questão de ‘recarregar as energias’, ter ali contato com a família, muito próximo à minha família e minha avó era viva, até então, felizmente. Eu sabia que eu não a teria por muito mais tempo e eu deveria privilegiar todo momento possível e tudo levava pra voltar sempre à minha família aos finais de semana, todos, praticamente.
P/1 – E me conta como foi esse estágio.
R – Foi no escritório, numa consultoria de Economia que, à época, lidava com assuntos regulatórios, de regulação econômica. O que eu quero dizer com isso? De análises de fusões e aquisições. É uma das partes dentro da economia, questões de mercado, força de mercado, poder de mercado, tamanho de empresas. O que à época e hoje se entende como defesa da concorrência econômica. Fiquei um ano e meio nesse estágio e foi muito oportuno. Foi a experiência mais próxima de trabalhar com Economia, de fato. Depois, sempre trabalhando com questões de administração e de finanças, como um todo, mas em Economia foi esse estágio que marcou a experiência.
P/1 – E como era sua rotina, nessa época de estagiar, fazer faculdade? Como funcionava?
R – Não sei como a gente dá conta, mas a gente dava. Era uma questão bem longa: de manhã as aulas, no período acho que das sete a umas onze e trinta, meio-dia, alguma coisa assim. Almoçava rapidamente. No meio do caminho entre a faculdade e a minha residência ficava o estágio, felizmente. Era muito ‘corrido’, trabalhava a tarde inteira e tendo ainda que conciliar também os estudos nas noite da semana e aos finais de semana, então era bem ‘corrido’. Não era impossível, nada, isso faz parte da vida, a gente é universitário e trabalhar e esse próprio estágio acabava, então, também sendo uma fonte de renda pra planos futuros, de estudar, morar fora do país por um período, também de ajudar a minha própria família na minha manutenção aqui em São Paulo, onde pagava aluguel, alimentação, enfim. Era tudo muito ‘corrido’ e desafiador.
P/1 – E você já tinha tido uma experiência de trabalhar com a sua família, de um certo modo. Como foi o seu primeiro dia de trabalho nesse estágio?
R – Interessante que depois que eu entrei nesse estágio, muito logo, não demorou muito, eu via não como estágio, mas como trabalho de fato, ali trabalhando com os outros colegas economistas formados e formadas e tendo as minhas opiniões e argumentos ao meu alcance, ali, sendo ouvidos e trabalhando em equipe, então foi interessante essa questão de poder trabalhar em assuntos ligados à minha formação universitária em curso naquele momento e poder ver ali o fruto da minha redação, escrever ali textos, argumentos econômicos, que subsidiavam análises importantes de assuntos regulatórios daquela época. Então, muito interessante, muito produtiva a minha relação em ver ali reconhecimento do meu estudo, na forma de trabalhar com que eu estava estudando, de fato.
P/1 – Gui, pra gente dar conta de toda a sua trajetória profissional, antes de chegar na sua ocupação atual, eu queria que você pensasse e contasse pra mim os três principais momentos da sua trajetória profissional, que você considera, antes da sua ocupação atual. Quais foram?
R – Na minha carreira anterior, voltada a finanças, como economista de fato, pensar aqui nos três momentos importantes. O primeiro acredito que a oportunidade de trabalhar nessa consultoria de economia, um assunto que eu poderia pôr em prática o que eu estudava na faculdade. Então, um momento interessante. Um segundo momento: ter trabalhado em finanças, em dois bancos de atuação nacional, na parte de controladoria e aí eu vi que não era pra mim. Então, é importante ressaltar que eu não via perspectiva naquilo que eu fazia. E na carreira anterior um terceiro momento, deixa eu pensar... acho que o momento, de fato, de ver que aquilo não era mais pra mim. Não era aquilo que fazia ‘brilhar meus olhos’. O que, de fato, me fortaleceu e me fez decidir por transitar de carreira, para o que eu faço atualmente, hoje: Diversidade e Inclusão.
P/1 – E como foi esse momento de perceber que você precisava fazer essa transição e carreira? O que te motivou?
R – É um processo. Hoje a gente percebe muitas pessoas na ‘casa’ dos trinta, quarenta anos transitando de carreira, mudando o assunto com que trabalha, o mercado que se relaciona a partir da sua formação acadêmica original. Então, não é do ‘dia pra noite’, eu acho que é um processo, uma jornada onde o ‘olho não vai brilhando tanto quanto brilhava’, ao fazer o que você já estava fazendo ali. No meu caso de trabalhar com finanças na área privada, em bancos; na área pública, mas sempre trabalhando com essa questão de argumentos, números baseado em finanças, que eu acredito que é muito importante, mas que deixou de fazer com que os meus ‘olhos brilhassem’ a partir do momento que, tendo conquistado uma posição de liderança, tendo conquistado um trabalho que me remunerava muito bem na época, mas ainda assim isso não me empolgava, não me levava a pensar fazendo aquilo que eu fazia na área de finanças, pelos próximos dois, cinco, dez, vinte anos. Então, aí, um pouco de descontentamento, de frustrações, um pouco de: “Eu quero gerar impacto positivo. Eu quero gerar esse impacto pelo meu próprio trabalho. Eu quero a união do propósito pessoal e profissional na forma que eu ganho a vida”. E aí, quando eu fui entendendo essas questões internas, o que eu fazia em finanças e que aquilo não ‘brilhava mais os meus olhos’, aí então eu migrei de carreira, eu percebi que esse impacto positivo eu poderia fazer e ser remunerado pra isso numa área dentro de Recursos Humanos, de pessoas, que é a Diversidade e Inclusão, a carreira que hoje eu exerço, já nos últimos cinco anos.
P/1 – E nessa época, antes da transição, do fim da faculdade até chegar a época dessa transição, como estava a sua vida pessoal? O que você fazia pra se divertir? O que estava acontecendo na sua vida, nessa época? Quais foram os momentos principais na sua vida pessoal, nessa época?
R – Bruna, desculpa: qual época, mesmo?
P/1 – Logo depois da faculdade, até esse momento da transição. Eu sei que é um período longo, mas pode contar o que você lembrar de história, do momento que você ache marcante, mesmo, pra estar na sua história.
R – Sim. Isso acaba dizendo muito sobre quem eu sou. Eu sou um homem gay e eu levei um bom tempo, saindo da adolescência e entrando na fase adulta e fazendo faculdade, pra me compreender, para entender então o que refletia, dizia, o que queria dizer a minha sexualidade. Então, como eu voltava todo final de semana, durante a faculdade, pra casa dos meus pais, por questões de muita proximidade com o núcleo familiar, eu não dava espaço, não tinha espaço na vida social, nunca fui... a minha adolescência, esse começo, na fase adulta, na faculdade, eu não tinha praticamente vida social, de amigos muito próximos, então eram mais alguns poucos amigos de proximidade mesmo, durante a faculdade, então não tinha muita vida social, se resumia a uma vida familiar, da minha família e deixava meio ‘de lado’ essa questão da minha sexualidade, até que uma vez formado, tendo finalizado a faculdade, pensei: “Bom, já não estou mais morando no interior e fazendo faculdade na capital. Eu moro aqui de fato, onde eu quero estar”. Acho que uma coisa ‘puxou’ a outra: quando eu passei a encarar que de fato eu estava morando, passaram anos, cinco anos na faculdade, estava me sentindo morando em São Paulo, aí o verdadeiro Guilherme, eu pude olhar de uma maneira mais carinhosa pra mim mesmo e dizer: “Ok, você já está formado, com 24 anos para 25 e vamos ter uma vida social, vamos entender por onde passa esse ‘rio’, vamos se entender, deixa eu me entender”. Então, eu passei a trabalhar, já trabalhava, estagiava, mas aí eu passei então a curtir a cidade nos finais de semana, ficando aqui mais tempo, indo menos pro interior, menos pra casa da minha família, ao invés de toda semana, então passei a ter uma vida social aqui, aí fui me entendendo e me entendi não como o que tinham pensado pra mim, como um homem heterossexual, mas sim um homem gay. Claro, não foi do ‘dia pra noite’, foi também uma jornada, um processo e depois tem toda a questão de ‘sair do armário’ e buscar amparo no seu núcleo familiar, várias ‘saídas do armário’. Enfim, então não é do ‘dia pra noite’. É com muito afeto e respeito, fundamentalmente, mas nem sempre é com respeito, mas essa questão: eu passei a ter vida social em São Paulo, para também entender o que dizia a respeito da minha sexualidade, que tem muito a ver com isso.
P/1 – Você disse que não foi do ‘dia pra noite’, foi um processo, mas como foi esse momento, no geral, pra você de, como você falou, do novo Guilherme, do Guilherme de verdade?
R – Ouvindo o que eu mesmo disse: esse novo Guilherme, o Guilherme de verdade. Fundamentalmente é eu entender pelo que eu estava não digo passando, mas pelo que eu estava sentindo. No começo da minha experiência afetiva eu acreditava que eu era um homem heterossexual, tinha atração por mulheres, tive alguns breves relacionamentos com mulheres no final da faculdade e depois de formado, mas eu entendi que aquilo não me completava, eu tinha que dar vazão e compreensão a outros sentimentos que não eram nutridos ali, em relações com mulheres. E aí que eu pude entender, então, sobre quem eu era de fato, o que eu sentia de fato. Não corresponder a padrões colocados pela sociedade e se você é homem, você gosta de mulher; se você é mulher, você gosta de homem. Você sendo uma pessoa, um ser humano, você gosta de outros seres humanos, você tem atração por outros seres humanos, não necessariamente compreendendo expectativas da sociedade. E isso hoje, olhando pra trás. Na época era muita dúvida e, também, muita culpa, a culpa cristã. Eu tenho formação cristã católica, então toda uma questão... mas por que culpa? Não é culpa. É como nós somos, pelo que nos atraímos. Então, a culpa leva a lugar nenhum. Quando nós podemos ser, de fato, plenos em nossas humanidades, a gente passa a focar energias no que realmente importa e não no que desejam que a gente importe. Em outras palavras, a gente coloca energia no que realmente traz resultado e impacto positivo. Não tem que colocar energia em parecer ser quem você não é e parecer ter atração por quem você não tem. Respeito, sim. Atração, não.
P/1 – Você estava contando que a sua vida social em São Paulo foi importante pra isso. Queria saber um pouco como era a sua vida social quando você entendeu que você morava em São Paulo. O que você fazia.
R – Ia a museus, saía... eu dividia apartamento até então, com outro colega que também era do interior, mas que veio a trabalho aqui em São Paulo, eu não o conhecia, foi indicação de uma outra colega em comum, então a gente saía pra almoçar, pra parques, para museus, ia em barzinhos. Ele também era supernovo de São Paulo, já tinha alguns anos de São Paulo, mas não tinha uma vida social ainda. Ele já tinha vida social no interior, mas não conhecia São Paulo, uma cidade pra qual ele tinha vindo trabalhar, pra ficar também. Então, acho que um se apoiou no outro, na época e a gente fazia esses passeios quase que habitualmente você faz com amigos e amigas, de sair muito ali na feirinha da Benedito Calixto, ali em Pinheiros, para quem conhece São Paulo. Nossa, há muitos anos eu não vou àquela feirinha, mas a gente ia praticamente todo sábado à tarde, tinha barzinho de rua que a gente ficava ali, conversando, ‘jogando conversa fora’, tomando alguma coisa, uma cerveja, alguma bebida, tal e aí eu fui também me apropriando da vida cultural de São Paulo, de ter também outras amizades, além do meu círculo mais íntimo e teatro, cinema, exposições, museus, algo que eu sempre gostei e gosto muito de fazer. Então, é isso: aproveitar a parte cultural de São Paulo.
P/1 – Guilherme, e como você comentou a atuar com diversidade, equidade e inclusão?
R - Ótima pergunta! Bom, eu estou numa relação com o meu parceiro de vida já há oito anos e ele acompanhou muito da minha transição de carreira. Conversando a respeito, ele já também atuava, uma das atuações dele passa pela agenda da Diversidade e Inclusão e a Sustentabilidade, aí eu pensei que, nessa transição de carreira, o impacto positivo que eu gostaria de gerar, a união do propósito pessoal e profissional, ficaria na Sustentabilidade. É um assunto muito importante, uma agenda muito importante pro planeta, pras empresas, pra todo sistema que sustenta as nossas relações hoje em dia, mas dentro de uma agenda de Sustentabilidade e falando com Direitos Humanos, está a agenda da Diversidade, da Equidade e da Inclusão. E aí eu vi que eu, sendo - hoje tendo compreendido, estudado, lido muito – um homem branco, num país racista; um homem, num país machista; um homem cisgênero, num país transfóbico; ainda que eu seja um homem gay, mas ser homem branco cisgênero, num país altamente preconceituoso, tem um papel de muita responsabilidade, de refletir sobre o meu espaço na sociedade altamente desigual e como isso pode ser trabalhado pra mudar, numa agenda de Direitos Humanos, de negócios das empresas com as quais eu me relaciono, pras quais eu trabalho hoje como consultor especialista e aí eu compreendi, olhando há cinco anos, que essa agenda dentro dos Direitos Humanos e da Sustentabilidade dos negócios, das empresas, pra uma sociedade mais humana e acolhedora, pra mim fez todo sentido migrar pra Diversidade, Equidade e Inclusão. Por que empresa? Olhando para minha trajetória até então, tendo me formado em Economia e trabalhado com finanças, olhando então as questões de negócios. Diversidade e Inclusão é um assunto, uma agenda boa para os negócios e é fundamentalmente uma agenda boa para as pessoas que sustentam esses negócios. Então, atuando nesse segmento de mercado, gerando impacto positivo, por acolhimento, por pertencimento, por dignidade, de ser quem somos, amar quem amamos, coloquei energia no que realmente importa, aí eu olhei, claro, é uma jornada, a gente ‘vai meio no escuro, sem paraquedas’, mas a minha transição de carreira se mostrou acertada. De fato, eu amo fazer, olhar, estudar, escrever, pesquisar, ler essa agenda da Diversidade, da Inclusão e como tudo se conecta em sermos autênticos, quem somos.
P/1 – E como surgiu a ideia da Diálogos Entre Nós? O que o motivou a abrir sua própria consultoria?
R – Você imagina que eu tive que ressignificar minha rede de contatos, que era de finanças públicas e privadas; eu tive que absorver ali no ‘modo esponja’ conceitos, estudos. Eu ia muito, no começo da minha transição de carreira, em eventos de Sustentabilidade e muito em eventos de Diversidade e Inclusão, buscando ali contatos, conhecimento, elementos, conceitos e ressignificando o próprio Guilherme Gobato, numa área que ele nunca tinha atuado, que além de nunca ter atuado, eu não conhecia os e as principais profissionais na área. Eu tinha que ser aquele modo ‘esponja’ e absorver tudo e aí eu tive uma primeira oportunidade de produzir um conteúdo em Diversidade e Inclusão, pra uma série de quatro encontros presenciais, de uma parceria entre o Google for Startups, um ‘braço’ de empreendedorismo, de impacto do Google aqui no Brasil, sediado aqui em São Paulo, junto com uma iniciativa de economia colaborativa chamada O Poder da Colaboração. Então, eu produzi quatro eventos presenciais, ao longo de quatro meses, até pra mostrar o seguinte: eu estava absorvendo muito conteúdo no mercado e eu me senti, então, na posição, há três anos, de oferecer uma visão de conteúdo, abordagens em Diversidade e Inclusão, com o meu nome: “Guilherme Gobato está fazendo um trabalho autoral, de Diversidade e Inclusão”, buscando ali fomentar discussões interseccionais, fazer intersecções: mulheres negras, cisgêneras, transgêneras, pessoas LGBT homens e mulheres, pessoas trans, pessoas com deficiência mulheres e homens e mulheres, de uma maneira geral. Então, eu trouxe, nesses encontros, tinha que dar um nome pra eles, aí eu pensei: “Bom, vou dar Diálogos Entre Nós”, que tem um duplo significado: o ‘nós’ é primeira pessoa do plural, é você, sou eu, somos nós unindo narrativas para exponenciar impactos positivos. Juntos e juntas a gente consegue desatar os nós, o plural de nó, de obstáculo, para mais inclusão de diversidade. E aí eu tive uma boa, calorosa acolhida de mercado, de ter ali colocado uma rede de contatos, ter produzido conteúdos, ter contado com pessoas painelistas nesses quatro eventos presenciais, mesas redondas que eu organizei, mediei, divulguei e entendi que tinha oportunidade do Guilherme Gobato ser, abrir a sua própria consultoria, a Diálogos Entre Nós, que tinha dado nome aos eventos iniciais, pensar que sim, eu detenho conhecimento, tenho muita vontade de impactar positivamente e aí, então, surgiu a Diálogos Entre Nós, essa série de encontros presenciais, a boa recepção no mercado, essa acolhida, por gerar impacto positivo.
P/1 – E hoje em dia, como funciona o seu trabalho como consultor especialista?
R – Eu atuo em duas grandes frentes da consultoria estratégica em diversidade: a própria linha de planejamento estratégico da governança em si da diversidade e uma outra linha, que é de treinamento, educação corporativa. Eu atuo de uma maneira bem interseccional, em cinco grandes agendas da diversidade: étnico racial, pessoas negras; gênero, mulheres; agenda LGBTQIAP+; agenda de pessoas com deficiência; e agenda de gerações, dentro da temática diversidade, equidade e inclusão. E aí atuando, então, tanto na governança estratégica, quanto em educação corporativa. A questão da diversidade passa muito por uma mudança atitudinal, por uma transformação cultural de empresas e da sociedade. E tudo isso de uma maneira que tem que ser planejada, estratégica, intencional, temos que ter vontade e compreensão em mudar, então é fundamental que, para além da educação, eu também atue em governança. Então, levando aí o que realmente acredito como propósito pessoal e profissional na Diálogos Entre Nós e muitas pessoas passaram, são referências pessoais e profissionais na área e eu quero pontuar aqui essa questão: dentro das agendas da diversidade, eu construí muitas relações e parcerias e relações de afeto também. O afeto possibilita acesso. Nós nos afetamos e, em nos afetarmos, a gente pode pensar em acessos para pessoas que não têm ali a sua voz ouvida, o seu lugar respeitado. E em relação a tudo isso, quando eu submeti a proposta dos quatro eventos presenciais, eu pensei: “Bom, eu vou propor quatro eventos, em quatro linhas emergentes: étnico racial, LGBTQIAP+, gênero mulheres e o quarto, pessoas com deficiência. Se aprovarem apenas um, eu tenho que levar o tema étnico racial e, se for o tema étnico racial, eu tenho que contar com uma das figuras célebres, intelectuais, do Movimento Feminista Negro, que é a Sueli Carneiro, escritora, filósofa, que eu tinha conhecido pessoalmente uns poucos meses antes e pela qual eu fui tremendamente afetado, de poder entender, a partir de uma visão feminista negra, as relações estruturais e estruturantes do nosso país, altamente racista e altamente machista e todos os preconceitos. Aí felizmente eu contei com a Sueli Carneiro, entre outras pessoas, também painelistas, mas em especial eu pensei: “Submeti os quatro eventos, se apenas um for aprovado, tem que ser sobre pessoas negras e, se for assim, tem que ser com Sueli Carneiro”, numa posição de homem branco, entendendo as questões que me afetam, que me possibilitam como homem branco, num país racista. Então, eu tenho que me colocar numa posição de humildade e responsabilidade em ser uma pessoa aliada e potencializar vozes que deem conta da transformação. E, pra mim, pessoalmente falando e profissionalmente também, a questão racial é crucial no nosso país, ao lado das outras, mas ela é transversal, pra onde você olha tem a questão racial. E conversando agora com você e lembrando esse fato célebre, inclusive feliz coincidência, completou três anos agora, nesse final de semana, esse evento, o primeiro, da série Diálogos Entre Nós e isso vir à tona. Então, eu quis trazer aqui, pra não perder esse momento.
P/1 – Gui, e quais foram os principais desafios que você enfrentou, sendo assim um consultor, fazendo essa transição de carreira?
R – Primeiramente compreender as questões cruciais, emergentes, que estruturam o plano social, as desigualdades do país, sabendo que eu queria atuar com empresas, ou trabalhar numa empresa com essa temática e eu queria entender também como essa agenda de diversidade se conecta aos negócios. Paralelo a isso, não menos importante também, me fazer visto e reconhecido como um profissional que entenda, que compreenda essa agenda e, aliado a um propósito pessoal, fazer de tudo isso também uma questão profissional, meu ‘ganha-pão’, meu trabalho, me manter profissionalmente, atuando com isso, sendo remunerado, mas profissionalmente atuando com isso, até porque eu interrompi a carreira anterior, não queria mais fazer o que estava fazendo, desfiz as questões, os laços corporativos, de consultorias ligadas a finanças, então eu queria realmente aliar o propósito pessoal, com o profissional. Além disso, também propor discussões um pouco mais aprofundadas, para além do mais do mesmo. Então, a parte conceitual é importante, é fundamental, é a base, mas eu propus, desde o começo, de uma maneira exitosa, com a Diálogos Entre Nós surgindo ali no mercado, trazendo vozes interseccionais, trazendo ali uma questão étnico racial, por exemplo, a questão geracional. Com a Sueli Carneiro, uma filósofa na ‘casa’ dos setenta anos, trazendo ali outras questões de mulheres negras cis, trans, trazendo ali as questões de deficiência, sempre pluralizando os recortes interseccionais. Que somos homens, cis, brancos, gay, mulher, negra, trans, mulher cis negra. Então, sempre buscando potencializar ali as falas, no que diz respeito a impactos de uma visão plural de como nós somos. A vida é plural por si só e nós devemos, então, entender que não somos nem isso, nem aquilo, mas somos um resultado de intersecções, de lugares sociais, dentre os quais o meu lugar, minha pauta étnico racial: homem branco aliado. Se eu não for uma pessoa branca aliada à questão étnico racial no Brasil, então eu nada faço, ou eu estou do lado da opressão. Então, entender como é que nós podemos unir vozes, muito na formação da Diálogos Entre Nós, para potencializar impacto positivo e nunca dar voz, mas ouvir vozes que nós não estamos ouvindo naquele determinado momento, por questões de desigualdade da sociedade, que reflete nas empresas as quais são o segmento de mercado que eu atuo.
P/1 – Guilherme, eu queria saber, atuando hoje como profissional da diversidade, equidade e inclusão e na sua carreira anterior, se você consegue perceber mudanças na agenda de diversidade e inclusão nas empresas.
R – Sim. Eu entendo, eu falo sempre que Diversidade, Equidade e Inclusão é uma agenda, como é uma agenda de Direitos Humanos, como a Sustentabilidade é uma outra agenda. Então, é agenda, não é a pauta do dia. Cardápio é a pauta do dia. O que tem hoje no cardápio: arroz, feijão, carne e salada. Isso é pauta. Agenda percorre de janeiro a dezembro, o planejamento estratégico das empresas. Então, quando nós consideramos que a agenda da diversidade, equidade e inclusão compõe uma agenda da sustentabilidade, do que hoje se convém falar, chamar agenda ESG, de princípios de meio ambiente, sociais e de governança, em inglês ESG, ou ASG, Ambiental, Segurança e Governança. Quando nós compreendemos que a Diversidade, a Equidade e a Inclusão é uma agenda também de negócios, para além de ser uma agenda de Direitos Humanos e que essa agenda de negócios, para ser sustentável, se conecta a uma agenda ESG, você não questiona hoje se a sua empresa, o seu negócio é ou não sustentável. Uma discussão de vinte, quinze anos, dez anos. Tem que ser sustentável. Mas as empresas têm, aí, investido recursos, criando ali oportunidades e espaços para a agenda de Diversidade, Equidade e Inclusão, benefícios corporativos. Em benefícios de pertencimento, para as pessoas que fazem parte da sustentabilidade dos seus negócios. Então, as empresas, a sociedade, do ponto de vista de força consumidora, mercado consumidor têm olhado e prestado mais atenção pra agenda da diversidade, as empresas têm investido cada vez mais nessa agenda. Claro, diferentes maturidades, diferentes empresas, diferentes tamanhos, diferentes importâncias dessa agenda dos negócios. Mas cada vez mais, pequenas, médias e grandes empresas, startups, têm olhado a importância da estratégia dessa agenda para além de ser bom para os negócios, é fundamentalmente bom para as pessoas que sustentam os negócios. Então, de uma forma bem ampla mesmo, é uma agenda que tem ganhado cada vez mais espaço e é fundamental pra gente, pra nossa sociedade, seja cidade, estado, país, mundo, dar espaço a questões de dignidade, de acolhimento, de pertencimento, de sermos quem somos, sejamos mulheres, ou homens, ou nenhum gênero definido, sermos pessoas LBGTQIAP+, ou pessoas heterossexuais, não importa quem amamos ou nos identificamos, sendo pessoas naturalmente diversas, mas únicas ao mesmo tempo. Nós somos diferentes, mas somos únicos ao mesmo tempo, no sentido exato das nossas humanidades. Não há um Guilherme, uma Maria, uma Bruna idêntica ou idêntico ao longo de oito bilhões de diversidades humanas. As nossas diferenças são dadas pela natureza e é isso que nos aproxima. O que nos diferencia também nos aproxima. Somos mulheres, homens, pessoas negras, de origem asiática, brancas e tantas outras pessoas. E as empresas percebem isso, seja por uma agenda de negócios, seja por uma agenda de direitos humanos. Quando vem acompanhada uma da outra é o ‘melhor dos mundos’.
P/1 – Eu queria saber, embora você seja homem, cisgênero e branco, por conta da sua sexualidade, você já sofreu algum tipo de preconceito ou discriminação dentro do mercado de trabalho?
R – Dentro do mercado de trabalho, de uma maneira direta, que eu possa me lembrar, não. Porque antes de ser um homem gay, eu sou um homem autodeclarado branco, cisgênero. Tem alguns ‘escudos’, no meu único caso, que podem me ‘blindar’, que fazem com que eu acesse espaços de poder e decisão para, lá na frente, muito além, ser um homem gay. Isso eu estou falando sobre privilégios, decorrentes de ser quem eu sou, num país exatamente desigual, mas é claro que nós, enquanto Brasil, um país altamente homo transfóbico, que tem muito preconceito a pessoas LGBTs. Pesquisas indicam, eu posso citar algumas. Cerca de um terço das pessoas LGBTs sofreram algum tipo de discriminação por conta de serem pessoas LGBTs, em ambiente de trabalho. Um dado de dois anos atrás, por exemplo. Tem outras pesquisas que indicam que há menos chances, enquanto pessoa LGBT - dados de três, quatro, cinco anos atrás - de você ser reconhecido ou reconhecida como uma pessoa líder, quando a empresa, o meio social ali não reconhece, não dá crédito ao seu potencial. Então, de uma maneira direta eu não me recordo de algum preconceito ou discriminação direta, até porque, profissionalmente falando, me coloco como imagem na diversidade como homem branco cisgênero gay dentro da minha atuação atual, profissional, que até então, veja bem, na minha carreira anterior, eu não trazia esses atributos como homem gay no meu trabalho. Então, compreendi, de alguma maneira, que eu até performava como homem heterossexual, separava bem essa questão profissional da pessoal, mas colocava energia onde não gerava impacto positivo, onde não deve colocar energia. Porque nada diz que você coloca energia em algo que não vai gerar impacto positivo, não mostrar quem você é, você deixa de entregar resultados, de produzir, performando quem você não é, o que você não sente. Então, hoje pra mim é muito claro, na minha atual carreira, me colocar ali como profissional da diversidade, com esse recorte da diversidade, sendo um homem gay. E antes eu não colocava essa questão, porque não via espaço ou até, de certa forma, eu não compreendia devidamente o tema, pra me proteger.
P/1 – Gui, eu queria saber como se deu a sua participação na Rede AMBIMA de Diversidade e Inclusão e se você já tinha participado de algum movimento por diversidade e inclusão dentro do mercado financeiro antes, ou se foi a primeira vez.
R – A minha participação na Rede AMBIMA de Diversidade e Inclusão veio a convite de uma das minhas referências pessoais e profissionais na agenda da diversidade, fui convidado pela consultora especialista em diversidade, muito querida, a Margareth Goldenberg, que tem ali estruturado os trabalhos da Rede ANBIMA de Diversidade e Inclusão e foi uma participação específica, num painel, para trazer ali as perspectivas da diversidade de pessoas LGBTQIAP+ nas empresas, no contexto social e de negócios dentro das empresas, porque nós falamos da diversidade das pessoas LGBTQIAP+ e um momento muito feliz, porque essa querida profissional, a Margareth, me fez esse convite como homem e como também consultor especialista trazer ali, em primeira pessoa, as perspectivas dessa agenda, de uma das agendas da diversidade junto a empresas. E a segunda parte da sua pergunta, de empresas que já atendi nos últimos anos, recentes, participei por coincidência, acho que há dois anos... um ano atrás, de um painel de diversidade étnico racial, numa empresa, num banco, o Pan, uma das empresas que eu atendi, numa palestra, numa participação de mesa redonda, falando ali sobre as questões de ser uma pessoa aliada, branca, a agenda da equidade e igualdade racial. E foi mera coincidência esse projeto ser aprovado pelo Pan e eu ter também participado. São coisas da vida.
P/1 – E durante a trajetória como consultor especializado, eu queria saber se tem alguma história com algum cliente ou específica, que tenha te marcado de uma maneira especial e que você queira compartilhar.
R – Sim. Vou tentar trazer dois ou três momentos. Nós falamos de pessoas, que são naturalmente diversas, que estão nas empresas e que devem, ali, serem acolhidas, respeitadas, se sentirem pertencentes ao lugar onde estão, sendo fundamentalmente respeitados, sendo quem elas são: mulheres, homens, pessoas com deficiência, negras, brancas, não importa. Nós devemos fundamentalmente sermos respeitados, nas nossas humanidades. Recentemente uma roda de conversa que eu mediei sobre diversidade LGBTQIAP+, falando ali, tanto como consultor especialista, mas também como um homem gay, dentro dessa agenda, o tanto de energia que a gente coloca em ser quem nós não somos, amar quem nós não amamos, que é ‘sair do armário’. Pessoas heterossexuais não ‘saem do armário’. Então, cabe às pessoas LGBTs ‘saírem do armário’ onde nos colocam, onde a sociedade preconceituosa nos coloca. E numa roda de conversas pessoas se sentiram confortáveis em falar: “Sou uma mulher lésbica, eu sou um homem gay, eu sou uma pessoa não binária” e naquele momento não tinha pessoas trans ou de outros recortes da diversidade, mas fundamentalmente a gente se emociona muito quando você traz uma agenda de respeito e acolhimento por sermos naturalmente diversos. Um outro momento também muito bom e são vários bons momentos de educação corporativas, palestras, workshops, de treinamentos que eu tive a oportunidade de desenvolver, aplicar também nas questões referentes a agenda da governança e educação corporativa e você percebe: “Nossa, que bom estarmos falando disso, nesse momento! Que bom nos pautarmos pelo respeito às nossas diversidades! Que bom ter participado desse momento e ter compreendido um pouco mais sobre qual era o meu papel de aliado num país, numa sociedade altamente desigual, ou de entender que, independentemente de sermos pessoas negras, ou brancas, ou de outras origens étnico raciais, todos, todas merecem respeito”. Então, são sempre momentos muito bons e positivos de vermos como a nossa palavra, além de ter poder, pode potencializar vozes, criar espaços e oportunidades para que mais pessoas que não estão ali estejam conosco, de uma maneira plena.
P/1 – Eu queria saber, pra você, qual é a importância da Diversidade e Inclusão e principalmente da Equidade, que é um tema que vem surgindo na agenda de diversidade e inclusão mais recentemente, de uma certa maneira.
R – Nós somos naturalmente diversos e diversas, nós somos quase oito bilhões de diversidades humanas no nosso planeta, mas não necessariamente nós somos respeitados e respeitadas, não necessariamente a nós é oferecido dignidade, acolhimento, por sermos naturalmente diversos. Estou falando, então, da inclusão. A importância da inclusão é trazer todas essas diversidades para as oportunidades de uma vida plena, digna, com acessos, mas para que as diversidades possam ser incluídas em pertencimento, dignidade, acolhimento, tem a equidade. A equidade é reconhecer que, para além de nós sermos naturalmente diversos, nós partimos de diferentes acessos, em sociedades altamente desiguais. O que eu quero dizer: homem, num país machista; pessoa branca, num país racista. Se eu não dosar, reconhecer que há pessoas diferentes, com acessos a diferentes oportunidades, numa sociedade altamente desigual, eu não consigo incluí-las. Então, eu tenho que pensar os acessos de uma pessoa branca, num país racista; os acessos de uma pessoa LGBT, num país homo transfóbico tem em comparação a pessoa, por exemplo, negras, heterossexuais, mulheres, pessoas com deficiência. Como eu faço para incluir essas diferentes diversidades, com diferentes acessos e oportunidades? É uma agenda que pressupõe olharmos de maneiras diferentes as pessoas que são diferentes por natureza, entendermos os acessos e o que nós podemos fazer para que, com essa equidade, com soluções pontuais, planejadas ao longo do período, a gente possa, então, alcançar uma situação de igualdade de oportunidades. Não há igualdade de oportunidades num país, numa sociedade, num mundo desigual. Não há. Quando nós tirarmos todas as barreiras, os não acessos, aí sim, quando nós não tivermos mais diferentes acessos, em sociedades desiguais, aí sim a gente fala de igualdade. Diversidade, somos naturalmente diversos. Como é que nós incluímos com dignidade, com esse acolhimento, pessoas que são naturalmente diferentes, mas que partem de diferentes acessos, soluções desiguais, privilegiadas em sociedade. Então, a importância dessa agenda da diversidade, da equidade, da inclusão, é buscar uma sociedade onde haja igualdade de oportunidades, mas para igualdade nós precisamos usar de soluções com equidade, ajustes de oportunidade para quem não tem acesso a essas oportunidades. E é fundamental enquanto pessoas, empresas e sociedade.
P/1 – Como é seu dia a dia, hoje?
R – ‘Corrido’. Dia a dia de pensar em como posso impactar positivamente com meu trabalho, de conversar com pessoas de diferentes maturidades, nessa agenda de diversidade. Tudo bem, nós temos diferentes graus de conhecimento, de valorização dessa agenda. Pessoas que estão mais próximas, pessoas que não estão tão próximas, que querem estar, mas não sabem como, que não querem participar dessa agenda junto a empresas, entidades da sociedade, que têm um papel fundamental de gerar impacto positivo pelas suas operações. Então, cada dia é uma luta, cada dia é uma vitória, uma perda. Às vezes, é 1 a 1, 1 a 0, 0 a 1, mas enfim, é acreditar que uma parte do meu trabalho consegue gerar uma parte do impacto positivo que eu realmente acredito, mas que eu não dou conta, ninguém, é uma agenda que deve ser de todas as pessoas, pra todas as pessoas. Então, eu vou fazendo a minha parte. É fundamental que a gente possa prover transformações atitudinais, para um transformação cultural e ir ali ajustando, então, pra que a gente possa, ao final do dia, ter mais impactos positivos, do que negativos.
P/1 – E o que você gosta de fazer, nas suas horas de lazer?
R – Nós estamos reaprendendo a fazer. Passados dois anos de pandemia de Covid-19 ou um ano de novecentos e tantos dias, basicamente um retorno à vida social, de reencontrar pessoas queridas, amigos, colegas que não víamos desde o começo da pandemia e encontrar pessoalmente pessoas que nos aproximamos aqui, no modo on line, nesses últimos anos de pandemia e, basicamente, trocar afeto, buscar atividades culturais e trocar afeto é estar ali, com pessoas que reconhecem as humanidades umas das outras. É bem fundamental isso. Reconhecer as humanidades, pelo afeto que todos e todas precisam de acesso. Então, atividades culturais, afeto com pessoas queridas e a relação com meu parceiro de vida, obviamente, que também por isso que eu falo que é parceiro de vida, porque é amigo, amante e é parceiro pra vida. Então, é fazer com que tudo isso dê certo, ou que continue dando certo, dia após dia, período após período e ‘brilhe os olhos’ de pensar em uma sociedade, num país, em empresas e pessoas melhores, por uma questão de humanidade e que a gente possa olhar isso, considerar isso como algo que nos torna humanos e humanas e como a gente pode conviver com as diferenças de uma maneira positiva e não baseada em preconceitos e discriminações.
P/1 – E como é o nome do seu companheiro e como vocês se conheceram?
R – Que pergunta! (risos) O meu parceiro de vida se chama Daniel e nós nos conhecemos há quase oito anos, numa festa. Eu estava quase saindo - já era meio da madrugada e tal – dessa festa, talvez aqueles derradeiros dez, quinze minutos e ele tinha acabado de chegar e aí a gente se viu, conversamos, nos conhecemos, ficamos ali e conversamos naquele momento, aquilo se levou por horas e horas e desde então são oito anos de parceria, os primeiros oito anos de muitos outros anos, de companheirismo, de amor, de afeto, de respeito e de humanidade.
P/1 – E quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Pergunta difícil! Boa, mas difícil. Vamos lá! As coisas mais importantes pra mim hoje: alcançarmos uma sociedade com base em respeito... algumas das coisas mais importantes hoje, pessoal e profissionalmente falando, acho que é avançarmos para uma sociedade com base no respeito. E não é aceitação. Aceitação é relação de poder. Eu lhe aceito por ser mulher, por ser uma pessoa negra, uma pessoa com deficiência... não. Aceitação é relação de poder. Respeito é ‘página zero, a capa do livro’. Aceitação é na página 5830. Alcançarmos uma sociedade que possa respeitar as diferenças e, ao respeitar, valorizar, celebrar as diferenças. Nós falamos em um ano eleitoral e não é qualquer ano eleitoral. Quem passou, nos últimos anos de vida social e política no país, é um ano onde o respeito é uma das palavras-chaves. Respeito à agenda dos direitos humanos, à agenda ambiental, à agenda da diversidade, equidade e inclusão. Então, hoje, fundamentalmente podermos alcançar um nível maior de respeito e entender que é por ele que a gente deve guiar as nossas ações, é fundamental. E para além disso entender que o nosso país especificamente, o Brasil, é muito desigual, estruturalmente desigual. É entender que sim, nós somos todas, todos preconceituosos. Todos. Nós vivemos numa sociedade preconceituosa, que é estrutural e estruturante. E quando a gente se reconhece como pessoas preconceituosas, aí sim é o desconforto numa zona de conforto. Aí sim tem espaço para mudança de atitude, que vai viabilizar uma transformação cultural. Então, para alcançar uma sociedade com mais respeito, entender que sim, o Brasil é muito desigual e que nós devemos reconhecer nossos preconceitos, para atingirmos, para irmos para uma sociedade com mais respeito. Não é do ‘dia pra noite’, isso requer desconstrução para construção de pessoas mais respeitosas, com empresas mais respeitosas, com governos mais respeitosos e é uma jornada, não é do ‘dia pra noite’, mas é essencial, vital e é humana.
P/1 – Quais são seus maiores sonhos?
R – Não dá pra falar de algo que não seja inclusão e diversidade, que não passe pela minha atuação profissional, que não dá pra não falar do meu lado pessoal. Um dos meus maiores sonhos é morar, trabalhar, viver numa sociedade mais humana, num mundo mais humano. Reconhecer as nossas humanidades, as nossas potencialidades, com base no respeito. Respeito, pra mim, é palavra-chave. Não é concordância, não é aceitação, é o respeito. Entender que, numa sociedade como a nossa, brasileira, muito desigual, desrespeitosa, desumana, como nós podemos entregar uma sociedade melhor do que a que nós ‘pegamos’, nascemos, em termos de uma agenda de direitos humanos. Por onde passam as empresas, as pessoas, os governos. Então, pessoal e profissionalmente falando, atingir ou possibilitar que outras gerações - se não a minha, se não a sua – possam ‘pegar esse bastão’ e deixar, tornar uma sociedade, um Brasil mais justo, mais equitativo, mais igualitário.
P/1 – Guilherme, qual é o legado que você deixa para o futuro?
R – Futuro, daqui a um tempo? Futuro, daqui cinco, dez, vinte anos? Tudo que nós vivemos agora já é passado. Do momento que você pergunta ao momento que eu começo a responder, já é passado. Então, a gente não tem muito da percepção do presente, mas tem a do futuro, porque nós não vivemos. O legado pro futuro é ser visto e reconhecido como alguém que tenta impactar positivamente uma agenda da diversidade, do respeito, das humanidades, com inclusão, via equidade. Ser lembrado por pessoas com as quais eu falei e de alguma forma eu impactei positivamente, seja com o que eu palestrei, ou que eu treinei, ali. Então, o legado pro futuro é essa questão de: “Nossa, aquela pessoa que falou comigo, o Guilherme...” - pode não lembrar o nome, mas vai lembrar de algo que eu falei pra ela – “... como fez diferença pra mim, nessa agenda da diversidade, da equidade e da inclusão!” Tão pouco tempo, alguns anos atuando na área, já nos últimos cinco anos, tem experiências interessantes de pessoas que tiveram contato com o que eu falei, escrevi e que pra ela fez diferença. Esse é o legado, de ser uma parte importante de transformação cultural, para mais respeito, para reconhecer as humanidades.
P/1 – A gente já está chegando ao fim, tem só mais duas perguntas. A primeira delas é se você gostaria de contar alguma história, algum fato marcante que eu não tenha te perguntado, incitado você a responder, ou se você gostaria de deixar alguma mensagem.
R – Essa é uma pergunta. Dá só um tempinho para pensar. Humanizar o que é humano, naturalizar o que é natural. Nós somos naturalmente diversos e a inclusão parte muito de uma questão intencional, uma escolha, uma decisão de reconhecer que somos naturalmente diversos e de que devemos respeitar, valorizar e celebrar essas diferenças. Como mensagem é isso. Gosto muito de falar: naturalizar o que é natural, humanizar o que é humano. Reconhecer as nossas diversidades e de uma forma intencional, promovermos acolhimento, respeito, dignidade e pertencimento, para pessoas que são naturalmente diversas. Eu de você, você de mim, nós, de um todo, isso.
P/1 – E, por fim, como foi contar sua história hoje, rever um pouco da sua trajetória, lembrar de momentos da infância? O que você achou de dar essa entrevista?
R – Foi um momento muito bom, uma grata surpresa revisitar alguns aspectos da minha vida que estavam lá naquelas ‘caixinhas, gavetas’, que eu não visitava, eu não falava sobre tais coisas há muito tempo, não revisitava aspectos da minha infância, como eu vim parar em São Paulo, o que fez com que, antes, eu viesse parar aqui, o que eu faço hoje. Foi muito positivo, uma experiência muito impactante, de revisitarmos e, também, olharmos tudo isso que eu, que nós já vivemos e como que a gente pode continuar produzindo mais e vivendo mais.
[Fim da Entrevista]
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