Projeto Vida, Morte e Fé - Programa Conte Sua História
Entrevistado: Sheikh Jihad Hassan Hammadeh
Entrevistado por: Lucas Torigoe
São Bernardo do Campo, 05 de dezembro de 2024.
Entrevista número: PCSH_HV1435
Revisado por: Nataniel Torres
P - Obrigado, Sheik. Obrigado pelo seu tempo, por você receber a gente aqui no seu escritório. E a primeira pergunta que a gente sempre faz é qual que é o seu nome completo, que cidade o senhor nasceu, o país e que data, por favor.
R - Eu quero agradecer primeiro a Deus por essa oportunidade e também agradecer ao Museu da Pessoa e a vocês pela escolha também, que muito me honra. Eu sou, meu nome é Jihad Hassan Hammadeh. Eu sou sheikh, nascido na Síria em 05 do 06 de 1965. Meu pai é sírio, minha mãe é libanesa. Eu nasci na Síria, mas fui muito pequeno para o Líbano. Meu pai veio para o Brasil enquanto nós ficamos no Líbano, na casa do meu avô materno no Vale do Beca, em Sultan Yacoub. E, mais tarde, meu pai, ao vir para cá, ele trabalhava de mascate. E aí, como a maior parte dos imigrantes trabalhou para juntar um pé de meia e aí nos trouxe, comprou as passagens e nos trouxe para ficarmos com ele aqui e desde então eu moro no Brasil, minha família mora no Brasil. Eu fiquei no Brasil até os 16 anos, até 1981. Em 1981, eu era muito curioso, eu tinha muitas perguntas, muitas dúvidas sobre a minha religião. Então, acabei… e não tinha muita oportunidade porque os sheiks da época, as mesquitas, os líderes religiosos tinham poucas mesquitas e os líderes religiosos falavam árabe e falavam árabe clássico, gramatical. E, em casa, nós falávamos o árabe coloquial, popular. Então, ficava muito difícil de entender o que o Sheik estava dizendo. Mas eu, meu pai me levava para a mesquita, nos ensinava a religião. Meu pai e minha mãe nos ensinavam a religião. Mas ainda ficava uma inquietude dentro de mim, querer saber, querer respostas para tudo. E ainda mais que aqui a maior parte do povo...
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Entrevistado: Sheikh Jihad Hassan Hammadeh
Entrevistado por: Lucas Torigoe
São Bernardo do Campo, 05 de dezembro de 2024.
Entrevista número: PCSH_HV1435
Revisado por: Nataniel Torres
P - Obrigado, Sheik. Obrigado pelo seu tempo, por você receber a gente aqui no seu escritório. E a primeira pergunta que a gente sempre faz é qual que é o seu nome completo, que cidade o senhor nasceu, o país e que data, por favor.
R - Eu quero agradecer primeiro a Deus por essa oportunidade e também agradecer ao Museu da Pessoa e a vocês pela escolha também, que muito me honra. Eu sou, meu nome é Jihad Hassan Hammadeh. Eu sou sheikh, nascido na Síria em 05 do 06 de 1965. Meu pai é sírio, minha mãe é libanesa. Eu nasci na Síria, mas fui muito pequeno para o Líbano. Meu pai veio para o Brasil enquanto nós ficamos no Líbano, na casa do meu avô materno no Vale do Beca, em Sultan Yacoub. E, mais tarde, meu pai, ao vir para cá, ele trabalhava de mascate. E aí, como a maior parte dos imigrantes trabalhou para juntar um pé de meia e aí nos trouxe, comprou as passagens e nos trouxe para ficarmos com ele aqui e desde então eu moro no Brasil, minha família mora no Brasil. Eu fiquei no Brasil até os 16 anos, até 1981. Em 1981, eu era muito curioso, eu tinha muitas perguntas, muitas dúvidas sobre a minha religião. Então, acabei… e não tinha muita oportunidade porque os sheiks da época, as mesquitas, os líderes religiosos tinham poucas mesquitas e os líderes religiosos falavam árabe e falavam árabe clássico, gramatical. E, em casa, nós falávamos o árabe coloquial, popular. Então, ficava muito difícil de entender o que o Sheik estava dizendo. Mas eu, meu pai me levava para a mesquita, nos ensinava a religião. Meu pai e minha mãe nos ensinavam a religião. Mas ainda ficava uma inquietude dentro de mim, querer saber, querer respostas para tudo. E ainda mais que aqui a maior parte do povo brasileiro é cristã. E aqui tinha algumas diferenças. E eu via essas diferenças e eu queria saber o porquê dessas diferenças. Por que meus amigos podiam namorar e eu não? Por que eles rezavam assim e eu tinha que fazer movimentos? Muitas questões, muitos questionamentos. E certamente que meus pais tentavam me responder adequadamente, saciar essa curiosidade que eu tinha. Porém, tinha um limite, que era o limite da religião, o conhecimento deles da religião. Então eu via que precisava de mais profundidade. Então, houve em 1981, em fevereiro, um congresso internacional, o primeiro congresso, encontro internacional dos muçulmanos da América Latina, do Caribe. E aí vieram muitos sheiks, muitas autoridades religiosas, e aí me envolvi, falei “vou assistir” e participei. E ali eu assisti, mas não entendia nada. E um senhor ali com os trajes árabes, sauditas, com o turbante e aquela cobrinha, que a gente chama de akhal, a roupa, a túnica, me viu uma vez lá e ele veio, me chamou, falou “quem é você? O que você está fazendo aqui? Eu estou vendo você. Você está entendendo o que está sendo falado?” Eu falei: “eu não estou entendendo. Eu estou participando. Eu estou aqui porque eu quero conhecer a minha religião mais, me aprofundar mais”. Tinham outros jovens, mas estavam, sempre sentavam atrás ou nem apareciam no auditório. E aí ele viu esse interesse, e ele falou “você tem interesse em conhecer mais, em estudar a religião?” Eu falei: “sim, tenho”. Ele falou: “se você fosse para uma universidade na Arábia Saudita, você aceitaria?” Eu falei: “aceito”. Ele falou: “você não vai perguntar para os seus pais?” E, graças a Deus, meu pai participava desse encontro. Então eu falei “espera aí”. Aí eu corri, trouxe meu pai, falei “esse homem quer falar contigo”. E aí começaram a conversar, e aí meu pai perguntou, você está entendendo o que ele está falando? Eu falei: “é, ele está me oferecendo alguma coisa para estudar fora a religião islâmica”. Ele falou: “é isso, mas você vai ficar longe da família, é longe, é na Arábia Saudita, é muito tempo”. Eu falei: “eu quero”. E a partir daí, isso foi em fevereiro, em dezembro eu já estava recebendo a passagem e eu não sabia, era uma bolsa de estudos totalmente paga pelo governo da Arábia Saudita, e eu fui para uma das melhores universidades islâmicas do mundo, que é a Universidade Islâmica de Medina, onde está a segunda mesquita mais sagrada da religião islâmica. E lá fiquei por dez, quase onze anos, e eu fui para estudar a religião, fui me aprofundar, não fui para ser sheik. Nem era essa a minha pretensão. Eu fui porque eu queria entender. Eu tinha perguntas, curiosidades e questionamentos. Então eu tive essa oportunidade. Quando eu voltei para o Brasil, em 1991, aconteceram muitas coisas, certamente. Eu voltei numa época que tinha começado a Guerra do Golfo. Então, eu vi toda uma movimentação, toda movimentação que aconteceu na região, acompanhamos bem, as aulas muitas vezes paravam por conta disso. Mas quando eu voltei, a minha pretensão era visitar a minha família e sair. Eu tinha uma oportunidade na Inglaterra e a outra na África do Sul. Para viver lá, tinha amigos, então tinha alguma oportunidade. Mas aí quando eu vim para o Brasil e vi muitos jovens Muçulmanos, que eram da minha idade, da minha geração, e também mais jovens, passando, afastados da religião, afastados, não porque eles queriam, porque eles não tinham oportunidade de conhecer a religião mais a fundo na língua local. Então, a língua era uma barreira muito grande. Então, eu vi a necessidade desses jovens e acabei ficando no Brasil para tentar trabalhar com a comunidade, ajudar a comunidade, ajudar os jovens a compreenderem, oferecer para eles uma oportunidade que eu não tive, que eu tive que sair do Brasil e, numa época, que era 1981. Sabe o que é 1981? 1981 não tinha celular, não tinha computador, não tinha internet, não tinha nada. E tínhamos uma dificuldade de comunicação, de se comunicar com a família. Fazíamos chamadas por telefone duas vezes por ano. Era muito caro, era muito caro. Uma carta levava 72 dias para chegar, dos meus pais até a gente. E era uma festa, a gente se parabenizava quando chegava uma carta. Então, notícias, a gente chegava notícias de dois meses de atraso, e muitas vezes a gente pegava da Embaixada Brasileira, na Arábia Saudita. Então, tinha uma dificuldade. Hoje, você fala: “tudo é online, é muito rápida a comunicação”. E aí acabei me estabelecendo no Brasil, continuei meus estudos aqui e a ideia não era ser sheik, mas sim conhecer a minha religião e isso aconteceu naturalmente. Certamente que todo ano quem passasse, tirasse notas boas e passasse tinha direito à passagem para ir visitar a família no seu país de origem. E era uma universidade onde reunia estudantes, naquela época eram 18 mil alunos. A maioria era de estrangeiros, da África, da Europa, dos Estados Unidos, do Japão, da Rússia, do Cáucaso. Tinha de Indonésia, de Tailândia, de tudo quanto é lugar, então você acaba criando laços também de amizade, aumentando o seu leque de cultura também, seu conteúdo, saber os costumes dos outros. Apesar de serem muçulmanos, mas cada um tinha uma cultura, costumes diferentes, uma língua diferente. E aí você vai vivendo esse… Lá eu chamo que foi o primeiro mundo globalizado que eu participei. A globalização para mim começou ali, porque eu lidava com pessoas diariamente, com pessoas do mundo todo. Uma experiência muito importante. E aprendi a língua árabe, a clássica, estudei a jurisprudência islâmica, conheci a fundo a minha religião. Então hoje a religião ela faz sentido para mim, por isso que eu falo que eu nasci em berço islâmico, eu sou muçulmano desde de nascença, mas compreender e estar convicto da religião é aos 16 anos. Porque ali eu entendi o valor da religião, ela fez sentido para mim, as respostas vieram, eu entendi, compreendi o sentido da vida através da religião, porque eu compreendi de fato, e certamente que isso depende do conhecimento para você poder, funciona assim, conhecimento, convicção, comparação, convicção e prática. Conhecimento, comparação, convicção, prática. E essa é a coerência. E isso fez muito sentido para mim. Porque a religião islâmica, a base dela é o conhecimento. Não é emoção. Eu não entro na religião islâmica e não sigo isso, porque é bonito. É porque faz sentido. Desculpe, estou segurando a tosse. Você fez várias perguntas e eu nem sei se eu respondi. Eu fui falando. Mas nem sei se era isso que vocês queriam.
P - Sim, não, acho que a gente está no começo, na verdade. Eu queria voltar nesse gancho que o senhor falou que… A gente ainda… Vou fazer algumas perguntas sobre antes do senhor vir para o Brasil, mas… É a primeira vez, mas… Quais eram as curiosidades que o senhor tinha nessa época da adolescência, até pouco antes de você ir para a Arábia Saudita? Quais eram as perguntas que você se fazia, que o senhor disse que tinha essa curiosidade de conhecer mais?
R - O que me inquietava era que, por exemplo, eu comparava os nossos costumes, a nossa prática, aos meus colegas que não eram muçulmanos. A forma deles rezarem, eles rezavam com as mãos juntas, e a gente reza com movimentos do corpo, de prostração, inclinação, reverência, lemos o Alcorão em árabe, e eu não entendi porque eu tinha que colocar a testa no chão. Sim, era submissão a Deus, adoração a Deus, ok, é uma resposta, mas para uma pessoa que era o básico, ok, essa pergunta está bem, essa resposta está boa. Para mim não era o bastante, eu queria entender o porquê exatamente eu tenho que colocar a testa no chão, por que não na parede, por exemplo, por que não ficar em pé? Por que não outro movimento? Por que essa sequência? Isso é uma inquietação que eu fazia. Então, por que eu tinha que fazer esses movimentos? A outra, por que eu não rezava igual aos meus colegas? Por que os meus colegas namoravam e eu não podia namorar? Por que meus amigos bebiam e eu não podia beber? Então, tinha várias questões que me inquietavam. Certamente que você vai com o passar do tempo, os pais se preocupam, eles vão te explicando, mas sempre falta um aprofundamento, talvez uma explicação, tipo, assim, que satisfaça e você fala: “não, tá bem, não precisa de mais, já tô convicto”. Por exemplo, porque tinha um corte de cabelo e eu não podia fazer esse corte de cabelo. Inclusive, teve uma situação que eu não podia usar manga curta. E isso era algo inusitado para mim. Mas por quê? E a explicação era porque era pecado. Ok, é pecado. Por que é pecado? Sempre tem um porquê. Por que é pecado? Porque é pecado, porque Deus não gosta. Ok, eu já sabia o enredo. Deus não gosta e se eu faço, eu sou punido e é inferno. Ok. Quando chegaram na questão do inferno, eu parava, porque ninguém quer entrar no inferno. Então, está tudo certo. Mas ficava a inquietação: mas por quê? Quando eu fui estudar, e aí as perguntas eu fazia para os meus professores, para os sheiks, e eles tinham toda a paciência do mundo, de explicar. E hoje eu vejo que era uma coisa assim, para eles era coisa pequenininha, mas eles davam toda atenção porque eles viam que era importante para mim. E aí eu percebi que na religião islâmica não era proibido usar manga curta para os homens, não é. Os meus pais, a minha mãe é de uma aldeia, vieram de aldeias, e nas aldeias os costumes são diferentes dos costumes das cidades grandes. Então, nas aldeias tinham certos costumes de vergonha, por exemplo. É uma questão vergonhosa. Então, homens usarem short ou usarem short, até bermuda, short acima do joelho, pela religião não pode o homem, mas abaixo do joelho também. Era uma coisa inadequada. Manga curta para os homens era inadequado. Então as crianças também seguiam, os meninos seguiam. E aí eu entendi que não tinha nada a ver com a religião, mas sim com os costumes locais. E isso começa a fazer sentido pra você. Então você começa a peneirar. E aí você começa a ver a essência da religião e o porquê. E aí, por exemplo, coloca a testa no chão porque é o momento mais simples e o mais humilde e mais próximo a Deus. Por quê? Porque o orgulho está nessa parte frontal do ser humano, da cabeça do ser humano. Então, a parte mais alta, mais elevada do corpo, eu a coloco cinco vezes ao dia no chão, em humildade ao meu Criador. Eu treino a humildade todos os dias. Então, já faz sentido. A reverência de eu me inclinar, essa reverência, é uma reverência a Deus. Eu me submeto à vontade de Deus, que é um cumprimento que é exclusivo de Deus, para Deus. Então, aqui começa a fazer sentido a oração. Então, a oração é uma sequência de ações que é um curso de desenvolvimento pessoal, espiritual, emocional e físico. Agora faz sentido. Então, essas explicações, até hoje, se você falar para mim uma informação, se ela não estiver completa, eu vou te questionar. Eu vou te questionar, vou querer saber o porquê, da origem, porquê, para fazer sentido para mim, porque se eu quiser aplicar na minha vida, eu preciso estar convicto. A partir do momento que eu estou convicto, pode me deixar sozinho que eu vou praticar, não vou precisar de câmera, não preciso de polícia, não preciso de pai, mãe, eu vou seguir, porque faz sentido para mim, certamente, que somos seres humanos, acabamos errando também. Então, essas questões, elas eram questões inquietantes para mim. Certamente que existem muitas outras questões, porque sempre falamos, normalmente, isso eu via bastante no cristianismo também, de falar muito do inferno, falar muito da punição. E eu aprendi que Deus fala mais da recompensa, fala mais do paraíso. O inferno é em último caso, a punição é em último caso. Primeiro você tem um incentivo, você tem como incentivar a pessoa a entrar no paraíso. No final, aí é que tem a punição. Primeiro é pelo amor. Então, “olha, você no paraíso tem isso, tem isso, tem isso, tem isso, tem isso”. Eu trabalho para ser grato, eu adoro a Deus, por amor a Deus, eu adoro, eu faço, sou correto, faço as coisas, porque eu quero ser grato, eu quero entrar no paraíso, eu quero ser uma pessoa feliz. Então, o otimismo. Agora, se a pessoa não tá nem aí e tal, aí tem a força da lei. Então, porque a ideia é todos serem salvos. Só que primeiro, é pelo amor, pela gratidão, pelo otimismo. Mas se não, é o que é. Só que, de onde vem essa… Esse discurso e essa ênfase em cima do inferno. Porque a dor e a punição, a ameaça, ela é mais efetiva, imediata. O incentivo, a conscientização é a longo prazo, mas de imediato. Se você tem algo imediato, é o chinelo. É o chinelo da mãe. Então, a mãe conversa, “meu filho…” Aí a criança começa a exagerar. Aí entra o chinelo, aí pronto, aí entra o castigo. É mais efetivo, é mais imediato. Então, as pessoas se acostumaram a usar isso. E isso me inquietava. Era uma inquietação. E aí eu percebi que Deus é muito mais, para mim, é muito mais amoroso, pacífico, do bem, do que punidor, do que aquele que pune, aquele que castiga. Ele é incentivador, Ele é motivador, Ele é recompensa, mas a punição mesmo é para quem realmente não...não quer nada com nada e tal, aí existe a punição, mas também com o intuito de que as pessoas, elas sejam melhores. Então, isso eu fui descobrir, essa força, essa sensação é que me fez ficar 11 anos longe da minha família, passar, chorava muito, nos primeiros dias, no primeiro ano, chorava demais. Fui com outros alunos também, outras pessoas, mas era muita saudade, no meio do deserto, assim, num lugar onde ainda a metrópole estava. A Medina ainda estava crescendo, a Arábia Saudita estava crescendo. Então, isso são memórias de dificuldade. Porém, que me trouxeram até aqui. São esses momentos agradáveis, momentos tristes, as dores, os prazeres que me fazem hoje essa pessoa, o Jihad de hoje. E é o que faz você, o que faz uso das pessoas, o que faz uma pessoa de 70, 80 anos, ser a trajetória dela, são os momentos alegres, os momentos tristes que formam essa pessoa.
P - Eu queria que você me falasse da família do seu pai e da sua mãe. Eles são de onde se fossem de uma aldeia, mas qual é a origem deles? O que eles faziam?
R - Meu pai nasceu numa aldeia também, na fronteira com o Líbano, que se chama [Beijian]. E lá tem terras, gado, rebanho, pastores de ovelhas, agricultores, trabalhavam com plantio, e aí ele foi para Damasco, ele foi estudar lá, e como não se tinha escolas avançadas, naquela época, eles mandavam, as famílias mandavam seus filhos estudarem o colegial, por exemplo, e a faculdade em Damasco, nas cidades grandes. Então, a cidade mais próxima era Damasco, que era a cidade grande. E meu pai estudava com um primo meu e também o meu tio materno, irmão da minha mãe. E estudavam juntos e aí ele… Algumas vezes, ele ia da Síria com o meu tio, com o meu primo, que eram do Vale do Beca, de Sultan Yacoub, de Luce, e eles visitavam, ficavam na casa do meu avô materno e, mais tarde, conheceu a minha mãe e acabaram se casando. Meu pai serviu o exército, trabalhava também no governo e quando casou com a minha mãe, minha mãe de Luce do Vale do Beca passou a morar com o meu pai em Damasco, meu pai trabalhando, aí acabei nascendo na Síria e mais tarde como a família da minha mãe já muitos tinham emigrado para o Brasil. Então, é costume, já era tradição da minha família materna, do Vale do Beca também, das cidades ali no Vale do Beca, a emigração para o Brasil. Então, eles tinham essa tradição, tinham esse costume. Então, as pessoas de lá vinham para o Brasil para fazer um pé de meia, para poderem juntar um pouco de dinheiro, voltar ou arar a terra ou comprar terras. Esse era o intuito. Então, minha mãe, meus tios sugeriram para minha mãe e para o meu pai que ele viesse para o Brasil também. Não era a emigração, não era uma tradição na família do meu pai. Eles não tinham esse costume de emigrar, deixar a Síria. Porém, meu pai viu que seria uma oportunidade e aqui, em 1970, mais ou menos, ele veio para o Brasil.
P - Veio sozinho?
R - Veio sozinho. E nós ficamos com a minha mãe na casa do meu avô materno. E aí vivi lá, na casa do meu avô materno, até 1973, quando nós viemos para o Brasil. Meu pai juntou um pouco de dinheiro, já estava mascateando, já tinha condições de alugar uma casa, então alugou uma casa, nos trouxe. Nós somos cinco irmãos, eu sou o mais velho dos cinco irmãos, eu tenho mais o irmão do sexo masculino e tenho três irmãs. E ficamos, acabamos vindo para cá. Os meus avós paternos, conheci quando era pequeno, mas depois que eu saí da Síria não voltei a vê-los. Acabaram falecendo os tios paternos, então não tive muito contato com a família do meu pai. Mas com a família da minha mãe tive bastante contato, tanto aqui quanto no Líbano. Depois que eu cresci, eu estudava na Universidade Islâmica, e como eu sou sírio, de naturalidade síria, mas de nacionalidade brasileira, eu tinha que servir o exército sírio. E eram três anos e pouco, três anos e meio quase. Então, eu teria que interromper os meus estudos. Era inviável isso. Então, acabei não indo. E já era brasileiro também, já tinha a nacionalidade brasileira naturalizada. Então, acabei não indo. Então, se eu fosse para a Síria visitar, eu seria levado para servir o exército. Então, acabei não indo, não visitando mais a Síria. Isso me impediu de visitar a Síria, mas o Líbano eu visitava e visito ainda, tanto que hoje nós temos casa, propriedade na cidade da minha mãe, no Líbano, mas também temos terras de meu pai, herdou terras na Síria, mas não dá para, por enquanto, não dá para ir, para visitar, conhecer, e ainda mais agora com a guerra, com essa situação instável que está lá, fica inviável mais ainda.
P - O senhor veio para o Brasil por quantos anos?
R - Eu vim para o Brasil, eu tinha sete anos, em 1973, mais ou menos, tinha sete anos, e entrei na escola, logo que eu cheguei aqui, já entrei na escola pública, na escola estadual, e comecei a aprender o português na escola mesmo, já direto, e eu e meus irmãos entramos já direto. Todos os meus irmãos nasceram na Síria, menos uma que nasceu aqui no Brasil, a caçula. A caçula nasceu aqui no Brasil.
P - Como é que vocês vieram? Foi de avião, de barco?
R - Viemos de avião, todos nós viemos de avião. Eu tive um avô que veio, o avô materno, ele veio para o Brasil também. Muitos dos nossos antepassados vieram de navio, porque era mais barato do que o avião e as pessoas não tinham condições de pagar a passagem de avião. É interessante porque isso é um costume. Vinha a primeira pessoa, e ela fazia um pé de meia, conseguia se arrumar, e aí ela trazia, chamava o irmão, os parentes, então vinham e ficavam na casa dela. Aí havia um investimento, uma ajuda a essa pessoa para que ela pudesse melhorar, trabalhar, ter mercadoria, começar a ser independente, ter sua fonte de renda, ter seu trabalho, alugar uma casa. E aí um ajudava o outro, quem vinha. E essa solidariedade era muito boa. Aconteceu isso também com meu pai, meus primos, meus tios ajudaram o meu pai quando chegou aqui, e como sempre, a maior parte dos casos, eles eram mascates.
P - O que é mascate?
R - O que é um mascate? O mascate é a pessoa que vem e sai para vender colcha, cobertor, toalha de banho, toalha de mesa, utilidades de casa em casa. E, normalmente, eram nas comunidades. Naquela época, as favelas tinham segurança e as pessoas trabalhavam. E esses mascates, esses imigrantes, era assim, ele chegava aqui, no segundo dia, ele já estava na rua, já estava trabalhando. Então, ele carregava duas sacolas cheias de toalhas, toalha de mesa, toalha de banho, cobertor, de acordo com a época. E passavam de casa em casa batendo. E eles só sabiam falar algumas palavras. Eles aprendiam imediatamente algumas palavras. “Dona Maria”, “Seu João”. “Quanto paga?”, “Que dia recebe?”. E eles tinham, e muitos eram analfabetos. Muitos eram analfabetos. Analfabetos não sabiam português. E muitos também não tinham sequer a língua árabe também escrita. Então eram analfabetos em duas… Mas, então, eles não tinham outra opção, eles só tinham uma opção, dar certo. Eles só tinham essa opção. E trabalhavam numa época onde, quando a polícia parava, confiscava tudo. E eles não sabiam se comunicar. Então, era uma vida… e economizavam. Eles não tinham carro, então iam de ônibus. E era uma… eles economizavam muitas vezes o dinheiro do ônibus e iam a pé. Então, eu fico imaginando o sol, porque eu já passei por isso. Quando eu era pequeno, eu saía com o meu pai para mascatear. Só que tinha uma condição mais favorável, já tinha carro, mas tinha que… E aí era uma… É complicado, porque você tinha que entender o que eles faziam. Dentro da viela, dentro da comunidade, da favela, você tinha aquela casa, aquele barraco. E eles não tinham nome de rua, não sabiam. Então, eles faziam no cartão, eles faziam tipo mapa para chegar à casa da pessoa. E todo mundo era, todas as mulheres eram dona Maria. E todos os homens, ou era seu João ou seu José. Todos. E todos eram. Patrício, primo… E tinha tal dia, era dia de recebimento. Então, eles vendiam a prazo. E as pessoas pagavam, porque não tinha nada. Não tinha compromisso, não tinha promissória, não tinha nada. Tinha um cartão onde eles anotavam as coisas, os números que eles tinham que saber, a casa onde ficava e era isso. Então, era uma vida. E eu peguei um pouco disso. Porque quando eu vim, eu estudava de manhã, e à tarde meu pai me levava com ele para trabalhar com ele. E aí você tem tempo, chuva, e ainda tinha os cachorros que corriam atrás de você para morder. E às vezes, mordia, você jogava o cobertor e eles destruíam o cobertor. Então, era tua mercadoria. E é uma coisa de solidariedade, é muito interessante porque algumas pessoas que já tinham se dado bem, tinham fábrica, por exemplo, de cobertor de colcha. E quando vinha alguém novo, essas pessoas davam crédito para elas em mercadoria, para elas começarem a trabalhar, como se fosse um capital inicial para que ela pudesse. Então, essa solidariedade ajudou muito. E aquela pessoa que vinha com a intenção de ficar dois anos, fazer um pé de meia e voltar, está há 50, 70 anos aqui e criou raízes e criou a família. E assim a nossa história também é igual, não foi diferente. E aí depois vai juntando o pé de meia, aí abre uma loja, aí se der uma outra loja e assim por diante.
P - E o que você achou do Brasil quando você chegou? Você se lembra das suas primeiras impressões daqui? Inclusive, vocês vieram para São Paulo ou para onde vocês vieram?
R - Quando nós chegamos no Brasil, nós viemos para São Bernardo do Campo, porque já tínhamos parentes aqui, familiares aqui, estabelecidos. E a maior parte da comunidade naquela época da cidade de São Bernardo era da mesma aldeia da minha mãe. Eram várias famílias da mesma aldeia do Líbano. Então, conviviam, fizeram uma comunidade da aldeia aqui no Brasil. Tanto que eu vejo que São Bernardo é co-irmã da cidade de Sultan Yacoub, de Luce, no Vale do Beca, de tantas pessoas que tem aqui. Então, vieram e se estabeleceram aqui. Porque o imigrante, ele precisa de uma comunidade para manter as tradições. E das primeiras coisas é a língua. Outras questões são a comida. De repente a culinária muda totalmente. Certamente que dentro da nossa casa nós mantínhamos os costumes, a culinária árabe, mas, por exemplo, as pessoas bebendo cerveja, comendo carne de porco, a gente não sabia, não tinha essa ideia. A minha mãe falava, mas a gente não sabia o que era carne de porco. Então, por exemplo, na escola era estadual. Então, a escola pública. E quando entramos tinha merenda. E na merenda servia um pão francês com pasta. E a gente não sabia o que era. Eu fui descobrir depois. Minha mãe, de alguma forma, ela viu ou eu levei um sanduíche para casa e ela descobriu que era presunto. Mas presunto é pasta de presunto, quer dizer… A gente não tinha essa ideia, porque não sabíamos diferenciar, porque a gente não tinha esse costume lá, a gente não sabia, então não tinha como comparar, não tinha essa experiência. E aqui a gente… Acabou cometendo esse equívoco porque a gente não tinha essa experiência passada. Aí você começa a prestar atenção em tudo, aí você começa a perguntar se no feijão vai bacon, se no feijão vai toucinho, se o arroz é feito com banha de porco. E aí você vai se perguntando. Então, isso… Eu, por exemplo, uma coisa muito… Me marcou até hoje. Tem Guaraná. E eu ficava horrorizado. Como que os meus primos tomavam Guaraná. Era absurdo. Porque o Guaraná e a cerveja eram iguais. E aquilo, eu chorava. E eles querendo me forçar. “Não, bebe!” E eu, horrorizado com aquilo. “Não, não pode!” E aí ia para a minha mãe, chorava. “Ah, estão bebendo”. E minha mãe não entendia. “Como assim os seus primos bebem cerveja? Como assim?” Ela não estava entendendo, né? Depois, para eu entender que era Guaraná. E pior, porque antes o Guaraná que tinha era o Guaraná Champagne. Se chamava, agora, champanhe. Então, eu ficava horrorizado. “Como vocês estão tomando champanhe?”, para depois entender o que era Guaraná, e aí fazer sentido e tirar. Então, são coisas que marcaram, certamente, outras questões também, a amizade, de beijar as meninas beijarem meninos, se cumprimentarem no rosto, abraçar. Isso para nós era complicado. E aí minha mãe dava uma lição. “Cuidado! Cuidado! Não vai tocar! Deus castiga teu inferno! O fogo, cuidado, não deixa as meninas te tocarem, não deixa, não vai beijar, nem deixa te abraçar e tal”. Então, essa diferença de cultura acabou me aproximando porque eu era curioso. Então, eu ia perguntando. E vai te fazendo… A questão dos amigos que não eram muçulmanos, a minha mãe queria saber quem era exatamente tal, ela queria saber se na escola eu rezava ou não, e ela falava “você é muçulmano. Não é porque você está junto com seus irmãos, seus amigos cristãos, que você tem que rezar igual a eles, falar para eles da sua religião”. Então, ela tentava nos conscientizar bastante para manter a identidade, a nossa identidade. Ela convidava bastante os meus amigos para comerem comida árabe, para mostrar. Então, isso era uma forma dela conhecer os meus amigos e criar um ambiente seguro para a gente. Então, suas irmãs, “toma cuidado”, como qualquer mãe, qualquer pai.
P - Como que era vocês em casa? Como era a rotina da sua casa? Como era a sua relação com os seus pais, os seus irmãos? Porque era bastante gente, né? Como era isso aqui no Brasil nesse período?
R - Quando nós viemos, meu pai veio, a gente morou numa casa bem humilde, bem… Tinha dois cômodos. Aliás, tinha um cômodo. Um dormitório, tinha a sala e tinha a cozinha e o banheiro. E tinha um quintal grande e tinha uma abacateira, um pé de abacate desse no quintal. E eu via o pessoal querendo entrar em casa para pegar abacate e pedir. E a gente não sabia o que era aquilo, né? E caía e o pessoal pegava e a gente não entendia. Para entender o que era abacate, levou tempo. Aprender que era gostoso, que era bom e tal. Em casa era tranquilo. A gente tinha, todo dia, a comunidade se visitava. Era o costume. E os pais nos levavam junto. Quando iam visitar, as outras famílias nos levavam juntos. Então era uma forma de perpetuar os costumes, de manter as conexões. Então, à noite, nós éramos proibidos de sair com os amigos. A gente só saía com os nossos pais e trabalhava durante o dia. À noite era o momento de socialização. Diferente de hoje, que você tem outros programas, você tem outras distrações, outros eventos. Antes, não. A comunidade não era tão grande. E eles precisavam manter os costumes, manter os vínculos, fortalecer os laços e também tinham muita saudade dos países de origem. Então, eles precisavam se confortar. E aí nos levavam para nós conhecermos os nossos primos, manter, criar vínculos e crescermos juntos. Até hoje, nós temos um clube chamado Clube Sultan e tinha o Clube Ghazzi, também aqui em São Bernardo, no Riacho Grande. Nós nos reuníamos nos finais de semana lá para fazer churrasco, então era uma forma de confraternização, de manter os laços, fortalecê-los. Estudávamos, minha mãe, meu pai estava, quando estava trabalhando de mascate, minha mãe tentava nos ensinar a história dos profetas, a religião islâmica, o Alcorão, o valor, então sempre ela manteve aceso isso dentro de casa e também tinha um um apoio. Naquela época, a televisão abria 10 horas da manhã e se encerrava 10 horas, 11 horas da noite, acredito, 9 horas. Então, não tinha muita distração com televisão, com essas coisas, porque… E os programas eram diferentes. A família conseguia estar mais unida, e todo dia meu pai estava com a gente em casa, saíamos juntos, e isso ajudou bastante a manter os laços. E como nós tínhamos um quintal grande, então a gente brincava, as crianças, as outras famílias permitiam que os filhos brincassem com a gente dentro de casa. Então, a gente manteve esse vínculo. Era uma vida simples, humilde. Jogávamos bola na rua, não se tinha tanto carro passando na rua. E era uma descida, assim, perto da… Tinha a minha casa, a casa do vizinho, Dona Teresa, e era a esquina, a casa deles era de esquina, então frequentava muito. E ela era de origem húngara, então comia muita polenta na casa dela, fazia muita polenta, nos acolhia muito. A gente tinha um vínculo de amizade do outro lado também. Todos os vizinhos eram solidários, havia muito vínculo. E brincávamos, fazíamos bola de meia. Quem tinha uma bola comprada era magnata. E brincávamos, fazíamos nossos brinquedos. Brincava como qualquer criança. E aprendi a fazer carrinho de rolimã, descer. Depois inventaram o mamute, que era um carrinho de rolimã esticado, onde iam várias pessoas. Já entramos debaixo de carro também, bicicleta. Então, era uma… a gente conseguiu conviver bem. Então, nós crescemos tendo duas culturas, vivenciando duas culturas. E isso é interessante. Eu vou te dizer o porquê que é curioso e o porquê que é inusitado. Nós tínhamos dois mundos, a gente vivia em dois mundos, eu vivia em dois mundos. O mundo árabe, islâmico, e o mundo brasileiro, da sociedade brasileira. Da porta de casa para fora, a gente vivia na escola, com os amigos. A gente era muçulmano, mas tinha coisas que não eram costumes árabes, não tinha nada a ver com religião, mas não eram costumes árabes. Por exemplo, comer feijão e arroz não é um costume árabe. E hoje, sempre foi a minha comida predileta. Um ”pf” é insubstituível. Ovo frito ali é insubstituível. Tanto que quando eu estudava na Arábia, trazia livros, quando vinha para cá de férias, trazia livros. Quando voltava, era farofa e feijão. Arroz lá tinha. Então, eu levava muito feijão. E, na alfândega, na receita, eles falavam “o que é isso?”. Tipo, isso é Brasil, para explicar. Então, a gente fazia, cozinhava, fazia feijão, e era uma comida predileta. Então, acabamos vivendo em dois mundos diferentes, mas eles se conversavam, e a gente transitava bem, transitava muito bem nesses mundos. Qual é a questão inusitada em tudo isso? É que quando você está no Brasil, você é árabe. Quando você vai para o Líbano, você é brasileiro. E aí, tipo, eu nunca estou no meu país? Eu nunca sou considerado do local onde eu estou? Você vai para o Líbano, “ah, chegou brasileiro”. Está no Brasil, “o árabe”. E isso é inusitado. Se a pessoa não conseguir assimilar isso bem, pode criar algum problema. De fato, porque muitas pessoas querem se sentir inseridas, mas se você me chama de estrangeiro, onde eu estiver, eu sou estrangeiro, eu não pertenço a nenhum dos lugares? Mas eu consegui assimilar muito bem, entender, porque como eu convivi com muitos estrangeiros, com muitos imigrantes, principalmente na Arábia Saudita, então acabei aprendendo a assimilar toda essa questão. Eu como imigrante aqui no Brasil, hoje meus filhos são brasileiros natos, nascidos aqui. Uma das questões, por exemplo, no Brasil, eu tinha vontade no começo, isso é uma questão inusitada também, curiosa, eu queria preservar a minha identidade, o meu passaporte sírio. Eu me orgulhava disso. Então, eu já tinha, já poderia ter tido, desde pequeno, a naturalização. Mas eu não quis. Tipo, sou sírio. Porém, quando eu viajava, em todos os aeroportos me paravam e eu ficava uma, duas, três horas nos passaportes para averiguação. E eu não entendia o porquê. Uma vez, na Inglaterra, eu estava passando e eu acho que a agente dos passaportes, eu acho que ela… Me viu ali, meus amigos passaram, todos brasileiros, e eu ali com o passaporte sentado e o pessoal depois do guichê lá esperando. E eu fiquei, eu acho que umas duas horas ali. Aí eu cheguei para ela e falei: “eu posso saber o que que acontece, por que que meus amigos…” E ela se sentiu, acho que se solidarizou, se sensibilizou com essa situação. Ela falou: "você tem um passaporte brasileiro?" Falei, não, não tenho. Ela falou: “por quê? Há quanto tempo você está no Brasil?” Falei, “desde pequeno, desde…” Falei, “por que você não pegou?” Falei, “porque eu tenho orgulho, quero até visitar”, falei para ela. Ela falou: “não, o teu problema está aqui. Todos os seus amigos passaram, são brasileiros. O teu problema está aqui, porque você está carregando o passaporte brasileiro. Sírio, se fosse brasileiro, você passava”. Aí eu, quando cheguei na Arábia Saudita, mandei uma carta para o meu pai e falei: “comece a fazer a papelada de naturalização”. E aí, quando vim na outra vez, vim para o Brasil, me naturalizei, e foi uma outra sensação, porque eu passava batida. E eu já ia para os guichês, já esperando ser retido lá, parado, por uma hora, duas horas. De repente, sem nada, pode passar. “Como assim? Não vai me parar?” E passava. E passei. Então, aí eu comecei a ver o quanto ser brasileiro é bom. O quanto ser brasileiro é valorizado. E é valorizado pelos árabes. Há um vínculo. E aí descobri esse vínculo de amizade e de carinho que tem. Existe uma ponte invisível entre o Brasil e os países árabes, principalmente Síria, Líbano, Jordânia, Palestina, muito grande, e o Brasil ele é visto com olhos, até hoje isso é muito bom. As pessoas consideram muito o brasileiro, consideram muito o Brasil. Os árabes gostam muito do Brasil, do povo brasileiro. E aí você começa a ver o quanto quando você entra e fala “eu sou brasileiro”, muda, tudo muda. Há um carinho especial, há um respeito especial, exclusivo, e isso ajudou bastante a abrir portas. E aí, depois também, durante a minha vida, são coisas, a gente está contando, estou falando de histórias e a gente vai pegando pincelada, porque eu estou lembrando de situações. Teve uma época, de repente, eu estava dentro da sala de aula lá, de repente, alguém me chamou da administração “Jihad”. Então, era problema. Porque ninguém te chama, porque você não tem parente, não tem nada lá. E vão te chamar? Problema. Não era um aluno ruim, não criava problema. Era problema. E aí saí meio receoso. Todo mundo olhando, “o que você fez? O que aconteceu?” Aí a pessoa falou “você vai ter que ir lá na administração geral”. Não é na administração da faculdade. É a administração geral. Então o problema era maior ainda. E aí eu cheguei lá, me recebeu e tal, e era o pessoal responsável dos diretores gerais ali. E eu ali receoso. Falei “então, ligaram aqui do escritório do Príncipe”. Falei, “agora morri. Agora fiz coisa besteira mesmo. Agora eu morri. Alguma coisa aconteceu e eu não sei o que é”. E aí tem um carro que vai te levar. E o príncipe governante da cidade, daquela região de Medina, era irmão do rei. Coisa grande, né? Aí tinha um carro, me levou, “eu morri”, aí fui rezando. Cheguei lá, uma pessoa me recebeu, falou “o príncipe quer falar com você, vai ter uma reunião, vai ter um jantar”. Jantar não tem a ver com punição, já aliviou. Agora, o jantar, como é que ele me conhece? Que vínculo que eu tenho com esse homem? Mas ficou receio, ficou medo. Aí entramos, jantamos, e eu conheci o príncipe, o chefe de gabinete, e aí começaram a falar “olha, nós temos um time de futebol aqui, que estava na segunda divisão e passou para a primeira divisão. E nós trouxemos um técnico brasileiro, toda uma equipe de brasileiros para dirigirem o time. E nós não temos tradutor”. E aqui, sabe o medo? Aí começou, tipo assim, eu já comecei a ficar confortável. Ok. Aí ele falou “Nos falaram que tinha brasileiros na universidade e todo mundo indicou você, que você poderia ajudar a traduzir”. Falei, “sim”, na hora, não é morrer, é algo bom. Falei “tá bom, mas só tem uma questão, eu estudo, isso vai me prejudicar nos estudos, como é que eu vou fazer?” Aí ele fala “não, fica tranquilo, como o estudo é de manhã, nós vamos transferir todos os treinos para a tarde, então vai ser entre tarde e noite, que vai ter os treinos, então virá um carro e vai te pegar para ir para para te levar para o estádio, para te levar para os treinos e para você traduzir. Até a gente trazer um tradutor”. “Ok, tudo bem”. E aí conheci um técnico de futebol chamado Jorge Ferreira, seus filhos, Márcio, Adriano, depois também Paulo Campos, Maranhão, que faziam parte da equipe, eram brasileiros do Rio de Janeiro.
P - Que equipe era essa?
R - Ohud. Inclusive, muitos jogadores desse time foram para a seleção da Arábia Saudita. Assim, foram destaques. E aí conheci, com esse mundo, acabei conhecendo Telê Santana, Zanatta, Lazzaroni, Luxemburgo, conhecendo vários técnicos, René Simões. Alguns trabalhavam, por exemplo, Telê Santana foi técnico do Arli em Geda. Então, quando eu ia para Geda, que fica a 450 quilômetros de Medina, ficava na casa deles, com o filho dele, René. Então, tinha uma amizade com eles. O René Simões conheci na Copa do Mundo de juniores na Arábia Saudita, que aconteceu na Arábia Saudita. E ele era técnico da Seleção Brasileira. E acabei conhecendo lá, conheci alguns jogadores, Bismarck, outros jogadores, assim.
P - O senhor gostava de futebol já antes disso ou não?
01:06:11
R - Já, já. Já jogava futebol. Eu sou zagueiro. Eu sou o último homem. Mas a bola passa, mas o jogador não. Jogava, mas assim, treinava com eles, então você acaba pegando macetes, acaba aprendendo também com os jogadores, porque eu entrava como complemento, por exemplo, dos reservas, quando faltava algum amistoso e tal, então eu acabava entrando para jogar. Mas nada profissional, é só jogo.
P - E você torce para algum time no Brasil?
R - O melhor time, né? Palmeiras. Apesar que se alguém falar que o mascote é porco, não é. Era periquito. E aí trocaram os adversários, começaram a trocar, jogaram um porco pintado de verde no estádio. Eu acho que eram corintianos, alguma coisa. Mas sempre foi periquito, nunca foi porco. Então, às vezes, as pessoas falam assim, mas como é que você pode torcer para o porco? Não, eu torço para o Palmeiras, que o mascote era a Periquito, dessa época. E também, se alguém falar que não tem mundial, tem sim. Eu afirmo que tem.
P - O senhor realmente sentiu falta do Brasil. Quando o senhor foi para lá, imagina?
R - Muito, muito. Coisas curiosas que aconteceram lá. Aqui você tem uma liberdade aqui as pessoas são muito abertas. Na Arábia Saudita é muito tradicional a convivência, é muito tradicional, é uma vida, as pessoas são simpáticas, é um lugar muito, mas muito seguro de você andar. A gente, na época de provas, estudava o semestre, e no final do semestre tinha provas, e eram provas gerais. E aí, toda a matéria do… Imagine, e muita coisa de memória, porque o Alcorão, nós tínhamos que decorar. Então, tinha coisas que eram de questão lógica, e outras que eram de memória, porque você tinha que memorizar o Alcorão, memorizar textos, memorizar regras. E isso, e aí chegava, tínhamos duas, três semanas só de prova, todo dia. Então tinha que estudar muito. Então eles te davam uma semana de folga e aí começavam as provas. Nessa semana o que a gente fazia? Era só café e passar a noite toda em claro, andando na rua, a gente se afastava de todo mundo, ninguém dava bom dia a ninguém e estudávamos. E a gente ia para as ruas, fora da universidade para que ninguém não tivesse distração. Então, ficava ali debaixo, às vezes, de uma lâmpada, iluminação pública, ficava ali e tal, na rua mesmo, lendo para não ter distração nenhuma, para não estar perto também da acomodação, do quarto, para você não sentir sono e voltar. Então, a tentação é ser grande. Então, ficava fora. Passavam carros de madrugada. Nunca! Imaginamos que alguém pudesse parar para hostilizar, por exemplo, ou perigo, alguma coisa. Nunca! Nunca aconteceu, durante 11 anos, nunca aconteceu isso. Quando parava era para perguntar se precisava de alguma coisa. Então, era um ambiente muito seguro. Também, quando nós chegamos, imagine, estou falando de 1981, chegamos lá. Aqui, se você quiser escalar uma montanha, tranquilo. Se você quiser entrar dentro da floresta, tranquilo. Se quiser descer a serra a pé, tranquilo. Chegamos lá. Nos colocaram, nos acomodaram nos primeiros dias, nos primeiros meses, num prédio na cidade, não na universidade, na cidade. Até a gente fazer a papelada e tal, e conseguir dormitório dentro da universidade. E atrás do prédio, desse edifício, tinha uma montanha. E é uma montanha rochosa, as montanhas lá não são que nem aqui, verde, é tudo rochoso, tudo cinza, marrom. E aí passa dias, e aí você começa, você não tem cinema. Você não tem diversão nenhuma, você não tem familiares, as pessoas são tradicionais, você não conhece as famílias para você poder entrar na casa delas, elas te convidarem, porque você não está em família, você é solteiro, você está lá estudante, então é complicado, tem suas regras sociais. E aí éramos jovens, e aí a gente fica ocioso, com o tempo ocioso. E lá, o sábado e domingo, é quinta e sexta. Porque sexta é o dia do sermão, é o dia de todos irem para a mesquita. E quinta é o dia, é a folga semanal, para a pessoa poder descansar e na sexta-feira poder ir para a mesquita. Lá, o primeiro dia da semana é sábado. Então, lá, a semana começa sábado, domingo, segunda, terça, quarta, quinta. E aí, quinta, o final de semana, o último dia de semana, o último, é quarta. Ok. E na quinta-feira, a gente não tinha o que fazer. E a gente era novo. E a gente queria fazer alguma coisa diferente porque já estava monótono ali dentro. A gente ia para a mesquita, voltava, mas nada, assim, virou rotina. Aí saiu a ideia. “Vamos escalar essa montanha. Vamos fazer um piquenique lá em cima”. Aí pega faca, garfo, queijo, as coisas, pão, e vamos subir para fazer. E aí sobe. Quando chegamos lá, não é muito alta a montanha, mas quando chegamos lá em cima, ela é mais alta que os prédios, então, quando chegamos lá em cima, tomamos um susto. Poste de iluminação, pista, canhão, um monte de coisas militares ali. E aí você fala: “e agora? O que é isso? A gente não sabia o que é isso?”. Ele falou: “olha, vamos descer”. Não, a gente já está aqui faz, não tem ninguém, acho que é lugar abandonado, deve ser histórico. E aí a gente começou a escutar uma sirene. Eu fui lá ver, quando eu olhei para baixo, a montanha rodeada de carro de polícia, e os policiais subindo a montanha. E, vindo, eu era o que falava mais árabe, pelo menos ali que eu conseguia me… E era novo, todos eram novos ali. Quando chegou, fui querer fazer amizade. Tipo, fui cumprimentar já, fui algemado ali. Fui ali, algemaram todo mundo, colocaram e descemos a montanha. Todo mundo, e a gente não estava entendendo nada. O que a gente fez? Colocaram a gente nos carros e levaram para o departamento da polícia. E aí ninguém falava o árabe, só eu, e o pessoal não falava português. E aí colocaram a gente numa cela e chamavam um por um para tentar interrogar, saber. E eu que traduzia. Então, também não tinha muito nexo, né? Tipo, eu traduzi para mim mesmo, então eu podia falar o que eu quisesse, né? Mas não tinha nada escondido, eu fui falando. E iam perguntando a gente. Aí eu falei para o oficial lá. Ele falou “não, essa área é a área militarizada. É a área militar e vocês invadiram”, “não, não invadimos, a gente não sabia, não tem aviso, não tem nada”, “não, não sei o que lá, e como do Brasil, como é que vocês vêm e tal?”. Eles não entendiam. “Como o Brasil e tal?” Aí eu expliquei “No Brasil tem essa questão. Você usa e quando tem área restrita, tem um aviso, tem cerca. Ali não tem nada. Então, subimos. É uma área comum. A gente só queria fazer alguma coisa de diferente”. E, justo, fomos na quinta-feira. A universidade fechada. E, para encontrar alguém responsável, pra nos soltar? Explicar para as pessoas ali. E a gente não tinha telefone de ninguém, não conhecia ninguém. E aí, são experiências e culturas. E isso é uma grande lição, que você tem que saber, nunca compare o local onde você está com o local de origem não são iguais, as regras, os costumes não são iguais, sempre pergunte, sempre é melhor perguntar do que se arrepender depois. E outras coisas, tantas coisas que aconteceram são muitos anos de história, de experiência, de momentos tristes, momentos alegres.
P - Fiquei curioso do que você falou. Você foi matar a sua curiosidade na universidade. E como é que foi esse encontro com o conhecimento do Alcorão, esse estudo rígido? Se pudesse dizer pra gente o que você foi aprendendo de mais importante nesses 11 anos?
R - Aprendi que a religião não é dura e que o fanatismo não tem vez na religião islâmica. A religião islâmica é totalmente diferente do que se fala. Eu via nos filmes de Hollywood colocando os árabes sempre como opressores, como bandidos. Isso é uma construção, uma desconstrução de uma identidade e a reconstrução com uma outra. Então, outro perfil. E hoje eu vejo isso com muita nitidez também, eu já entendia isso. E aí você, como muçulmano, mas que não conhece profundamente a religião, você fica nessa dúvida. O que é certo, o que é errado do que está falando sobre a minha religião? Como eu não conhecia muito bem, tão profundamente a minha religião, eu não sabia até onde isso era mentira. Então, sabia que era uma religião de Deus, que adorávamos a Deus. Agora, outros aspectos, como é que eu ia lidar com isso? Como é que eu poderia rebater isso, se eu também não conhecia? Então, eu também estava em dúvida, porque eu não tinha profundo conhecimento. Então, isso me libertou. Me libertou de várias amarras. Amarras da ignorância primeiro, né? E também como lidar com o outro. Então, tipo, eu sou muçulmano, eu não não posso conversar com outros de outras religiões sobre a religião. Eu não posso falar com outro sobre a religião dele, não posso discutir a religião. E eu descobri que não, a religião islâmica é uma religião que abre portas do diálogo. Eu li outros livros, eu conheci outros religiosos, eu dialoguei com eles. Então, a minha religião, ela me dava um suporte, ela me dava convicção. E isso que eu achei interessante, me ajudou muito na construção da minha personalidade, da minha identidade islâmica. Isso ajudou muito. Então, eu podia perguntar o que eu quisesse. Também tem um fator, a universidade e também os sheiks, porque eu não tinha aula só na universidade, eu tinha aula, eu tinha um espaço, tinha tempo muito, muito livre. Então, nós estudávamos também, não tinha o que fazer, nós não tínhamos uma vida de sair, de… Então, o nosso… Eu treinava, fazia esporte como lazer, viajava, fazia rituais em Meca, levavam a gente, mas a maior parte do tempo estudava. Então os sheiks nos recebiam tanto na mesquita quanto nas suas casas, nos escolhiam e nós tínhamos aulas. Então, eram aulas mais profundas, mais específicas, não eram aulas gerais como eram na universidade, curriculares. Ali já era mais profundo e os sheiks nos levavam junto com eles nas cerimônias, por exemplo, funerais, condolências, para dar as condolências. Então, eles nos levavam junto com eles para que a gente observasse, aprendesse na prática. Eu aprendi muito com a religião islâmica como respeitar os outros, as demais religiões, como debater, não impor a sua crença, que a outra pessoa também, porque eu entendia que era a minha crença que estava certa e que você não tinha outra opção senão aceitar a minha. Então, eu tinha que te convencer. E, na realidade, a religião islâmica, ela não diz, ela diz o diálogo. Eu te apresento. O que eu tenho, você me apresenta o que tem e cabe ao outro decidir se ele quer seguir ou não, porque tem o livre arbítrio. Então, isso te ajuda muito. Então, a religião me forjou, me desenhou bastante, tem muita influência disso. E também foi numa época de adolescência, 16 anos. Então, isso ajudou muito a saber falar, a saber a postura. A religião, ela entra em tudo na minha vida e na vida da sociedade. Vi muitas coisas. Você aprende de tudo dentro da religião islâmica. A religião islâmica é um modo de vida. A religião islâmica, ela fala, ela vai regrar a tua vida até dormindo, comendo, até entrando no banheiro, fazendo as necessidades, tomando banho, tem regras para tudo, regras que eu digo, orientações, qual é o melhor, como fazer, ao entrar em casa, com que pé você entra, ao sair de casa, com qual pé você sai, o que falar quando entrar para que você esteja seguro, esteja abençoado, a sua comida para ser abençoada e tal, e inclusive tem regras também, as punições. Então, por exemplo, a Arábia Saudita era segura. Agora, era segura por causa da conscientização das pessoas ou porque as leis eram rígidas e aplicáveis? Os dois. Não bastava respeitar as leis, também tinha que ter receio das leis serem aplicadas. Então, muitas vezes eu vi punições severas, como decapitação, corte de mão, chibatadas para delitos, isso é previsto. E aí eu entendi esse pensamento, essa mentalidade social. Quando você vê uma coisa dessa, você fala: “meu Deus, eu nunca vou olhar feio para ninguém”. Porque a lei é aplicada. Existe um julgamento, mas a pessoa, a lei é aplicada. Se é aplicada, então é melhor não brigar, é melhor não pensar besteira, não pensar fazer besteira, não deixar as tentações tomarem conta, e era rígido. E aí você vê que a religião islâmica sempre é o pano de fundo, quem dá estabilidade é a religião, porque as punições elas emanam da religião. Então, a religião vai regrar toda a vida social. Isso não impede que não-muçulmanos convivam com muçulmanos, porque eu vi em muitos, como eu visitava os brasileiros, os técnicos de futebol e outros brasileiros que moravam. Normalmente eles moravam em condomínios fechados, reservados para estrangeiros. Então eu tinha amigos ingleses, eu tinha amigos de outros canadenses. Então a gente ia para as embaixadas e as pessoas praticavam a sua religião, tinham o seu templo. Eles faziam o templo, por exemplo, dentro do campo, dentro do condomínio, nas embaixadas, as pessoas iam, faziam os seus cultos. Então, essa questão de perseguição a cristão, por exemplo, de não-muçulmano nos países islâmicos, na Arábia Saudita, isso não era verdade. Então, porque eu vivi lá, eu vivi 11 anos, não foi 2, 3 dias. Então eu aprendi que tem que tomar cuidado com as narrativas, tem que ver de onde você busca as informações, de onde você busca o conhecimento. Aprendi que se eu quiser saber sobre o cristianismo, eu não vou perguntar para um sheik, eu vou perguntar para um padre, para um teólogo cristão que entende. Se eu quiser saber sobre o judaísmo, eu vou perguntar para um rabino, para um teólogo judeu que conheça. Se eu quiser saber sobre o budismo, vou para um monge, vou para alguém que estudou budismo, e a mesma coisa a religião islâmica. Perguntar para o Sheik da fonte, para alguém na mesquita que seja entendido, que tenha estudado a religião islâmica. E aí eu comecei a perceber que havia uma propaganda muito grande de caracterizar os muçulmanos como terroristas. Isso é uma desconstrução da identidade. O que tem a ver isso comigo? Eu sou muçulmano. É a minha identidade. Então, as pessoas me olham com esse viés. Elas me julgam com esse viés. Eu entro nos lugares, eu entro já com esse pano de fundo, com essa mentalidade, a pessoa já com essa reputação que está na cabeça da pessoa. Então, eu não parto do zero. O muçulmano, quando vai conversar com o não-muçulmano, absorver o que não conhece, que não tem uma cultura vasta, que pega informações da mídia, por exemplo, desses filmes. Eu não chego e aí parto do zero. Ali eu construo. Não, eu tenho que fazer uma desconstrução de uma ideia que ele tem sobre nós para depois construir a verdadeira imagem, quem sou eu de verdade. É um trabalho duplo. É muito esforço. Porque isso veio ao longo. E, infelizmente, a minha história, quando eu nasço, quando um árabe nasce, não necessariamente um muçulmano. Mas o árabe, muçulmano, quando ele nasce, ele já nasce com milhares de anos de experiência, de herança. Ele não nasce zero. Ele nasce com uma bagagem grande. E é essa bagagem que eu tenho que conhecer. Eu, como muçulmano, é meu dever eu conhecer. Porque se eu quiser desconstruir uma má imagem que você tem dos muçulmanos, eu tenho que ter esse conhecimento da minha herança cultural milenar, por exemplo. E é isso que a religião fortalece na gente e eu quero passar isso adiante para os meus jovens primeiro, não para os não muçulmanos. Mas primeiro, para os muçulmanos, que nasceram em berço muçulmano, que não conhecem muito a sua religião, e depois passar para os não muçulmanos, de que a minha reputação não é o Estado Islâmico, por exemplo, o ISIS, não é o fanático, não é o terrorista, mas é a Vicena, que inventou, a Vicena que colocou as regras da medicina. Al-Khwarizmi, que inventou a álgebra e inventou o algoritmo. O algoritmo do Instagram e essas coisas vem da… A palavra algoritmo é de Al-Khwarizmi, que é um sábio matemático, muçulmano, que inventou a álgebra, desenvolveu a álgebra e o algoritmo. Ibn Rushd, que era um grande historiador viajante. Averróis, né? Tantos, tantos, tantos. Alberone, que desenvolveu o conhecimento da astronomia, hoje os planetários devem, a astronomia, a NASA deve a esses sábios. Então é essa a minha ancestralidade, é essa minha herança, é essa minha reputação, é essa minha origem, não essa questão de terrorista. Esse é um desafio muito grande para mim, por isso que eu tenho esse trabalho que eu faço, não é um trabalho remunerado como profissão, mas como missão. Porque as pessoas merecem, muçulmanos ou não muçulmanos, merecem saber a verdade, merecem saber do outro lado. É isso que eu tenho hoje como missão na minha vida, de passar isso, de fazer as pessoas enxergarem antes do 11 de setembro, por exemplo. Você tem hoje dois bilhões de muçulmanos, se todos fossem terroristas, essa conversa hoje nós não teríamos. Então, não teria lugar onde os muçulmanos estivessem que fosse seguro para não muçulmanos. Então, para você ver como é que se trabalha com a nossa imaginação, como é que se trabalha. E é legal essa oportunidade de passar, certamente falando de uma biografia, mas também estamos falando de ancestralidade, estamos falando de herança cultural, estamos falando de uma vida que não iniciou-se em 65, com o meu nascimento. Não, eu já nasci com uma vasta herança, rica, e eu preciso preservar isso. Mas como é que eu vou preservar se eu não conhecer? Se eu não domino?
P - Inclusive, até para a gente que não conhece muito a teologia também do Alcorão, me conta um pouquinho o que você aprendeu, então, nesse tempo todo e até os dias atuais dessa relação com a vida, com a morte, com a vida depois da vida, né? E Deus, enfim, como que é essa relação pra quem não conhece esse conhecimento, né? Esse sentimento também, de repente.
R - O Alcorão é como se fosse a constituição brasileira para o Brasil, o Alcorão é a constituição do muçulmano. Ali você vai ter todas as regras gerais que vão orientar a pessoa, o muçulmano, no seu dia a dia. E o Alcorão é a continuação da Bíblia, continuação do Evangelho e da Torá. Porque nós acreditamos que Deus é único. E a religião é única, é a religião de Deus. Então ela tem três etapas, judaísmo, cristianismo e islam. Então ela é a continuação, é a terceira atualização, vamos dizer assim. É uma atualização e é a última atualização. Então a base do Alcorão é a mesma base da Bíblia e a mesma base da Torá. Fala em Deus único, fala sobre oração, fala sobre os dez mandamentos, tudo que como base da Bíblia é base do Alcorão. Agora, ela vai se aprofundar e vai ramificar em vários aspectos da vida do muçulmano. Então, dentro do Alcorão, você vai encontrar regras para orientar o indivíduo na sua vida particular, íntima ou pública, vai orientar também o coletivo, a sociedade, vai orientar como o líder deve ser, deve se comportar, como o cidadão deve se portar, como o pai, a mãe, o filho, o irmão, como o chefe, como o subordinado deve se comportar, como são as relações entre países, diplomáticas, regras, leis para época de paz e época de guerra. Então o Alcorão, ele é a constituição do muçulmano. Então a primeira coisa que eu, para ser muçulmano, que eu tenho que entender É isso, o Alcorão. Mas como eu entendo o Alcorão? Porque são regras gerais, são muito densas, são versículos, são ordens gerais, e como qualquer ordem geral, regra geral, você tem ali, tem que se esmiuçar, tem que explicar. Então Deus envia, junto com a escritura, ele envia um profeta. E esse profeta vai mostrar na prática como seguir essa escritura. Então os profetas são nossos professores, eles são nossos guias, eles vão facilitar. Então, quando eles falam, eles falam explicando essas regras gerais. Olha, é assim que Deus quer que você pratique. Quando Deus fala “o muçulmano tem que ter bom caráter”, “olha, é isso, bom caráter é isso, é ser honesto, é tratar bem a esposa, tratar bem os filhos, tratar bem o vizinho, tratar bem, isso é bom caráter, a ser uma pessoa justa”. O que é ser justo? Olha, é o seguinte, aqui você tem um funcionário, ele trabalhou, você pague, não atrase, não dê cheque sem fundo. O teu chefe, o teu patrão te incumbiu, te deu uma missão, te deu uma responsabilidade, esteja à altura, não traia essa responsabilidade. Então os profetas… Jesus fez a mesma coisa. Então ele mostrou para as pessoas o que é ser amoroso, o que é ser misericordioso, o que é guiar as pessoas. E uma das coisas que as pessoas não entendem é que nós acreditamos em Jesus, na Virgem Maria, nós acreditamos no nascimento milagroso de Jesus, que Maria teve Jesus, o verbo de Deus concebeu Jesus, do verbo de Deus soprado no ventre virgem, sem a interferência de um homem, no Alcorão, o Alcorão é formado por 114 capítulos. O capítulo 19, um dos maiores capítulos do Alcorão, se chama capítulo de Maria, onde conta toda a história da concepção, como Maria foi concebida, como ela foi prometida para o templo, como ela concebeu Jesus, toda a história. Então, o Alcorão, ele fala das demais religiões e ele vai me orientar. O que eu posso fazer? Quais são os limites? Quais são os limites em tudo. Então você tem a filosofia, e a filosofia islâmica é diferente da filosofia grega, ateniense, ocidental, vamos dizer, e ajudou muito a formar a civilização islâmica como uma civilização que contribuiu para a humanidade, enquanto a Europa não não sabia nem tomar banho. Os muçulmanos fizeram o cálculo da distância entre a Terra e a Lua, ida e volta, exatamente como ela é hoje. Isso na Idade Média, na Era das Trevas da Europa, era a Era Dourada dos muçulmanos, da descoberta das pesquisas, essas coisas. Quem fez isso? Quem incentivou isso? O Alcorão, que deu liberdade, que incentivou as pessoas a pesquisarem. Então, o Alcorão, ele não fecha as portas da pesquisa, pelo contrário, ele incentiva, ele te dá uma base e ele fala: “é dessa base que você tem que subir, você tem que partir desse princípio, desses valores". E a questão da tolerância, o que fez com que os muçulmanos, na expansão islâmica, não destruíssem a outra cultura? É o Alcorão que ordenou que nós preservássemos o conhecimento, valorizássemos o conhecimento, aproveitássemos do conhecimento do outro. E isso é muito importante. Talvez, para alguém que esteja nos assistindo, falem “ah, ele está divulgando a religião”. Não, eu estou falando como é a minha mentalidade, como é a mentalidade de um muçulmano, o que me moldou, é isso. É essa visão, é isso que influenciou em mim, o que não me tornou, não me fez ser um fanático é esse conhecimento e conhecer a fundo conhecer a fundo a religião, o conhecimento te liberta de qualquer ignorância porque todo fanático é ignorante ignorante na questão de falta de conhecimento porque ele fica no superficial. Qual que é a diferença do de um fanático e uma pessoa equilibrada? O fanático, ele pega o texto e ele adapta esse texto à visão dele. Ele molda o texto à vontade dele. A pessoa correta, equilibrada, ela se molda ao texto. Ela molda as suas vontades à escritura. Para você entender essa diferença, você precisa se aprofundar. Não pode só ter um conhecimento raso, tem que se aprofundar. E o Alcorão, ele chama, e é isso que me chamou a atenção. Diferente do que as pessoas dizem, “A Xaria domina, a Xaria que mata”. Não, a Xaria que me moldou. Quando eu rezo, eu pratico a Xaria. Quando eu rezo, eu estou sendo grato a Deus. Fazer as coisas de acordo com a Xaria significa de acordo com o que Deus ordenou. Seguir as ordens, não do jeito que eu acho ser bom ou acho correto. Porque eu acho uma coisa e você acha outra. Então tem que ter uma organização, tem que ter um código que nos una, que nos dê unidade. O Alcorão é esse código e por isso que ele é estudado. Então nós temos que estudá-lo, estudar seus significados, mas também temos que memorizar. Porque eu tenho que recitá-lo, usá-lo nas orações. Então, o Alcorão é a minha base. É a minha base. E é ponto de partida que constrói pontos com as diversas culturas. Porque através do Alcorão, eu sei os meus limites com a cultura brasileira, com a cultura árabe, com a cultura africana. E um detalhe, a gente falou de dois mundos: árabe e brasileiro. Mas tem um terceiro, que é o islâmico. Porque nem tudo da cultura árabe condiz com os valores islâmicos. Por exemplo, a arguile. A arguile, a narguilé, né? Ela é cultura árabe, não cultura islâmica. Então a religião, ela vai me dar limites. Fala, “olha, dessa cultura até página 20, viu? Naquela cultura, até a página 40, você pode, nesse limite, transitar tranquilamente, porém, tem um limite”. Então, por exemplo, a feijoada. É inconcebível que o muçulmano de quarta e de sábado, coma feijoada. Porém, mais tarde, isso a gente ficou anos sem comer. Eu via isso, o brasileiro come feijoada. E eu não como. Mais tarde, aparece alguém que fala: “não, eu vou fazer uma feijoada islâmica, permitida ao consumo de muçulmanos”. Pega todos os ingredientes, tira o suíno, substitui por frango, carne bovina e pronto. Fez uma feijoada. Eu como feijoada não muito islâmica, mas ainda, na minha cabeça, a feijoada com suíno. Toda hora eu tenho que me conscientizar de que eu estou comendo uma feijoada lícita. Isso vai te acompanhando por toda a vida, esses limites, porque você foi, você se colocou, colocou limites, não posso ultrapassar nesses costumes culinários. Tudo que você não podia, agora está podendo de uma outra forma. Mas ainda fica aquele interno, aquela discussão interna, aquele radar que fala: “não, acusei alguma coisa inadequada”. Aí depois o seu consciente tem que falar para você, “não”, a sua mente tem que falar, “não, esse aqui está tudo bem, está bem elaborado”.
P - E acho interessante, queria perguntar para você. Acho que a gente já mediu 25. A gente pode fazer mais umas três perguntas? Pode ser? Tudo bem com vocês também?
R - Três perguntas já vai para três dias, do jeito que eu estou falando.
P - Se a gente pudesse, a gente ficava muito mais tempo também com o senhor, porque eu acho que está muito interessante mesmo. Você falou muito dos costumes, de como o Alcorão regra a vida diária, mas qual é a sua relação com Deus, ou com o mundo que a gente não vê? E qual é a relação do muçulmano com Deus também? Mas se você quiser falar da sua, é mais interessante ainda.
R - Eu vejo a minha relação com Deus, eu via antes com receio, com medo. Então eu não queria ir para o inferno. Então eu não queria desagradar a Deus, porque eu poderia ser punido. E eu vejo muitas pessoas, inclusive cristãs, com essa mesma visão. Mas isso mudou para mim. Quando eu comecei a estudar a religião islâmica, isso mudou. Hoje eu vejo Deus como alguém para ser agradecido. Então, quando eu rezo, eu agradeço, estou agradecendo a Deus. Eu não estou rezando para fugir do inferno, somente, porque é automático, mas é para ser grato, que é meu dever como uma pessoa grata e também pedir apoio a Deus. Se eu tenho dificuldade, eu rezo. Eu peço a Deus. Deus é o único que está com você em todos os momentos e que sabe o que está dentro de você. Então, a sua amizade, a minha amizade com Ele tem que ser muito forte. Então, eu procuro, não que eu seja um anjo infalível, mas eu procuro sempre estar agradecendo. O que é gratidão? Não é só falar “obrigado, Deus”, ou rezar. Mas também, Deus te deu uma dádiva, você compartilhar. Você estar agradecendo a Deus. Eu me vejo assim. Então, Deus me deu conhecimento. Certamente que tem um esforço meu muito grande de ter ido, de ter sofrido, de ter passado todas essas dificuldades, mas também Deus me abriu essa porta, e Deus me abençoou com isso me colocou no lugar certo, no momento certo para falar com a pessoa. Aliás, essa pessoa que me ofereceu aquela bolsa de estudos era o presidente da universidade que eu fui estudar. Então, eu agradeço a Deus por Ele ter me guiado, e sempre que você agradece a Deus, Deus te guia mais, porque você nunca vai ser mais generoso do que Deus, e eu aprendi isso. Então, quando eu estou compartilhando, eu estou fazendo não estou compartilhando algo meu, algo que Deus me deu. Então eu vejo assim, então eu compartilho. Então esse conhecimento que eu adquiri e que chegou até mim, eu tento compartilhar, eu tento oferecer para outras pessoas de uma forma bem fácil. Por exemplo, de uma forma bem mais facilitada, por exemplo, nas redes sociais, nos canais, então por isso que eu tenho vários canais, porque eu tento oferecer para as pessoas esse conhecimento, essa oportunidade. Aí depois elas fazem o que elas quiserem, decidem como elas querem utilizar, utilizar esse conhecimento. Então, a minha relação com Deus é uma relação de gratidão, sem esquecer que Ele é justo. Isso é importante saber. Então, se eu falhar, eu sou passível também de punição, mas também as portas do perdão estão abertas. Então, Deus, enquanto eu tiver um suspiro de vida, Deus tá com as portas do perdão abertas, a misericórdia aberta. Então, cabe a mim batê-las, cabe a mim, se errar, imediatamente recorrer e aprendi que Deus é luz, Deus é paz, Deus é misericórdia. Então, quando eu estou de frente para Deus, eu vou ter luz, eu vou ter paz, eu vou ter misericórdia, vou ter perdão. Se eu der as costas para Deus, eu verei escuridão, verei a falta de misericórdia, não verei a paz. É uma decisão minha. Então, eu vejo Deus, ele me dando essa oportunidade e me dando esse livre arbítrio de eu escolher se eu quero ser feliz ou não. Então, ele não é punitivo porque ele é sádico, porque ele ama isso. Não. Ele pune porque ele é justo. Mas me deu todas as oportunidades para eu me arrepender, para eu voltar. Ele quer que eu entre no paraíso. Ele quer que eu seja feliz. Ele me deu todas as condições para ser feliz. Então, eu aprendi isso com o Alcorão. O Alcorão é um guia. É essa visão que eu tenho, muito mais ampla do que ser um livro sagrado de regras e normas, não. É um curso, é um código que desenvolve a parte espiritual, a parte emocional e a parte física do ser humano. Porque ele cria essa conexão e essa coerência. Porque a felicidade está nessa coerência, nesse equilíbrio desses três aspectos. São os que fazem a nossa constituição. E eu tento seguir isso. Por isso que eu memorizo o Alcorão, eu memorizo os ensinamentos proféticos, eu tento passar para as pessoas o entendimento verdadeiro dos significados. Então não é só uma leitura do Alcorão, é uma interpretação, uma análise com atenção, dos versículos. Se está lá, é por algum motivo. Se Deus está falando, é porque tem algum benefício. Se Deus está chamando atenção, é por algum perigo. Então, eu tento olhar o que Deus quer de mim nisso? Então, Ele é meu companheiro. É o companheiro em vida e depois da morte. E nos momentos que ninguém mais pode te ajudar, Ele está ali, e Ele está te escutando, e as portas estão abertas, e com Ele você pode desabafar. Os profetas desabafaram com Ele. Quem sou eu para não desabafar com Ele? Então, Deus, para mim, Ele é o meu segurança particular. Parece desrespeitoso, mas ele disse isso. Se você está com Deus, ele te protegerá. Pronto.
P - E como é que você encara a morte? Você tem medo de morrer? Você pensa muito nisso? Isso tem alguma guia para esse período, para esse acontecimento ou não?
R - O Alcorão também me facilitou bastante essa questão da visão da morte. Todo mundo tem medo, não da morte em si, mas do oculto. Por isso que a criança quando nasce, nós já morremos uma vez da barriga da mãe, do ventre da mãe. Quando nascemos, a criança chora porque ela saiu da zona de conforto para algo inusitado que ela não conhece, algo diferente. Então, na realidade, essa passagem se chama morte. A morte, para nós, é a passagem dessa vida para outra vida eterna, simples. Então, não é esse o medo, o medo é depois. Então a gente não tem esse conhecimento. E a falta de conhecimento te traz um receio, te traz um medo. Como é que eu me tranquilizo? Fazendo boas ações, sendo bom com as pessoas, sendo próximo de Deus, me dá uma garantia. Pelo menos ameniza, mas ainda continua sendo oculto. E o ser humano, ele é inimigo daquilo que ele desconhece. Isso é automático do ser humano. Eu sou inimigo daquilo que eu desconheço. Eu tenho medo dele. Mas a partir do momento que você começa a estudar, e por isso que eu me interessei por esse ponto, me aprofundei nesse tema, porque como eu não conhecia, me gerava uma inquietação, então eu quis saber quais são as fases? A alma vai pra onde? O corpo vai pra onde? O que acontece? Como é que se reconstitui? E depois, quais são as outras fases até chegar ao paraíso ou até o inferno? Como é que será o dia do juízo final? Então fui me aprofundando, procurando detalhes, e isso foi me tranquilizando, certamente que a partida sempre. Se eu vou viajar, eu já fico triste de deixar os familiares, deixar os amigos, deixar a zona de conforto, deixar o celular. Você vai de uma cidade para outra, vai mudar já. Então imagine você deixar essa vida, deixar as pessoas, mas também saber que você vai encontrar outras pessoas, ameniza essa inquietação, esse receio, mas ele existe, mas com mais segurança. Você não tem uma ideia exata de como é que vai ser, mas você sabe mais ou menos como vai ser. Então, esse conhecimento, ele te tranquiliza, ameniza e me faz ser mais sincero quando eu vou falar em enterros, em velórios, sepultamentos. Quando eu falo, eu tento passar exatamente aquilo que eu sinto, para que as pessoas também, elas vivenciem isso. Agora, a questão de luto, é uma perda. É perda, queiram ou não. A pessoa foi, mesmo que ela tenha ido para o paraíso, mas você perdeu a companhia dela, ela partiu. Então, é um momento de tristeza, e esse momento de luto faz parte da vida do ser humano. Eu perdi várias pessoas, outros perderam, todo mundo já perdeu alguém, e outros vão nos perder. E é o curso natural da vida. Os profetas, menos Jesus, que pra nós ainda vai retornar, né? Mas, esse é um curso natural, assim como nascer, assim como comer, são regras naturais que Deus colocou, basta que você entenda. A gente já morre todo dia e a gente não percebe, quando a gente dorme. É uma morte pequena, né? O que garante que eu acorde ou não? Mas como é recorrente, então você já leva bem, você lida com isso bem, você até quer dormir. A única coisa da morte é que você dorme, mas não acorda nesse plano, você acorda em outro.
P - O que você fala dos velórios. Teve algum que te marcou? Alguma situação que você lembra mais nesse ritual?
R - Cada velório é uma sensação única. Sensação, porque a pessoa pode ser mais próxima, pode ser mais distante, mas para alguém ela é… Mas a morte em si, ali, aquele corpo ali, podia ser eu. Então, sempre eu falo, tento falar para as pessoas, conscientizar as pessoas de que ela ali é o resultado. Agora, essa pessoa ali tem duas situações, duas frases ou duas falas que as pessoas talvez nem falem, mas pensem, ou elas dizem “Foi cedo, que Deus o tenha”, ou “foi tarde, estava fazendo hora extra”, “que Deus o tenha ou Deus o carregue!”. Eu quero saber, eu, qual pensamento que eu quero que as pessoas tenham de mim. E todos deveriam pensar. Quando a gente leva alguém para o cemitério, entramos com ele e saímos com menos um. Um dia nós entraremos, mas não sairemos. Então é pra isso que a gente tem que trabalhar, é pra esse momento. E a morte é uma misericórdia também. Quantas pessoas estão sofrendo de doenças, e as pessoas, às vezes, Alzheimer, por exemplo, quem sofre é a pessoa, o vivo, o parente que está ao redor dela, a pessoa não está sentindo muitas vezes, porque ela não tem memória. Às vezes, a morte também é uma misericórdia, também preserva a dignidade da pessoa. É uma das coisas que eu, na minha vida de sheik também, eu vivenciei, tive essa experiência, falo com muitas pessoas mais velhas, e algumas pessoas me confidenciam. Tipo, nas súplicas, a pessoa já começa a pedir a Deus que daqui a pouco ela vai perder a dignidade dela, não vai conseguir comer sozinha, não consegue andar sozinha, não toma banho sozinha. Então, a pessoa começa a se ver como um peso. Então ela vê a morte como uma misericórdia para ela, uma saída para ela. Eu já vejo diferente, eu vejo que tudo é misericórdia nessa vida, todo o processo natural é uma misericórdia. Porque, Deus, você aproveitar de cada momento, é o ponto chave. Se Deus te deu mais um suspiro e você tem um conhecimento para passar, passe. Para fazer alguém suplicar por você depois da sua partida, faça, aproveite. Que essa é a aposentadoria que nós temos. Depois que partimos, ficam as lembranças, fica a saudade. Tem pessoas que deixam saudade, tem pessoas que não deixam saudade. E eu vejo muito isso. Quem chora, e realmente é sincero, e que está ali por protocolar, só por causa dos vivos, uma questão social. Depende de como é que você passou nessa vida, se você foi importante para alguém ou não. Mas é só as ações que vão deixar isso, né? Então é isso que eu acho que me preocupo mais com isso, do que com a morte. Antes me preocupava muito com a morte. Depois não. Hoje me preocupo mais em aproveitar cada momento. Os jovens me perguntam, como é que você consegue ter toda essa energia, viaja, vai e volta? Se precisar, esses dias eu fui para Uruguaiana inaugurar uma mesquita. Aí fomos de avião para Porto Alegre e depois mais dez horas de ônibus. E era aquele pinga-pinga. E todo mundo tipo, como assim? Eu quero aproveitar o máximo que eu tenho de energia ainda, de vitalidade, de consciência, para fazer o que eu puder trabalhar. Então, eu aproveito a minha vida, enquanto eu tenho condições, para fazer. Porque não adianta ficar pensando na morte e não fazer nada. Vai viver uma vida sem qualidade, sem atitude. Assim que tem que ser o casamento, assim que tem que ser a família, assim que tem…Tem pessoas que vivem dentro da família esperando sair de casa para casar e não aproveitam a família, os momentos. Então, tudo é sobre isso, sobre deixar saudades ou não.
P - E para as últimas perguntas. Então Sheik, como é que está constituída a sua família hoje? Nas suas filhas, na sua companheira, como é que hoje eles estão, quem são eles?
R - A minha família hoje são meus pais que estão vivos, graças a Deus. Tenho meus irmãos também vivos. São três irmãs. Uma irmã que não casou e um irmão também casou. Tem dois filhos. Tem uma irmã também que casou, tem dois filhos. Tem uma irmã casada que não teve filhos. Tenho minha esposa, que é de Santa Catarina, tive com ela três filhos, me ajuda muito na minha vida, em todos os aspectos. Todos os meus familiares me ajudam. Tenho três filhos, uma filha. Hoje, na data de hoje, com 19 anos, está terminando o terceiro ano de medicina. Tenho um filho de 14 anos, tenho outro filho de 11 anos. Graças a Deus, todos com saúde, tenho meus primos, eu tenho uma tia ainda viva, graças a Deus, mas primos assim, imagine, imagine a torcida do Corinthians, eu tenho primos, acho que maior do que a torcida do Corinthians, família grande, isso só da parte da minha mãe, fora a parte do meu pai, na Síria, em outros lugares. Então, a gente se vê, tem um contato, graças a Deus, mas tem os meus sogros que moram em Santa Catarina. Nas férias, a gente vai, eu levo a família, eu levo os netos para eles conviverem juntos, sempre tem visitas, sempre estamos nos visitando, mantemos dentro de casa os hábitos certamente islâmicos, mas também uma culinária palestina, já que a minha esposa é palestina, então a questão palestina, ela é muito viva na minha vida, dos meus filhos, eles conhecem toda a causa, se preocupam com o que está acontecendo no Oriente Médio, eles sabem da origem deles, apesar de serem brasileiros muçulmanos sabem de uma origem que eles têm, tem uma origem palestina, tem uma origem síria, tem uma origem libanesa. A gente tenta viver isso, manter isso vivo dentro de casa, dentro dos nossos hábitos, dentro do nosso cotidiano. Agradecer a Deus sempre, a religião sempre presente na vida, na nossa vida. Então, é o que mantém, é o que mantém esse convívio, mas esses instrumentos que te ajudam a superar desafios, como qualquer família tem. Qual família que não tem dificuldades? Às vezes é uma conta para pagar. Às vezes é um problema na escola. Às vezes é um problema social. Às vezes é um problema familiar. Às vezes é uma discussão, uma divergência. Às vezes tem tantas coisas, né? Então, essa vida não é plena. Agora, a felicidade não é você ter uma vida sem dificuldades. A felicidade é você ter tranquilidade diante das dificuldades e tentar encontrar a solução deles e buscar o maior número de pessoas que possam te ajudar a solucionar esse problema. Eu acredito que o Islã chama muito para isso, esse social, essa união, esse coletivo. Tanto que na oração, a oração em congregação com mais pessoas, ela é 27 vezes melhor, mais abençoada do que a oração da pessoa individualmente. Esse coletivo tem essa questão da confraternização, do social. Minha esposa é biomédica, também tem mestrado em biologia molecular. Estudei Xaria, estudei Teologia Islâmica, fiz História, também estudei Ciências Sociais, fiz Mestrado, fiz um curso, a convite do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, em parceria com a Unifesp, sobre combate às drogas em recintos, em templos religiosos, em instituições religiosas. Estou fazendo doutorado na USP. É tudo ligado à religião islâmica e à questão… Estou tentando resgatar, trazer na minha tese de doutorado, a influência dos muçulmanos e do Islã na cultura brasileira, na vida brasileira, na história do Brasil, na questão da língua, na questão da culinária, vestimenta, nomes de estados, cidades, como Bahia, Recife, palavras comuns como gaúcho, que são de origem árabe. Muitas coisas que o Islã, os árabes têm influência no Brasil e muitos acreditam ainda que os muçulmanos… “Ah, volta para o teu país”. E essa é uma coisa que eu brinco bastante, né? Tipo, a pessoa fala: “ah, você é muçulmano? Volta para o teu país”. Eu sou brasileiro, e aí ele está falando para mim voltar para o meu país. E meu país seria o quê? Islamistão? Meu país é o Brasil. Como assim volta para o teu país? É questão de religião, então você percebe que as pessoas não têm muita cultura. Quem é que vai responder a isso, ajudar essas pessoas, esclarecer essas pessoas? Tem que ser o muçulmano, tem que ser a gente, né? É um dever nosso. Então, por isso que a gente preza muito pelo conhecimento dentro de casa da leitura, bastante, da cultura, de conversar com outras pessoas, outras mentalidades, outras culturas, sempre é importante.
P - Infelizmente, vou ter que te perguntar, fazer uma última pergunta só, que é como é que foi para você contar um pouco da sua história? A gente passou por várias coisas que a gente não teve tempo de abordar, infelizmente, mas como é que foi essa experiência hoje com a gente? Acho que falta te falar também alguma mensagem, mas se puder dizer para a gente como é que foi esse.
R - Foi uma experiência fantástica, uma honra para mim, ser convidado para participar desse projeto, falar um pouco. Eu fico pensando, quem sou eu para participar disso, tem tantas pessoas mais importantes? Mas o intuito, na realidade, é passar um pouquinho do que é a vida de um muçulmano, de um árabe, árabe brasileiro, esclarecer. Então, eu vejo que nesse projeto, apesar de estar falando da minha vida, mas eu quero esclarecer, quero que os outros conheçam a gente, como é na realidade, para não criar estereótipos, para que não crie fantasias ou ideias erradas. Então, é uma forma de eu mostrar a nossa realidade. Olha, somos assim. Talvez nem todos sejam assim, mas eu sou uma pessoa que tem essa cultura, a pessoa que está nos assistindo às vezes, ou você, qualquer pessoa aqui, cada um tem uma história e tem passagens interessantes, ensinamentos para passar, cada um de nós. Mas, de qualquer forma, para mim é uma honra muito grande de participar desse projeto, de poder falar de mim. Falei de coisas que normalmente a gente não fala. E falei bastante também, não parei. Isso me agrada, me agrada porque eu estou querendo colaborar de alguma forma com a sociedade brasileira, com os muçulmanos e quem sabe sirva alguma coisa que nós falamos aqui, sirva de inspiração ou mote para a pessoa conhecer mais quem sabe o muçulmano se interessar mais pela sua própria religião, o não-muçulmano conhecer a outra cultura, se abrir e ver que não existe inimigos, só criam inimizades entre grupos quem tem interesse em ganhar com conflito. Quando vende armas. Mas as pessoas que amam a Deus e que querem seguir a Deus, querem viver bem. Entre elas e Deus, elas e as pessoas. Porque eu não vejo Deus ordenando fazer guerras. Então é o que estamos sentados aqui, diferentes crenças, falando para pessoas de diferentes, uma pluralidade de pessoas, pluralidade de crenças, mentalidades, conhecimentos, etnias, nacionalidades. Estamos conversando. Eu acredito que isso é o que me fez ficar mais à vontade de poder participar, além de ser, como disse, uma grande honra. Agradeço, gratidão, primeiro a Deus e depois a vocês.
P - A gente também agradece você, Sheik. Muito obrigado. Pena que a gente tem mais tempo, na verdade, senão a gente ficava horas aqui também, faz uma pausa... Enfim, mas muito obrigado.
R - Que isso, é um prazer.
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