P/1 – Cezar, primeiramente obrigada, por você ter aceito o nosso convite. Pra começar, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Cezar Augusto Lago Marques. Eu nasci em Niterói, estado do Rio de Janeiro, e qual a outra? (risos)
P/1 – Você nasceu em que dia?
R – Eu nasci no dia quatro de março de 1966.
P/1 – Nome dos seus pais?
R – Cezar Garcia Marques e Terezinha Maria Lago Marques.
P/1 – Você conheceu os seus avós?
R – Conheci meus avós, só não conheci meu avô materno, o resto eu conheci.
P/1 – Nome dos seus avós?
R – Meu avô materno é José Lago, e avó, Maristela. A avó paterna é Cilene Garcia Marques e [o avô paterno é] Júlio José Dias Marques.
P/1 – Você sabe a origem da sua família?
R – Por parte do meu pai, é origem portuguesa, meu avô era português. A minha mãe também, mas já eram nascidos aqui no Brasil.
P/1 – Já eram daqui mesmo?
R – Já eram daqui.
P/1 – E dos seus pais, você sabe como eles se conheceram?
R – Conheceram-se em bairro onde moravam, um bairro em Niterói. Conheciam de rua mesmo, de convivência, jovem em rua.
P/1 – Seu pai e sua mãe?
R – Meu pai e a minha mãe.
P/1 – Qual é a profissão deles?
R – Meu pai começou a carreira dele como bancário, depois virou comerciante. Minha mãe sempre foi professora, a vida inteira, depois se aposentou.
P/1 – E os seus irmãos, você tem irmãos?
R – Tenho uma irmã mais nova e tenho um irmão mais novo.
P/1 – Nomes?
R – Ana Cláudia e Cláudio José. Somos em três.
P/1 – O que eles fazem?
R – A Ana Cláudia é estilista, tem uma confecção e o meu irmão é administrador, mora hoje, já algum tempo no México. Trabalha numa companhia no México.
P/1 – Agora falando um pouco mais de você criança. Você...
Continuar leituraP/1 – Cezar, primeiramente obrigada, por você ter aceito o nosso convite. Pra começar, eu gostaria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Cezar Augusto Lago Marques. Eu nasci em Niterói, estado do Rio de Janeiro, e qual a outra? (risos)
P/1 – Você nasceu em que dia?
R – Eu nasci no dia quatro de março de 1966.
P/1 – Nome dos seus pais?
R – Cezar Garcia Marques e Terezinha Maria Lago Marques.
P/1 – Você conheceu os seus avós?
R – Conheci meus avós, só não conheci meu avô materno, o resto eu conheci.
P/1 – Nome dos seus avós?
R – Meu avô materno é José Lago, e avó, Maristela. A avó paterna é Cilene Garcia Marques e [o avô paterno é] Júlio José Dias Marques.
P/1 – Você sabe a origem da sua família?
R – Por parte do meu pai, é origem portuguesa, meu avô era português. A minha mãe também, mas já eram nascidos aqui no Brasil.
P/1 – Já eram daqui mesmo?
R – Já eram daqui.
P/1 – E dos seus pais, você sabe como eles se conheceram?
R – Conheceram-se em bairro onde moravam, um bairro em Niterói. Conheciam de rua mesmo, de convivência, jovem em rua.
P/1 – Seu pai e sua mãe?
R – Meu pai e a minha mãe.
P/1 – Qual é a profissão deles?
R – Meu pai começou a carreira dele como bancário, depois virou comerciante. Minha mãe sempre foi professora, a vida inteira, depois se aposentou.
P/1 – E os seus irmãos, você tem irmãos?
R – Tenho uma irmã mais nova e tenho um irmão mais novo.
P/1 – Nomes?
R – Ana Cláudia e Cláudio José. Somos em três.
P/1 – O que eles fazem?
R – A Ana Cláudia é estilista, tem uma confecção e o meu irmão é administrador, mora hoje, já algum tempo no México. Trabalha numa companhia no México.
P/1 – Agora falando um pouco mais de você criança. Você nasceu mesmo onde?
R – Eu nasci na cidade de Niterói, num bairro chamado Icaraí. Depois, um pouco mais velho, fui para outro bairro, chamado Fonseca. Depois voltei pra Icaraí, um pouco mais velho.
P/1 – Mas você passou a infância nesse bairro?
R – Eu passei a minha infância em Icaraí e no Fonseca, então eu tenho referências desses dois lugares, em momentos diferentes.
P/1 – Mas você lembra da sua casa, quando você...
R – Lembro. Lembro bem.
P/1 – Você poderia descrever?
R – A gente morava... Quer que eu fale do quê, dos dois?
P/1 – É, o primeiro, que você estava em Icaraí.
P/2 – Você viveu até com quantos anos em Icaraí?
R – Na verdade, eu estou lembrando aqui que eu nasci... Muito criança, neném em Icaraí, fomos pro Fonseca, morar numa casa ao lado da casa da minha avó, por parte do meu pai. Depois voltamos pro Icaraí, eu tinha uns sete ou oito anos, e a minha lembrança é muito de Icaraí.
A gente morava numa praia, era chamada Praia de Icaraí. A minha mãe mora lá ainda, até hoje. Eu lembro muito de atividade de praia: soltar pipa, jogar futebol, essas coisas. Então tenho mais lembranças desse bairro de Icaraí. Lá que eu fiz mais amizades..
P/2 – Cezar, vamos voltar um pouquinho. Você falou que quando você era pequenininho, vocês foram para o bairro do Fonseca e moraram ao lado da casa da sua avó.
R – Os meus pais casaram, aí ganharam um apartamento do meu avô materno, nessa Praia de Icaraí. Quando eu nasci, pequeno, eles resolveram ir pro Fonseca, até pra poder a mãe do meu pai ajudar, eu era criança. Meu pai queria muito morar em casa pra ter também galinha, bichos, gostava muito disso. E a maior parte da família dos dois morava no Fonseca. Moraram um tempinho, sem filhos, no Icaraí, e depois foram, quando eu estava pequeno, pro Fonseca.
P/2 – Esse tempo, você ficou até mais ou menos os sete anos. Você se lembra dessa casa, onde vocês moravam no Fonseca, que era perto da casa da sua avó, como era? Conta um pouquinho...
R – Lembro. Era uma rua ainda de estrada de chão, uma casa simples com quintal muito grande, com bicho, galinha, pato. E era colada de muro com a minha avó. Então tenho lembranças, muito de leve, mas tenho referências da rua. Até hoje, quando eu passo por lá, eu olho a casa. A rua já está asfaltada, a casa mudou, mas tem muito essa referência do bicho, do quintal, dessas coisas. Dentro da casa eu já não me lembro bem, não.
P/2 – Mas o quintal? Que bichos tinham?
R – Ah, cachorro, porco, pato, galinha - os mais variados tipos de galinha: angola, marreco. Disso eu tenho muita lembrança, até porque talvez nessa idade eu me apegasse a isso pra brincar. Eu me lembro da rua também, que passava pouco carro, então brincava na rua.
P/2 – Com quem você brincava nessa fase?
R – Não lembro, mas eu acho que a criança, vizinha que morasse... Não tenho lembrança de coleguinhas dessa época, não.
P/2 – Você tem lembranças da sua relação com a sua avó?
R – Por parte de… Tenho com as duas, muito fortes.
P/2 – Então você foi morar perto da sua avó paterna. Como era essa relação nessa época?
R – Ela era muito boa. Era aquela coisa de avó mesmo: de mimar, de dar o lanche. Fazer aquele lanche da tarde, de fazer um sanduichezinho. Muitas vezes meu pai era mais durão comigo; essa coisa de fazer alguma arte, ele queria bater. Meu pai cortava um galho de romã pra bater nas pernas e a minha avó sempre socorria. Tenho essa lembrança do socorro dela, eventualmente, tenho lembrança desses lanchinhos.
E a outra avó, ainda que não morasse colado, morava umas duas quadras próximas. Eu também tenho muita lembrança dela, foi uma pessoa que me estimulou muito [em] algumas coisas, que eu acho hoje que vieram dela, como estimular a leitura. Sempre me presenteava com muitos livros, história em quadrinhos, então tem sempre lembranças desses mimos, também.
P/2 – E essa coisa do lanche, você se lembra de cheiro? Você lembra como era o ritual desse lanche da tarde?
R – O cheiro eu não lembro, mas ela usava uma expressão, ela fazia um ‘porquinho’. Porquinho era um pão de sal, pão com a manteiga que ela botava no garfo, e passava sobre a labareda do fogão. Então tinha o cheiro do pão torrado. Era o mineirinho - não sei se você conhece o mineirinho, é uma bebida lá de Niterói - ou era um café com leite. Então isso eu lembro muito, isso marcou muito esse período da minha infância.
P/2 – E nessa época, vocês saem do bairro e voltam para esse bairro de Icaraí.
R – Voltamos pro Icaraí. O Fonseca é um bairro mais popular, mais simples. Naquela época nem tanto, hoje é um bairro que foi muito degradado pelas questões de crescimento desordenado, o bairro ficou muito... Tem áreas muito perigosas, desde morro que se... Enfim, tem problemas de composição de facções e tudo mais.
Há muitos anos era um bairro muito bom de convivência. Você ainda tinha aquele hábito de... Chegava no verão, as pessoas botavam a cadeira da varanda na calçada pra conversar, o cachorro fugia, o cara do bar sabia que o cachorro era seu, abria o portão e enfim... Hoje a vida é difícil você encontrar esse comportamento mais interiorano. O Fonseca preservava muito isso.
Icaraí é um bairro mais nobre, um bairro de zona sul de Niterói; um bairro que tem uma orla, de São Francisco, Icaraí, Boa Viagem, e é uma realidade muito diferente. Eu fui estudar no colégio, também, do segmento médio da população, Colégio Lassalista de Irmandade. Isso foi uma grande mudança, acho que de capital social, de formação de redes mesmo. São bairros muitos distintos, com comportamentos muitos diferenciados; como fui aos nove anos para Icaraí, ali eu vivi muito uma época de ter mais lembranças, principalmente da escola, relacionadas a esse bairro.
P/2 – Como era a sua casa em Icaraí?
R – Era um apartamento de dois quartos e tinha mais um quarto, que virou o quarto da minha irmã. Um apartamento, enfim, nada de luxo, mas uma convivência muito boa, uma localização muito boa no bairro, você conseguia se deslocar.
Nunca tivemos muitos elementos sofisticados. A casa... Quando chegou uma televisão a cores foi uma festa; nunca tive ar condicionado em casa, tinha ventilador de chão, aquele que fazia barulho, no fim era bom pra você dormir. Então tive uma vida simples, mas tive um... Meus pais procuravam sempre priorizar a questão da educação, e qualquer coisa que eu precisasse em termos de roupa… Tudo isso era muito difícil, existia um esforço pra isso. Mas acho que um grande patrimônio foi a escola que eu fiquei durante onze anos. Foi uma formação de valores, uma formação moral muito boa; tenho amizades até hoje de lá. Isso é uma lembrança que eu tenho muito grande dessa época.
P/2 – Cezar, você falou que a sua mãe era professora e seu pai, bancário. Como era o dia a dia, o cotidiano da sua casa. Eles iam trabalhar, como era isso?
R – Eu tenho mais lembranças do meu pai com o comércio; ele era funcionário de um banco que era o antigo Banco Predial, que depois virou Unibanco, União de Bancos, e aí ele vivia muito tensionado, tenho... Enfim, estava muito estressado, talvez não tivesse o perfil para lidar com esse tipo de segmento. Ele resolveu sair do banco e comprar uma sociedade de uma padaria, no Barretos. Barretos era um bairro também, ao lado do centro de Niterói, logo depois, perto da Manilha.
Ele arrumou um dinheiro emprestado com a minha avó, a sogra dele, e um dinheiro que ele tinha no banco. Ele comprou uma parte da padaria, no dia seguinte a padaria pegou fogo. Era uma padaria de forno a lenha; naquela época, não existia muito padaria como tem hoje, com tecnologia. Aquilo foi um momento caótico, porque a minha mãe estava grávida da minha irmã, e eu estudando, tinha acabado de entrar na escola particular, que é essa escola que eu falei, o Instituto Abel. Vivemos momentos muito difíceis, de vender carro e tudo, pra pagar as dívidas que a padaria teve por conta de você… Acho que não tinha seguro, essas coisas, não tenho recordação assim. Então foram anos difíceis.
Eu lembro muito do meu pai trabalhando demais, saía às três horas da manhã pra pegar padeiro pra trabalhar - padeiro faltava, essas coisas. Via muito pouco, ele não era muito presente. Muito focado no comércio. E minha mãe já tinha meio expediente em uma escola, eu via com mais frequência, então meus irmãos, quando nasceram, ajudei muito. Depois a coisa melhorou e teve uma pessoa pra ajudar em casa, cuidando das tarefas domésticas. Minha irmã nasceu, [quando] eu tinha oito anos de idade, e logo depois veio o meu irmão. Então foi um processo, um intervalo bem complicado, mas faz parte do percurso.
P/1 – Deixa eu voltar um pouco então. Você começou a falar da sua escola, mas você lembra qual foi a sua primeira escola, quando você entrou?
R – Eu lembro de todas. O primeiro jardim de infância.
P/1 – O nome...
R – Chamado Alberto de Oliveira. Ficava ali perto da [Avenida] Amaral Peixoto. Outro dia eu passei lá e ele estava em obras, acho que ele vai se manter um jardim de infância, uma escola ligada à rede pública. Depois eu fui fazer a minha primeira série numa escola municipal chamada Manoel de Abreu, perto da minha casa hoje. Eu queria voltar lá um dia pra conhecer a escola e talvez fazer alguma coisa na escola, ir lá, ajudar, não sei. Outro dia eu fiquei com isso na cabeça, e tem esses exemplos de fora, que a pessoa volta e de uma maneira dá uma contribuição.
Eu gostava da escola, mas os meus pais queriam me levar pra uma escola particular, que era esse Instituto Abel. E aí eu fui para o Instituto Abel e entrei na terceira série. Fiz a primeira e segunda série no Manoel de Abreu e fui para o Instituto Abel, onde fiquei até fazer o vestibular e ir para a faculdade, então a minha lembrança maior é no Instituto Abel, que é um colégio dessa Rede La Salle, que tem no Brasil, da Irmandade [Lassaliana]. Foi lá que eu conheci e convivi com o Leonardo, com os irmãos.
P/2 – Que lembranças que você trás dessa escola, em termos que influenciaram na sua formação? Quem foram os professores importantes, como era o cotidiano nessa escola. Conta um pouquinho pra gente.
R – Uma escola lassalista, como todo colégio que tem uma irmandade, presa por uma disciplina cristã, um rigor muito grande - talvez hoje nem tanto, mas naquela época muito grande com relação à sua conduta, desde uniforme, cianeta na outra cor. Uma escola muito cheia de regras, muito exigente com relação aos resultados, da relação de ensino e aprendizagem, a questão das notas, quer dizer, uma escola com rigor muito grande. Mas uma escola também que me proporcionava, me deu oportunidades de fazer tudo que uma escola tinha.
Aproveitei o máximo deles, desde um grupo de escoteiros, até o escotismo foi muito bom pra mim. Tinha um grupo musical chamado Orquestra Típica La Salle, [em] que eu toquei baixo, bateria, piston, viajei para o Brasil inteiro pela orquestra da escola, tocando em outras unidades lassalistas, fui até o Paraguai; era uma coisa assim, pra mim foram momentos maravilhosos. Praticava esportes, basquete, vôlei, futebol; a escola proporcionava também atividades esportivas muito intensas, então a minha vida era praticamente o dia inteiro na escola. Minhas amizades todas vieram dessa escola, até hoje a gente tem referências de amizades cultivadas aí. Então eu tenho um saldo muito positivo do que essa escola simbolizou pra mim, do quanto eu realmente tirei proveito da oportunidade que tive.
P/2 – E quem eram os professores, que professores que te marcaram nessa escola, que você fala: “Olha, esse professor me marcou por causa disso.”
R – Eu não tenho lembrança de um professor nessa escola, não. Tenho mais lembranças de professores da universidade ou mestrado. Eu não tenho um que eu possa dizer que marcou. Tenho referências positivas, enfim, mas nada que eu vá dizer que foi um ou outro. Acho que não teve nada em termos de nomear alguém.
P/1. Mas tinha uma área que você tinha uma maior simpatia, já na época?
R – Você fala das disciplinas?
P/1 – É, isso.
R – Olha, eu não sei. Acho que não.
P/2 – E em termos de amizade, você falou que dessa época você já conhecia o Leonardo. O Leonardo fazia parte da sua turma.
R – Não, o Leonardo era mais novo do que eu. Ele tinha dois irmãos: a Roberta e o Júnior, o Francisco Nei Júnior. Eu, na verdade, sou contemporâneo da Roberta e do Júnior, o Léo era muito pequeno, ainda mais naquela época. Mas a gente convivia, de se falar, jogar e brincar. Não tínhamos uma grande amizade. A amizade foi depois, quando por uma… [Ele] foi ficando mais velho, a vida dele foi jogar futebol e ele se casou com a Beatriz, que é a prima da Raquel, a minha esposa. O pai da Bia é irmão do meu sogro, a mãe da Bia, é irmã da minha sogra. Casaram-se um com o outro, então a família [ficou] muito unida e aquilo nos reaproximou.
Nós tínhamos uma relação muito cordial, muito respeitosa, de convivência de escola, mas não éramos amigos de frequentar, até por que ele era mais jovem do que eu; nos falávamos, mas não tínhamos essa relação. Tive outros amigos de turma que eu mantenho relação até hoje, trilharam os seus caminhos, casaram, filhos, e a gente mantém laços, ainda, desde aquela época.
P/2 – Quem são eles, fala ______?
R – Nomes? Tem o Breno, o Vítor, o Carlos Henrique, tem o Malquer, tem o... Enfim, esses talvez [sejam] os mais próximos. Hoje, o meu vizinho de condomínio, de porta, não era um grande amigo daquela época, mas já estudava lá também; era como o Leonardo, a gente frequentava, convivia. Hoje, os filhos dele convivem com os meus filhos, mas nós temos lembranças de escola, então alguns desses… Cada um com a sua trajetória, mas a gente mantém ainda relação.
P/1 – Cezar, como era, nessa fase que você está descrevendo… É uma fase de pré-adolescência e adolescência, não é isso?
R – Isso.
P/1 – Você disse que vocês vão pra esse bairro e esse bairro é muito próximo a orla, então eu queria que você falasse um pouco de quais eram as suas brincadeiras preferidas. Depois, um pouco mais velho, nessa fase de juventude, o que vocês faziam como lazer?
R – Naquela época, você não tinha… A questão da rua não era, não tinha tanto risco como hoje tem no Rio de Janeiro; às vezes a rua torna-se um lugar perigoso, apesar do apartamento ser de frente pra praia. Então você tinha atividades na praia, na areia, de soltar pipa, de jogar futebol de areia; joguei muito, era muito comum. A praia era um espaço público de lazer fantástico. Hoje eu passo lá, já não vejo que é tanto assim; tem, mas reduziu um pouco, ou virou um espaço mais… Alguns espaços mais formais. Você tem lá a ginástica que a prefeitura dá um apoio, o outro lá que a empresa tal... A praia era muito solta, você tinha muita liberdade, de você ir e criar vínculos lá.
Ao lado do prédio tinha uma rua pequena, chamada Travessa Antônio Pedro; uma rua asfaltada, pequena, e eu brincava muito nessa rua de futebol também, aquele futebol mesmo de sol quente, descalço, esfolando o dedão, taco, aquela brincadeira, e brincadeira também de pegar pedaços de gesso, riscar o asfalto, brincar de amarelinha, essas brincadeiras de criança. Não existia vídeogame, não tinha computador, então você... O espaço público era muito aproveitado com as crianças nessa época. Eu também, brinquei muito ali disso.
P/2 – Você falou que na época da escola viajava muito, que você tocava na banda, nessa escola...
R – Na orquestra.
P/2 – Na orquestra.
R – Porque tinha uma banda também, mas era na orquestra.
P/2 – Na orquestra. Como o interesse musical surgiu e que viagens dessas que você fez que te marcou mais?
R – Você sabe que eu não sei de onde surgiu o interesse musical? Eu fico até me pegando hoje, porque meus filhos têm a minha idade, com essa idade eu já tocava isso, e naquela época eu não tive o estímulo de ninguém, nunca tive meu pai e minha mãe me estimulando. Pedi pra entrar na orquestra pra aprender a tocar bateria, baixo, piston. Hoje eu que tomei a iniciativa, boto meus filhos pra tocar um violão, vê se ele gosta, mas naquela época eu não sei o que me motivou. Acho que assisti a uma apresentação, na época, e me emocionei, gostei, e queria estar ali naquele lugar, fazendo aquelas coisas; gostava muito de música e aconteceu isso.
Depois que eu entrei nessa orquestra, eu fiz quase que um plano de carreira lá; já era professor de bateria aos dezesseis anos, dava aula de bateria pras crianças que iam entrar. O maestro criou uma relação de confiança muito grande comigo, então fiquei um bom tempo lá. Mas eu não sei o que tenha motivado.
A viagem que mais me marcou é… Como as congregações lassalistas eram, boa parte delas, no sul - Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina -, eram muitas viagens para estes estados. Eu acho que a que mais marcou, talvez tenha sido essa, uma que eu fui pro sul. Fomos a Novo Hamburgo, que é uma cidade de fábrica de calçados. Como a gente ficava hospedado na casa dos pais dos alunos do Colégio La Salle, tudo, enfim, dos alunos da escola, eu fiquei na casa de um fabricante de calçados grande na cidade; me tratou muito bem, me levou pra passear, me presenteou com um tênis. Dali a gente foi também visitar o Paraguai, essa coisa de você atravessar a fronteira. E me marcou porque, como eu falei, tudo era muito difícil lá em casa, então essas ações todas eram muito valorizadas.
Eu levei um dinheirinho que a minha avó me deu, juntei com um dinheirinho que a minha mãe me deu e comprei um relógio no Paraguai, que era um Casio 50 metros que era o máximo - o de 100 metros era o máximo, eu comprei um de 50 metros. Eu tive um apego, talvez tenha sido o meu primeiro objeto de apego muito grande, e tinha uma relação com ele. O relógio tinha cronômetro, tinha luizinha. Acabou que no ônibus, um dia, num assalto, levaram o meu relógio, mas eu já estava mais velho. Então, talvez o que tenha marcado… Fora a relação que a gente tinha, a gente ia tocar, então as meninas, as alunas das escolas também olhavam pra gente. Éramos jovens, bonitinhos, então dava um pouco de poder você estar ali, no palco, tocando. Mas eu era muito bobinho, também, eu tinha medo das meninas. As meninas, sei lá, com quinze anos, a gente tinha doze ou onze anos, uma coisa assim. Tem essas recordações por alto, também.
P/1 – Na sua relação com a música, foi só esse período?
R – Foi só esse período. Fora isso, só apreciando a música, curtindo, ouvindo. Gosto muito, mas foi só esse período.
P/1 – Quando você já estava no colégio, você pensava em alguma coisa que ia fazer?
R – Não.
P/1 – Trabalhar?
R – Eu sempre fui muito brincalhão, sempre fui muito piadista, ou muito... Imitar professor depois da aula, o professor já dava um espaço pra... Eu tinha uma coisa... As pessoas achavam que eu tinha que fazer teatro, mas comecei a achar que eu tinha que fazer cinema. Não tinha uma noção clara, com certeza eu não daria certo para essa área de Engenharia ou coisas do gênero, Medicina. Eu queria uma coisa ligada a humanas, mas eu não tinha noção nenhuma. Gostava de música, gostava de esportes, de teatro, gostava de ler, um pouco desse caminho aí.
P/1 – Logo que saiu do colégio você já foi enveredando pra faculdade ou você...
R – É, fiz o pré-vestibular, naquela época fazia o pré-vestibular. Fiz vestibular, passei. Tinha alguns isolados, passei pra PUC aqui, fiz Comunicação na PUC, mas era uma faculdade cara, meus pais não iam ter condições de assumir. Aí fui fazer uma outra faculdade de Comunicação e fui direto: fiz o pré-vestibular num ano, em 85, e em 86 eu já estava estudando na faculdade.
P/1 – Mas por que você escolheu essa área?
R – A Comunicação? Por que o cinema é… No início eu tinha pensado assim: naquela época - hoje em dia nem tanto, o cinema hoje abriu muito enquanto linguagem audiovisual no Brasil -, naquela época era um pouco mais difícil. Então eu achei que poderia vivenciar essa linguagem fazendo um curso de Comunicação, que me desse uma possibilidade de empregabilidade melhor. Optei em fazer Comunicação. Mas fui fazer uma faculdade também particular e aí eu tive que trabalhar pra poder pagar meu curso, que talvez pudesse ficar pesado para os meus pais.
P/1 – Até então...
R – Lembrando também que lá no Abel, onde eu estudei, um certo período, eu virei bolsista com essa orquestra, porque o próprio maestro acompanhava um pouco isso. Chamava-se Pedro Mota; o filho dele, hoje, é quem assume lá. Ele já faleceu.
O maestro conversou com a Irmandade, falou da minha relação com a orquestra, o quanto eu contribuía para aquilo, que ele tinha até planos pra eu voltar pra dar aula, e virei um bolsista da escola. Isso foi muito bom, também. Foi um reconhecimento pelo que me dediquei àquilo, mas foi uma coisa bacana.
P/1 – Voltando, você teve que trabalhar; até então você não tinha trabalhado.
R – Eu trabalhava dando aula de bateria. Com dezesseis anos eu ganhava um dinheirinho, já era uma remuneraçãozinha, mas nada de vínculo empregatício,era mais uma... Estudava lá e ajudava o maestro, formando novos meninos para a orquestra. A aula, digamos, era trinta reais; eu dava um ‘x’ pro aluguel da sala e o outro era meu, então eu já tinha um dinheirinho a partir daí.
P/2 – E você nunca pensou em seguir uma carreira musical?
R – Pensei, porque teve alguns amigos meus dessa orquestra que fizeram. Hoje, você tem o Marcelo Martins que estava tocando com o Djavan, acho que estava tocando para o Roberto Carlos. Tem uns três que se caminharam. Cheguei a pensar, mas nunca tive coragem de fazer. Teria que ter uma dedicação disso, de se aperfeiçoar, ir para o Conservatório, mas não... Eu estava animado em poder fazer Comunicação, estava...
P/1 – E na Comunicação, essa faculdade, o que você lembra que marcou sua vida?
R – Ah, a faculdade, acho que aí foi um segundo marco, muito bacana. Na faculdade você encontra gente que… O cara que veio de Três Rios, o outro que veio não sei de onde. Por ser uma faculdade de Comunicação, também [havia] as expressões, as manifestações de cada um, do ponto de vista político, cultural, então a faculdade ampliou muito a minha forma de ver o mundo. Estudar Ciências Sociais, Antropologia, você fica mais... Acha que vai mudar o mundo, tem aquela coisa que te instiga. A faculdade foi bem interessante nisso, mexeu muito comigo.
Eu tinha uma namoradinha de Niterói, durante muito tempo; terminei o meu namoro, conheci outras pessoas. Eu queria viver mais o mundo, talvez conhecer mais isso. Então deu muito essa abertura, não sei se por causa do curso em si ou pelo meu momento de vida mesmo, mas foi bem bacana.
P/1 – Teve algum tema em particular que você se recorda na faculdade, que você pegou e falou: “Pô, esse tema...”
R – O tema que eu trouxe pra minha vida?
P/1 – Isso.
R – A faculdade, eu diria que ali sim tive referências muito fortes de professores. Tinha um cara chamado Ivan Cavalcanti Proença, que era um cara de Cultura Brasileira. Era um cara assim, o cara conhecia tudo de música; tudo o que você imaginar, o cara sabia. Era um senhor, já; eu adorava ele, eu adorava as aulas dele, rendia muito bem nas disciplinas dele. Teve outro, publicitário, chamado Roberto Quintais, que era um cara que trabalhava também na BPZ, uma grande agência. Eu o escolhi como meu orientador, de vez em quando encontro com ele. A gente se abraça, tem sempre uma lembrança boa. Por exemplo, teve esses dois professores que eu me identifiquei muito.
Eu acho que como tema, talvez, entender um pouco mais o porquê das coisas. Estudando alguns autores, você tenta dar mais fundamento nas coisas que você acha. Ali foi um momento que eu até me apeguei mais aos estudos, acho que ali tive a convicção de que queria transitar naquela área. Isso foi muito forte.
P/2 – Cezar, deixa eu te interromper neste seu raciocínio. Você citou alguns professores. O que eles te traziam, em termos… Você os vê como referência em termos de valores, em termos de ensinamentos. O que você acha que está por trás, que tem essa referência...
R – A referência que eu falo é… Por exemplo, eu acho que da escola, do Abel, eu não tenho referência de nenhum professor. Talvez ela tenha me ajudado a ter um sentido de formalidade muito alta. Eu sou um cara muito organizado, muito formal, eu me exijo muito, tenho uma autoexigência muito grande. Isso é uma decorrência da escola como um todo.
Na universidade, [tive] esses professores como referência porque eram temas que eu me identificava, acho que tem isso também. Eles, naquela época, me passavam um domínio muito grande daqueles conteúdos e me faziam deslumbrar ou me empolgar com determinados autores. Sei lá, José Ramos Tinhorão - não tem nada a ver, hoje, José Ramos Tinhorão com a minha vida, mas lembro que eu li o José Ramos Tinhorão, a coisa da música. Era o Ivan Cavalcante Proença, era tempo todo falava dele.
Vou citar aqui um professor do Abel que eu não citei, talvez seja justo citá-lo: um cara chamado Professor Adauro. Era um Professor de Literatura Portuguesa, um cara que tinha um jogo de cena, dando aula, muito bacana; ele vibrava ou se emocionava quando falava de algum autor. Eu achava aquilo muito bacana, você via realmente. Ali eu o admirava, a função dele como educador, em vibrar com aquilo, com os conteúdos temáticos que ele estava dando, e não era só uma vez. Ele não estava ali representando, ele realmente se emocionava. A relação com o conteúdo dele era tão forte que aí ele já dominava a sala de aula toda também.
Eu falo isso porque hoje eu dou aula, sei o quanto é difícil você, às vezes… O professor, em grande parte existe esse lamento da remuneração ou não reconhecimento. Realmente é uma coisa complexa você entrar numa sala, enfrentar ali, dar motivação aos alunos, passar os conteúdos, lidar com essas prováveis deficiências. Enfim, quando eu falo referência, talvez [é] porque eu já me identificava com o conteúdo, e eles conseguiam passar isso de uma forma, pra mim, muito interessante.
P/1 – Me diz uma coisa, você quando começou a trabalhar, inclusive ao mesmo tempo em que estudava...
R – Foi quando eu estava na faculdade, eu fui procurar um emprego para poder ajudar a pagar meus estudos, emprego formal mesmo. Fiz várias provas.
Naquela época - hoje, nem tanto - , se você pegar o Rio de Janeiro nos anos 70, você tinha, por exemplo, o mercado de varejo: era muito boutique, loja. Nos anos 80, você começa a ter uma influência dos Estados Unidos, muito forte, com a chegada do shopping center e a abertura de lojas novas, ou as antigas boutiques que já queriam dar uma estética, uma cara diferente, como rede de cadeia de loja. Então eu fui procurar emprego em loja.
Naquela época, um vendedor de loja, admitia-se muito isso, era muito bem remunerado, pela formação que não tinha. Em curto espaço de tempo você conseguia fazer um bom salário e eu pensava que aquilo ali ia me ajudar a pagar a faculdade e me dar o conforto de poder e usar também como lazer, fazer as minhas coisas. Fiz inscrição em várias lojas para ser vendedor de loja de vestuário. Uma coisa também totalmente contra a minha mãe, meu pai, de achar que eu não deveria [fazer] isso.
Acabou que teve uma loja chamada Sears, que era uma loja de departamentos que existia aqui - Inclusive tinha uma loja aqui em Botafogo, onde tem um shopping hoje. Eu fui, a psicóloga da Sears falou para mim que eu jamais poderia ser vendedor na minha vida, que eu não sabia vender. Fui pra casa arrasado e aceitei uma vaga de auxiliar de crédito, que tinha. Então fui fazer ficha de crédito na Sears, loja de departamentos. Aí eu comecei a trabalhar na Sears, só que tinha até um crachá com o meu nome escrito “Satisfação garantida, ou seu dinheiro de volta.” Era o lema da Sears.
Só que aí uma loja me chamou, que eu tinha feito ficha, chamada Cantão. Era uma loja de vestuário feminina e na época masculino. Na época, o Rio de Janeiro era Cantão e Company, não sei se vocês lembram, não são daqui, não sei se... E aí eu larguei [a Sears]. Depois o Cantão chegou a franquear no Brasil.
O Cantão tinha um tênis chamado Redley, que virou depois nome de outra cadeia de lojas do mesmo dono. E eu fui trabalhar no Cantão, como vendedor, e ainda com aquilo na cabeça que a psicóloga falou pra mim, mas fui vendedor numa loja em Niterói, em Icaraí, e tive ali resultados fantásticos. Eu fui na rede toda, eu tenho plaquinha em casa, era entre os vinte primeiros do ano. Eu estava com destaque numa loja de Niterói, que enfim, um vendedor do Rio Sul, Barra…
O Cantão também foi uma coisa pra mim que... Ganhei dinheiro, comprei um carro, fazia viagens. Na época, o telefone valia dinheiro, comprei muito telefone como investimento. Fiquei um bom tempo lá, até que, tendo oportunidade com o departamento de Comunicação da empresa, fizeram uma seleção. Participei, eu peguei a vaga. Fui trabalhar na área de Comunicação e Marketing do Cantão com vinte e poucos anos.
Na época tinha uma equipe de patrocinados, de esportes, surf, bodyboard. Eu viajei o Brasil inteiro com o Cantão e com a Redley, com a equipe de patrocinados. Viajava, tinha uma vida intensa, e desfilava no Cantão. Tem foto minha até hoje guardada, desfile, vídeo, foi um... O Cantão me deu uma autoestima fantástica. Foi uma coisa de… Se eu tinha alguma insegurança sobre os caminhos que eu pudesse dar na minha vida, o Cantão, por ser uma grife, a moda tem muito isso, como é uma coisa da onda e tal... Eu era um cara que cuidava de tudo isso.
O Leonardo até hoje brinca comigo, que eu era o “gatinho do Cantão”, usa essa expressão por causa dos desfiles. Aquilo foi muito forte: fiz uma faculdade, trabalhava no Cantão.
O mundo é pequeno. Na faculdade, eu fiquei muito amigo do Rodrigo Paiva, a gente era colega de turma. O Rodrigo fazia remo no Flamengo e nós dávamos patrocínio do Cantão, também, para a equipe de remo do Flamengo, a equipe que o Rodrigo competia, a Hidro-olímpíada. O Rodrigo, depois, no Flamengo, começou a crescer no futebol. Acabou que fez a vida em cima do futebol e hoje é o assessor de Imprensa da CBF.
A gente, nessa época, era jovem e boa pinta. Tinha muito esse momento, de aproveitar muito essa época de Rio de Janeiro. Foi uma coisa muito interessante, muito rica, muito proveitosa. Então era o Cantão, primeiro na venda, depois trabalhando na minha área mesmo. Quando fui trabalhar na minha área, aí as coisas ficaram mais calmas pra minha mãe, porque eu já estava sendo reconhecido numa atividade que eu estudei, que era Comunicação.
P/2 – Você falou que nessa época você saía muito, passeava muito. Que tipo de atividade você tinha?
R – Olha, eu saía muito, namorava muito. Tinha muitas namoradas, tinha muitas festas, eventos esportivos. Naquela época o surf e o bodyboard, nos anos 80, no Rio de Janeiro estava se consolidando de uma maneira... As associações se profissionalizando.
Eu virei diretor-secretário da OSP, que era Organização de Surfistas Profissionais do Rio de Janeiro, trabalhava muito na praia, então, minha vida era melhor. Eu vivia de bermuda, chinelo, viajando pelos principais centros surfistas do Brasil: Salvador, Recife, Ubatuba, Garopaba, o ano inteiro, com o Cantão e com a Redley. Era uma vida assim, ganhando um dinheiro, jovem; meus amigos de faculdade ainda em estágio, agência, em algum lugar, ainda com salário de estágio, e eu já numa situação muito privilegiada, digamos assim.
Aproveitei muito. Viagens, namoradas, o próprio trabalho já era uma diversão.
Esse período do Cantão, depois dessa minha juventude… Fui ficando mais velho, tendo mais responsabilidades, no ponto de vista administrativo dentro da empresa. O Cantão começou a franquear, abrir lojas em outros Estados, e todo o processo de franquia eu participei. Eu viajava para Brasília para ver o mercado, então isso também foi ótimo, um aprendizado maravilhoso de conhecer mercados. Eu gostava de viajar e aí virei um cara, na época, especializado em varejo.
Acho que o Cantão, com essa identidade visual, assessoria de imprensa, enfim, desde aquela época assessoria de imprensa… Hoje eu conto pra minha equipe lá no escritório, eles não conseguem entender, todos jovens. Fazia releases de surf na máquina datilográfica - minha mãe me fez fazer os três estágios, que é iniciante, qualificação e máquina elétrica, que era o top de linha; era o Macintosh, assim os textos _______. Então, até hoje, no computador, eu tenho habilidade na digitação por conta disso. Eu fazia na máquina datilográfica e passava o release para as redações via telex. Depois, quando lançou o fax, era o máximo, ‘pá, pá, pá’.
Meus funcionários hoje, minha equipe que trabalha comigo no meu escritório, pra entender isso é difícil. Mas até a assessoria de imprensa, nos anos 80, era uma atividade muito incipiente diante do que é hoje, nesse mercado, do ponto de vista da comunicação.
Fiquei no Cantão, vou só emendar aqui pra ter… E depois vocês perguntam. Fiquei no Cantão até 91, quando entrou o janeiro negro, que era do Governo Collor, e aí o dono do Cantão, o Peter, que assim como o Mauro Talmo era para Company, o Peter era do Cantão… O Peter Simon, que é um cara [com] que eu aprendi muito, um cara de visão fantástica, pra criar toda essa coisa da grife. O Peter me chamou pra conversar e falar que tinha que me desligar, que ia acabar meu departamento porque a empresa estava passando por um processo, ia fechar lojas. Fui desligado do Cantão, fiquei uma semana arrasado. O Cantão era tudo na minha vida naquele momento.
Era uma época... Janeiro, fevereiro, aquele época de transição, de trabalho ruim. Aí um amigo meu, chamado João Mário Linhares - grande amigo, meu padrinho de casamento… Somos amigos ainda até hoje, hoje ele é sócio do Ney Matogrosso, o João. Eu dava muito patrocínios para os shows do João, naquela época de Cantão. Ele era casado com a Verônica Sabino e eu também criei uma relação com a Verônica. Adorava o pai dela, o Fernando, a Mariana, a Sabrina fez faculdade comigo também. Todos os shows que o João tinha de música instrumental, na época, o Cantão dava patrocínio aqui no Rio de Janeiro, então viramos amigos.
O João me chamou pra trabalhar com ele; na verdade, eu tinha acabado… Desculpa, eu tinha saído do Cantão, me chamaram para ser um gerente da Shopping 126, que tinham duas lojas lá em Icaraí. A dona me chamou pra ficar ali, eu falei: “Olha, eu vou ficar, mas é temporário, porque não sei se é isso que eu quero, voltar pra loja.” Aí fiquei, era próximo ao bairro [em] que eu fui vendedor do Cantão. Fiquei dois meses gerenciando duas lojas da Shopping e o João me chamou para eu trabalhar com ele, como Produtor Executivo de um evento chamado Rio Show Festival. O Rio Show, eu conto essa história toda...
P/1 – Que data?
R – O Rio Show Festival foi em 91. Foi um projeto extremamente audacioso, porque ele ia reunir pela primeira vez, no mesmo palco, a família Caymmi com a família Jobim, ia reunir Rita Lee com Gal Costa, Tim Maia, Ed Motta, Barão Vermelho com Lobão, Gilberto Gil e Jorge Ben - era Ben, ainda - com Paulinho da Viola. Nunca ninguém tinha reunido, naquele momento, esses caras juntos, no mesmo palco. O João era um empresário de artistas, não era um produtor de eventos, então ele não tinha experiência nisso. Ele e o Wellington, que era o sócio dele, me chamaram pra fazer a produção executiva. Eu ia cuidar da produção executiva, junto com a Denise Prado, uma outra produtora. Eu também não tinha experiência nesse tamanho de evento, mas aceitei o convite; o dinheiro era muito bom e o desafio era tentador. E me engajei, no escritório ali na Glória.
O João se associou ao Diller, um cara chamado Dillermano, que fazia os desfiles da Xuxa. O Diller é super conhecido, é um cara de cinema. Então era o Diller, o João Mário e o Wellington, os três sócios. Fomos _____ show. Todo o percurso de montar o show e capitação, eu vivenciei. As pessoas não acreditavam que a gente ia fazer o show do Tom Jobim com Dorival Caymmi, no mesmo palco. Então a gente resolveu, os caras resolveram, eu junto, bancar o cachê antecipado dos artistas, pra mostrar o contrato aos patrocinadores. Os caras já fizeram um aporte, pegaram o dinheiro no banco, e eu, com aquele meu jeito de formalidade, já estava sofrendo por antecipação, com medo desse troço não dar certo. Nós fomos buscar captação; na época, a Brahma - não era nem a Ambev -, a Brahma se interessou no projeto. Falou que ia pagar, sei lá, 60, 70 por cento do projeto em cash, não existia _____, nada disso. Ótimo, já deu uma…
Começamos a trabalhar. A inexperiência... No meio do processo, já praticamente montando o negócio no Riocentro… Na época, o prefeito Marcelo Alencar não tinha… A ideia era que o Riocentro fosse uma grande casa de show da Barra. Não existia nada disso que tem hoje, via parque, nada disso existia na época. E aí, isso eu tenho muita memória, de como fiquei abalado com isso. Alguns poucos meses para o show, quando já estávamos instalando os processos do show no Riocentro - as lanchonetes que operam no Riocentro eram da Hellen´s, e a Hellen´s tem um contrato com a Kaiser, então nós não podíamos entrar lá com a Brahma, já que a Hellen´s tinha a Kaiser. Moral da história, não podíamos ter Brahma no nosso projeto, a não ser que pudesse mudar de local. Seria uma loucura, porque não ia comportar.
Resultado: fomos sentar com a Kaiser, Coca-Cola. É óbvio que o poder estava na mão deles, não conseguíamos a quantia que a gente teria com a Brahma, conseguimos, sei lá, 20 por cento do que era o valor total do evento. Viabilizamos o evento, uma dificuldade enorme. Foi um processo pra mim que eu nunca vi na minha vida.
Lembro que a polícia ligava pra dizer que no show do Tim Maia ia lá prendê-lo. E aí eu falei: “Por que iam prender o Tim Maia?” “Olha, nós temos vários motivos de ir aí e prender o Tim Maia.” Aí fiquei sabendo que toda vez que o Tim Maia fazia show a polícia ligava, ameaçando de prender, porque a polícia queria dinheiro. Eu convivia com isso pela primeira vez na minha vida, com 23, 24 anos, então era uma coisa que me machucava muito por dentro. A gente construiu o palco em cima de um hidrante do Corpo de Bombeiros, então eu tinha o cara dos bombeiros atrás de mim querendo dinheiro, eu tinha polícia, policial federal querendo entrar armado dentro do evento e toda a minha guarda de segurança funcionava desarmada. Eu era muito imaturo, muito inexperiente para lidar com aquele tipo de coisa, e eu não queria levar problema para o João Mário, para o Wellington. Eles também eram inexperientes, já estavam sofrendo com o dinheiro que botaram no negócio.
Moral da história: o Rio Show, do ponto de vista artístico, foi um sucesso; do ponto de vista financeiro foi um desastre. Os caras tiveram que vender apartamento e no ano seguinte fazer o Rio Show 2, o SP Show, também, no Olímpia, em São Paulo.
Eu já estava fora porque [quando] acabou o Rio Show, uma semana depois eu fui internado no hospital. Tive um surto de convulsão na minha casa; estava na casa dos meus pais e aí me internaram, era por causa de estresse, um somatório do que eu tinha vivido ali no Rio Show. Fui internado no hospital, depois eu fui para a clínica de recuperação, de... Eu não me lembro agora os períodos, sei que essa história toda se arrastou. Eu realmente fiquei fora de mim e saí dali me recuperando disso tudo mesmo.
Depois, saindo da clínica, uma clínica psiquiátrica, chamada Nossa Senhora das Vitórias, fui para o Santa Marta, depois Nossa Senhora das Vitórias. Saí dali já com acompanhamento médico, o médico me acompanha até hoje, que é o Edgar Porto. De lá eu comecei a tomar lítio, desde aquela época.
Talvez o Rio Show tenha sido, eu tenha somatizado alguma coisa que gerou esse forte estresse, e apontou uma depressão. Mas aí tem um resgate também: meu avô, pai do meu pai, depois a gente vai pesquisando pra entender o porquê de tudo, também era um cara depressivo, tentou suicídio; meu pai também tem um quadro de depressão, então acho que juntou um pouco essas coisas. Comecei a tomar lítio em 91, naquela época, estava solteiro. Mas só pra lembrar que em 98.. É melhor chegar em 98, falar agora não, né?
P/2 – Não, vai contando, pode ir.
R – Em 98, eu tomava lítio, eu já estava bem. Quando eu saí da recuperação do hospital já era final do ano, aí eu falei: “Vou voltar a trabalhar.” Mais uma vez a loja seria o caminho mais rápido, até por que eu estava me reposicionando ainda na vida. Fui ser Vendedor de Natal na Richards, que é uma grife masculina, aqui no [shopping] Rio Sul. Hoje a Richards é nosso cliente, lá no escritório em Niterói.
No Rio Sul, o Leonardo entrou. Ele jogava em Valência, na Espanha, com o Chico Nei, o irmão dele, o Júnior. Ele foi comprar umas roupas, comprou comigo, depois saímos pra tomar um café. Contei pra ele: “Tive um problema assim, assado.” Ele: “É mesmo?” Aí contei a história pra ele: “Tô aqui, tentando voltar pra vida.” Ele ficou curioso e perguntou umas coisas, eu contei a minha história pra ele, acabou. Continuei a minha vida, aí já entramos em 92.
Agora eu não estou lembrando o que eu fazia em 92. Ah, não, desculpa. Em termos profissionais, a Fabricatto, que era uma empresa que já fechou, de moda feminina, me chamou pra implantar um departamento de Comunicação, tal qual tinha o Cantão; ela tinha o desejo de abrir, trabalhar Brasil também. Fui prá lá, implantei um departamento. Fiquei viajando pelo Brasil, abrindo a marca da Fabricatto. Foi lá que eu conheci a minha esposa, a Raquel, [ela] trabalhava na fábrica.
É melhor parar aí prá ver onde eu vou, se não eu vou...
P/2 – Cezar, você pode ir, é sua linearidade. Você está selecionando, não se preocupa.
R – Então em 92...
P/1 – Como você a viu lá na fábrica, era funcionária?
R – A Raquel era uma gerente de produção da fábrica, e, eu na época, estava implantando um departamento. Entrei na Fabricatto em, sei lá, abril, conheci a Raquel, mas a Raquel ia viajar. Já estava com uma viagem comprada, tudo certo, ia estudar Moda em Florença. Ia viajar em agosto, uma coisa assim. A gente viveu um affair, mas já sabendo que era em tom de despedida.
Fiquei na Fabricatto esse ano, foi um ano tranquilo, trabalhei, me envolvi com a Raquel, a Raquel viajou. Quando a Raquel viajou, ficamos um tempo nos correspondendo por carta, não tinha e-mail. Muitas cartas estão guardadas até hoje. Chegou uma hora também que eu vi que não ia funcionar essa coisa de carta. Ela veio em dezembro passar o Natal aqui e a gente terminou, eu comecei a namorar uma outra menina que era gerente da Fabricatto, a Márcia.
Fiquei namorando a Márcia [em] 2003, trabalhando na Fabricatto, enfim, a minha vida era isso, tranquilo demais. Já morava sozinho; desde essa época que tive o Rio Show, já tinha saído de casa. Fui morar em um apartamento sozinho, cheguei a morar aqui no Rio, em Botafogo, dividindo o apartamento com uma namorada. Depois fui morar em uma casa em Itaipu, um amigo meu foi morar na Europa e fiquei cuidando da casa. Tinha cachorro, eu comprei um Land Rover velho, 57, enfim, vivi um momento tranquilo, de curtir a vida, sem muitos planos. Quando eu saí do hospital desse meu surto que eu tive, vendi um carro que eu tinha, comprei um Jeep, esse Land Rover e queria relaxar: fazia natação de manhã, fazia travessias de natação, estava assim, querendo não me estressar com mais nada. Foi um trauma muito forte.
Em 93 pra 94, a Raquel voltou da Itália, Florença. Eu, na verdade, estava com a enina Márcia, mas eu não... Tinha planos com a Raquel, gostava da Raquel. Então, quando a Raquel voltou, terminei com a Márcia e reativamos um namoro com a Raquel - em 94 que eu estou, foi a Copa de 94. Eu morava sozinho, a Raquel já começou a ir prá lá, ficar comigo, dormir. Foi ficando, foi morando comigo.
Foi essa Copa de 94, quer dizer, já tinha uma ligação, vamos dizer, uma boa reaproximação minha com o Leonardo. O Leonardo, no ano de 93 pra 94, ele se casou com a Bia - estou tentando associar, lembrar essa data. Eu fui ao casamento, estava com a Raquel. A gente se reencontrou dessa forma e começou a ter uma certa convivência por causa das esposas, que eram primas-irmãs. Então eu já tinha uma relação ótima, a gente apenas se reaproximou e se via com mais frequência.
No meio do ano de 94, Leonardo [estava] na Copa dos Estados Unidos, foi aquela Copa da cotovelada e tal... Grrr! O Lucas nasceu e tinha todo aquele agito, porque a Globo fazendo via satélite, o Leonardo lá, a Bia aqui, os pais da Bia e tinha muito assédio de imprensa, de tudo, por causa do nascimento. Naquele momento ali, já tinha uma relação de convívio, porque eu mesmo dei umas sugestões e orientações de abordagem com a imprensa, não expor tanto a criança, que nessa hora aparece o cara com o boné da Golden Cross e aí vem a Revista Caras fotografar, enfim, então é... Ali já tinha uma proximidade, acabou tendo uma proximidade maior, mas eu trabalhava na Fabricatto.
Quando chegou em dezembro de 94, eu resolvi pedir demissão da Fabricatto e montar meu escritório, trabalhar por conta própria; o Leonardo, na época, jogava no Kashima, Japão. Eu o procurei pra ver se ele não queria um trabalho de Assessoria de Imprensa. Ele falou que ele nunca teve porque nunca se identificou em ter ninguém noticiando nada dele, tudo era muito natural. Eu falei do meu trabalho, não tenho experiência do futebol, mas tinha uma relação com ele. Sei que ele falou: “Olha, vamos fazer uma experiência então. Você também é um cara que não é do futebol, mas vamos ver.” Acho que ele fez mais foi pra me ajudar. Eu disse que eu tinha saído de um emprego e estava buscando, então eu acho que ele foi mais por camaradagem.
Naquela época, ele estava no Kashima, no Japão; ele estava aqui fazendo pré-temporada pelo Kashima e aí eu comecei a trabalhar pra ele, ali, fazendo, tentando uma assessoria de imprensa, dele jogando no Japão, pra noticiar aqui no Brasil - que é uma coisa muito complicada, porque o Japão não é um grande centro de futebol europeu, então dificilmente a mídia aqui cobre o Japão, cobre mais o que acontece na Itália, Inglaterra, França. Eu tive muita dificuldade de poder divulgá-lo, e assim chegou um momento que a gente quase não se falava mais. Realmente estava difícil, já ia até encerrar, por que tinha outros clientes operando junto comigo, no meu escritório. Mas aí aconteceu dele, conversando com o Raí, alguma coisa assim… O Raí conseguiu, enfim, o Paris Saint-Germain se interessou pelo Leonardo. Leonardo ia se transferir para a França. Aí a coisa ficou diferente, porque a França, além de estar lá com o futebol que é mais visto, que tem uma aceitação melhor aqui pela imprensa, era o país que ia sediar o Mundial de 98. Estávamos já em 96, o trabalho com o Léo seria fazer com que ele desse visibilidade à atuação dele lá, noticiasse o que ele estava fazendo lá, prá poder até pleitear uma convocação dele pra Seleção.
Fiquei trabalhando esse período, 96, 97, 98. Foram anos ótimos, o meu escritório cresceu muito; a Raquel tinha uma confecção, e a confecção dela também cresceu. A gente estava muito bem, a situação ótima, casa, carro, tudo maravilhosamente bem, aí, em março de 98, nasce o meu primeiro filho, o Joaquim Pedro. Naquele momento, eu, por conta própria, não falei nada com ninguém, nem com a Raquel: eu parei de tomar o lítio. Eu estava num momento muito bom, achei que não precisava mais da medicação. Não avisei o médico, não avisei ninguém; eu, por conta própria, sozinho, parei.
Veio abril, maio, junho, veio a Copa do Mundo. Fui pra Copa do Mundo na França por causa do Leonardo, a convite dele; já trabalhava com ele, uma relação intensa, ótima, uma imagem dele na mídia maravilhosa. Fui pra Copa, o Brasil perdeu a Copa, eu estava lá também, o Leonardo muito abalado; a Raquel já estava grávida do João, meu segundo filho, que viria a nascer em abril de 99.
Esse ano de 98 foi um ano bem marcante. Esses ocorridos, a gente estava muito bem profissionalmente, você vai à Copa do Mundo, meu filho nasceu, larguei o lítio, achei que... Quando chegou em dez de dezembro de 98, eu tomei um vôo no [aeroporto] Santos Dumont pra São Paulo com Dona Aurélia, mãe do Leonardo, pra cerimônia de inauguração da Fundação Gol de Letra. Foi instituída em dez de dezembro de 98, dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma cerimônia... Já no avião, na ida, eu não estava me sentindo bem, estava um pouco tonto, mas eu achei que era um mal-estar do avião e passei a cerimônia toda um pouco atordoado, assim, não sabia... E aí comecei, talvez, a me dar conta de que aquilo poderia ser um efeito de eu ter largado o lítio. Comecei a pensar nessa hipótese e já estava louco prá tomar o voo de volta.
Tomei o voo de volta com Dona Aurélia e no Aeroporto, no estacionamento da Infraero, tinha uma senhora, na porta, distribuindo um santinho, uma coisa assim. Eu peguei aquilo, li a frase do santinho, mas acho que consegui sair um pouco de mim pra ver que eu não estava bem. Eu estava começando a achar alguma justificativa na frase daquele santinho, durante algum tempo eu guardei aquele santinho.
Aí voltei dirigindo pra casa, cheguei pra Raquel e falei: “Raquel, eu não estou bem, acho que eu estou surtando de novo. Liga pra minha mãe, que passou todo o processo anterior.” Minha mãe chegou, olhou pra mim e falou: “Ah, não tenho dúvida.” Tentou achar o médico, meu médico estava viajando, aí veio um outro médico, me deu uma dose de encaminhamento e aí fiquei um tempo monitorado por esse médico, em casa. Mas não estava funcionando muito bem, eu alternava a euforia e momentos de depressão, e comecei a dar muito trabalho.
Não tenho uma memória exata do que aconteceu, sei que dei muito trabalho para as pessoas. Até que um dia, esse dia eu me lembro, chegou um grande amigo meu, o Breno, que era do Abel, junto com uns caras atrás. Era uma ambulância que ia me levar pra uma clínica psiquiátrica. Fui internado novamente; foi um processo - tinha que ser mesmo -, à força, muito doloroso ficar lá até quase que me regular de novo, pra voltar a si.
Voltei já medicado com meu médico anterior, só que a Raquel [estava] grávida do João, que ia nascer em abril. A gente está falando aqui de janeiro já de 99, o Joaquim não tinha nem um ano. A Raquel já tinha combinado de dar uma desligada na confecção dela por conta da gravidez, e meu escritório era uma coisa que dependia muito de mim. Eu era o assessor, cuidava das coisas do Léo, como de outras pessoas. Eu tinha uma equipe muito enxuta e o meu escritório era a grande fonte de sustento da minha casa. Morava numa casa grande, com carros e aí quebrei: vendi carro, vendi tudo, raspei uma previdência privada, enfim, foi um momento.
O João nascendo, eu tive uma certa rejeição ao João, não encostava, foi um processo muito complicado esse ano de 99, eu não tenho exatamente uma memória muito boa nisso. Estava medicado, transtornado e as pessoas não me contam muitas coisas depois, dizem que é a memória seletiva, que você tem que tentar. Mas foi um ano muito difícil, desse de perdas, e zerei tudo, teve clientes que não me aguardaram, porque eu trabalhava por fee mensal, encerrou.
Ainda em 99, em termos de ajuda, mais uma vez o Leonardo, ele me ligou. Ele não falava isso claramente para mim, mas ele estava ali, falou: “Cezar, você começa fazendo umas pesquisas pra mim de Terceiro Setor, porque eu quero abrir um negócio com o Raí?” Mas foi uma coisa nada oficial, foi um pedido dele pra me distrair, pra ele me dar alguma remuneração. Ele já começou a me ajudar ali, porque ele me botou pra… De certa maneira, me conhecia, então acho que ele pensou assim: “Botar esse cara para escrever, para pensar, que ele vai ficar bom por aí.” Acho que ele deve ter pensado por aí.
Comecei a futucar coisas, ocupar meu tempo, voltar com a minha autoestima. Comecei a fazer pesquisa pra ele, mandar coisa pra ele - já existia e-mail, mandava pra ele, aí ele falava: “Legal, pesquisa mais... Vai.” Enfim, me ajudava ali. Eu tinha me mudado dessa casa, fui morar num apartamento menor, alugado, até que fui voltando com meu escritório. O Leonardo tinha comprado umas salas num prédio em Icaraí; ele pegou um amigo dele de Niterói, o Careca - na verdade ninguém me falava isso, mas as ações foram essas: o Careca me procurou pra eu ocupar uma sala com ele, nesse prédio, uma sala do Leonardo, e não me dava muitas explicações. Moral da história: eu não queria ir, eu não me achava capaz. Aí o Leonardo ligava e: “Vai lá, fica com o Careca.”
O Leonardo foi fundamental pra poder me botar vivo de novo. Ele montou uma sala pra mim, toda equipada, junto com o Careca. O Careca dizia que ele ia fazer uma atividade dele lá, e eu fiquei nessa sala remontando a minha vida, o meu escritório. Tudo com a ajuda do Léo, nesse sentido. Fui ficando lá e acabou que eu fui, de uma certa maneira, trabalhando para o Leonardo; o Leonardo foi para a Itália.
Nesse ano de 2002 - de 99, já tinha aberto a atividade em São Paulo, na Vila Albertina, a Gol de Letra, e eu ia a todos os eventos com a mãe do Léo, acompanhando a Dona Aurélia, e vivia a Gol de Letra assim. Em 2000 também, uma pessoa conhecida minha foi indicada pra dar aula na universidade, ela falou que não poderia, me indicou pra eu poder ir lá. Fui lá fazer a entrevista, comecei e virei funcionário da instituição. A faculdade também me deu autoestima, de poder me sentir vivo de novo, e aí fui trabalhando.
Em 2001 inaugurou a Gol de Letra Niterói. No escritório já atendia em sistema de voluntariado, até porque eu sempre tive uma gratidão enorme pelo Leonardo, por tudo o que ele sempre fez por mim, de me dar oportunidade de confiar e de estar. Fiquei trabalhando assim, meus filhos já nascidos.
Em 2002, foi quando o Leonardo tinha já voltado para o Brasil, já tinha passado a vida dele no Milan, ele encerrou a carreira dele no São Paulo, depois no Flamengo. A ideia dele era ficar em Niterói, na Gol de Letra, e me chamou pra ficar junto com ele. E eu aceitei, só que quando aceitei, um mês depois ele foi jogar um amistoso na Croácia, na despedida do Bogan do Milan, e lá o pessoal do Milan fez um convite prá ele voltar prá Itália, num cargo administrativo. Ele me ligou de lá e falou: “Olha, tenho um convite e acho que vou aceitar, o que você acha?” Eu falei: “Pô, eu estou aqui na sua Fundação, aceitei por causa de você. Não tenho a menor condição de trabalhar em Fundação, só estou aqui porque foi um pedido seu e tudo o que eu tenho de coisas, eu devo a você. Você me ajudou, agora você não estar aqui, como é que eu vou fazer?”
Ele voltou, conversamos: “Você fica à vontade, se você não quiser ficar, você não fica.” Mas eu já tinha criado uma relação com o Sóstenes e com o Raí muito positiva, eu tive... E falei pra eles: “Fico um pouco preocupado, porque a minha vinda é por causa do Léo. Nunca trabalhei nisso, quero ajudar, mas... O Sóstenes e o Raí foram extremamente fraternos, carinhosos, com um acolhimento a mim: “Fica à vontade, mas vamos ver. Se por acaso você não se sentir bem, acho que você tem todo o direito.” Então eu resolvi ir ficando.
Fui ficando, fui gostando. A questão da educação, por um lado… Na faculdade, eu já gostava de dar aula e eu resolvi fazer uma pós em docência, pra saber se... Aliás, a faculdade avisou que ia ter uma condição futura, de que iam ficar poucos professores que não tivessem mestrado, então era importante a gente se qualificar. Resolvi fazer uma pós também por causa disso. Gostei da pós, estava gostando da experiência na Fundação, estava participando de um momento de crescimento da Fundação, tanto é que depois eu resolvi fazer um mestrado, é um mestrado em História Política de Bens Culturais e Projetos Sociais, que é um mestrado com uma linha mais próxima de discussões do Terceiro Setor. Aí eu fui ficando na Gol de Letra, me afastei da minha empresa. Isso foi até o ano passado, funcionando assim. Falei muito, né?
P/2 – Nossa, maravilhoso! Eu queria pegar alguns ganchos. Vou voltar para uma coisa lá atrás... Na primeira vez que você tem um surto, quando você volta, que você passa um tempo, qual foi o aprendizado que você tirou daquele momento, Cezar?
R – Primeiro ver que a vida da gente, qualquer um está sujeito a passar por alguma coisa que você pode... Eu vivi três momentos assim: esse surto, o primeiro, o segundo surto, mas em 96, 97, teve um outro lance também. Eu tive uma apendicite. Estava casado com a Raquel, sem filhos, me internei para fazer uma cirurgia e a apendicite complicou, eu tive toda a minha parede abdominal infeccionada. Você... não existe nem cirurgia pra isto, as pessoas morrem. Eu fiz quatro cirurgias em um mês, era praticamente uma por semana, na minha parede abdominal, estava tudo assepsemia, tudo infeccionado. Terminei a minha quarta cirurgia com uma colostomia, que foi o que o [vice-presidente] José Alencar colocou ontem, e talvez ficasse colostomizado para o resto da vida, ou talvez, conforme fosse, poderia tirar aquela colostomia.
Foi um momento que eu tinha trinta anos de idade, recém-casado com uma mulher, momento profissional muito bom, mas completamente atordoado. Fiquei três meses colostomizado, então pra tomar banho, os cuidados que isso tem… Eu ia a uma festa, se eu comia um salgadinho, já dava uma... Como interrompia, ia direto aqui pro saquinho, então eu tinha que correr para o banheiro, aquilo saía. Eu chorava junto com aquele procedimento, não queria que a minha esposa me visse chorando. Então eu diria que essa parte foi muito dura. Eu questionava se era válido eu continuar viver, porque eu tinha um grau de maturidade, achava que não compensaria ficar daquele jeito. Dividia isso com a minha mulher, tentei fazer, nada disso deu certo comigo, de psicólogo, terapeuta, eu não... Era agressivo com essas pessoas, profissionais. Então era um ano muito complicado.
Fui tirar a colostomia, a coisa funcionou bem, a minha... o meu xixi não estava pra voltar ao normal. Os momentos mais felizes da minha vida foi quando eu sentei no vaso e vi que podia evacuar novamente. Uma coisa muito doida, né? Uma coisa que é uma necessidade que você tem, mas que vira uma coisa... Mas foi assim, isso foi barra pesada, e depois disso que veio a questão do segundo surto.
Acho que o aprendizado que eu levo daí é por meio da Gol de Letra - eu aceitei a Gol de Letra porque eu também já queria, de alguma maneira, dar uma quota de contribuição por um ser humano, qualquer que seja. Eu já estava no lucro já, só de estar vivo, por ter passado por esse episódio do apêndice que infeccionou. Então a questão com a Fundação Gol de Letra também passa por isso, passa, assim, de talvez entender o outro, de entender a vida, escutar mais, ser mais ouvinte, talvez ser menos ambicioso com outras coisas; talvez ser, valorizar um pouco o presente. Muito disso tem a ver também com o estado de saúde que eu tive, que eu consegui superar. E a minha relação…
Por exemplo, hoje eu não precisaria estar no Observador de Favelas, no ponto de vista econômico, financeiro, o que for. Mas se me solicitaram e veem que eu tenho como contribuir, eu vou querer fazer. Você fica muito assim, querendo dar o retorno sempre.
É um sentimento que eu tenho, sabe? Eu estou mais tolerante, eu estou mais... Estou aceitando melhor. Eu não era muito assim, não. Eu acho que isso... E quando eu falo da Gol de Letra, eu sempre falei que eu acho que os valores da Fundação Gol de Letra se confundem muito com os valores do Leonardo e do Raí. O Leonardo foi um cara para mim muito bacana, muito presente, muito companheiro. Pode parecer assim, às vezes eu não gosto de usar essas palavras, fica um pouco chavão, foi o irmão, foi o companheiro, mas ele foi uma pessoa, um sujeito de uma enorme sensibilidade, de uma enorme generosidade. Trabalhei para ele durante quatorze anos. Considero o Leonardo um homem sensível, afetuoso, fraterno, generoso, mas também um homem exigente, um cara muito crítico. Não é fácil você trabalhar o tempo todo, ele tem um nível de perfeccionismo, de exigência muito grande, muito mesmo. Foram anos maravilhosos de trocas saudáveis, ricas, não só pelo nível profissional, como da amizade, como também do convívio das famílias, ele como pai, como marido, como homem. Então eu não sei até onde é a Gol de Letra ou é ele, porque a Gol de Letra não me procurou, eu também não procurei a Gol de Letra. Minha questão toda sempre foi ele. Toda a minha conduta, até como gestor - obviamente eu via que tinha que ter os alcances para a Fundação Gol de Letra, mas o meu papel, o tempo todo era satisfazer o que ele imaginava, aquilo que ele idealizou. Eu não poderia faltar, não poderia furar, não poderia decepcionar; não poderia não cumprir aquilo que ele pudesse esperar enquanto expectativa, da organização ou de mim. Então, essas coisas, você vai olhando para o retrovisor. É isso.
P/2 – Cezar, só uma coisinha: você colocou aqui, na Gol de Letra… Inicialmente eu entendi que você tinha lá o seu escritório e que ajudava a Gol de Letra. Mas depois, quando o Leonardo ficou na Itália, você assumiu uma outra função na Gol de Letra.
R – Eu virei funcionário da Fundação Gol de Letra, com carteira assinada; virei um diretor, cumprindo carga horária.
P/2 – E como foi isso, em que função, o que você começou a fazer? Aliás, como Comunicação primeiro, qual era o trabalho que você...
R – A minha empresa, quando… Toda a divulgação da Gol de Letra aqui no Rio, a minha empresa cuidava, então lançou um projeto em Niterói, alguma coisa, a gente chamava a imprensa, ia lá, ajudava a organizar o evento, tudo isso. A minha empresa era uma empresa parceira da Gol de Letra, em sistema de voluntariado. A gente não cobrava nada, sempre foi assim, representada por mim ou pela minha equipe. Eu tenho uma assessoria de comunicação, comunicação empresarial. Hoje é também, mas hoje faço outras coisas; naquela época eu só fazia assessoria de Imprensa e eventos. Então eu já cuidava do Leonardo, da imagem dele, da assessoria, era remunerado pelo Leonardo. Começávamos a cuidar da Fundação nesse sentido.
Em 2002, eles me chamaram para assumir um cargo de diretor da unidade de Niterói. E um tempo depois eu virei, além de diretor da unidade, diretor de Comunicação e Desenvolvimento Institucional, e fazia parte também do Conselho Gestor. O que era isso? Eu fazia gestão operacional da unidade aqui, o Rio também, já existia o Rio. E eu ia pra São Paulo, ficava lá terça, quarta e quinta, ou terça e quarta, ou quarta e quinta, dois dias da semana, junto com o Sóstenes pra gente fazer… O Leonardo na Itália, Bia na Itália, então eu, o Sóstenes e o Raí éramos o grupo gestor presente. O Leonardo e a Beatriz estavam lá fora e a gente discutia linhas e parâmetros da gestão da Fundação Gol de Letra: tudo, desde parte de captação de recursos, administrativo financeiro. Nós fazíamos uma gestão compartilhada, uma gestão participativa, com o diretor daqui, que era eu, o Sóstenes lá, e o Raí, instituidor. Assim foi por um bom tempo; até a decisão de fazer o desmonte do modelo de Niterói e concentrar mais no Rio de Janeiro, funcionava dessa forma. Era isso.
P/1 – Mas nesse período, o que você viu evoluir... A Gol de Letra, você não só assistiu, você contribuiu com isso. Como você descreveria esse processo de crescimento da Gol de Letra?
R – A gente cresceu muito. Quando peguei a pasta da minha direção, pra você ter uma ideia, as duas unidades, você tinha um custo ano de 800 mil reais. [Quando] eu larguei a pasta, nosso custo [por] ano era [de] 5 milhões, então foi um crescimento muito grande, em decorrência de uma série de coisas. A gente às vezes não conseguia dar limites às demandas; surge um projeto, aí aquele projeto acabou, a turma se empolga e faz outro, aí a comunidade pede, quer dizer... Nós fomos fazendo uma série de coisas, talvez nos esbarramos com uma série de momentos também difíceis da economia. Talvez eu acho que tenha um erro estratégico grave: foi nós não deixarmos a captação ficar muito em função da imagem do Raí e do Leonardo. Talvez fosse interessante a Fundação ter uma certa autonomia na sua sustentabilidade, isso é muito ruim até prá eles, porque toma a agenda deles, toma a preocupação deles. Então você ______ favelas, não tem ninguém que seja... É uma ONG que tem uma visibilidade ótima, que tem seus projetos, que tem o seu custo, que também não é pouco, mas não tem a dependência de alguém. Quando você tem dependência de alguém, é uma coisa que você tem que saber lidar com isso.
Acho que a gente não conseguiu criar uma sustentabilidade, que a gente cresceu demais mesmo, acho também que não poderia ser assim. Eu, particularmente, sempre acreditei, colocava isso para o grupo, que a gente precisava dar uma horizontalizada em vez de verticalizar. Em vez de você pegar - isso é até uma opinião contrária do grupo, o Sóstenes e todo mundo - em vez de você pegar a Vila Albertina e fazer tantos projetos lá, você pode… Sei lá, se a montadora Ford tem uma cidade não sei onde, que ela quer o entorno, ela tem o recurso pra fazer, vamos botar um Gol de Letra lá; tem a Ford lá que vai aguentar aquilo, então tem interesse. Verticalizando, é difícil a Ford ter interesse na Vila Albertina. Então existe uma discussão já assim, mas a gente não tem uma fórmula certa ou errada.
P/2 – Cezar, eu vou fazer duas perguntas para você, uma central, mas a primeira eu vou aumentar, eu vou remendar o seu bolso. Você fala que vocês cometerem um erro estratégico de usar muito a imagem, estou só fazendo uma reflexão, usando muito a imagem em cima do Raí e do Leonardo. Que estratégia você acha que seria interessante, em termos de utilizar… Será que não usar essa imagem de uma forma mais viral, por exemplo, deles falando sobre a Gol de Letra, numa internet, você pegar o social e ficar depositando um valor pequeno, em vez de você buscar um patrocínio grande por uma organização. Eu queria que você falasse um pouquinho, como você vê que você poderia dar a solução para essa questão.
R – Quando eu falo erro estratégico, eu faço parte do erro, se é que houve um erro. É uma interpretação que eu analiso hoje, mas sempre me incomodou, ao mesmo tempo que é fácil… Claro que se você olhar dez instituições ali, se essa daqui tem o Léo e o Raí, só de cara, dois homens com uma imagem pública fantástica, de confiança, de credibilidade, num país que é raro ter uma imagem pública fantástica de alguém… E em alguns casos do esporte isso ajuda, é um lado fácil. Por outro lado, o Raí pode querer morar um dia em Moçambique, sei lá, ou na Índia. O Leonardo pode, como já mora fora, quer dizer, isso tudo é ruim, eu não sei até onde vai essa dependência que eu estou falando. Os caras vão ficar assim até quando?
A Gol de Letra, ela tem que existir pra toda a vida, Raí e Leonardo um dia podem morrer, vão morrer, todos nós vamos morrer. Esse era um problema que eu via, então a Fundação deveria criar uma forma de ser autossustentável, com exclusividade única dos projetos que ela faz nas suas práticas sociopedagógicas. E pra isso você tem que fazer um afastamento forçado do Raí e do Léo, porque senão eles sempre vão abafar isso, não tem jeito. Por mais que ela possa ter um programa de excelência, com atendimento a crianças e adolescentes, situação de risco social reconhecido pela Unesco, coisa e tal… Até onde a Unesco deu esse título porque o representante da Unesco adora o Raí? O Brasil e o mundo são um pouco assim: porque ele torce para o São Paulo, então ele adora o Raí, ou realmente de fato existe uma aferição baseado em ‘x’ que aponta que aquela instituição… São questões que tinham que ser estressadas, ou ainda tem que ser estressadas.
Quando eu coloquei assim, do erro estratégico, são coisas que eu não tenho resposta ainda, mas que eu acho que é um lado bom e é um lado perigoso. Como eu vivi um lado perigoso, pra mim foi muito doloroso, da noite para o dia terminar, demitir quarenta pessoas no mês de janeiro, e sem ter tido um planejamento. Não teve um planejamento, foi uma coisa muito de impulso, então esse é um lado que mexeu um pouco. Não digo que vá mexer assim por mim porque eu sinto, mas eu tenho o meu escritório, sou professor universitário, eu tenho outras formas de viver. Eu não dependo só do salário da Fundação para viver, mas mexeu porque eu estava no trabalho, eu era o comandante do barco e eu tinha quarenta pessoas abaixo de mim, um número muito grande. Eu não consegui me preparar, adequadamente, num tempo hábil para isso.
Esse foi um lado que, se foi como foi, é porque tinha que ser feito, e se tinha que ser feito foi um erro estratégico, aí que eu quero chegar, entendeu? Claro que hoje a fala que a gente tem, a fala institucional [é]: “Não, Niterói não fechou, é que vamos concentrar tudo no Rio.” Quer dizer, fala o que tem que ser mesmo, não tem necessidade de ter uma fala melancólica ou de derrota, ou o que for, mas o fato é que você dá um corte nevrálgico num trabalho reconhecido e bem avaliado, pela avaliação que foi feita pela Cristina Bertozo, pela Cesgranrio, pela Unesco também. A equipe vai, tem uma robustez, de repente aquilo tem um corte seco, é um pouco ruim. Então isso abalou.
Não vou dizer que foi um momento difícil na minha vida, porque eu já narrei aqui outros que foram realmente... Agora, foi um lado, realmente, que eu atribuo a esse erro estratégico, que é estratégia; acho que não foi culpa do Cezar ou do Leonardo, ou do Raí. Não é isso, acho que foi um erro de gestão de um plano estratégico, não sei como é que você lida com isso. Até hoje… Não sei como é que está hoje, falo informalmente com a Beatriz ou com o Sóstenes ou com o Raí, mas acho que até hoje é o risco que você tem que saber que você corre, porque há uma dinâmica, mesmo, do mercado.
P/2 – Cezar, deixe eu trazer uma questão. Você trouxe a questão da imagem e pra mim tem uma hipótese, inclusive que nós, na hora de olharmos pra isso, pensamos, e acho que está muito ligado a essa questão da imagem. Quando você você ganha a Copa e começa todo o investimento, vários esportistas começaram a trabalhar com a questão social e que eu acho que isso tem muito a ver com o movimento.
Isso é uma hipótese: depois de vinte e poucos anos sem ganhar a Copa tem aquela comoção nacional em função de uma Copa ganha, tem todo um movimento. Acho que é uma percepção desses esportistas: “Olha o que a gente pode fazer”, usando um pouco essa imagem. De lá prá cá, inclusive, a imagem de alguns destes esportistas são utilizados para ações sociais. Isso seria uma hipótese e quero que você comente também um pouco: o que isso, de uma certa forma, traz nessa sua fala de ser perigoso usar a imagem por tanto tempo, se é o caso.
R – É, ela pode se misturar um pouco sim. Por exemplo, se você for pegar o Brasil, a gente saiu de um período longo de ditadura militar, período de repressão, e a gente tinha sempre um… A população cultivava essa coisa do herói, daquela coisa do espelho. Fernando Collor de Mello seria o grande presidente dessa leitura interpretativa do grande herói, salvador da Pátria, “caçador de marajás” etc. Isso tudo foi por água abaixo a partir do momento do impeachment, estamos aí a caminho de 94 e ficamos assim. A questão do esportista, o desempenho, a performance dele na atividade que ele faz e o bom resultado disso, aliado hoje à grande sociedade midiática que a gente vive - porque esses grandes feitos são retratados do ponto de vista eletrônico, impresso, o que for, e isso faz com que ele seja um cara diferenciado ou que ele tenha um brilho diferenciado; dependendo da conduta dele, se ele tiver ali no mínimo uma fala coerente, um equilíbrio no discurso dele, ele já é, sabe... O Leonardo, o Raí, o Kaká, o Alexandre Pato… Aí você pega o Romário, o Edmundo, pelas turbulências que tem ainda, tem tido bons resultados. Essa questão do esportista tem a ver com o meu estudo, com a questão do carisma, e carisma, segundo Weber, é uma forma de poder.
O Max Weber define poder e autoridade com três eixos. O primeiro é a autoridade baseada na lei, que é a lei que você obedece, é o que rege a sociedade, a polícia, a justiça; é uma forma de autoridade e poder. A segunda, baseada na tradição, aquilo que historicamente você herda, que aquilo você não pode fazer porque a tradição diz, ou a sua mãe disse que a sua avó já dizia, e é baseado no carisma, que segundo Weber, é a única capaz de uma ampla transformação social, ainda que os seus líderes carismáticos não se deem conta disso. Eu encontrei isso no esporte, no esportista. Aí é que é o fundamento disso.
Essa base de estudo de Weber, baseada no carisma, foi também motivo de estudo do Frei Betto, ao falar do Lula. O Lula também, ele é uma forma de poder baseado no carisma. O Lula não tem Sorbonne, Fernando Henrique, não tem um repertório acadêmico. Foi tudo em função da trajetória de vida dele, ao longo dos anos, e o quanto isso impactou o carisma… Ainda é até hoje, o jeito do Lula conseguir ser bem-sucedido em algum encontro com outra autoridade internacional, um outro... Vai muito a questão do carisma.
Acho que esse ponto dos esportistas é assim: aproveitar isso e poder dar a quota de contribuição na sociedade na qual eles estão inseridos. Teve um grande avanço, porque antigamente o cara jogador de futebol queria dar cobertor, dar saco de feijão; enfim, hoje ele já entende que pode usar isso dele em prol de um projeto que tenha começo, meio e fim, e isso até vai beneficiar a imagem dele. Sempre eu costumo brincar isso com o Raí, que está no Brasil. Hoje o Raí é um homem público procurado, por exemplo, em publicidade, porque tem uma imagem muito boa, de credibilidade, de carisma, que é da capacidade dele, talento dele como esportista, e também como homem de Terceiro Setor, à frente de uma instituição bem-sucedida; isso também é uma via de mão dupla, dessa forma. Então esse meu raciocínio se mantém.
Acho que o grande desafio eu vivi uma primeira etapa, por isso que eu me incluo no erro estratégico, se há; eu vivi a primeira etapa de usar o esportista, porque todos nós bebemos da fonte do Ayrton Senna. Eu cito também no estudo que o Ayrton, naquela época, era o grande herói nacional, ele morre e há toda uma comoção; então a figura do Ayrton, enquanto esportista, homem de bem brasileiro, esses caras beberam, também, nessa fonte de querer... O Ayrton já tinha… Não existia o Instituto, mas ele falava que gostaria de fazer alguma coisa e ele já fazia, sem nenhuma divulgação. O caso do Ayrton é um caso curioso, porque ele morreu e a Viviane rotinizou o carisma dele. Mais uma vez, Weber: rotinizar o carisma, ou seja, ela absorveu os valores dele e passou a ser a representação dele nessa esfera. Então, como o Raí, o Léo, o Cafu, ninguém morreu, não tem que rotinizar o carisma porque existem. Eu, por várias vezes, eu ou o Sóstenes éramos os representantes legais do Raí e do Leonardo; eu acho que funcionou e funciona, mas ainda tem a figura porque eles estão aí, eles estão em evidência.
Eu estou falando tudo isso no ponto da captação. Então é claro que se eu vou numa instituição bancária falar com o Presidente do Santander, ele vai me receber muito bem, vai me apoiar, mas ele vai querer conhecer o Raí, porque ele era são-paulino, ele acha o Raí um cara maravilhoso. Enfim, ainda existe isso. Como a gente conjuga isso? Essa é a etapa agora, tem que se discutir isso. O que a gente viveu até agora, se a gente não vivesse, eu não ia estar falando isso aqui. Então eu acho que o percurso que foi feito é o que tinha que ter sido feito, é o que os outros até estão fazendo.
Hoje o Alexandre Pato quer montar um Instituto, o Kaká tem uma relação com a igreja, não sei se quer; outros meninos jovens querem tomar como modelo de base esses meninos: o Raí, o Léo, o Cafu. Nesses casos é que tem que pensar: bom, como é que a gente faz isso, minimizando riscos? Isso é um exercício do aprendizado, o que foi feito até agora é o que tinha que ser feito mesmo, mas existe esse risco e as experiências que nós vivemos têm que ser pegas e relatadas pra poder evitar casos semelhantes. Não sei se eu me fiz entender.
P/2 – Sim. Uma outra pergunta que eu queria te fazer. Você fala que vai trabalhar na Gol de Letra pela Gol, mas tem uma questão do Leonardo, e pra preservar dependia dos valores e do que ele queria dessa instituição. Eu queria que você colocasse, com as suas palavras, o que ele queria, quais eram esses valores.
R – Ah, sim. Quando eu falo, realmente, eu estou sendo sincero. Eu não fui trabalhar na Gol de Letra em nenhum momento pra querer… A minha cabeça nunca foi a Gol de Letra, foi o tempo todo foi ajudar os desejos do Leonardo, um cara que...
Acho que o Leonardo… Vou dar a minha interpretação. O Léo sempre foi um homem sensível, um garoto com uma educação, um aluno brilhante na escola, um cara adorado, queridíssimo pela escola, por quem estudou ou estuda lá até hoje, ou na rua, por onde ele passa. Ele é um cara que sempre traçou uma trajetória de integridade, de índole, de caráter. Uma coisa que sempre o atormentou muito - acho que é um tormento dele, isso foi uma época muito crítica -, é a questão do dinheiro, a questão da ascensão financeira. Foi uma coisa que ele, no início, tinha dificuldade de lidar, então ele queria… Ele tinha, e como todo jogador tem muito rápido; ao mesmo tempo, era um transtorno ter isso num mundo de tanta injustiça ou de tanta violência, pobreza, miséria. Depois disso, numa esfera mais mundial, ele foi ficando mais, estudando mais, entendendo mais. Ele tem números na cabeça de miséria mundo, não sei o quê... E isso vira um tormento pra ele.
Eu sabia que isso vira um tormento porque já tive momentos com ele difíceis mesmo, de tormento, de pegar…. Já o levei ao meu médico pra ter consulta, o médico falou: “Não, vai tratar.” Enfim, eu vivi muito esses tormentos dele. De alguma maneira, por mais que eu falasse que ele não tinha que se atormentar com isso, tinha que viver a vida, senão ele ia ficar doente, como eu fiquei - ele nem sabe, talvez eu tenha ficado no início de tudo porque eu também me considero um homem sensível, fiquei sensível lá na época do Rio Show. Talvez, se eu não tivesse me desgastado tanto ali eu não teria tido aquela trajetória - uma hipótese, mas eu queria muito.
Quando ele teve a ideia de abrir um projeto social - que não era a Fundação Gol de Letra, não existia isso; não era a Fundação Gol de Letra, reconhecida pela Unesco porque tem... Não era nada disso. Era um projeto social que não se sabia nem o nome, ou a Gol de Letra, no início nem era o que é, e foi ser depois até maior do que ele imaginava. O meu foco era estar junto com ele, o que ele precisasse eu queria estar… E eu sabia o que ele queria em síntese: era, talvez, minimizar um pouco a culpa ou um mundo melhor, ou tentar fazer alguma coisa pra contribuir, ainda que a gente não fosse mudar o mundo. Ele não iria mudar o mundo mesmo, mas se sentir bem com o que estava fazendo. Então, o tempo todo, o meu desejo inicial era esse. Depois, com a Gol de Letra, era fazer com que aquilo pudesse ser algo que atendesse o que ele imaginava; depois, claro, atender às expectativas da organização, que então já tinha um escopo de funcionamento, tinha uma estrutura, tinha um nome no mercado, tinha parceiros. A fundação não era mais do Leonardo e do Raí, a fundação é uma instituição de dinheiro público, então o que ela tem é tempo de vida, a Deus dará. Existe um desejo meu ou dele, mas existe um compromisso meu, profissional, com a organização.
P/1 – Teve algum momento que você falou, que inicialmente que a sua relação com a Gol de Letra era mais uma relação que tinha a ver com o Leonardo. Você o estava ajudando enquanto companheiro, mas teve um momento que você sentiu que comprou a ideia da Gol de Letra?
R – Claro, teve.
P/1 – Como foi isso?
R – Desde o início, a partir do momento que eu resolvo… Ainda que ele vá ficar trabalhando na Itália, volte prá Itália, a partir do momento que eu resolvo ficar, é porque eu me identifico, acredito e estou disposto a contribuir a fazer. Tanto é que a Gol de Letra foi a mola propulsora para eu resolver fazer o meu mestrado. Queria fazer o mestrado, poderia fazer o mestrado em audiovisual, em estética. Resolvi fazer num tema que exatamente lida com as questões. Escrevi uma dissertação de mestrado exatamente com base do que é a experiência...
P/1 – Qual o nome, pra deixar registrado?
R – Da dissertação?
P/1 – Isso.
R – “Herdeiros do Tetra, os projetos sociais instituídos pelos tetracampeões mundiais.” Aí acho que é isso, “Herdeiros do Tetra”, o nome tem esse subtítulo.
A partir do momento que eu comecei a buscar essas referências a Gol de Letra estava envolvida. A Gol de Letra, acho que o meu envolvimento foi tão... Realmente, ao longo dos anos, eu criei laços também, até de relacionamentos; representando a instituição, viajei para a França, participando de reuniões lá, representando o Raí em congressos. Viajei para a África em 2007; devo à Gol de Letra essa oportunidade, porque a PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], que é as Nações Unidas, escolheu algumas lideranças de projetos do Brasil para viajar. Eu estava nesse grupo e foi talvez… Uma viagem fantástica, a gente viajou para a Namíbia. Isso tudo devo… Eu fui, gostei e vibrei, me emocionei porque eu já estava inserido no processo de trabalho que a Gol de Letra me proporcionou.
Essa coisa que eu falo do Leonardo, ela era muito no início. Depois eu fui me envolvendo mesmo. Acho que é um pouco por aí.
P/2 – Eu queria que você falasse um pouquinho: qual foi o grande aprendizado seu, trabalhando na Gol de Letra?
R – Eu acho que conviver com as diferenças, respeitar as diferenças, você compreender melhor o outro, ser mais tolerante. Reforçando questões éticas, dignidade, fraternidade. Acho que quando você representa uma organização não-governamental, o tempo todo existe até uma responsabilidade maior pelos seus atos. O tempo todo você tem que ser modelo de exemplo, em todos os sentidos, num país que você, às vezes, já banalizou as questões que fogem a isso.
A Gol de Letra era assim, por outro lado, era um território ainda que eu acreditava que o Brasil pode ter jeito, o mundo pode ter jeito diante de tantas coisas ruins, desde processo que a gente vê que acontece fora, pela mídia, veicula… O que for, não só a questão da violência, a pobreza, mas de corrupção, o favorecimento, a gente tem vivido isso recentemente. Então a Gol de Letra me marcava muito, ela me fazia muito bem, porque às vezes você trabalha ali com um pai ou uma mãe que são… O indivíduo que vem de origem simples, de comunidade popular, que vive um sacrifício para poder amanhecer, trabalhar, viver a vida. Isso é muito distante de uma realidade, pelo país, então isso vira um grande aprendizado. Isso me foi muito rico, além dessas questões que eu falei, de valor à vida, valor a tudo isso.
P/1 – Atividades da Gol de Letra que você participou junto... Você participou de atividades junto à comunidade? Chegou a participar?
R – Eu não participava ativamente. Eu tinha um cargo de diretor e tinha uma agenda administrativa ou agenda de visita para captação, ou... Vivi muitos processos de escritório, mas procurava me fazer presente. Não me envolvendo muito, porque isso já tinha as coordenações fazendo; só de presenciar, de ver os resultados do trabalho, de fazer alguma fala no final ao microfone, alguma mesa.
P/1 – Tem alguma que você destaca?
R – Tem várias. Em Niterói, diferente do Rio, a gente… Diferente de São Paulo, desculpa, porque na época não tinha Rio. Existia um trabalho no carnaval em que as crianças trabalhavam na Oficina de Língua Portuguesa. Estudavam o texto e dali faziam um poema, e depois esse poema era roteirizado para virar um samba-enredo, e a Oficina de Música e Dança trabalhava o samba enredo pra poder depois, no final, chamar as famílias. Isso era [em] véspera de Carnaval, ir pra rua ter a escola de samba da Gol de Letra.
Isso é um processo que eu acompanhei, de ver uma coisa totalmente integrada. Você trabalhar um texto, ele vira um poema, ele vira uma melodia, ele é ensaiado, ele é dançado, ele é tocado e você vê depois aquilo sendo apresentado, com figurino. Esse foi um que eu me emocionei bastante, vendo isso tudo funcionar.
Outro que eu achei bem interessante foi [em] época de eleição. A Gol de Letra perguntou para a comunidade quem eram os candidatos que elas gostariam de ouvir e cada comunidade disse o nome que achava: “O cara botou placa aqui, quero ver o que ele vai dizer.” E nós convidamos esses que foram citados para fazer um debate na Fundação Gol de Letra, onde os meninos faziam a mediação, perguntavam. Achei também uma coisa superbacana a cidadania, teve a presença dos pais, familiares, comunidade. Esse tipo de mobilização, que não dá para a comunidade se mobilizar sozinha pra fazer, eu achava que a Gol de Letra fazia muito bem.
Em São Paulo teve o “Dia de Fazer a Diferença”, mas eu sinto que o trabalho de Niterói foi o que eu vivenciei mais. O Caju que existe hoje, eu participei do processo do início da implantação e sofri muito. Era difícil você achar onde você ia acertar, então eu fui, até como gestor, um pouco ingênuo. Eu queria muito, nós todos queríamos [estar] dentro da comunidade e começamos a implantar um laboratório de informática dentro de uma comunidade, lá na Chatuba. Isso foi logo no início.
Computador, pintamos, letreiro, aluguei o lugar, só que nós não sabíamos que ali era uma rota de fuga, tinha uma boca perto. No dia que a gente estava lá fazendo as instalações, porque ia começar na semana seguinte o laboratório, teve um policial à paisana, o ‘X9’, que deu um flagrante numa boca lá e começou um tiro a ser disparado; Eu estava para olhar o letreiro, assim, no laboratório. Quando eu virei pra trás eu já estava presenciando aquela cena. Foi uma sensação horrível, eu fiquei... As minhas pernas tremiam tanto que eu não conseguia nem... Por tudo, por você estar ali exposto, os funcionários na minha frente ali me olhando, isso mexeu muito comigo. O Felipe, que era o coordenador e que hoje está lá, ele até encarava isso até melhor do que eu, porque estava ali antes fazendo a co-preparação, mas todos nós ficamos um pouco mexidos. Eu voltei, até liguei para o Leonardo, falei o quanto eu não estava bem, estava me sentindo… Porque algumas horas te passam um pouco de derrota e de impotência. Você fala assim: “Não, eu não vou conseguir fazer um trabalho aqui que consiga superar esse tipo de coisa, porque é uma coisa complicada.”
Ali foi uma entrada complicada. Depois a gente mudou de lugar, fomos para outro lugar, que é o que a gente está hoje, um pouco mais afastado dessa linha de frente. Mas eu relatei esse evento porque não é um evento pedagógico, mas foi esse evento que mexe muito com você. O tempo todo você lida com essas variáveis, quando você trabalha em território popular, quando você não tem muito... A gente está aqui dentro, a gente sabe que isso aqui é uma coisa que o risco já é menor. A sala, o IPTU está pago, o aluguel, tem a luz, então você trabalhar aqui é muito mais seguro, a rua em que você está, o bairro. Estar numa comunidade de origem popular, um território de favela, você não tem muito noção dessas variáveis. Então isso mexia muito comigo, talvez não mexa tanto com o outro, mas, até por sorte também, vivenciamos um... A gente estava numa reunião de associação dos moradores de Clemente Ferreira e aí começou um tiroteio do lado de fora que parecia guerra, a gente deitou no chão. Então isso é uma coisa que constrange, eu não ficava legal com isso, não. Talvez um educador que tenha uma resiliência boa, o cara está ali… Eu tinha uma responsabilidade ali: se alguém morresse ou se levasse algum tiro, [eu tinha] uma responsabilidade civil sobre tudo aquilo, isso pra mim era um grande transtorno.
Eu confesso a você que, desse momento, isso me aliviou muito. Talvez a minha saída da Gol de Letra, de eu não ter essa responsabilidade, dessa forma, dada a essas circunstâncias todas, isso é uma coisa que por outro lado me fez bem. Hoje eu vivo menos tensionado, eu sofro menos, é mais fácil. Por outro lado, fico vendo até que ponto, também, eu tinha o perfil para aquilo. Talvez os outros possam lidar melhor do que eu, mas eu sofria muito.
P/2 – Deixa eu perguntar uma coisa, Cezar: na realidade, eu quero fazer duas perguntas. Você trouxe muito a questão do processo de trabalho de vocês de um grupo que você se reuniu para pensar as estratégias, que era o Sóstenes, você...
R – Grupo gestor.
P/2 – Era o grupo gestor. Qual era o objetivo desse grupo?
R – O objetivo do grupo era unificar as ações. Se eu não fosse prá lá e ficasse fazendo o meu trabalho aqui, a gente corria o risco de ter duas Gol de Letra, a Gol de Letra do Rio e a de São Paulo. A gente queria estar junto e achava que junto a gente ganhava mais força, pelos resultados, por tudo.
O fato de eu ir era para alinhar planejamento de trabalho com o Sóstenes, principalmente, então eu ia toda semana, ele vinha às vezes, e o Raí participava. Era uma vez por mês, desse grupo de gestor. A ideia era essa, planejar a gestão para ficar uma coisa unificada, juntos, caminhar compartilhado. Em síntese, era isso.
P/2 – Outra pergunta que eu quero te fazer, depois vamos retomar lá. Em Niterói, quando você sai da primeira unidade, vão para dentro da escola. Qual foi o motivo dessa saída, de fechar aquele espaço, que todo mundo descreve como maravilhoso, e iri para dentro da escola, que é um espaço menor, você passa a atender pessoas... Por que essa necessidade?
R – O espaço funcionava perfeitamente bem, era super bem avaliado. Mas existia uma coisa dentro de todos nós de que poderíamos fazer um trabalho melhor se estivéssemos dentro da comunidade, por isso que aqui no Caju a gente queria estar dentro da comunidade. Talvez olhando hoje, isso pode ser uma bobagem, porque acabou aquele espaço e era uma coisa diferenciada, como de fato era. Realmente, num espaço dentro, como dentro de uma escola na comunidade, a gente já está mais próximo das questões com a gestão daquela escola.
Nós tínhamos dois ônibus - eu estou te dando relatos do ponto de vista administrativo, tem gente que vai sentar aqui e falar do lado pedagógico. Então do lado administrativo tinha dois ônibus, dois motoristas, duas manutenções para dois ônibus. O tempo passa e o ônibus fica velho, a manutenção aumenta, IPVA do ônibus, o ônibus bate, problemas que tem, teve caso de justiça o motorista... Enfim, começou aquilo, daquela maneira, porque se as crianças vão para um lugar a pé, perto da casa delas da escola delas e fazem o serviço, isso é muito melhor do que ter um lugar longe, pra começar.
O raciocínio direto era essas questões de estrutura; era um espaço enorme, que não foi projetado para isso. Aquilo ali era uma área do Leonardo, que tem um campo de futebol, quadra de tênis, vestiário e aquilo foi adaptado para ser a Gol de Letra. Era uma área de treze mil metros quadrados, então todo o custo operacional disso aumenta o meu efetivo de funcionários. Eu tenho que cortar a grama, o mato cresce, refletor, instalação elétrica, luz, porque eram duas casinhas, todas divididas. Existia uma questão problematizada nesse aspecto.
Existia também, para não falar que era só isso, o desejo de achar que… Bom, não é muito mais fácil a criança ir a pé, está dentro da escola? Tudo facilita: a relação com a escola, com os professores, o estudo, tudo fica mais curto, então esse foi o pensamento, que a gente até então estressou e achou que seria uma boa.
P/2 – Cezar, eu queria te fazer uma pergunta. Se você pudesse traduzir em alguma palavra o que é a Gol de Letra… Como é que você traduziria a Gol de Letra, em algumas palavras?
R – Não sei se vão ser poucas. A Gol de Letra, ela... É o que?
P/1 – Eu achei ótimo, não sei se vão ser poucas.
R – É, poucas é difícil. Eu acho que a Gol de Letra, ela vem dessa... Ela nasceu nesse período, em que várias ONGs estavam se instituindo. Acho que ela foi muito pioneira em algumas ações que fez, que ela conseguiu um impacto fantástico, sobre vários aspectos.
Acabou a fita?
P/1 – Não.
R – Eu acho que é muito difícil você conseguir - eu vou citar Vila Albertina, que foi o primeiro -, você realmente conseguir entrar como entrou na comunidade, de ter, conquistar como conquistou. Apesar de eu estar aqui, eu convivi muito lá com “Mulheres em Ação”, algumas mães, ficava uma coisa muito intrínseca dessas pessoas realmente se apropriarem daquele território. Você ponderar aquelas pessoas todas, isso é um ganho sem precedentes. Acompanhei ali coisas fantásticas.
No Rio, eu não tive oportunidade, no Caju, de ainda ver os resultados. Vi alguma coisinha, mas em Niterói também, vi muitos momentos, são coisas que você observa. Eu não estava intrínseco da atividade pedagógica, era um cara muito mais administrativo, então eu tinha um olhar muito de fora.
Aspectos que a Gol de Letra trabalhou, que acho que são palavras que resumem bem: dignidade, passar para as pessoas que é importante você ser digno, independente do dinheiro que você tem, onde você mora, você ter um caráter, você ter valores, você ter moral. Muitas vezes, como eu citei aqui, os pais, pessoas que o tempo todo se sentem enganadas pelo patrão, ou pelo país, ou se acham injustiçadas por alguma coisa, até pela condição da ignorância mesmo, do jeito que, enfim… O que elas trazem disso com elas, você começa a entender porque que um Elias Maluco vira um monstro. Ele não nasceu um monstro, era uma criança que o pai bateu, queimou de cigarro, batia na mulher. Então eu acho que a Gol de Letra, de uma maneira, deu a contribuição dela, e dá a contribuição ainda, na área de atuação dela com educação, acima de tudo, mas também, do lado, eu estou citando muito isso aqui, também do lado social.
Ainda que a Gol de Letra tenha essa interpretação educativa - e eu acho que ela teve um impacto social, talvez, eu diria até maior -, às vezes é muito comum nós termos um discurso muito da prática pedagógica, falar… Uma coisa quase engessada:”viramos o jogo”, “Dois Toques”, aquela coisa mecânica. Mas o impacto social junto às comunidades, de uma maneira geral, o resultado que dava tinha muita força.
P/2 – Cezar, pra você, qual a importância de um trabalho como esse, de resgatar a memória da Gol de Letra?
R – A importância? Eu sou suspeito pra falar. Eu sou totalmente favorável a você fazer os registros, memória, patrimônio; você poder ter a história como elemento de reflexão, de busca ou de compreensão. Tomara que vocês tenham… Eu tinha muitos registros na Gol de Letra desorganizados e informais. Não sei se o trabalho de vocês é fazer isso, mas conseguir reunir tudo isso seria bem interessante, porque todas as atividades foram muito ricas em energia, seja dos educadores, monitores, estagiários, coordenadores, gerentes, e também protagonizados pelas pessoas da comunidade. Mas o importante é você ter isso como um patrimônio fundamental, de você poder utilizar isso em prol de alguma coisa. Eu acho que os registros dos dez anos devem servir pra análise, percepção e reflexão para os próximos cinquenta, ou algo desse tipo.
P/1 – Queria te fazer uma pergunta pessoal: qual é o seu sonho hoje?
R – Meu sonho? Meu sonho é sempre ser feliz. Acho que é viver com meus filhos, saúde. Não tem nada assim… Você pode perguntar o que for, o meu sonho é ter saúde, porque eu passei por coisas que me mostraram muito isso. Mas viver, criar meus filhos, família, os amigos.
Não tenho sonhos mais audaciosos, não. Sempre vivi tudo muito bem na minha vida, só tenho que agradecer, e até falei dos filhos aqui.
Até hoje, quando eu tenho alguma relação com os meus filhos, a Gol de Letra me ajuda muito, porque as referências… Às vezes, com o seu trabalho, você trabalha muito com os pedagogos. A gente interagia muito, então os caras tem aquele discurso, aquela fala toda de… Às vezes, botar a teoria na prática é difícil. Como eu vim de um processo de formação com o meu pai muito complicado, meu pai nunca teve diálogo - eu citei aqui, no início, da minha avó, que batia, tudo era no grito. Então acho que a Gol de Letra também… Talvez ter estudado mais educação, ter vivenciado esse processo na Gol de Letra, tenha me ajudado também a educar melhor meus filhos, enfim, viver.
P/1 – Têm quantos anos hoje?
R – Quem?
P/1 – Seus filhos.
R – O Joaquim tem onze e o João tem dez.
P/1 – E para finalizar eu queria que você falasse o que você achou de ter participado dessa entrevista.
R – Dessa entrevista eu gostei. Acho que eu falei coisas aqui, que em São Paulo não falei nada.
P/1 – Mas lá era outra dinâmica. (risos)
R – Eu me senti bem. Um pouco de calor por causa da luz, estou um pouco gripado também, mas acho que quando a gente conta a nossa história, a gente puxa, resgata um pouco a trajetória. Sempre tem alguma coisa legal, bacana. Você vê que os acidentes têm derrotas, vitórias, o tempo todo administrando isso. Mas eu achei bom, eu gosto de falar. A área de Comunicação me ajuda de certa forma nisso, mas me senti bem.
P/1 – A gente queria agradecer, em nome da Gol de Letra e em nome do Museu da Pessoa, a sua participação. Obrigada.
R – Eu que agradeço, eu espero ter contribuído.
P/1 – Nossa, foi ótimo! (risos)
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