Meu nome é Amália. Sou pedagoga e tenho formação em Letras.
Minha mãe nunca trabalhou fora, mas trabalhava em casa mesmo como costureira. Meu pai teve várias profissões: mecânico, eletricista, soldador, pedreiro. Teve alguns momentos em que ele trabalhou em algumas firmas, na maioria d...Continuar leitura
Meu nome é Amália. Sou pedagoga e tenho formação em Letras.
Minha mãe nunca trabalhou fora, mas trabalhava em casa mesmo como costureira. Meu pai teve várias profissões: mecânico, eletricista, soldador, pedreiro. Teve alguns momentos em que ele trabalhou em algumas firmas, na maioria das vezes trabalhou como autônomo. E hoje os dois já não trabalham mais, estão aposentados.
Tenho quatro irmãos. Na verdade, minha mãe teve oito filhos, mas criou só quatro; os outros morreram ainda crianças. Eu digo muito que morreram de pobreza, que é aquela realidade de família pobre. A criança nasce, [tem] diarreia, aquele problema todo. Foram quatro que morreram. Dos quatro, a que morreu mais velha, com três anos e oito meses, morreu com câncer no intestino. E os demais morreram de doenças que eu diria banais. Dia dez agora faz oito anos que eu perdi uma irmã, já adulta, e eu fiquei agora só com dois irmãos.
Eu tenho muitas lembranças desse período de criança. Eu lembro bem que minha mãe saía e deixava os filhos para que eu tomasse conta. E naquela época, família muito pobre, minha mãe saía para lavar roupa no rio, porque naquela época não tinha água saneada, era aquela condição bem precária. Minha mãe cozinhava com fogo de carvão e um dos medos que eu mais tinha era no momento de tirar a panela do fogo, que era de barro. E é feijão nordestino, [para uma] família pobre era o alimento primordial daquele almoço. Meu medo era naquele momento de tirar a panela para botar o carvão, repor o carvão, essa panela quebrar. E a responsabilidade era alimentar os irmãos.
Na minha família eu observo que todos me têm como uma referência muito grande. Eu amadureci muito cedo, acho que eu passei da infância para vida adulta; essa coisa da adolescência, eu acho que eu não vivi muito. Até hoje, na minha família tem muito disso, de consultar a Amália para alguma coisa. E a minha irmã, para onde ia era comigo. Se era para escola, para dentista, só entrava se eu estivesse ali do lado. Das brincadeiras, ela tinha medo de andar de bicicleta, então eu que a levava para escola. Então eu digo, não sei se vocês conhecem essa expressão, carbureto. Carbureto é um produto que se coloca na fruta para ela amadurecer rapidamente, eu digo que eu amadureci no carbureto.
Outra coisa muito interessante: eu sempre gostei de estar no meio dos amigos do meu pai. Meu pai foi pescador, caçador, e eu adorava aquelas rodas de conversa. Aos catorze anos de idade, uma coisa interessante de dizer, eu ganhei de presente de aniversário uma espingarda de cartucho, uma trinta e seis. Meu pai saía para caçar comigo, era aquele momento que eu adorava, de sair pra caçar e para pescar. Passávamos o final de semana todinho nos açudes que tinha no interior pescando, ele com a roda de amigos e só eu de mulher ali no meio. Isso era um deleite muito grande.
Outra coisa que eu fazia também era assim: meu pai era mecânico, ele tinha uma oficina mecânica, então eu fui criada dentro dessa oficina também com meu pai. Eu vivia suja de graxa, eu ajudava. Até hoje eu tenho esse apego a essas coisas. Eu que faço os consertos da minha casa, eu tenho caixa de ferramentas, eu sou o Pereirão, né? É, eu faço tudo, gosto disso. Eu sei o nome das chaves.
Meu pai só teve um filho homem, que foi o último, e eu substituí, eu fiquei nesse lugar. Era com quem ele contava. Eu ajudava na oficina, ia com ele para as pescarias, para as caçadas, era uma convivência muito grande. E com a minha mãe.
Meu pai era firmeza e minha mãe é a doçura. A minha personalidade tem muito da do meu pai - ele é um homem muito curioso, muito inteligente, mas às vezes meio turrão. Já minha mãe é aquele riozinho manso, aquela doçura.
Eu tive muita liberdade para ser criança, eu aprontei todas. Não aprontei mais porque meu pai estava do lado, mas minha mãe dava uma maneiradazinha. Então brincar de casinha, de cozinha, ela chamava brincar de cozinhar, e nos juntávamos a meninada da rua. Não podia ter menino, viu? As brincadeiras não tinham meninos, uma coisa meio de gênero, dessa educação patriarcal.
Tem uma coisa que eu agradeço muito aos meus pais, o fato de eu ter estudado. O conhecimento é uma coisa de um valor imensurável. E na realidade em que se vivia naquela época, colocar os filhos para estudar não era coisa simples. Eu me lembro muito bem das dificuldades que foi para minha família manter esses filhos estudando. E de quanto a minha mãe era caprichosa no estudo desses filhos.
As minhas lembranças de escola são interessantes. A minha primeira professora, a dona Alzenir, na primeira reunião de professores foi perguntar para minha mãe se eu tinha tomado água de chocalho porque eu conversava demais na sala. “A menina é inteligente, gosta de estudar, mas não para a boca.” E eu acho que eu não parei mesmo, sabe? Eu tenho muito isso.
Eu tenho uma lembrança de escola porque era assim, a escola sempre foi uma instituição muito elitizada e muito preconceituosa. E na escola tinha uma menina, chamava-se Jaqueline, loira, riquinha, que o pai deixava de carro. Naquela época, o pai ter um carro era um artigo de extremo luxo. Tinha lancheira. Essa Jaqueline era líder de classe, para tudo era Jaqueline. E eu, magricela, lá nos fundos da sala, coitada, perdida naquela massa homogênea.
No fundo, eu queria participar, queria ter um espaço ali, eu queria que alguém me visse como pessoa. E nada. Eu comecei a pensar e começo a me lembrar, como antigamente a gente não tinha psicólogo, né? Os psicólogos da gente éramos nós mesmos e crianças não tinham muito espaço para ficar discutindo essas coisas com pai e mãe. Mas eu lembro bem que comecei a pensar o que eu poderia fazer para ser vista, e eu comecei a estudar. Estudava, estudava, antes que a professora terminasse de falar eu já estava com as duas mãos levantadas. E de repente aquela coisinha meio que perdida ali na sala foi ganhando visibilidade.
Daqui a pouco estava eu hasteando bandeira - todas [as] quintas-feiras tinha aquela coisa, aquela cantarola daqueles hinos que estão todos na minha memória, de Duque de Caxias e tudo o mais. E eu fui pegando cada vez mais gosto pela escola.
Quando eu terminei o ensino fundamental, na época de fazer o ensino médio, eu queria fazer um curso que não tem nada a ver comigo, que era o curso de Química. A curiosidade, eu gostava de fazer umas misturas meio loucas lá em casa, e o esposo de uma tia minha chegou até mim e conversou. Ele [era] professor da universidade em Mossoró, disse: “Olhe, você não tem o que pensar. Para uma menina pobre, você tem que fazer Magistério, porque assim você vai ter mais chance de trabalhar.”
Eu fiquei pensando naquilo. Eu pensava muito na situação financeira da minha família, isso era uma coisa muito forte. Eu fui fazer Magistério e me encantei, me identifiquei muito rapidamente com o curso.
Terminei o Magistério em 1983 e fui viver uma experiência profissional que me marcou muito. Eu consegui, através dessas coisas de politicagem mesmo, um contrato; passei acho que uns três meses indo para Câmara Municipal da minha cidade atrás de um vereador que dizia que estava distribuindo os contratos para trabalhar em um projeto de assentamento rural. Consegui esse contrato e fui para lá.
O projeto é distribuído em vilas. Cada vila era o nome de uma cidade. Só que naquela época estava tudo iniciando, não tinha saneamento, não tinha iluminação elétrica, estrada era de barro, tudo muito difícil.
Quando meu pai soube dessa história não aceitou de jeito nenhum, foi totalmente contra. E aí, o que acontece? Até aí eu não tinha dormido uma noite fora de casa que meu pai não tivesse consentido. E nessa época eu já estava noiva. Meu esposo servia aqui na Aeronáutica, [era] cabo da Aeronáutica. E ele me apoiou para eu ir nessa aventura.
O casamento já [estava] marcado, eu adiei o casamento; fui e passei um ano lá. Recém-saída do Magistério, com aquelas teorias todas que não me serviram de nada, porque a realidade lá era completamente outra. Os alunos que eu tinha... Era o interior do interior. Eu nunca tinha vivido aquela vida rural mesmo, eu vivia numa cidade. E lá eu tive que aprender a viver, aprender a ser eu mesma, porque até aí eu era a filha do meu pai, ou a noiva.
Lá eu tive que tomar decisões que não foram fáceis. Meu pai proibiu que minha mãe mandasse qualquer ajuda financeira para mim, como forma de me forçar a abandonar esse meu projeto. Mas quanto mais ele proibia, parece que mais me instigava. E eu fiquei um ano.
Aprendi muito. Eu tenho uma experiência dessa minha passagem, trabalhando com a história da água potável, em Ciências. Eu fui dizer lá para o aluno que ele tinha que tomar água filtrada. Olha quanta ingenuidade da minha parte, quanta falta de senso crítico em relação ao contexto onde eu estava trabalhando.
Quando foi no final do dia, já de tardezinha, chegou uma senhora na casa onde eu estava morando. Eu fui morar na casa da merendeira da vila porque lá tinha uma casa para as professoras, mas eu tinha que levar tudo, e eu não tinha nada para levar. Essa senhora me acolheu sem nunca ter me visto; eu devo a ela muito dessa coragem, desse desprendimento que ela teve. Eu estava lá na casa, a mãe de um aluno chegou para mim querendo saber o que eu tinha dito para o menino dela que ele não estava mais querendo tomar água lá. A mãe foi me contar e eu me lembrei da história de tomar água filtrada.
Eu era muito nova, inexperiente. Eu fui aprendendo a ser professora através dos ensinamentos que aqueles alunos, aquela comunidade me passou. Quando eu saí de lá, em 1984, eu casei. Já tinha feito um concurso público, e eu me orgulho em dizer que foi o primeiro concurso público para professora da história do Estado. Eu passei nesse concurso e comecei a trabalhar. Depois fiz o curso de Pedagogia e depois o curso de Letras. Assim, eu fui cada vez mais me apegando à docência, mas inicialmente foi mesmo por necessidade, não tinha noção nem do que seria ser uma professora.
Como meu esposo é militar e tem no regimento do servidor que você, casada com militar, tem direito de acompanhá-lo, foi nesse momento que eu vim aqui para a capital. Eu tinha seis meses de casada, já estava grávida, não tinha parente nenhum aqui.
Eu soube que estava tendo um concurso para pedagogo do município aqui. Até então eu não tinha a intenção de trabalhar em dois vínculos, porque eu tinha a clareza que precisava me dedicar também às minhas filhas, só que como eu me casei em dez de dezembro de 1984 e as meninas já estavam grandes… Uma é de 1986, a outra de 1988 e a outra de 1990. E esse concurso foi em 2005.
Nesse período, eu já não lecionava mais no Fundamental I, nos primeiros anos. Eu já era professora especialista, já tinha terminado Letras. Tinha muita saudade de ensinar, de alfabetizar, que eu adoro, e estava tendo concurso para pedagoga. Eu digo: “Ai, eu acho que vou fazer esse concurso. Quem sabe eu não passo e volto a ensinar para essa turminha?”
Fui fazer o concurso. Só que [quando] eu fiz a inscrição eu não sabia que era para assistência social. Eu fiz minha inscrição no último minuto, no último dia de inscrição. Acho que Deus que encaminha as coisas da vida da gente. Começou uma história que o concurso seria anulado, que tinha um problema de período eleitoral, aquelas coisas que aparecem. Nem liguei, deixei para lá, nem procurei saber se eu tinha passado. Fiz mais para testar meus conhecimentos mesmo.
Eu tive a grata surpresa de saber que tinha passado. Tudo bem, mas também não fui acompanhando, sou um pouco desligada dessas coisas. Fui lá me apresentar correndo, fazendo aquele exame todo. E o interessante é que tinha uma história de entrevista com a secretária adjunta lá. Quando eu cheguei nessa entrevista, a secretária adjunta… Eu falando em educação em sala de aula e ela me diz: “Menina, me diz uma coisa. Mas você não está achando que você vai para sala de aula não, né? Você tem noção para que você fez o concurso?” Eu parei: “Epa, tem alguma coisa aqui que eu não estou sabendo.” Ela foi me dizer que eu tinha feito um concurso para pedagogo, mas para Secretaria Municipal do Trabalho e Assistência Social. Na verdade, eu nunca tinha ouvido falar na história dessa instituição, Sentas [Serviço de Atendimento e Trabalho Social]. Foi uma surpresa tremenda para mim e ela disse: “Olhe, a Secretaria tem duas pastas, a do Trabalho e da Assistência Social. Você quer ir para onde?” Eu pensei um pouquinho e disse: “Bem, acho que Assistência Social.”
Fui para Assistência Social e para um programa que aqui - eu lamento muito estar dizendo isso - não vingou, que é o Programa de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual, TSH [Tráfico de Seres Humanos], que tinha na época parceria com parceria com Parkins, com a Usaid [United States Agency for International Development], com o Cedeca [Centro de Defesa da Criança e Adolescente], muita gente. No dia da posse, quando me falaram que eu ia para um programa chamado de ‘Tráfico’, eu fiquei maluca, eu disse: “Gente, eu não vou nem dizer em casa isso porque o pessoal vai dizer...”. Sabe aquele desenho “O Fantástico Mundo de Bob”? Às vezes eu tenho um pouco daquilo e aí eu já me vi no meio da rua, com as quadrilhas e tudo. Eu digo: “Não, eu vou ficar calada, eu vou entender primeiro o que é isso.” Depois que eu fui entendendo o programa.
Ainda passei um ano em formação para esse programa acontecer, mas acabou que o programa não aconteceu. Depois me colocaram em um programa que também trabalhava com essa coisa da exploração e abuso sexual. Fiquei lá um tempo. E começou a outra mudança: me colocaram em um programa que trabalha com população de rua, várias situações de violação de direito. E como pedagoga, o programa estava precisando de uma pessoa para desenvolver uma ação, um trabalho com os adolescentes atendidos pelo programa, uma ação pedagógica com eles.
Era nesse período também que estava acontecendo a mudança na política, implantação dos Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social]. E os Creas precisavam de servidores, que é uma determinação. O trabalho que era feito no projeto passou a ser feito pelo Creas. E eu estou no Creas até agora.
Interessante que hoje já tenho seis anos, de 2006 para cá. Nesses seis anos, vai fazer agora em novembro que eu estou na Assistência Social.
Hoje eu vejo com clareza que esses problemas sociais que hoje eu trabalho, que discutimos, eu já tinha na educação, só que eles estavam meio que na coxia do teatro, não estavam no palco. De certa forma, eu já me inquietava, eu já me sentia um pouco incomodada com certas questões sociais que eu tinha clareza que interferiam no desempenho escolar dos meus alunos. E hoje, com a minha entrada na assistência social, eu compreendo muito mais essa coisa, acho que um ajuda o outro, complementa. São saberes que dialogam muito bem.
A primeira dificuldade que eu tive é que a nossa secretaria aqui não tinha, digamos assim, definido, ou acho que talvez ainda nem tenha tão bem claro isso, qual a função do pedagogo dentro da assistência social. Isso é muito novo. A assistência social até então se configurava o quê? Psicólogo e o assistente social eram figuras mais visíveis. Com essa nova configuração da assistência social vem o pedagogo, [isso] está muito em construção, então eu tive que meio que aprender o que eu tinha que fazer ali.
O Projeto ViraVida, nós tomamos conhecimento antes mesmo de atuar como parceiros. Em 2008, 2010 o projeto já estava atuando aqui na cidade e tinha conhecimento, mas eu não tinha nenhuma ação voltada. Já conhecia algumas pessoas do programa, mas não atuava. Em 2010 surgiu, através do ViraVida, uma parceria entre a secretaria e o Sesi [Serviço Social da Indústria], foi uma parceria de cooperação técnica. A partir da avaliação que tinha feito com as turmas de 2008 e 2009, o ViraVida percebeu que os adolescentes atendidos tinham uma relação familiar muito fragilizada e que essa relação familiar fragilizada estava interferindo na atuação dentro do projeto e também nessa reelaboração do seu projeto de vida. Surgiu a ideia do ViraVida construir, pensar, elaborar e desenvolver um projeto de intervenção junto às famílias dos adolescentes e jovens. Foi num momento que a partir dessa parceria institucional, a prefeita assinou [e] o Creas entrou no projeto; nós ajudamos, trabalhamos na elaboração desse projeto ViraVida e Creas e começamos a executá-lo - um projeto que, dentro da minha avaliação, foi muito interessante. Primeiro porque abriu as portas do pedagogo dentro do Creas, ganhamos uma nova dimensão de atuação. E já que o Creas trabalha em situação de violação de direitos de criança e adolescente em situações de exploração e abuso sexual, então acho que a coisa veio muito a calhar.
Eu me envolvi muito na elaboração dessas oficinas. Quando terminou o projeto, nós recebemos do ViraVida a certificação de termos participado. Eu posso dizer que eu fui a profissional do Creas que teve mais certificados, ou seja, que participou, que executou, que estava mais atuante.
Por que eu me envolvi? Porque eu pude ter uma ação mais pedagógica dentro desse projeto. Porque lá na hora das oficinas, tinha aquele contato com aquelas famílias. Era um trabalho de humanescência, de olhar praquelas pessoas, de perceber que de certa forma aquelas histórias tinham muito em comum, mas ao mesmo tempo elas eram únicas; de aprender a respeitar essas pessoas, de compreender um pouco melhor o que vem a ser essa coisa, [esse] fenômeno da exploração sexual, que até então conhecia teoricamente, de ler, mas eu nunca tinha tido um contato, vivência, com pessoas que tiveram ou que estavam vivenciando a exploração sexual. Foi uma oportunidade de testar a mim mesma, de aprender, e também de contribuir para o crescimento daquelas pessoas, tanto que eu fiz uma pós-graduação específica em exploração sexual. Terminou agora no início desse ano, foi a nossa conclusão e meu trabalho final foi em cima do ViraVida. Eu me senti no dever de dar esse retorno. Dentro do meu trabalho eu avalio, analiso esse projeto de intervenção a essas famílias, que para mim teve um retorno muito bom. Os resultados, as pesquisas que nós fizemos com as famílias e com os próprios jovens deixou isso bem claro, que o projeto teve um resultado muito positivo.
A primeira coisa que eu percebi em relação às famílias é que elas precisavam de acolhimento. Não é fácil, numa sociedade como a nossa, que é cheia de preconceito, que rotula as coisas, você dizer assim: “Eu tenho uma filha”, vamos falar como a sociedade classifica, “prostituta”. Então eu acho que fazer com que essas famílias confiassem nos profissionais, relatassem suas experiências de vida, foi uma conquista muito grande pra nós, profissionais. E isso se fez como? Com muita delicadeza, com muito cuidado, com muito ouvir.
O programa tentou de todas as formas, fomos criando estratégias para que essas famílias permanecessem ali. Foram muitas as dificuldades, a começar, por exemplo, que essas famílias, mães, irmãs ou avós, independente do vínculo, eles trabalhavam, e muitos em casa de família, que é uma situação, um vínculo de trabalho muito delicado. Muitos diziam que tinham dificuldade da patroa, do patrão liberar pra que eles viessem aquele dia, então a gente tentou ver um jeito que garantisse isso.
O ViraVida… Uma coisa que eu acho que foi muito importante foi ter assegurado para essas famílias o transporte, o vale para que elas pudessem ir para o programa. E uma coisa surgiu também no meio do caminho que não tínhamos pensado: as mães levavam os filhos, porque alguns não tinham onde deixar. E no meio do caminho o profissional que estava responsável por aquela oficina [teve que] pensar uma ação, porque naquela hora outro profissional ficaria com aquelas crianças em outro espaço, trabalhando com essas crianças. Como não tinha uma receita de como é que o projeto seria, a gente foi aprendendo.
Quando as oficinas começaram, a gente começou a oficina meio sem saber como é que seria, começando dessa história do projeto de vida. A gente foi construindo um projeto de vida com essas famílias; eu digo que a gente foi fazendo Tateamento Experimental de Freinet, Alexandre Freinet. Fomos dosando: “Ai, essa oficina a gente trabalhou conteúdo demais, foi slide demais, essa dinâmica não funcionou.” E entre uma oficina e outra tínhamos o momento de nos encontrar com os profissionais do ViraVida. Avaliávamos, discutíamos, então o ViraVida e o Creas foram construindo isso com cuidado.
Os familiares que estavam lá estavam abertos. Foi um grupo que facilitou pra gente esse trabalho, porque às vezes a gente tem dificuldade quando o sujeito não permite que você adentre na sua subjetividade; você pode montar o melhor projeto do mundo e a coisa não acontece. As famílias nos receberam bem, nos acolheram. E a recíproca foi acontecendo.
A primeira coisa é que não temos certezas, que nada está definido; que cada história é uma história, que cada pessoa é uma pessoa, que não dá para você classificar, rotular estereótipos. Eu acho que em se tratando de exploração sexual é preciso ter a clareza que esse fenômeno social, esse problema social envolve muitas causas. Ele é muito plural e muitas vezes nós, na tentativa de achar uma solução, vamos com receitas prontas e isso acaba violando mais e mais o direito das pessoas. Eu percebo que esse trabalho me fez ser mais sensível a esses contextos de violação de direito a essa realidade.
Eu ouvi histórias muito marcantes. Uma delas me chamou a atenção. Na hora do lanche - as pessoas acham que a hora do lanche é só para alimentar o estômago, mas não, a hora do lanche é um momento de interação muito importante, eu penso. Uma das mães disse que tinha nove filhos e quando ela disse que tinha nove filhos, o nosso lado preconceituoso… As escamas já levantam um pouquinho, “nove filhos”, aquela visão. Ela disse: “Eu tenho nove filhos, mas cada um é de um pai.” O preconceito já ganhou mais corpo. E a terapeuta disse: “Mas a senhora recebe ajuda desses pais para criar seus filhos?” Ela disse: “Quase nenhuma, porque os meus filhos eu arranjei no exercício da minha profissão.” Colega, essa mulher falou isso com tanta propriedade, com tanta decência, que foi um tapa na minha cara de luva de pelica.
Naquela hora eu me senti nada, eu tive que reconfigurar muita coisa naquele momento, sabe? Faltou chão, eu tive que repensar naquele instante o que eu estava fazendo ali, o que eu estava querendo naquele momento, quem era aquela pessoa. Num outro momento, essa mesma mãe foi lá dar um depoimento e ela disse que trabalhou uma vida inteira como prostituta, mas não queria isso para vida dela e que hoje já não trabalha mais como prostituta, mas coordena o sindicato. O empoderamento daquela mulher me deu uma lição para vida toda.
Eu acho que é essa coisa do ouvir, de estar atenta ao que cada pessoa tem a dizer. Eu não vir com um roteiro pronto, deixar que as coisas fluam e a partir daí construir uma intervenção com um sentimento de mais respeito pelas pessoas. Eu acho que falta isso na abordagem da exploração sexual.
Na verdade, temos que ter clareza que é um projeto, que não é uma política pública. Claro que o Sesi está cumprindo e muito bem o seu papel, de intervir nessas questões sociais, acho isso muito importante, é bom que se destaque isso, mas cadê o papel do Estado? Essa parceria que aconteceu foi importante, mas ela sozinha não dá conta. O fato da nossa secretaria ter sido parceira do ViraVida não exime a responsabilidade dela de elaborar e executar outras políticas que, por exemplo, incluam os que não foram incluídos no ViraVida. Porque a gente sabe que o ViraVida tem um processo de seleção, tem critérios, o que é normal em se tratando de um projeto que está ligado a uma empresa privada, a gente tem clareza disso. Mas eu fico me questionando o que está sendo feito para os que não estão sendo incluídos no projeto ViraVida na nossa cidade. É essa crítica que eu tenho feito dentro da nossa secretaria, junto aos gestores. Porque a nossa cidade está em tudo quanto é estatística conhecida internacionalmente por fazer parte dessa rota da exploração sexual, alto índice de exploração sexual, e a cidade parece que está meio que adormecida. Os poderes constituídos estão um pouco, digamos assim, aquém.
O ViraVida, dentro daquilo que tem sido possível, está fazendo a parte dele. Conhecemos histórias de jovens que realmente ressignificaram suas histórias de vida, que estão exercendo seu protagonismo, mas é um número muito pequeno levando em consideração o contingente de jovens, adolescentes e crianças que vivenciam a exploração sexual em nossa cidade.
É necessário primeiro entender a complexidade da exploração sexual, ter essa visão mais crítica. Eu tinha uma visão teórica, como conteúdo que se estuda; [o ViraVida] me fez ter mais compreensão da dimensão dessas interfaces que a exploração constitui. E outra coisa, perceber que o Creas não atua na exploração sexual, isso está também na minha pesquisa. Se você vai fazer o levantamento estatístico do número de casos [em] que o Creas atua - estamos falando de violação de direitos -, a exploração sexual vai ser a que vai ter o número infinitamente menor. E levando em consideração ao que eu disse em relação à realidade da cidade, fica muito estranho.
Eu louvo a insistência, a determinação, dos profissionais do ViraVida e dos Creas, que abraçaram a causa, porque se nós fossemos levar em consideração todas as questões, talvez o projeto tivesse ficado pelo meio do caminho.
Eu lamento que ainda em pleno século XXI pessoas tenham suas vidas, eu diria destroçadas, muitas vezes por falta de uma oportunidade. Sabemos que nem todos os casos de exploração estão ligados à questão financeira, não se pode também ter essa visão simplista, mas também sabemos que o grande índice de meninas que estão nessa exploração tem características de uma família que não tem recursos, de uma família que não teve um suporte, essa questão do seu papel de proteção. Eu lamento que essa jovem não tenha tido, por exemplo, a vida que minhas filhas tiveram, que tiveram direito a uma família, direito a estudar, se formar, alguém que cuidasse delas, um futuro. De repente, estão exercendo a sexualidade delas sem essa coisa da exploração, digamos assim, pela via natural.
A sexualidade faz parte da vida da gente, que bom que é, mas essas meninas estão vivendo tudo pelo avesso, e isso nós sabemos que causa um dano muito grande. Se nós mesmos. que tivemos tudo certinho… Por exemplo, eu sou uma pessoa casada. Imagina o dia que eu decida que eu não quero ter uma relação sexual naquele momento, e se de repente eu for, de certa forma, induzida ou forçada a fazer aquilo, aquilo vai me fazer muito mal, e eu sou uma mulher adulta. Imagine para uma criança. E o que mais me choca é que na maioria das vezes elas não têm consciência do que aquilo vai repercutir ou está repercutindo na vida delas. Fazer elas perceberem isso é um trabalho que requer muito esforço, muito entendimento do que vem a ser a exploração, porque na maioria das vezes as
pessoas querem resolver as coisas com medidas bem prontas, “tchum, vai ser assim”. Não é.
O ViraVida tem uma coisa que me chamou muito a atenção, porque ele atua em várias frentes - a questão da formação para o trabalho, porque os nossos jovens precisam, todos nós precisamos de um trabalho para sobreviver. A formação dessa pessoa enquanto sujeito, questão de trabalhar a sua consciência, a sua cidadania, sua visão política. E a questão da escolaridade, de investir e fazer com que esse jovem retome seus estudos, se veja responsável por esse aprendizado, por essa formação.
Tinha um caso de um jovem que morava com a avó, e ele [é] homossexual. Ele tinha sido, literalmente, expulso de casa; a família não aceitava a homossexualidade e ele estava levando uma vida bastante difícil, morando com os amigos de casa em casa e se envolvendo já com a questão, não só da exploração, mas a questão das drogas. E esse jovem foi resgatado.
No finalzinho, porque uma das oficinas foi de avaliação… Os jovens tiveram uma oficina de construção do projeto de vida e em outro momento as famílias construíram seus projetos de vida, focados em três aspectos: relação familiar, trabalho e geração de renda. E no final abrimos esses projetos, eles juntos, as famílias com eles. Cada um foi ver o que eles tinham dito que queriam construir para vida deles e eles foram avaliar o quanto desse projeto tinham atingido. Nós fizemos um gráfico gráfico de barra: família, trabalho e emprego, de zero a cem por cento. Eles tinham que pintar até quanto tinham atingido daquilo que almejavam no início.
Esse jovem botou cem por cento no aspecto ‘vínculos familiares’ e a senhora, avó dele, fez a mesma coisa. Só que eles fizeram isso separados, você está entendendo? Quando fomos observar, a informação de um comprovava a do outro. Ela foi e falou disso, que tinha aprendido a respeitar, a aceitar esse neto, que ele estava morando agora com ela. E assim, aquele momento de contato, de carinho, de abraçar.
Eu lembro também do início, uma oficina. Foi na oficina de construção dos vínculos, fizemos uma dinâmica, aquela dinâmica dos sonhos, que você pega a bexiga, enche e ali é o sonho. Estava todo mundo assim, cada um jogando sua bexiga para cima, ali eram seus sonhos, fomos falando. Fomos tirando algumas pessoas e mandando sentar, e quem ia ficando no meio da roda ia tendo como responsabilidade manter todos os sonhos no ar.
É claro que foi ficando difícil, porque era pra mostrar a importância da gente se ajudar, de trabalhar todo mundo junto. Uma senhora pegou aquela bexiga; na hora da discussão, da vivência, ela pegou aquela bexiga com os olhos cheios de lágrimas e disse assim: “Eu já tinha parado de sonhar, mas agora eu já voltei a sonhar. E eu vou cuidar muito bem do meu sonho.” Ela não soltou a bexiga dela, levou essa bexiga para casa.
Aquilo me marcou muito, porque ela materializou o desejo de ver a filha dela fora da exploração ali. E ali eu tive a clareza que eu também não podia falhar porque eu tinha, de certa forma, alimentado esse desejo nela, essa esperança. Relatos de mães muito severas que não aceitavam, que viam na filha essa coisa mesmo da indecência.
O grupo era bem diversificado, mas a maioria era de mulheres que participavam, normal na nossa sociedade, onde a mulher às vezes acaba assumindo a responsabilidade de chefe de família. Normalmente, nessas famílias, a presença do pai é muito ausente. Tinha alguns homens, poucos, mas noventa por cento era mulheres.
Tinha uma mãezinha lá que tinha o filho deficiente. Nossa senhora, um menino muito trabalhoso, e ela tinha que levar esse menino para oficina, porque não tinha com quem deixar. Era um exercício para nós fazer alguma coisa para aquele menino ficar quieto junto do outro grupo, pra aquela mãe poder participar daquela oficina. Porque ela ficava o tempo todo preocupada com o filho, porque ele era hiperativo, múltiplas deficiências.
Foram muitos aprendizados, não dá para pontuar tudo. Acho que a vida segue e aos poucos eu vou descobrindo o que foi isso na minha vida, né? Por enquanto eu acho que é isso que eu consigo perceber, mas com certeza, em algum momento, outras coisas eu vou percebendo que estão relacionadas, ligadas a esse momento.
O meu maior sonho é poder viver numa sociedade em que as pessoas possam ser mais humanas, se respeitar mais. E que a educação de fato aconteça na vida das pessoas, porque eu não tenho mais a ingenuidade de achar que a educação vai transformar, resolver todos os problemas, mas eu tenho clareza que sem educação não tem como uma pessoa ter uma cidadania plena. E eu vejo que até para os que estão na escola essa educação é de péssima qualidade e muitas vezes não conseguem fazer com que essa pessoa se descubra, vivencie plenamente o seu potencial, que às vezes fica perdido; às vezes acabam caindo nessa cilada, que é tão difícil. Eu espero que um dia a gente tenha uma sociedade melhor.Recolher