P/1 – Bom dia, dona Melpomene.
R – Bom dia.
P/1 – Obrigada por a senhora ter vindo dar essa entrevista. Pra começar eu queria que a senhora falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Melpomene Perides Lawand. Nasci em São Paulo, dia 9 de agosto de 1928. Nasci na Rua São Caetano em São Paulo e vivi lá até muitos anos.
P/1 – A senhora me disse que na verdade o seu RG está com a data do dia nove, mas que a senhora tinha nascido em outra data.
R – É.
P/1 – A senhora sabe por que isso aconteceu?
R – Eu nasci dia 1º de agosto, mas até meu pai fazer a certidão, aquele tempo ainda mais, quando eles foram, naquele tempo no dia que ia lá que eles registravam, entende? Agora acho que pagando uma multa faz no dia certo, né? Mas naquela época não. Até eu fui a mais próxima, o meu irmão foi 22 dias depois, minha irmã três meses depois, mas o meu ainda mais próximo, dia 1º pro dia 9 de agosto.
P/1 – Quem escolheu o nome da senhora?
R – Meu pai, ele gostava de nome de musa da Grécia. Ele dizia a deusa da beleza, meu pai tinha muito orgulho (risos). Porque as minhas outras irmãs são o nome da minha avó, mas eu sou a terceira filha, já deu pra escolher um nome diferente.
P/1 – E qual o nome dos pais da senhora?
R – Meu pai Nicolau Miguel Perides e minha mãe Maria Perides.
P/1 – Eles são de onde?
R – Eles vieram de... posso contar já do começo. Em 1923 vieram pro Brasil, lá pelo mês de julho, uma coisa assim. Porque lá estava aquela guerra entre otomanos, os ortodoxos, aquela briga de turcos e gregos, então a cidade onde eles moravam pertence à Turquia, aí naquele corre-corre eles quiseram fugir logo e o trem, sei lá como foi, foi pra Síria. E de lá ficaram não sei quantos meses e vieram para o Brasil porque eu já tinha dois tios, irmãos do meu pai, que já moravam aqui em São Paulo. E aí eles mandaram chamar e veio minha avó, mãe do meu pai, e três irmãos dele, são oito pessoas. Minha irmã tinha nascido, meu pai tinha casado naquele ano, dois anos antes, em 1920 ele casou. E a minha irmã já nasceu lá e vieram com ela pequeninha, um ano. Vieram pro Brasil e aqui meus tios alugaram, como eram oito pessoas que vinham, eles alugaram uma casa grande, era o palacete do Barão de Mauá. Naquele tempo os barões estavam fugindo de São Paulo, aquela época, revoluções que tinha em São Paulo, então eles alugaram essa casa grande porque eram oito pessoas que vinham, na Rua Brigadeiro Tobias.
P/1 – Fica em que bairro?
R – Cidade, perto da estação da Luz, Brigadeiro Tobias, ainda existe essa rua. Mas o palacete já não existe mais (risos). Os meus pais foram ficando lá, meus tios foram casando, casando, depois ficaram só eles e ele alugou uma casa na Rua São Caetano, onde eu nasci. Rua São Caetano, uma loja, era loja de malas e artigos esportivos. Até o fim dele morrer ficamos nessa loja. E eu nasci lá na Rua São Caetano, depois meu irmão também nasceu lá. E depois meu pai comprou uma casa na Penha, na Rua Antônio de Barros e minha mãe foi morar lá, deixou o negócio, tudo, e foi morar lá. E era uma casa grande, bonita, de fazenda, jardim grande, chácara muito enorme, muitas frutas. Mas minha mãe não gostou de ficar lá porque era água de poço, mosquito. A casa era lindíssima, era casa de fazenda, branca, assim pintada, janelas verdes, tinha as palmeiras na frente, uma gigante. E na frente, logo que entrava, aqueles floreiros de hortências nos dois lados. E lá dentro tinha jardim bonito e a chácara no fundo, grande. Aí minha mãe ficou poucos meses lá, porque já tinha meu irmão com um ano, ela não gostou de ficar morando lá longe; voltaram pra cidade, pro Tatuapé. Não, perto da Rua São Caetano, uma travessa da Rua Mauá. Minha mãe alugou a casa lá e tinha a loja na Rua São Caetano, continuava.
P/1 – E daí a senhora já tinha quantos irmãos?
R – Nasceu mais uma aqui, tinha uma menina que veio de lá. Aqui no Brasil nasceu a minha irmã; eles vieram em 23, ela nasceu em 24, janeiro de 24. Depois eu em 28 e depois de mim, em 1930, meu irmão.
P/1 – E como é o nome dos irmãos da senhora?
R – A primeira, a mais velha é Atina, nome da minha avó; a segunda é Vitória. Eu, Melpomene, meu irmão também levou o nome dos avós, Miguel Nicolau Perides.
P/1 – A gente vai voltar um pouquinho na sua infância, mas antes eu queria que a senhora contasse que lembranças a senhora tem dos pais da senhora? Como é que a senhora descreveria seu pai, sua mãe, de personalidade? Como eles eram?
R – Meu pai, como todo homem grego gostava muito de festa, não gostava de ficar em casa sábado e domingo. Domingo ele sempre gostava de piqueniques que existiam antigamente em Cantareira, Horto Florestal, meu pai era muito de gostar de passear e não ficar em casa. E na loja ele ficava na hora de serviço, das 8 às 18 horas, depois ia pra casa. Ele era muito arrojado, fez a loja, a fábrica de malas, depois lá no fundo ele fez uma fábrica grande, até ele morrer ficou naquela loja, Rua São Caetano, número 98. Depois que ele morreu, nós já éramos crescidas já, minhas duas irmãs já casadas, eu não era casada ainda.
P/1 – E a mãe da senhora? Que lembrança a senhora tem?
R – Minha mãe muito caseira. Ela tinha diferença de idade entre os dois, mas os dois se combinavam muito, muito. Ele gostava naquele tempo comprar carneiro, fazer as comidas. E ele convidava as irmãs da minha mãe, ele gostava muito, a mesa sempre lotada. Ele falava: “Convidei sua irmã” “Ai que bom!”, ela não falava: “Ai que chato fazer comida, cansa”, não, ela ficava contente. Os dois combinavam muito, muito.
P/1 – E a senhora sabe como eles se conheceram?
R – Foi lá na Turquia, Adana. Eles moravam lá perto, não sei como foi. Meus avós por parte da minha mãe tinha fazenda, trigos, esses campos grandes que eles tinham e ficavam seis meses na cidade e seis meses lá na terra. E minha mãe sabia cavalgar, cuidar de plantas, uvas, chácara, essas coisas, ela gostava demais, demais, plantações, ela estava sempre. Aqui mesmo, onde a gente mudava ela já plantava um pé de limão, plantações de uva. E onde ela ia ela já tinha aquele lugar gostoso de plantações.
P/1 – A família da senhora lá, no caso seus avós maternos, eram agricutores.
R – Sim, agricultores.
P/1 – E a família do pai?
R – Do meu pai? Meu pai tinha loja de tecidos na cidade. Meus avós paternos, ele e os três filhos eram barbeiros, irmãos do meu pai. Antigamente barbeiro era como dentista, ele arrancava os dentes, ele fazia curativo, essas coisas, era tipo farmacêutico, uma coisa assim. E meu pai já não, meu pai vendia tecidos, uma loja de tecidos.
P/1 – E a senhora chegou a conhecer seus avós?
R – Do meu pai não. O avô nem chegou a me conhecer; a minha avó, eu era pequena ainda, ela até me batizou, mas morreu. Agora meus avós da minha mãe vieram depois. Minha mãe era muito triste porque a família dela estava toda lá ainda, ela pensou que nunca mais ia vê-los, nossa, ela ficava triste. Bom, vieram, depois de não sei quantos anos eles chegaram, a mãe, o pai, muitos irmãos, primos, aí muita família, nossa. Aqui no Brasil todos que vinham aqui eram parentes da gente, era irmão, era primo, a gente se dava muito bem, moravam tudo perto. Depois nós mudamos pra perto da Rua São Caetano, minhas primas moravam lá perto, toda noite se encontrava, era uma vida diferente de agora, né?
P/1 – E toda família da Grécia migrou pra São Paulo mesmo?
R – Pra São Paulo. Vieram pra Penha, depois uns mudaram pra Rua São Caetano, outros pra Rua Mauá, mas todos moravam lá perto, entende?
P/1 – Os pais da senhora trabalhavam com comércio, eles eram comerciantes.
R – Sim.
P/1 – E as outras pessoas da família, os irmãos da mãe da senhora, do pai?
R – Os irmãos do meu pai também abriram loja, cada um foi fazendo separado já. Um irmão só, o menor, do meu pai, ficou morando com a gente. Ele era o caçula e quando ele casou o meu pai quis que morássemos juntos. Ele teve três filhos e nasceram tudo em casa, eram como irmãos, éramos em 11 pessoas já. Mas da minha mãe, eles tinham casa de calçados; essa outra minha prima também na Rua São Caetano era casa de calçados, todos eram comerciantes.
P/1 – E vocês faziam o quê, quais eram os costumes que vocês tinham?
R – Em casa?
P/1 – Em casa e na rua, outras coisas.
R – Em casa era assim, a gente tinha que fazer o serviço de casa, naturalmente. Estudamos, as minhas irmãs estudaram, mas meu pai queria que elas parassem de estudar pra começar a costurar, já de pequena, não tinha 15 anos a minha irmã já foi: “Ah, não quero costurar”. No fim elas foram aprender costurar, elas duas e as minhas duas primas. Aprenderam a costurar e a minha irmã era a melhor costureira, foi maravilha, foi uma escola muito boa que eles foram. O professor era italiano e fizeram um curso muito bom de costura. E toda roupa a gente fazia em casa, não comprava nada pronto naquele tempo.
P/1 – Mas eu falo assim, quando eu perguntei do que vocês faziam, da família que veio toda essa família da senhora, dos pais da senhora, da Grécia. O que vocês faziam de lazer, quais eram os costumes que eles trouxeram de lá, que a senhora nasceu no Brasil, mas a senhora aprendeu coisas dessa cultura. O que vocês faziam de comida, de festejos?
R – Comidas, nós fazíamos todas que trouxe de lá mesmo. Em casa a gente ajudava, a rosquinha da Páscoa, no Natal, era tudo coisas antigas. E a gente se reunia com meus primos, meus tios, se reuniam.
P/1 – Se reunia bastante?
R – Reuníamos. À noite, nossa, não tinha uma semana que não se encontrava. Moravam tudo perto.
P/1 – E quando vocês se reuniam vocês faziam o quê?
R – Ah, as crianças ficavam separadas, não era esse negócio de ficar na sala, ser o dono da casa, da festa, como agora. As crianças ficavam separadas, meus pais ficavam contando as histórias de como aconteceu, era muito bonito. Não tinha televisão, tinha que contar as histórias. E muita coisa que meu pai contava agora eu vejo é da Bíblia, a gente escutava como se fosse uma história, vai ver era trechos da Bíblia que eles conversavam mais sobre isso.
P/1 – Tinha música.
R – Ah, muito! Meu pai tinha uma rádio vitrola que ninguém tinha, não sei, nós tínhamos, parece uma maleta, rádio vitrola. E tinha os discos. Nossa, minha mãe gostava de dançar muito. Dançávamos. Tinha músicas gregas que a gente dançava, cantava. Meu pai nos pôs numa escola de grego pra gente aprender a escrever, porque falar mesmo a gente falava em português e eles falavam, a gente não dava pra... Então ele pôs na escola, mas ia na escola quem? Crianças de sete, oito anos, dez, 12, 15, todos na mesma classe. Tinha a dona Pepina, a professora nossa, então ela dava aula porque é alfabeto, ensina desde o começo, um, dois, o alfabeto. Então todos na mesma classe, a gente aprendeu. E vinha jornal, será que era mensal ou semanal? Vinha jornal grego e meu pai queria que a gente lesse pra não esquecer.
P/1 – E eles falavam em grego, o pai da senhora com a mãe da senhora? Entre eles?
R – Entre eles sim. Não é grego mesmo, porque vieram de lá aprendendo o turco mesmo. Então era proibido até a religião, era tudo muito proibido, eles tinham muito, era muito dificultado as coisas. Eles iam na igreja, não sei como era aquele tempo porque sexta-feira o muçulmano faz sexta-feira feriado; eles faziam domingo, iam na Páscoa, todas missas bem cantadas. Agora aqui no Brasil nós fomos na Ortodoxa, tinha a Igreja Síria, na Rua Itubi, hoje é Rua Basílio Jafet, se não me engano. E tinha uma igrejinha ortodoxa lá, ia todo mundo lá na Páscoa, todo mundo se reunia, aqueles ovos pintados, rosquinha. Nós sempre ficamos. Meu pai gostava muito de festa mesmo, já convidava todo mundo, já reunia.
P/1 – E que comida típica que tinha? A senhora falou que vocês tinham os pratos de lá da Grécia. Como era? Fala um prato pra gente que seja bem típico que a senhora comia desde a infância.
R – Meu pai gostava muito de massas, fazia em casa tipo macarrão, sopas, três vezes por semana mais ou menos era sopa, uma diferente da outra. Uma fazia pastelzinho recheado com carne, outra era só um anelzinho, a gente fazia assim, era sopa também; outra fazia com tahine a sopa, também muito gostoso. Agora as comidas, berinjela recheada, folha de uva recheada, esse, como chama aquela comida que a gente usa a berinjela com carne moída? Mussacá. Todas essas comidas. O peixe também, a gente usava muito o peixe.
P/1 – E quem cozinhava?
R – Minha mãe. Não tínhamos empregada. Quando eu era pequena diz que tinha empregada, porque minha mãe ficava na loja, tinha empregada, babá que ficava comigo. Até eu não sabia falar o idioma deles porque falava com a moça só. A minha avó vinha: “Ai, eu não sei falar com ela, ela não sabe falar comigo!”, mais no começo, quando tinha a loja. Depois quando mudamos numa casa sozinha, aí já não tinha empregada, minha mãe que lavava, não tinha máquina de lavar, a gente ajudava a passar ferro, lavar roupa, costurar, bordar. Só que teve a revolução aqui em São Paulo e a escola que moramos perto, na Rua São Caetano, foi tomada pelo quartel, o grupo escolar, aí não podia mais estudar. Ficaram um ano em casa, então minha mãe pôs no Colégio São José, na Rua da Glória, fica na Liberdade, aí minhas duas irmãs fizeram o primário lá. Tomavam bonde na Rua Florêncio, em frente da loja do meu pai, ele levava. Tomava o bonde, dava a volta pela Liberdade, pela Rua Libero Badaró, descia até na Rua da Glória, perto da João Mendes. E elas iam e voltavam de bonde, pequenas. Até o quarto ano do grupo elas fizeram lá, mas ali aprende muito bordado. Nossa, elas tinham muito bordado e minha mãe gostava também de costura, bordado assim. Em vez de dar um tecido qualquer, ela comprava linho bom e todo enxoval da gente foi feito lá, até o quarto ano, uma hora por dia tinha bordado, então elas aprenderam muito bordado.
P/1 – Essa primeira casa que a senhora contou, que seus pais vieram morar, que vieram oito pessoas. A senhora morou nessa casa?
R – Não, não. Não morei, não.
P/1 – Não morou.
R – Nem nasci lá.
P/1 – Ah, a senhora já nasceu na segunda residência.
R – Na outra casa. Esse palacete logo largamos. Os irmãos foram casando, já ficou só minha mãe e meu pai, aí comprou essa casa na Rua São Caetano, alugou.
P/1 – Que foi onde a senhora nasceu.
R – É, onde eu nasci.
P/1 – Conta um pouco dessa casa, até quantos anos a senhora ficou lá, que eles mudaram depois de novo, né?
R – Na Rua São Caetano?
P/1 – Sim.
R – Lá já era só loja. Nós quando mudamos, mudamos pra Rua Mauá, perto da Rua São Caetano. É uma casa grande, casarão também grande, que tem o porão embaixo, atrás um quintal grande. Era tudo mato, era pedra, minha mãe fez um jardim maravilhoso. Parreira de uva de um lado, embaixo era tudo hortelã, salsinha. E nesse outro lado era roseira, flores, margaridas. Mas minha mãe sempre estava plantando, mexendo na planta, ela gostava muito de mexer na terra. E tinha forno à lenha, ela mandou fazer forno porque ela gostava de fazer os assados, os cabritos, tudo no forno à lenha. Naquele tempo não tinha gás, era fogão de carvão. E tinha uma espiriteira pra fazer cafezinho, uma espiriteira é como de gás agora, pequenininho assim, punha-se álcool, uma espiriteira, só pra fazer cafezinho, mas o resto era no fogão de carvão.
P/1 – E quantos quartos tinham nessa casa?
R – Ah, era grande. Um quarto pro meu tio, era sala, mas depois ele casou e ficou na sala, um quarto dele. Da minha mãe. O meu quarto separado, minhas duas irmãs, meu irmão, cinco quartos. Uma sala enorme, sala grande que cabe aquelas mesas e cozinha grande também, mas não tinha azulejo, piso não era, era um piso de cimento, acho que era, nem me lembro o que era, mas não era azulejado. E banho a gente esquentava água pra tomar banho, com caneca (risos) naquele tempo.
P/1 – Fazia muito frio nessa época?
R – Não sentia. A banheira era grande, tinha uma banheira grande, sala de banhos que hoje em dia se fala, né? Não é como agora, os banheirinhos pequeninhos. Não, não sentia. Punha duas panelas de água, baldes de água, uma quente e outra fria e tomava banho. Depois quando veio a eletricidade, chuveiro, nossa, minha tia não gostava de mexer porque dava choque, tinha medo de usar o chuveiro elétrico, mas nós acostumamos com o elétrico.
P/1 – A senhora lembra mais ou menos quando chegou a eletricidade?
R – Eu era pequena, eu era muito pequena.
P/1 – Quantos anos, mais ou menos, a senhora tinha? Não precisa ser exato.
R – O chuveiro. Eletricidade tinha na casa.
P/1 – Sim, o chuveiro.
R – Mas só o chuveiro. Nossa, eu era pequena. Isso de balde água era bem pequena, seis, sete anos, oito anos, por aí.
P/1 – E a senhora morou nessa casa até quantos anos?
R – Muito anos, 20 anos acho que foi. Chegamos lá em, meu irmão tinha dois anos, um ano, dois e saímos de lá. Espera, de lá fomos para o Tatuapé ele já tinha 15 anos, acho que era.
P/1 – Uns 12 anos.
R – Mais, mais, eu acho que uns 20 anos nós moramos nessa casa. E todas parentes perto. Ah, na guerra, depois da guerra! Mudamos pra lá em 46, pra outra casa, no Tatuapé. Acabou a Segunda Guerra Mundial e meu pai queria comprar uma casa, porque a minha mãe achava, nossa, já comprou aquela casa grandona, ficou lá, estava com aluguel, ia só pra pegar as plantas, frutas que tinham, tínhamos direito de buscar. Só domingo, quando a gente ia, senão ficava alugada pra outras famílias, era alugada. Mas nós moramos até 46 nessa casa. Mudamos em 32, até 46, na Rua Mauá. E quando acabou a guerra meu pai comprou uma casa e não tinha perto, porque quando comprava eles não davam a casa, então meu pai queria pra morar mesmo, e fomos morar um pouco longe, no Tatuapé.
P/1 – Mas só voltando um pouquinho, como era o bairro dessa casa da Rua Mauá.
R – Ah, o bairro! Dessa Rua Mauá. Muito legal. Era tudo arborizada, lampião de gás, tinha lampião de gás que de manhã ele vinha apagar, de noite vinha, às seis horas, o homem acender o lampião de gás, era muito gostoso. A rua arborizada, brincávamos na rua, na calçada, não tinha carros, muito pouco, se tinha uma pessoa que vinha de carro. E tinha carroças, né? Passavam carroças (risos). Mas essa casa era muito gostosa, a rua muito bonita, arborizada. Ah, depois da Segunda Guerra, em 45, 46, o dono queria a nossa casa pra derrubar e fazer sobrados lá. Aí meu pai comprou uma casa no Tatuapé, uma casa grande, ele mandou fazer, salas grandes, terraço grande. Só que era distante da gente, nós estávamos acostumados a ir perto da Rua 25 de março, perto do Mercado Municipal, morávamos perto do Mercado Municipal, frutas, tudo, minha mãe não gostava de comprar na feira.
P/1 – E a senhora brincava de quê nessa época, nessa primeira casa da Rua Mauá?
R – Então, eu ia na escola. As minhas irmãs, os quatro anos elas fizeram no São José e naquele ano eu fiz os quatro anos no Grupo Escolar Prudente de Morais, perto da Estação da Luz. Existe até hoje, hoje é a Pinacoteca lá, onde eu estudei os quatro anos do primário, eu e meu irmão fizemos lá, porque já não tinha policiamento, já tinha passado aquele tempo de revolução que minhas irmãs estudaram. Era uma escola muito boa, Grupo Escolar Prudente de Morais. Hoje em dia é a Pinacoteca ali e o Grupo Escolar Prudente de Morais mudou, fizeram um prédio mais distante, na Avenida Tiradentes mesmo. Mas nós íamos à escola, minha mãe nunca me levou à escola, eu ia sozinha. Prezinho, jardim da infância eu fiz numa escolinha que ficava perto, uma travessa da Rua São Caetano, Eu ia sozinha, nunca minha mãe pegou, a mãe levar na escola, seis anos eu ia sozinha. Atravessa uma rua, vira outra, vira outra, e eu sozinha.
P/1 – A senhora então começou a estudar com seis anos.
R – Com seis anos. Depois de lá passei pro primeiro ano no Grupo Escolar Prudente de Morais, também nunca minha mãe segurou a mão pra levar, a gente ia sozinho, nem irmão, ninguém levava. A gente sabia andar, atravessa, vê. E chegando na Avenida Tiradentes tinha os guardas que atravessavam, porque lá tinha os bondes e tinha ônibus, não sei, é bonde que tinha, os bondes. Mas tinha guarda que atravessava a gente. Mas nunca que eles ficavam preocupados: “Mas como que ela vai atravessar a avenida?”. Porque lá da escola, do grupo, tinha os meninos, até meu irmão foi um desses que fica apitando pra gente atravessar, pra parar o bonde. A avenida com três ruas assim que atravessam, íamos e voltávamos sozinhos. Estudei lá os quatro anos do primário, depois eu fiz no São José o preparatório, admissão que diz hoje, pra entrar no São José, na Rua da Glória, e fiz o ginásio lá. Lá tinha educação artística, também tinha religiosa, Colégio São José de irmãs, minha mãe gostava por causa disso também. E tinha também uma hora de bordado, ensinava coisas.
P/1 – Essa era a escola que as irmãs da senhora estudavam?
R – Que estudaram, é. Elas fizeram quatro anos, mas pararam. Meu pai queria que elas fizessem costura, ficar em casa, pra tudo ele fazia, mas estudar eu não sei, ele tinha medo que a minha irmã, pra estudar e ser professora, tinha que ficar um ano no interior. Ele falou: “Não, minha filha não vai ficar no interior”. E fizemos assim. Eu fiz até o ginásio, eu gostaria de fazer mais, faculdade, queria fazer línguas, eu gostava muito de línguas porque o latim pra mim era fácil, nós estudamos latim na minha época, e latim para mim era fácil porque é igual ao grego, tem as declinações. Línguas eu gostava, inglês, francês, a gente estudava desde o primário lá o francês, minhas irmãs já saíram de lá sabendo o francês. Mas como eu entrei no quinto ano, admissão, depois entrei no primeiro ginásio, segundo e na época já era de cinco anos o ginásio, na minha época já foi de quatro anos, em quatro anos eu terminei.
P/1 – E a senhora pensava fazer faculdade e o pai não deixou, foi isso?
R – Porque pra entrar na escola as minhas irmãs tiveram que chorar muito pra deixar eu ir: “Deixa ela ir na escola, deixa”. Aí ele deixou. E gostava, eu ganhava medalhas, sempre era daquelas quietonas, bobonas (risos). Ganhava sempre medalha, quietinha, fazia tudo direitinho, sempre estava ganhando, era o orgulho deles mesmo. Porque eu gostava mesmo de escola, naturalmente, se estou indo lá não é pra fazer bagunça. E acabando ginásio terminou, as minhas irmãs casaram, aí mudamos também do bairro, fomos lá pro Tatuapé. É, foi nessa época, 45, que eu terminei em 45 o ginásio. Mudamos para o Tatuapé, ficamos lá. Fiz curso de piano alguns anos, mas parei logo porque não ia comprar piano. Ia comprar piano e meu irmão falou: “Não, piano só você que vai tocar, vamos comprar uma televisão”, saiu nova aquele ano, era 52, a minha sobrinha já tinha nascido; 52, a primeira televisão. Ninguém tinha na rua. Aí todos os vizinhos queriam assistir. Meu irmão tinha máquina de filmar também, ele filmava e passava os filmes de Carlitos, de Chaplin, ele tinha aquela máquina de passar na rua assim, na tela, no quintal. E depois quando veio a televisão foi bom que comprou porque meu pai deu pra usar, em 52, ele morreu em 54. Mas era uma coisa diferente, televisão, mas como não é rádio, televisão, vendo as pessoas. E aí vinha toda a família, os vizinhos, assistirem. Tinha óperas aos sábados, opereta, é brasileiro. E um sábado era opereta, na outra semana era teatro de Procópio Ferreira, teatros bons que passavam. E vinha toda a família. E também tinha na segunda-feira circo do Arrelia, eles vinham assistir, aquele era mais cedo. Era uma festa a televisão. E ficamos. E foi bom que meu irmão mandou comprar a televisão porque a gente não dava valor: “E o que é televisão?”, ninguém sabia. Mas depois quando tem em casa todo mundo vinha assistir, também tinha esses programas bons. E não era o dia inteiro que tinha televisão, tinha aqueles horários só. Não é como agora que fica de manhã e a noite toda. Mas era muito gostoso. E vinham todos os familiares assistir opereta, era muito gostoso opereta, Viúva Alegre. Hoje em dia não tem programas alegres assim, bons. E minha mãe gostava muito também de música espanhola. Onde tinha a cantora que vinha, a Rita Nela, a gente ia no Teatro Colombo assistir ela dançar. E já no meu grupo, onde eu estudei, o colégio quando fazia a primeira festinha era no Teatro Colombo. Onde é o Largo da Concórdia hoje, era um teatro muito bom. Quando derrubou, era o Adhemar de Barros que precisou fazer aquele viaduto que tem agora também, como chama aquele viaduto? Na Rangel Pestana. Porque antigamente os bondes, tudo, iam pela Rangel Pestana e tinha o trem que passava e ficava parado para o trem passar, passar outro cargueiro. Aí o Adhemar de Barros fez esse viaduto, que todos os ônibus passam por lá. Mas tirou o Teatro Colombo, um teatro muito bom. Demorou muito para eles resolverem, mas quebraram.
P/1 – O teatro foi pra outro bairro?
R – Não, o Colombo não. É verdade, não foi.
P/1 – Agora deixa só eu voltar um pouquinho. Primeiro da escola. O irmão da senhora continuou estudando?
R – Ele sim. Ele foi estudar no Mackenzie. Depois do grupo escolar ele foi no Mackenzie, depois ele fez curso de, como é o nome? Não é Mecânica, você lembra o que é?
P/1 – De Engenharia?
R – Não, não, espera. Não é mecânico. Até entrou na Goodyear logo, estudando lá, terminando, ele foi trabalhar na Goodyear. O que era o curso?
P/1 – Não, tudo bem, era só de curiosidade mesmo.
R – Eu queria lembrar também. Fez no Mackenzie. Se formou bonitinho, estudou bem e tudo lá. E logo o primeiro emprego ele foi convidado pro Goodyear.
P/1 – E da escola da senhora, teve professores que a senhora guardou na memória, que te marcaram? Desde lá do jardim da infância, depois do grupo, ou do São José?
R – Do prezinho era uma senhora de birotinho, a gente vê hoje nos filmes (risos). Uma senhora de birotinho e já minha irmã, a primeira, ainda morávamos na Rua São Caetano, então essa senhora passava na Rua São Caetano, pegava minha irmã com sete anos, levava até e escola e voltava, minha segunda irmã. Depois eu já morava no outro lugar, mas meu pai levou nessa mesma escolinha. Era uma escolinha só de classe de prezinho. Mas essa de birotinho, agora quando passa alguns filmes, tem essas professoras antigas, de idade. E a gente usava avental branco, me lembro dessa fase gostosa. Depois no grupo também teve. Teve as festas. Ah, enquanto eu estava no grupo, acho que estava no terceiro ano, ou no segundo, foi inauguração do Pacaembu. E esse grupo era muito bom, era um dos bons grupos que tinha naquela época. Então foram todos os grupos bons lá, quem fazia ginástica direitinho, e eu era uma delas (risos), fui convidada. A gente ia de bonde Camarão até o Pacaembu.
P/1 – Bonde Camarão?
R – Bonde Camarão.
P/1 – O que é isso?
R – Bonde Camarão. Que vocês conhecem o aberto, né? Camarão parece um ônibus, fechadinho, abre a porta, a gente entra, paga na roleta. É fechadinho, é tipo um ônibus, bonde camarão. Não era mais barato, era tudo igual. O bonde que eu tomava pra ir na escola era bonde comum, sobe, desce. E tinha o bonde que era barato para os operários, ficava atrás, chamava-se bonde... já esqueci o nome também desse bonde.
P/1 – E ia grudado?
R – Grudado. Mas os pobres tomavam lá e pagavam meia passagem, se era 200, lá era dez centavos. O meu era 20 centavos, também era 200 réis naquela época. E o de trás, o barato, Cara Dura! O de trás era o Cara Dura. E os operários subiam naquele, custava dez centavos. E pagava, depois descia, não está pagando e eles corriam atrás da gente, é muito engraçado aquela época.
P/1 – Esse bonde a senhora pegava pra ir?
R – Pro Colégio São José.
P/1 – Pro São José, porque pro Prudente a senhora ia caminhando.
R – A pé, a pé. São José tinha que tomar o bonde na Rua Cantareira, descia no Largo do Tesouro. Hoje o que é o Largo do Tesouro? Subindo a Ladeira General Carneiro, perto do Pátio do Colégio, lá era ponto final do ônibus. Descíamos lá e de lá andávamos a pé até a Rua da Glória. Às vezes, se a gente tinha pressa, descia na Praça da Sé, tomava um bonde e descia em frente da escola. Mas não era sempre porque precisava gastar à parte também (risos).
P/1 – E no primário a senhora se alfabetizou em língua portuguesa.
R – Sim.
P/1 – Aprendeu a ler, a escrever.
R – Sim.
P/1 – E tinha trabalhos manuais lá também?
R – No Grupo Escolar?
P/1 – Isso.
R – Não. A minha irmã fazia, fazíamos bordados, sim. E os meninos faziam cinzeiro de madeira, um pezinho, os meninos faziam marcenaria, essas coisas assim. E nós é bordado, fazíamos bordado também.
P/1 – Daí a senhora foi estudar no São José.
R – É, ali foi fazer bordados mais bonitos, a gente era grande também.
P/1 – Mas estudava Português, Matemática, Ciências.
R – Tudo, tudo. Escola normal. E tinha até o latim. O francês. Como a escola é francesa as irmãs quase falavam em francês e a gente tinha que entender, falar quase em francês muito também. O inglês e o latim. Eu estudei latim uns dois anos, mais ou menos, depois foi tirado. E o latim eu gostava porque parecia o grego, as declinações, o verbo, o jeito, eu ia bem no latim também.
P/1 – E das brincadeiras?
R – Brincadeiras de rua. Ali era na rua, quando morávamos na cidade.
P/1 – Na Mauá.
R – Agora no Tatuapé não, era rua como agora, as casas separadas. Mas teve muitos vizinhos lá também, porque meu pai fez um terraço grande e meu irmão fazia baile, dançando, os discos que tocavam, já ia todo mundo dançar, cantar. Aí a criançada na cidade.
P/1 – Aí a senhora já era mocinha.
R – Já, 17, 18 anos.
P/1 – E da infância? Tinha algum brinquedo que a senhora gostava ou não tinha brinquedo, era mais brincadeira de rua.
R – Olha, boneca que eu tinha era uma só de pano que eu usei, acho que a vida toda eu tive boneca de pano (risos). Mas minha mãe fazia uns vestidinhos bonitinhos. Acho que boneca que eu tive, de louça eu não tinha. Minhas irmãs tinham, que naquela época elas ganhavam de louça. Já eu não, era de pano, e nem estava triste, estava bem contente com aquilo. Meu irmão tinha muitos carrinhos, bicicleta. Eu tive minha bicicletinha, dessas pequenininhas, depois de grande eu não tive bicicleta, não, meu irmão que teve. Ele fazia parte do, como chama? Clube Tietê que tinha na Avenida Tiradentes? Ele era sócio de lá, jogava bola ao cesto, ele era sócio de lá. A gente ia passear só, assistir os meninos jogarem.
P/1 – E o que a senhora mais gostava de fazer quando era criança?
R – Bordávamos muito, à noite, ouvindo rádio, a gente bordava, gostava muito de bordar junto com minhas irmãs.
P/1 – A senhora criancinha, pequenininha, já bordava?
R – Bordava (risos). Tricô! Segundo ano, o casaco de tricô fui eu que fiz. Como a gente aprendia. Quer dizer, acho que a minha mãe terminava as mangas, tudo, mas o tricô mesmo, o casaco do segundo ano primário, eu que fiz. Oito, nove anos? Segundo ano.
P/1 – A senhora disse que brincava na rua, que podia.
R – Ah, brincar de calçadinha. Cantar de roda, essas músicas de roda, a noite toda. As mães sentavam nas cadeiras lá fora, todas as mães, e nós brincávamos de roda, de cantar, de passa-passa, aquelas brincadeiras que tinham antigamente.
P/1 – E daí era com os vizinhos e a família que morava perto.
R – Não, os parentes não vinham nessa hora, era só nós e os vizinhos. Quando vinham eles a gente entrava e ficava lá dentro, não ficava na rua brincando.
P/1 – E depois quando a senhora foi ficando mocinha, já estava estudando no São José, o que vocês passaram a fazer pra se divertir? Mudou?
R – Então, meu irmão chamava os amigos pra dançar. Tinha mesa de pingue pongue, mesa grande de pingue pongue. Ele comprou e brincava, os amigos dele com a gente, brincamos de pingue pongue bastante.
P/1 – E tinha bailes.
R – Os bailinhos, as festinhas. Se tinha no vizinho, no sei o quê, meu pai não gostava, mas nisso ele deixava, porque eram amigos do meu irmão, eram pessoas conhecidas, vizinhos.
P/1 – E que música tinha no baile?
R – Ah, maravilhosa! Agora todas sumidas músicas de antigamente. As de agora, você sabe alguma música de carnaval desse ano? Nenhuma. Ainda daquele ano todas as músicas são lindas que a gente conhece. Nossa, todas músicas bonitas, até hoje a gente canta, são músicas que sempre existiram. Do carnaval do ano passado, sabe uma música? Desse ano, do outro ano? Não tem música. Carnaval antigamente eram músicas que eram hinos.
P/1 – E como era o carnaval dessa época?
R – Ah, falar isso. No carnaval, os amigos do meu pai tinham carro, então, tinha um filho só pequeno e carro antigamente era grande, que podia subir pessoas, não era apertado, pequenininho como agora. Então nós subíamos junto. Fazíamos vestido de fantasia de carnaval, de chita, aqueles vestidos de chita e subíamos lá, ficar de pé lá atrás. Eu com o meu irmão ficávamos no meio, minhas irmãs sentavam atrás no carro, abriam o capote. E serpentina, confete. E aí íamos na Avenida São João, o corso era na Avenida São João. Mas isso quando nós morávamos ainda na Rua Mauá, eu era pequena. Íamos no corso, cantando, jogando serpentina, cantando, o carro para e fica dançando. Mas umas músicas diferentes, gostosas mesmo.
P/1 – E o cortejo era de carro?
R – Carros! É corso que chamava, um carro atrás do outro. Na Avenida São João. Ia na Avenida Ipiranga, dava volta assim. Eu não me lembro bem o trajeto, mas nós íamos junto no carro.
P/1 – E a música vinha da onde?
R – Ah, tinha alto-falante! A Avenida São João todinha com alto-falantes. Tocava as músicas e a gente cantava e dançava. Descia do carro, uma hora os carros paravam, não sei porque param e a gente descia do carro e ficava dançando, até com os outros carros que estão lá perto. A gente conhecia às vezes do outro ano, são pessoas que conheciam já nos carros, e ficávamos dançando lá, com serpentina, confete. E lança-perfume de usava. Ah, se ia no olho! Ai que horror nos olhos! Mas se usava o lança-perfume (risos), hoje tudo já é proibido.
P/1 – E os pais da senhora também gostavam do carnaval?
R – Compravam confete, bastante serpentina, tudo. Eles não iam com a gente. Ah, meu pai antigamente, que não tinha esse carro, levava nós. Ele me punha nas costas e o outro meu irmão também, não sei como. Ele tinha um saco que veio da Europa, um saco que punha assim, que era para pôr nos cavalos pra levar alimento, não sei, mas de veludo, veludo persa, tapete persa. Então eu ia na frente, meu irmão atrás. Íamos na Avenida São João, ele ficava lá na rua Libero Badaró, lá em cima, pra ver o corso passar, o carnaval passar, e ia vir um carro alegórico, nunca a gente chegou a ver carro alegórico, ia passar daqui cinco minutos, daqui dez minutos, nunca dava. Mas era um, não como agora, um atrás do outro, tantos carros alegóricos. E íamos assim, mas depois que crescemos e tinha esses amigos que tinham carro a gente ia na Avenida São João dentro do carro, cantando, dançando, festa, roupas de carnaval. E chegando em casa, pronto, dançava com aquela vitrolina. Vitrola assim, é um gramofone que chama, não era gramofone, era vitrola mesmo, põe o disco, só que era manivela, dá corda e o disco toca. E dançava, confete no lustre, nossa, a casa ficava de confete! (risos) Pra limpar levava um mês pra terminar de limpar os confetes.
P/1 – E os pais da senhora ouviam músicas, eles tinham as músicas deles da Grécia?
R – Da Grécia. Mas os nossos a minha mãe gostava e dançava. Meu pai já não, ficava lá sentado, mas minha mãe ia junto com a gente, ela era foliona como a gente (risos). Agora tinha os discos gregos, os discos que tocavam, minha mãe dançava com tipo castanhola. Nas festas que a gente ia, nas visitas assim, eles: “Dona Maria vem dançar”, porque ela sabia dançar bonitinho. “Então venha dançar” “Ah não, eu não trouxe”, aí meu pai estava com ela no bolso dele. Ele não ficava com ciúmes, tirava a colher pra dançar. E dança requebrando, não é simples. Como ele não tinha ciúmes? E ela dançando, requebrando, como a pessoa era boa de coração, né? Em vez de ficar com ciúmes: “Ah, vai se requebrar”, ele queria que ela dançasse requebrando (risos).
P/1 – E as filhas aprenderam essas danças?
R – A gente dançava, eu dançava também, mas depois começamos a aprender na escola grega a dança grega, aquela de roda que faz, né? Aí meu pai levava. Então, tinha reunião na escola, eles faziam parte da coletividade helênica, né? Então dia 25 de março tinha festa e essa dona Pepina que ensinava a gente a ler e escrever ensinava a dançar. Até essas fotografias que estão aqui, que eu falei que são minhas irmãs, então, eles dançavam esse, aquela de roda que dança as gregas.
P/1 – Chama dança circular?
R – Helênica, né?
P/1 – Eu não sei. Mas vocês frequentavam a escola, o São José, o grupo escolar, e frequentavam a escola grega também.
R – Também, é. Então, ensinava dança grega, nas festas gregas, dia 25 de março tinha uma festa grande, alugava-se um salão e nós dançávamos. Fazia um papel, uma vez eu era enfermeira, fiz um papel lá. Meu irmão. Poesia, a gente lia poesia, era conforme a idade da criança. E tinha a dança, as grandes dançavam. E teve uma vez que era tempo da guerra, acho que é, chamava-se a festa... eu era japonesa, a minha irmã era uma inglesa, eu de quimono japonês saía do palco com leque assim, e a minha irmã era inglesa, com uma roupa azul marinho, bonitinho, bem vestido, aquele óculos assim. A outra era francesa. Minha irmã e minha prima dançaram, uma era Maria Antonieta, um vestido lindo, todo grandão, está até na fotografia de um. E ela de Luís XV e dançou minueto. Fazíamos festas muito bonitas, muito bonitas.
P/1 – Tinha uma comunidade forte, grega aqui em São Paulo?
R – Grega, tinha.
P/1 – E os pais...
R – E eram quase só parentes nossos naquele tempo. Depois da Segunda Guerra Mundial começaram a vir muitos gregos, aí começaram a vir os gregos novos.
P/1 – E continuou essa comunidade se reunindo?
R – Reunindo, enquanto meu pai era vivo a gente tomava parte. Depois meu marido, eu casei com um árabe e ele, diferente do meu pai, não gostava de passear, não gostava de sair, não gostava (risos), completamente diferente. A gente ficava mais em casa.
P/1 – Eu ia perguntar isso pra senhora, dessa época que a senhora já estava ficando adolescente, de namoro, como é que foi?
R – Minhas irmãs casaram, a primeira foi morar em Santos, o meu cunhado era muito legal e a gente ia, se ela não estava em São Paulo nós estávamos lá. Recebia a gente, recebia bem, fazia festa, íamos às praias, tudo, meu cunhado gostava muito. De manhã já ele que preparava a mesa, ele sabia fazer as coisas, fritar já os peixes (risos). E a gente já levantava e ele já estava fazendo tudo, arrumava a mesa com flores. E quando eles vinham, se nós não estávamos em Santos ela estava em São Paulo, era toda semana quase. Essa não teve filhos. A segunda quando casou morava perto de casa, o namorado dela, o noivo, casou, ficou morando em casa, aí teve filhos, netos, aí começamos a brincar com a primeira neta, primeira e segunda neta.
P/1 – Sobrinhos.
R – É. Aí meu pai faleceu, a primeira neta quando nasceu, ela não teve dois anos e ele faleceu de repente. Ele ainda tinha ido à fábrica, meu pai falou: “Pra que o senhor vai hoje, pai? Fica em casa” “Ah não, eu vou um pouquinho”. Era táxi ou era do meu irmão o carro, não me lembro como foi. Ele foi lá na fábrica e fui na minha irmã pra fazer um vestidinho pra menina que ia fazer dois anos. Ele passou, chegou cinco, seis horas, chegou na casa dela, ela tinha um armazém lá no Belém, ele veio: “O senhor veio cedo?” “Sim, eu vim cedo”. Eu falei: “Então eu vou com o senhor pra casa”, ele estava de carro, larguei a minha irmã e fomos pra casa. Ele fez pra mim: “Ah, deixa um dinheiro pra Bete”, Bete é minha sobrinha, primeira neta do meu pai. “Deixa um dinheirinho” “Pai, por quê? Nós já compramos um presente caro, um casaco de veludo com aquela pelúcia”, coisa cara e calça azul marinho que ele gostava que a gente usava calça comprida. Ele falou: “Essa minha neta vai usar”, porque a gente tinha vergonha de usar calça comprida. Só pra ir pra Santos. E meu pai queria que a gente usasse, olha! E eu tinha vergonha de usar calça comprida, só pra Santos. “Essa minha neta vai usar calça”. Aí nós compramos uma calça azul marinho, porque era só de bebê, de macacão, um azul marinho bonito, casaco de veludo vermelho com aquela pele, uma roupa cara. “Pai, nós já compramos uma roupa” “Ah não, deixe esse, coitada”. Mil cruzeiros ele deixou naquele tempo na penteadeira. Ela estava doentinha, perto do bercinho dela. “Ah pai, por que o senhor deu tanto dinheiro?” Aquela noite ele ainda foi, tinha um enterro, ele foi no vizinho nosso, meu irmão foi buscar, ele ia trabalhar na Goodyear, trabalhava de noite até de manhã. Antes dele ir ele foi buscar. “Pai, o senhor vai amanhã no enterro, agora à noite não vai passar a noite aqui, vem”. Ele ainda jogou baralho com minha mãe à noite e fomos dormir. Ele: “Põe na Melpo, porque a Melpo está querendo”, porque meus primos ficavam lá, essa estação. “Não pai, eu estou aqui bordando, não precisa”. Foi subir, dormir. Nisso ele dormia embaixo, o quarto dele era embaixo pra não subir escada. Aí minha mãe de madrugada gritando: “Vasso!”, meu tio o nome é Vasso. “Vasso! Vasso!”, eu desci correndo: “O que foi?” Meu pai caído. Diz que ele falou pra minha mãe: “Acende a luz”. Na hora que ela acendeu ele caiu pra trás, sem falar ai. Naquele tempo nem ia no médico, vai no médico, ele não gostava de ir no médico.
P/1 – Ele tinha quantos anos?
R – 72, 71.
P/1 – A senhora estava contando que vocês tinham mudado para o Tatuapé, foi nessa casa?
R – Nessa casa. Moramos acho que dois, três anos.
P/1 – E ele faleceu nessa casa.
R – Ele faleceu nessa casa. Aí meu tio foi chamar ambulância uma hora da madrugada, fomos na casa da sogra da minha irmã, ela morava na outra travessa, eles tinham telefone. Não sei como foi, chamaram ambulância, veio, minha mãe lá chorando. “O que foi?” Eu fui dar água benta para ele achando que água benta ia servir. A gente trazia água benta da igreja, 6 de janeiro tem a festa de batizado de Jesus, então a gente trazia pra casa água benta. Eu comecei a dar água benta, mas ele não bebeu. Veio a ambulância, a minha mãe falava: “Dá uma injeção pra Melpo, a Melpo está gritando, chorando muito”. Eles vieram: “Eu não estou doente, não quero injeção”, vieram aplicar injeção em mim, sei lá. “Eu não sou a doente, meu pai que está doente, dá injeção pra ele”. A gente gritando. Foi muito difícil essa morte.
P/1 – A senhora tinha quantos anos?
R – Dezesseis, 17, por aí.
P/1 – E aí...
R – Aí minha irmã já tinha casado, já estava com neném. A outra estava em Santos. Uma semana antes era Dia das Mães e eles estavam em casa, mas na outra semana não estavam e foi nessa segunda-feira que ele faleceu assim. Essa família toda vinha jogar baralho, assistir televisão, tudo aquela, sempre duas, três mesas abertas na minha sala, duas salas de visita e de jantar. Aí veio um pessoal, foi um choque muito difícil, foi muito difícil. E naquele tempo a gente usava preto, o mesmo lenço amarrado, o cabelo era preto, não usava brinco, usava-se preto antigamente.
P/1 – A senhora não estudava mais, né?
R – Não.
P/1 – E a senhora fazia o quê nessa época? Como a senhora ocupava o seu tempo? Já trabalhava?
R – Em casa só, bordava muito, costurávamos muito, tudo fazia em casa. Os doces a gente fazia em casa, estava sempre ocupada. Massa de tomate a minha mãe fazia em casa. Já pensou o trabalho? Ela comprava quatro caixas de tomate em janeiro, lavar e fazer tudo. Tem um quintal grande, ela tinha uns sacos, tudo. A gente ajudava, fazia massa de tomate pro ano todo dava pra fazer. Faz secar no sol, cozinha, ferve, passa na peneira, e eu estou lá ajudando ela sempre.
P/1 – E a mãe da senhora trabalhava, ajudava o pai no comércio?
R – Não, só no começo, depois tinha empregados. E a comida a gente levava marmita, vinha o menino buscar a marmita pro meu pai e pro meu tio. Tinha sempre parentes que vinham, ela mandava marmita bastante pra comer lá.
P/1 – Para eles almoçarem. E aí, com o falecimento do pai da senhora o que aconteceu?
R – Nossa, aí foi muito triste, todo mundo, ninguém mais vinha jogar baralho. Claro, foi um choque grande, foi um choque muito grande. E a gente não sabia que ele estava doente, vai ver o pessoal sabia porque um mês antes era aniversário da minha irmã de Santos, dia 18 de abril, e nós fomos, ficamos dois, três dias, as minhas tias, todo mundo foi lá, ficaram meu pai e meu tio só em casa. Aí minha tia: “Maria, como você deixou ele sozinho?” “Ah, mas eles se viram sozinhos, ele sabe”, ficamos acho que uns três, quatro dias lá em Santos. Aí viemos, outra semana meu pai morreu. Quer dizer, acho que eles sabiam que ele tinha, sei lá, pelo menos eu não estava sabendo de nada.
P/1 – Sim, aí vocês mudaram dessa casa depois de um tempo.
R – Não, ficamos lá. Continuamos lá. Só que aí meu tio, meu irmão quis fazer o seguinte, porque já ficou eles grandes, faziam bagunça, nós já éramos diferente, as coisas. Então falou: “Ó tio, então vocês ficam com a loja, a fábrica fica pra vocês”, e o meu pai tinha mandado fazer naquela chácara dois salões, um era alugado pra farmácia e o outro para um bar. Pois minha mãe: “Ah, vamos fazer esse outro terreno também, faz mais um”, e ficaram três, quatro lojas na frente e atrás as chácaras. E vinha um aluguel bom de lá. Porque quando meu pai comprou esse terreno, no começo da vida deles ainda, meu pai deu cinco metros pra cada irmão, porque era um terreno grande, cinco metros pra cada irmão e pra ele ficou 15, ficou um pro meu tio Vasso, 15 pra nós, é, ficou 20, é, cinco para aquele último tio e 15 pra nós. Está até hoje. Os meus tios logo venderam, um só ficou, até ele morrer ficou naquela loja já. Mas meu irmão falou: “Tio, fica com a fábrica e nós ficamos com essas casas, da Rua Antônio de Barros”. Aí foi assim, eles alugaram uma outra casa e mudaram da nossa casa. Mas o meu tio não aguentou, porque o meu pai viajava pra Paraná pra receber, os viajantes vendiam e depois tinha que receber. É muito tempo que eu estou falando, tem horário pra falar?
P/1 – Não, fique à vontade.
Acompanhante – Posso fazer uma intervenção?
P/1 – Sim, pode.
Acompanhante – A senhora esqueceu de falar o nome da vovó é Maria Kipriadis Perides, de solteira, que ela era da família Kipriadis. Desculpa. E o tio Miguel é Químico.
R – Química ele estudou!!! Eu não me lembrava (risos). É Química ele foi estudar, ele fez Química.
Acompanhante – E do Pacaembu que ela estava falando é o estádio do Pacaembu.
P/1 – Sim, eu pensei que seria isso mesmo.
R – É, então, agora teve não sei quantos anos do Pacaembu, meus sobrinhos foram visitar lá: “Tia, eu lembrei da senhora!”, ainda eu falei: “Eu até sei cantar a música que eu cantei naquela época” (cantando) “Mocidade avante”, eles caíram na gargalhada.
P/1 – Então a senhora vai cantar
P/2 – Está gravando.
P/1 – Canta pra gente.
R – (cantando) “Mocidade avante do exercício constante. Grécia e Roma imitemos, nossos filhos teremos”. E o resto não me lembro mais. Mas toda escola, tinha mesas aqui, aqui e aqui, o Pacaembu todinho cantando isso. Inauguração do Pacaembu. Filho, eu sou uma das, você fala que conheceu uma velha que inaugurou o Pacaembu (risos).
P/1 – E por falar em Pacaembu a senhora e a família tinham um time de futebol?
R – Muito, muito!
P/1 – Qual?
R – A vergonha dela, Corinthians! Aiii nós somos muito, eu pelo menos sou roxa (risos). Ontem parece que já perdeu. Ele só dá alegria, não faz mal, eu continuo, todos na nossa família são corintianos.
P/1 – E tem um motivo?
R – Não, porque a gente morava lá perto, São Jorge, não sei. Não sei porque. É, Palmeiras, nós não somos italianos. Saopaulino ficava naquela rua... agora que eles ficaram chiques e foram pra lugar chique, eles eram perto da Rua São Caetano, Jaraguá acho que chamava lá. Mas a gente era do Corinthians, porque morávamos pra cá, não sei.
P/1 – E foram pra inauguração do Pacaembu a senhora que ficou muito tempo sendo campo do Corinthians, né?
R – É verdade.
P/1 – Não tinha relação.
R – Agora meu irmão vai muito, leva os filhos dele, foram na inauguração. Mas jogo de Corinthians eu nem gosto que eles vão, eu falo: “Pelo amor de Deus, sai tanta guerra, sai tanta briga, não vão”, eu não gosto que eles vão, mas eu assisto. Só que às vezes eu não assisto, por quê? Eu vou ficar muito, estão perdendo, então no dia seguinte eu ligo pro meu neto: “Filho, quanto ficou ontem?”, se for assistir ponto a ponto eu sofro muito, então é melhor não assistir (risos). E é assim.
P/1 – E me conte um pouco aí das paqueras como foi, como a senhora conheceu o seu marido.
R – Ah, eles não deixaram a gente paquerar ninguém, quando tinha homem que ia vir em casa, depois que casava meu pai recebia. Mas aí meu pai não gostava, de repente vem e recebe porque já casou. A gente era muito presa, não podia, tinha que esperar. Íamos nas festas, no baile da 25 de março, um baile bonito, a gente fazia vestidos bonitos, estamos lá elegantes, bacana, ficava tudo sentado perto do meu pai. Se o moço vinha pedir pra dançar, se ele deixava a gente dançava, senão... só com parentes que pode dançar, mas outra pessoa. E ele ainda fazia a gente passar vergonha. Meu pai era legal, mas de vez em quando ele falava: “Ah, elas estão tudo doente, não dá pra dançar”. Estamos no salão dançando toda hora e de repente pra aquele camarada não: “Elas estão doentes, não dá pra dançar”. Mas naquela época acho que era mais, levar taboada, essas coisas existiam.
P/1 – E a senhora conheceu o marido da senhora quando?
R – Ah, minha tia, casada com meu tio era síria. Então um dia ela veio pra minha mãe: “Tem um moço muito bom, tem um moço não sei o que lá”, eu falei: “Ih, não quero saber de nada”. Eu não queria saber, sei lá. E logo trouxeram, uma noite trouxeram ele, só pra ver se vinha, aí ele começou a frequentar. Vinha frequentar, jogar baralho, não sei o que lá, não sei o que lá, então tudo pra casar, pra ficar noiva, não sei o que lá, foi assim tudo.
P/1 – E a senhora tinha quantos anos?
R – Já tinha 20 e poucos anos já. As minhas irmãs já eram casadas, já tinha muitos netos, tinha quantos netos? Eu tinha uma irmã só. Bom, ela teve... a primeira não teve filhos, a segunda teve seis filhos, um atrás do outro, e o último gêmeos. A minha mãe foi ver na família, quem tem gêmeo na família. Perguntou pra todo mundo, ninguém tinha gêmeo na família, foi o primeiro. Até quando nasceram era natal, dia 24 de dezembro, estava no hospital. Minha mãe quando viu: “Mais um? Dois?! Nossa, são nossos esses dois?”, nem os médicos perceberam, nem nada. Aí eu depois quando casei também tive quatro filhos, no último, que eu nem estava querendo mais, mas vai, aconteceu. Fui no médico, fazia tratamento e logo que ele me viu falou: “Ih, acho que é gêmeo. Tem gêmeo na família?”, falei: “Não tinha, mas a minha irmã depois de quatro teve”. Mas eu falei: “Eu costumo ficar gorda, já sou gorda, em dois ou três meses já fico grandona”. Ele falou: “Não, vai ser”. Aí tirou chapa, naquele tempo radiografia, chapa, vai ver eram dois. Ai, cheguei em casa chorando, meu marido ainda não estava trabalhando, estava em casa: “O que foi?” “Ai, vai ser gêmeos”. Ele falou: “Então, nós temos na família”. A tia dele, a prima dele, Fulano, a família do meu marido tinha muitos gêmeos. Ele todo alegrão, eu: “Ah mais dois agora, que coisa!”, uma delas é essa, uma das gêmeas.
P/1 – E como chama os filhos da senhora?
R – A mais velha é Elvira Maria, nome das duas avós, Elvira, minha sogra, Maria minha mãe. A segunda, Dionéia, é nome grego. O terceiro o meu marido escolheu, é Jorge, só que ele pôs o avô dele, Jorge Angelo. O quarto eu que escolhi, Diógenes. E as duas quando nasceram, aí todo mundo quis dar palpite. Ele trouxe uma lista. Eu queria Cristina e Cristiana, Claudia e Claudete, eles: “Ah não, não, não”. Pôs Eliana e Cristina. Ele queria separado porque elas não são iguais.
P/1 – Então são seis filhos.
R – Seis.
P/1 – Me conte do casamento da senhora, como foi essa festa, vocês casaram na igreja?
R – Sim, sim. Meu pai já tinha morrido, eu estava de luto. E o noivado só, nossa, fiz um vestido lindo, rendado, muito bonito. Só que não fui fazer cor de rosa, naquele tempo tinha que ser cor de rosa, eu fiz um cinza de renda chantily, mas a moça pôs por baixo flor rosa e um cinza por baixo, ficava furtacor, ficou lindo, todo decotado com uma flor, bonito. Muito bacana, tenho fotografia.
P/1 – Pro noivado.
R – Noivado. E logo depois, o meu marido quis logo ficar noivo. Fica noivo logo. Então pra casar também, logo: “Não, vamos fazer o enxoval, vamos fazer a roupa”. Fiquei noiva em fevereiro, em novembro já casei. Aí também foi um vestido muito bonito, a minha irmã que bordou. A prima dele costurou um vestido muito lindo também, lindo, lindo, lindo e a minha irmã bordou em pedras, pérolas, strass, um vestido todo bordadinho pela minha irmã. Aí fui viajar pro Rio de Janeiro, foi muito legal.
P/1 – Lua de mel.
R – Lua de mel no Rio de Janeiro, foi muito legal lá.
P/1 – A senhora já conhecia?
R – Não, não.
P/1 – Quantos dias vocês ficaram lá?
R – Só cinco dias porque ele ia trabalhar, era perto do Natal e ele tinha que trabalhar. Ficamos uma semana, tinha que voltar logo pra ele trabalhar.
P/1 – E a senhora casou em que igreja?
R – Ortodoxa. Na catedral da Rua Vergueiro. As minhas duas irmãs não existia essa catedral ainda, elas casaram na Igreja Síria, na Itubi, naquela Rua 25 de março. Só que aquele templo, agora eles fizeram um prédio na frente da igreja. Aquele tempo era um quintal grande, uma área grande, bonita, árvores, plantas, era muito bonito, e a igreja ficava no fundo. E agora todo esse terreno eles fizeram prédios; a igreja continua lá na Rua Basílio Jafet.
P/1 – E a senhora casou na igreja da Vergueiro.
R – O delas casou nessa igreja, ainda tinha chácara, era bonito ainda. Mas no meu tempo já iam fazer essa catedral, meu pai até ajudou, colaboração, os gregos. Antigamente os padres vinham na nossa casa dia 6 de janeiro, dia de batismo de Jesus, eles vinham em casa, benzer a casa, todos padres sírios mesmo. Depois veio o padre grego também, aí no final, mas antes eram só os sírios. Aí bom, essa catedral quando fez, já tinha alguns anos já feita, aí eu casei nessa catedral.
P/1 – E teve festa?
R – Teve. Só pra começar, na hora de eu entrar não teve marcha nupcial. Eu ia entrando na igreja, aquela igreja grandona, falei: “Ai, meu marido não pagou música pra igreja” (risos), aquilo foi chato. Mas depois teve em casa bolo, bolo bonito de três andares. E caseira a festa, tudo feito em casa, coxinha feita em casa, salgadinhos, tudo caseiro, pra toda família, foi uma festa bonita também.
P/1 – E como chama o marido da senhora?
R – Bramo. Ibrahim, Bramo, puseram Bramo, ele é o Bramo. E aí fomos, meia-noite a festa ainda lá em casa: “Vai, se troca, se troca”, eu pus um tailleur muito bonito também. Tinha chapéu, usava chapeu naquela época, luvas, bolsa bonita, sapato. Ia de ônibus pro Rio de Janeiro (risos). Tomamos o ônibus da meia-noite, chegamos lá sete da manhã, gostoso. E lá o hotel muito legal, ele escolheu um hotel bom. Porque todos os hotéis não davam, diz que os da praia ficavam muito cheio porque o hotel não estava dando comida, então a gente tinha que ir no restaurante, então eles indicaram esse hotel que tinha o restaurante acoplado, descia do hotel. E logo que a gente subiu eles levaram café da manhã lá em cima, café chique. A gente descia, já estava o restaurante lá embaixo. E foi bom. Mas aí um dia eu falei: “Ah, vamos no restaurante árabe que tem lá na Rua da Alfândega”, que minha irmã falou. Fomos, ah comida árabe, como é gostoso. Tinha aqueles kafta, carne moída, né? Tudo, mas bem mais gostoso. Ali vinha o que eu queria. Meu marido não gostava de macarronada, eu pedia risoto, um dia de camarão, um dia risoto de... porque ele não gostava de macarrão. E vinha salada completa. Mas esse da comida dos árabes foi gostoso. Só que só tinha de dia, de noite não tinha. Fomos mais uma vez só.
P/1 – E a senhora...
R – Ah, e veio morar onde? Na casa da minha mãe. Porque era só meu irmão que morava, minhas duas irmãs já casaram, então ela falou: “Eu não vou ficar sozinha”, meu pai tinha morrido há pouco tempo, ela ainda de luto fechado, fazia dois anos que ele tinha morrido. Aí morei em casa, um quarto muito bom, casa grande e boa, tudo. Morei lá, mas aí precisava mudar, nasceu um filho, nasceu dois, os quatro nasceram lá. Então minha mãe falava: “Acho que você mudando vai ficar melhor, ele vai ficar melhor”, fomos numa casa alugada da minha irmã, se não gostar, porque é longe, era na Vila Matilde, aí pode voltar, porque a proprietária é minha irmã, meu cunhado. Mas fiquei lá, gostei, acostumei. Sabe, a gente está em casa fazendo as coisas não vai ver a rua, ver as coisas. Só que não gostava da feira, vinha fazer feira aqui no Tatuapé, o açougue eu não gostava de lá, comprava aqui. Mas no fim acostumei, até agora moro lá.
P/1 – Na mesma casa.
R – Mudei daquela casa, era da minha irmã, aí meu filho, como eu levava muito tombo nessa idade, perdi a visão, não estou enxergando muito, levava tombo, aí ele comprou uma casa, fez uma casa que da garagem pra cima tem dez degraus, mas lá em cima, nos quartos, banheiros, cozinha, tudo sem degrau nenhum. E o meu quarto perto do banheiro, o banheiro assim junto. São três quartos e três banheiros, mais banheiro do que casa (risos). Se deixasse um banheiro pra aumentar o quarto, bom, mas é uma casa boazinha, estou morando lá, não tem degrau, mas levo tombo a mesma coisa.
P/1 – Nessa época que a senhora casou a senhora já trabalhava?
R – Só em casa. Ah, aí eu comecei a trabalhar. Meu marido perdeu as coisas, aí comecei a vender roupas. Ele era feirante e eu comecei a vender. O pessoal vinha, sabia que tinha roupa e eles vinham em casa. Depois eu via essas roupas pra comprar da Rua Oriente, comprar pra vender, muita bagunça, aí eu comecei a vender banulon, conjunto, você conheceu? Acho que não. Era um conjunto de malha, americano. Malha manga curta e o casaquinho, é um tecido muito gostoso, bonito e estava na moda. Eu comecei a vender e o pessoal veio: “Eu quero desse”, larga de outras coisas, sabe, é camisola, é soutien, é calcinha, eu nem sabia vender muito as coisas, eu falava: “Ai”, ficava vermelha. “Mas não é da De Millus”, eu falava: “Mas tem as etiquetas”. Eu tinha vergonha de vender, muita vergonha. Aí o pessoal começou a me incentivar. Eu quero banulon pra mim, da malha pra mim, vermelho pra mim, rosa, comecei só a vender banulon, vendi bastante. E meu marido achando ruim, não trabalho. Mas pagava a escola, era muito bom o dinheirinho extra. Aí o quarto ia nascer e eu falei: “E agora?”, porque quando o quarto ia nascer eu estava ajudando a escola onde as minhas filhas estudavam, no colégio Espírito Santo, de freiras também, na Rua Tuiuti. Então eu fui ajudar e falei: “Ah, acho que vou ajudar, vou trabalhar aqui”. O menino já tinha crescido, punha os três na escola e vou trabalhar lá. Aí a irmã aceitou que eu ia trabalhar lá como secretária, ajudando. Não é que fiquei grávida do quarto? E meu marido: “Agora que você não vai trabalhar mesmo”, ele ficou todo feliz que não ia trabalhar. Tudo bem, não trabalhei. Aí ficou chato, um pouco, a situação, mas...
P/1 – A senhora queria trabalhar e ele não queria que a senhora trabalhasse.
R – Não, ele não gostava. E aquelas roupas que eu vendia, os balunon, nossa. Estava muito bom, mas ele não queria que eu vendesse mais, parei de vender. Aí mudei pra Vila Matilde e haja trabalho também com essas crianças. As meias brancas, camisetas brancas e o terraço era pequeninho, a minha casa lá era tudo terraço grande, aqui era tudo pequeninho, mas aprendi e deu pra viver.
P/1 – E quando as gêmeas nasceram a senhora não trabalhou mais.
R – Não, não.
P/1 – Ficou só cuidando dos seis. Só não, bastante coisa (risos).
R – Muita coisa! Meu marido usava camisa de colarinho, tinha que passar todo dia uma camisa, sete camisas numa semana. E ele usava uma regata por baixo e uma meia manga. Haja roupa pra lavar e passar. Não tinha máquina de lavar, mas depois ganhei máquina de lavar, quando vocês nasceram já tinha máquina. Mas haja, pra passar ferro.
P/1 – Seis filhos, mais o marido e a senhora, oito pessoas.
R – É.
P/1 – E como foi ser mãe?
R – A primeira filha foi boazinha, era boazinha a menina.
P/1 – A senhora morava com a mãe da senhora nessa época.
R – Minha mãe. Só que ela começou a ter, tipo um ano ela já começou a ter, que todo mundo estava com gripe japonesa, como chamava? Um surto que deu pra todos e eu não peguei. O médico disse que quando a gente está amamentando a gente não pega essas doenças, tudo bem. Essa minha filha pegou. Passou mal, minha mãe, meu marido, todos tiveram, eu não fiquei. Estou cuidando dela, aí nunca mais essa menina toda vida tossindo, tossindo, cuidei dela até os 12, 13 anos, até mudar na Talarico. E ia levar em tal médico, outro médico, tratamento. Vai ver, agora eu vejo o que era? Meu marido fumava e ele queria no quarto. Eu falava: “Vai fumar no terraço”, abrindo a porta é o terraço: “Você quer que eu saia na rua?” “Não, pode fumar”. Agora que eu vejo, a bronquite dela era cigarro.
P/1 – E aí deu um trabalhinho pra senhora.
R – Muito. Ela sofria, naquele tempo não existia essa bomba que hoje existe pra facilitar a respiração. Nossa, ela sofria muito. Ela passando mal, a gente não tem o que fazer, vai fazer o quê? E troquei de quarto, eram móveis de veludo, tiramos de veludo e pus de tecido; tirei as cortinas, era tudo veludo nas salas. Tirei todas as cortinas, coloquei só de voal pra ver se era alérgico pra ela. Vai ver, agora eu vejo, era o cigarro. Mas daí mudei pra Talarico, meu cunhado falava: “Ih, lá vai ver, lá não tem muita poluição”, de fato lá. Achei um médico também lá na Xavier de Toledo e ele fazia ele a vacina, aplicava ele. É uma vacina feito por ele: “Elas vão melhorar”, a outra também tinha um pouquinho de tosse, cuidava dos dois. Eu ia com as duas lá na Xavier de Toledo dia sim, dia não pra aplicar a injeção. E ele falou: “Mas elas vão melhorar, pode acreditar”. Ela já tinha 12 anos, não curava, dava remédio, fui pra Jundiaí pra ver se melhora, não tinha nada, nada melhorava. Aí ela começou a melhorar, mudamos de Telarico também. E depois de 13, 14 anos ela já melhorou, mudamos de casa. Não sei, acho que tudo ajudou. E no fim ela também teve, depois de pequena ela teve um pouco de bronquite. Ah, falei: “Meu Deus, vai ser também”, mas não, logo ela, minha sobrinha é professora na USP, de Educação Física, e ela faz essa ginástica pras pessoas que têm bronquite, pneumonia, pulmão. “Tia, leva lá”, eu levava lá na USP, dia sim, dia não também. Levava lá na USP. Ela: “Não aguento mais” “Vai correr”, tem que andar, correr bastante, depois vai na piscina. Limpou a menina, sem remédio, sem nada. A outra quantos remédios eu usei, essa nenhum remédio, só de natação, de ginástica acabou a bronquite dela. E assim, já deu, né?
P/1 – Não, não. Estou olhando aqui o que eu preciso perguntar pra senhora ainda (risos).
R – Então você faz as perguntas.
Acompanhante – Posso falar?
P/1 – Pode.
Acompanhante – É que na juventude dela frequentava muito cinema, assistia os cursos de cinema, também as músicas, né?
R – É, as operetas que a gente assistia.
Acompanhante – Não, do cinema mesmo. O pai dela levava, eles iam.
R – No teatro, cinema. Cada cinema que ia inaugurar, a Cine Metro ia inaugurar o meu pai levava nós, assistia a inauguração do Cine Metro. O Ipiranga vai inaugurar? Vamos lá no cinema. Mas só que quando tinha um pouco, o último pedaço que tem beijo ele já levantava: “Vamos embora!”, ele fazia passar vergonha. Mas ele gostava de levar em todos os cinemas, teatros a gente ia no teatro também.
P/1 – E a senhora lembra de algum filme, o primeiro filme que a senhora assistiu no cinema?
R – O primeiro? Meu Deus do céu. O Cine Metro era, será que é Lili?
P/1 – E teve algum filme que a senhora lembra, que ficou marcado?
R – Filme “A Lili”, eu gostava. Até agora a minha neta, ela chama Liliana, eu canto pra ela: (cantando) “Lili é uma boneca que canta, que chora e que ri”. Então essas músicas. “E o Vento Levou”, eu não podia assistir, eu era menor e não podia assistir, minhas irmãs que assistiram.
P/1 – Ele levava então os filhos, a senhora e seus irmãos pra ver filmes infantis?
R – Não infantil, inaugura o cinema, o que está passando, não tinha naquele tempo infantil separado, não. Filmes.
P/1 – E de música também? Shows?
R – Ia no Teatro Colombo que eu disse. Tinha aquela bailarina. Show não, naquela época não tinha show.
Acompanhante – Os argentinos, o cinema argentino.
R – Ah, filmes argentinos a gente gostava muito. Programa argentino no rádio, minha mãe gostava muito e cantava e dançava as músicas. Antigamente filmes argentinos eram muito bons. Os americanos só meninas dançando aquelas bobeiras e a gente gostava mais dos filmes argentinos.
P/1 – Tem algum filme argentino que a senhora lembra?
R – Madressilva. Aquela que você comprou, como chama aquela moça? Hugo del Carril e...
Acompanhante – Lamarque.
R – Espera, como é? Hugo del Carril é o cantor. O Carlos Gardel a gente gostava muito. E filmes italianos, esses cantores italianos, nossa... Tínhamos os discos de todos eles, aqueles cantores, esses quatro tenores. A gente só ouvia aquelas músicas. Então, hora de almoço e de jantar eram essas músicas. Agora toca cada bes... (risos)
P/1 – Pode falar (risos).
R – Não tem música boa pra se ouvir. Agora mesmo esses que está tendo pra cantar melhor, não dá, não gosto de música nenhuma desse.
P/1 – Me conte um pouquinho agora o que a senhora faz hoje, como a senhora passa o seu tempo? A senhora ainda ouve música?
R – Só música, não faço mais nada.
P/1 – Não vê cinema?
R – Desde que eu operei eu perdi a visão. Eu fiz esse tratamento de pele, eu estou com câncer no braço, não posso tomar sol, não posso ir na praia, não posso ir nada. E depois eu comecei a perder a vista. Eu ia sempre no mesmo médico, oftalmo, 17 anos com o mesmo oftalmo. As minhas duas filhas vinham de Londrina, elas estão em Londrina agora, e íamos nós três. Aí teve um ano que era de janeiro eu falei: “A gente gastou muito no Natal, tudo, dá pra fazer um preço mais em conta nós três?” “Não, é esse” “Então vocês se cuidam, que vocês vão pra Londrina e no mês que vem eu volto”. Aí minha nora escutou: “Por que a senhora não foi?” “Ah, está muito caro” “Mas por quê? Vai no nosso convênio, a senhora paga convênio e nunca usa” “Ah, convênio eu vou conhecer? Esse eu conheço há 18 anos” “Vai”. Ela perguntava daqui um pouco, e ela não é chata, ela nunca me pega em nada, mas nisso ela pegou. Ela não é de se meter. “A senhora já foi no médico?” “Não, depois eu vou” “Vai no convênio, é só descer na Paraíso, atravessa a Paraíso, é a Avenida Paulista, o médico é lá naquela avenida, vai lá”. Eu não usava nem bengala, nem ia com alguém, sozinha. De tanto ela me encher, fui. Quando cheguei lá, ele examinou e começou a bater na mesa. “A senhora está com quem?” “Sozinha” “Manda a sua família vir aí”. Aí o Jorge, meu filho mais velho, e ela foram lá correndo. “Sua mãe vai perder a visão”. Eu dizia pro médico: “Doutor, esse lado está uma janelinha fechando”, mudava de lente. Mudava o número tal. “Doutor, esse lado uma janelinha está fechando”, ele não entendia isso. Sabe o que precisava? Era fundo do olho, ele nunca examinava. Quando ele viu, ele falou: “A sua mãe vai perder só até não sei quantos por cento, vai tratar logo pra não perder o outro. Esse vai perder logo logo”. Ai meu Deus, aí ficamos alarmadas, toca ir no outro médico. Ele falou: “Pode procurar outro, quem vocês quiserem”. Comecei, andei em muitos médicos. Um até falou: “Vou dar um remédio bom, mas vai fazer mal pro coração, mas pelo menos os olhos vão ficar bom”, que médico é esse? Aí a gente vai vendo a classe de médico. Achamos um, gostei desse. Ele falou: “Só com um colírio eu vou curar a senhora. Pode ficar sossegada, mais tarde a gente opera, mas por enquanto só com colírio”. Comecei a cuidar com ele, tudo bem. Aí falei: “Doutor, vai precisar operar esse?” “Vai precisar” “Então olha, cada vez estou ficando mais jovem, então vamos o quanto antes” “A senhora vai ter coragem?”, eu falei: “Se precisa operar. Se não precisar é melhor, mas se precisar, cada vez eu estou mais jovem, então trata logo”. Ele operou, tudo bem. No fim perdi as duas vistas. Quando cheguei em casa foi fazer um curativo, a menina veio. Fui dormir na casa do meu filho porque as duas trabalhavam e meu filho tinha a babá que toda vida desde que as crianças nasceram essa babá é a mesma, eu cuido dela, ela cuida das crianças. A minha filha falou: “Mãe, a Sandra vai gostar da senhora, vai cuidar da senhora, fica na casa do Jorge, assim ela põe remédio toda hora”. Dito e feito, deitei lá e ela punha toda hora o remédio. Ah, e quando o segundo dia eu levantei, estou indo: “Sandra, não estou enxergando mais nada. Não fala pro Jorge, mas não estou enxergando mais nada” “Ai dona Melpo, a senhora está nervosa, não fica nervosa, ele vai levar a senhora”. Imagina se ele não percebeu. Ela me levando, descendo as escadinhas, subi no carro, chegamos lá no médico, ele olhou. Eu falei: “Doutor, ontem eu vi a lista”, quando ele tirou, eu vi a blusinha dele, tudo, a camisa listada, tudo direitinho, “Hoje não estou enxergando mais nada” “Olha, não fica nervosa, a senhora vai em um outro médico, lá no Itaim Bibi, ele vai entender direito, o que ele falar a senhora vai obedecer. Vai lá”. Tá, vamos, fomos até lá. Quando cheguei lá, toda paparicada as enfermeiras, eu falei: “Ih, muita paparicada, acho que estou com uma coisa ruim pra ser tão paparicada”. Ele olhou e falou: “Olha, está tudo bem, a senhora vai chegar em casa agora e não vai levantar pra nada”, não sei que colírio que ele deu, falou fazer: “Mas não vai levantar pra nada, uma vez se levantar” “Mas doutor, eu tenho problema de coluna, não posso deitar muito na cama” “Toma remédio de coluna, mas vai ficar deitada”. Fiquei um mês. Peguei o terço. Eu sou religiosa, eu fico rezando, vou fazer o quê na cama, cega? Ai meu Deus. E também a gente não andando nem tem fome, nem tem vontade de ir no banheiro, não é como agora. Se fosse agora não dava certo. Aí meu neto estava: “Vó, vamos comer”, levava e eu nem tinha vontade de comer. Depois de um mês melhorei, voltou a visão. Mas um mês ficar cega não é brincadeira. Elas já estavam trabalhando, eram grandes, as mais velhas foram ser freiras.
P/1 – As filhas da senhora?
R – Bom, deixa eu acabar de contar desse. Aí, começou a tratar e cada vez vai, volta, vai e volta. E depois passou um ano e precisou operar o outro. Ainda o outro ele falou assim: “Agora vamos esperar porque já mexi na vista, precisa operar, mas vamos esperar a senhora não enxergar nada, aí já opero”. Eu falei: “Ah doutor, pelo amor de Deus, como eu vou fazer?”, aí a minha filha veio, ela estava em casa e a minha neta passa por perto, eu não enxergava que tinha. E ela caçoava: “A avó não está enxergando”, e caía na gargalhada, que eu não estou enxergando, que ela passava e eu não vinha. Aí um dia a minha filha veio de férias, eu falei: “Cadê a Dionéia, onde que está?”, a Dionéia estava ali e eu não estava enxergando. Ela ligou pro médico: “Olha doutor, ela não está enxergando nada, a minha irmã estava e ela não está enxergando mesmo”. Eu falei: “Ah doutor, pelo menos agora eu estou vendo as cores assim”. Ele falou: “Ou a senhora vai melhorar de tudo ou nada, já que a senhora não está enxergando mesmo”. Vai lá operar. Opera. Dia seguinte, pus o tampão, fomos lá. A Cristina, foi você que tirou, à noite foi em casa, ela tirou o tampão e deu café com leite. Quando deu café com leite eu falei, ah, porque eu mudei de casa e ela que fez tudo. Eu falei: “Nossa Cris, você pôs esses quadrinhos? Como está bonito! Você tinha isso no armário?”, a cozinha, achei tudo tão bonitinho, estou enxergando. Aí quando cheguei lá o meu filho veio buscar, foi no médico. Lá eu comecei a andar, saindo do elevador, eles que me levavam devagarinho. Eu comecei a andar: “Ai doutor, ai meu Deus, eu estou enxergando doutor, o que eu faço? Posso ver televisão?”, escutava como rádio, não via nada. Eu falei: “Doutor, posso ver televisão? Posso ler?”, eu gosto de ler, muito. “Posso ler?” “A gente quando tem um órgão é pra usar, não é pra deixar na gaveta. Pode ver televisão, pode” “Ai meu Deus, estou enxergando tudo, doutor!” Desse dia em diante comecei a enxergar tudo.
P/1 – E a senhora ficou quanto tempo sem enxergar?
Acompanhante – Três anos. Do único olho que sobrou.
P/1 – Bastante tempo, né?
R – E eu sempre bordando, costurando, fazendo tricô, comida.
Acompanhante – Ela fez um tricô não enxergando. Eu dei uma lã pra ela e ela foi fazendo só no instinto, pra ter alguma coisa pra fazer.
R – Um cachecol, reto. Mas foi uma coisa triste. Mudamos tudo, sem enxergar, sem nada. Aí fica quieta sentada, sem fazer nada. Eu que era office-boy da casa, banco, supermercado. Pelo menos pros meus netos subia três vezes porque antes eu cuidava deles, com a babá, mas eu ia junto, na Bela Vista. Depois mudaram na minha rua. Três vezes eu subia, porque de manhã até a empregada chegar eu tinha que ir lá ficar com eles. A empregada chegava nove horas e eu vinha pra casa. Depois à noite ela ia cinco horas e eu ia lá de novo. Pelo menos lá subia duas, três vezes. É pão, é leite, é tudo, eu que saía fazer compras, sempre estava fora. Aí ficar parada, sem fazer nada?
P/1 – E agora a senhora está bem da vista.
R – Estou enxergando, lendo, mas estou tratando sempre com ele. Mas engordei muito.
P/1 – E o que hoje a senhora acha que é mais importante pra senhora, pra sua vida? O que a senhora considera mais valioso?
R – Meus netos, filhos, crianças. Eu cuidei deles até os quatro anos, um de 14 anos, a outra 11 e a outra nove anos. Cuidei deles, quer dizer, no é fazer tudo. Eu não conhecia a empregada e a gente tinha preocupação. Mas se tinha que ir no médico, se tinha aula de música, dança, ginástica, tudo tinha que levar. Ele queria que levasse porque uma vez no ônibus o meu neto contou que a vovó quase caiu. Não é que caiu, só segurei. “Mãe, se a senhora não for de táxi nunca mais”. Tem que ir de táxi, está bom, mas tem que largar toda a casa e levar eles, trazer. Minha vida era só assim. Quando ele teve 14 anos eu falei: “Rafael, agora a vovó fica em casa, vocês já sabem fazer as coisas”. Perguntei pra psicóloga: “Será que se eu largar de repente é ruim pras crianças? Que eles estão acostumados muito”, o que eu fazia com eles de brincadeira não é motorzinho, coisinha cara, fazia papel que vinha de reclame, aviãozinho, cada um jogava: “O meu é melhor, o meu é não sei o quê”, brincar disso. Brincava lá fora, tinha o muro deles, jogava bola daqui pra lá, era o vôlei pra nós. Eles tinham um bola ao cesto que meu filho fez numa casa grande que ele comprou, ele queria quintal grande pra eles. Bola ao cesto. Só assim brincava com eles. Minha nora vinha: “Ah, eles estão suados. Por quê?” A empregada, nós percebemos, a empregada, que quando eu ficava o menino está conhecendo o pessoal da novela, ela que percebeu: “Mãe, ele está assistindo às novelas, eu acho”. Aí eu chegava, passando por lá, ia comprar pão, batia à porta: “Sandra, você quer leite, pão, alguma coisa? Eu estou indo”. Punha a mão na televisão, quentinha. Ela tinha desligado. Passava outra hora, quente. Eu falei pra minha nora: “Ponha esse menino na escola porque a moça só está pondo ele na televisão, melhor pôr ele numa escolinha”. Aí escolheu uma escolinha, pôs, desde de pequenininho já começou a ir na escolinha. Senão a empregada faz isso, né?
P/1 – É. E qual o sonho da senhora hoje?
R – Ah, o meu sonho? Ah, ver minhas filhas que estão em casa. Essa daqui só cuida de mim desde que eu fiquei assim, largou o serviço. Ela é designer, trabalhos grandes que ela faz. Agora ela faz em casa.
P/1 – E qual é o sonho? Não tem nenhum sonho ainda.
R – Ver eles. Essa e a outra também que casou, mas voltou pra casa, queria elas bem sucedidas, as duas. Os outros estão casados, já tem filho. Será que o Diógenes chegou?
P/1 – Daqui a pouco a gente vê, está terminando já.
R – Então um tem dois filhos, já são grandes, já estão na faculdade, outro vai entrar. E o primeiro também, esse que eu cuidei, os dois estão na faculdade. A pequena já está na última série do colegial.
P/1 – São os netos.
R – Os netos.
Acompanhante – E os outros dois, o Nicolau e Teneal.
R – É, eles também já estão na faculdade.
P/1 – E a senhora falou das filhas que são freiras.
R – São. As mais velhas. Antes de tudo, antes do Jorge casar, são as mais velhas. Elas fizeram um curso de Nutrição e a outra Terapia Intensiva. Eu levava, elas saíam quatro e meia de casa pra chegar sete horas lá na cidade, tinha que sair quatro e meia, era escuro. Eu levava até o ponto do ônibus, todo dia de manhã, quatro e meia, elas pequeninhas, mas eu levava as duas lá tomar o ônibus, porque de manhã cedo também é os operários, nem são os estudantes, fica aquela. Eu ajudava elas a subir no ônibus. Levou três anos, elas estudaram. Aí antes de terminar o curso ela fez mais um ano, quatro anos, a Dioneia, Nutrição. E ela foi convidada no Hospital Santa Catarina pra ser nutricionista. E a outra no hospital, era longe, mas depois veio na Penha, perto, Terapia Intensiva. Trabalhando bem, ganhando muito bem, agora que vamos começar, comprar o que quer, fazer o que quer, já estudaram. E emprego é difícil encontrar, as outras colegas não acharam logo, mas é de Deus, né? Aí, daqui a pouco elas foram ver uma menina que foi a madrinha da minha filha, a minha filha foi visitar ela: “Ah, vamos na igreja aí perto na Vila Mariana”. Tá, foram na igreja. “Mãe, eu quero fazer parte dessa igreja, eu vou ser catequista”, porque na outra a segunda filha já era catequista, mas a mais velha não era catequista pra ajudar, domingo é bagunça da casa grande e ela me ajudava em casa, fazia ela comer, arrumar a casa e tudo. Depois: "Mãe, posso ser catequista aqui? Tomar parte na juventude”, eu falei: “Vai. É num lugar melhor, vai lá, quem sabe”. Aí essa segunda soube que tem essa igreja. Saiu do hospital onde ela trabalha foi a pé da Santa Catarina até a Vila Mariana. A pé, pra ver essa igreja. Quando diz que viu essa igreja se encantou. Aí ia ter uma vestição em Londrina. Vestição seriam as moças pra ser freiras. “Ah, quero ir lá ver”. Meu marido não deixa, imagina, vão viajar pra Londrina. E a madrinha delas: “Ah, mas lá vai ficar na casa de irmãs, é lugar bom, pode ir, deixa elas irem, vão ficar dois, três dias, assistir lá”. Deixamos ir. Tá bom. Voltaram na segunda-feira: “Ah, conta, como foi, o que é, como é?”, eu estudei em colégio de freira, mas no meu tempo, quantos anos atrás, agora as irmãs já andavam de sandália, não é como antigamente. Essas irmãs, toda azul marinho fechado, preto, comprido. Então eu contando, às meninas eu falei: “São velhas que vão ser freiras? Como é que são?” “Não mãe, tudo menina de 15, 16 anos, 17 anos”. E eu chorava, estou fazendo a comida lá, escutando e comecei a chorar, nem eram minhas conhecidas. Diz que põe de noiva, não sei o quê, fiquei chorando, nem minhas conhecidas são. Não é que daqui a pouco ela quer ser freira? “Filha, por que isso?”, aí meu irmão começou: “Vocês querem voltar pro Tatuapé? A casa grande? Vamos voltar e eu compro móveis?” “Não tio, não é nada disso” “Mas por quê?”, ó, lutamos. Vai ser freira, não vai ser. “Agora que você está trabalhando, por que você quer? Vamos mudar numa casa, vamos comprar móveis mais bonitos”. Não. E a amiga dela que trabalhava com ela era freira, mas de outra comunidade. Diz que na hora da saída, porque ela vinha mais tarde em casa, eu falei: “Por que você entra cedo e vem tão tarde?”. Diz que ela na saída, em vez de vir pra casa, ela ia visitar, porque ela trabalhava na parte dos pagos, lá em cima. Então ela ia no INPS, gente pobre, visitar. Ela com 15, 16 anos tinha essa vontade de ver os pobres, os doentes. “Mas eu não aguentava ficar no hospital os cinco dias que a gente ficava quando tinha neném. Você, como vai?” “Ah mãe, eu quero, eu quero, eu quero”. Fez tanta coisa, bagunça. E a outra também queria ir. A outra falou: “Eu fico em casa, vai ela primeiro”, porque a segunda o que ela quer, ela quer fazer logo. Foi, mas eu fiquei doente. Eu não era de ficar doente. Tive caxumba, não soube que tive caxumba. Eu não ia ficar doente na cama, estou cuidando das crianças, eu nunca tive febre. Aí o médico olhou, eu já tive caxumba e não percebi e ficou encruado. Bom, mas nesse daí quando ela saiu, fiquei muito doente. E ela me vendo: “Mãe, a senhora está doente?”, porque ela não queria ver eu doente. “Não, está doendo o pé”. E eu deitada, chorando, ela percebeu que eu estou chorando, estou triste, ela não aguentava ver eu chorando: “Mãe, por que a senhora está triste?”. Ela quis ser freira, passou um tempo até se preparar tudo, em Atibaia, mas morri, morri. Agora que estão trabalhando, numa carreira bonita, nutricionista, no Hospital Santa Catarina?
P/1 – E a outra também, a segunda?
R – A outra foi, buscou o dinheiro, que o hospital telefonava: “Vem buscar o dinheiro”, o pagamento não fizeram tudo. Ela fazia, trabalhava muito, muitas horas e tinha a dever. “Venha buscar o dinheiro” “Eu não vou buscar, ela foi embora, vou buscar dinheiro? Pra que que eu quero o dinheiro dela? Não quero o dinheiro dela”, e chorava. Aí a Elvira saiu do emprego, mandei parar. “Vocês estavam trabalhando, daqui a um pouco vai ser freira, então não vai mais trabalhar, vai ficar comigo”, falei assim. “Pra que estudar, trabalhar, fazer tanto pra de repente larga e vai embora” “Ah, mas se a gente vai casar também tem que ir embora”, falou. “Mas casamento é outra coisa” “E a senhora quer noivo melhor do que Jesus?” E eu chorava, não é possível. Aí essa segunda foi buscar, eu falei: “Vai buscar, eles estão sempre chamando lá no hospital da Avenida Paulista”. Ela foi lá pra buscar o dinheiro, eles perguntaram: “O que você está fazendo?” “Minha mãe não deixa eu trabalhar, não estou trabalhando” “Mas nós estamos precisando de Terapia Intensiva aqui”. Ela ligou de lá: “Mãe, eles estão falando que eles querem que eu trabalhe aqui, posso trabalhar aqui?”, digo: “Vai, um lugar melhor”, Paulista, a gente sempre acha que é lugar mais chique. “Tá bom, vai trabalhar”. Trouxe o dinheiro dela e foi trabalhar. Trabalhou alguns meses, acho que ficou um ano, sei lá. Mas ela vinha do serviço e sempre ia tomar banho, porque elas vinham do hospital e já tomavam banho. Com cara de choro. Vinha um dia a filha da minha irmã Stela: “Tia, trouxe um pão doce pra senhora”, mas ela não vinha comer com a gente. “Elvira, vem assistir” “A senhora não está contente que está assistindo?”, sempre cara de choro, sempre. Nunca está feliz. Aí pra outra minha filha que já está em Atibaia eu ia visitar quase toda semana. Falei: “As irmãs que me mandem embora e mandem ela embora também” (risos) Eu ia visitar, tinha direito, podia visitar. E lá eles punham aquela mesa, toalha engomada, bolos, tudo. E eu fiquei um ano sem fazer doce porque eu achei que elas não estão comendo doce, aí elas ligavam: “Mãe, as meninas precisam comer doce, faça pra elas”. Ai, a gente fica boba, né? Domingo eu fui olhar de novo, as outras mocinhas que vão ser freiras aquele ano, toda sorrindo, uma carinha alegre, cantando música de igreja, todo lugar ali é um paraíso, um jardim, lugar muito bonito. Eu falei: “Coitada da minha filha só chorando lá, trabalhando, tomando aqueles ônibus”, não tinha metrô ainda, era tudo difícil. Falei: “Ela está bem melhor aqui, as meninas estão mais alegres do que a Elvira”. Aí daqui um pouco a irmã me chama, depois da missa: “Eu quero falar com a senhora” “O que foi?” “Olha, a Elvira quer ser também”, aí eu ajoelhei, eram seis horas, eu falei: “Seja feita a sua vontade, o que eu vou fazer? A gente reza o Pai Nosso, seja feita a sua vontade”. Pra essa eu não chorei, essa que me ajudava, ela que me ajudava a comprar as coisas, fazer os docinhos, festa pra elas, ela que me ajuda, a outra era só de estudar, nunca me ajudou na cozinha. E nada. Essa que me ajudava, pra essa eu não chorei, falei: “Ela está mais feliz lá”. Porque vi uma sobrinha que ganhou neném e veio com neném em casa, largou o marido. A outra, essas coisas. A gente pensa que vem um príncipe encantado, mas sei lá. Mas chorei. Pra essa segunda não chorei muito. Falei: “Você vai ficar alegre lá?” “Vou” “Mas quando vocês querem voltar a casa está”, as bonecas delas ainda estavam guardadas, as roupas delas ainda estavam guardadas. Muito difícil.
P/1 – Tem quantos anos que elas foram?
R – Já faz 30 e poucos já. Agora sabe onde ela está? Na Alemanha. Foi passar um mês lá, levou pessoas daqui de São Paulo. Vão mais na Europa e tudo do que eu vou até a Penha e volto (risos). Elas passeiam muito, têm uma vida boa. Mas não é o que a gente pensava na vida, a gente pensava ter família. Agora por isso as crianças eu gostei. Agora essas duas que estão comigo, essa abandonou tudo pra ficar só comigo. Eu estou inútil, não faço nada.
P/1 – Não pensa assim, dona Melpomene.
R – Inútil. Só que aí, como eu caio muito essa mão ficou assim fechada. E o médico do coração falou: “Não pode tomar antinflamatório”, aí ela falou: “Doutor, pode fazer acupuntura?”, ele falou: “Ótimo”, aí ela procurou um que poderia vir à minha casa, achou um japonês que vem em casa uma vez por semana. Começou a fazer acupuntura, eu não reparo: “Mãe, a sua mão está abrindo”. Eu não reparo porque a laranja ela que descascava, a cebola, o tomate, tudo, a minha mão era fechada. “Mãe, olha a sua mão!” Ela tinha comprado lãs dois anos atrás. Me dá as lãs. Comecei a fazer tricô à vontade, ficou cachecol pra toda família (risos). Isso anima a gente.
P/1 – É! Tá bom, dona Melpomene, muito obrigada.
R – História muito grande.
P/1 – A senhora gostou de contar a sua história?
R – Gostei!
P/1 – Gostou? Sentiu o quê de relembras as coisas?
R – Eu gosto de lembrar tudo (emocionada). A gente é sozinha, lembro de muita coisa, aí à noite eu não tenho sono e fico chorando, chorando. Pra que chorar? Então o mundo é esse. Agora eu peço pra essas duas, essa minha querida largou tudo pra ficar comigo, eu não faço nada. Ela não deixa eu descer a escada, abrir a porta. Lavar a louça por causa disso que eu tenho, o câncer, não pode mexer em água. Ela falou: “Você usa luva”, a luva também nem lava direito, eu não sei usar com luva. Aí ela que lava. Se ela repara que eu lavei uma colherinha, antigamente, a minha colher, a xícara, eu pegava logo lá e ela percebia: “Ah mãe, a senhora lavou”, aí sai briga. Aí o médico fala: “Tem que obedecer agora aos filhos, não são eles que obedecem a senhora”. Aí não lava louça, não faça isso, não anda pra cá, não anda no sol. Agora anda um pouquinho, agora faz isso, faz o pé pra cima, faz a ginástica (risos). Tudo ela, fica ponto a ponto, faz tudo pra mim, linda. Não vai rezar pra essa menina, por eu estar com ela?
P/1 – Está certo. Muita obrigada pela entrevista da senhora. Tem alguma coisa que eu não perguntei e que a senhora quer falar? Alguma coisa que ficou pra trás e a gente não falou aqui?
R – Não, obrigada (emocionada).
P/1 – Então muito obrigada pela entrevista da senhora, o Museu da Pessoa agradece.
R – Desculpa, viu lindos, eu tomei muito o tempo.
P/1 – Nada, a gente está aqui pra isso (risos).
FINAL DA ENTREVISTA
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