Projeto Conte Sua História, 20 anos Museu da Pessoa no Brasil
Entrevistada por Zilda Kessel
Depoimento Edivar Ignez dos Santos
São Paulo 13/09/2012
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PCSH_HV368
Transcrito por Cristiane Costa
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Bom, eu vou ...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História, 20 anos Museu da Pessoa no Brasil
Entrevistada por Zilda Kessel
Depoimento Edivar Ignez dos Santos
São Paulo 13/09/2012
Realização Museu da Pessoa
Depoimento PCSH_HV368
Transcrito por Cristiane Costa
Revisado por Teresa de Carvalho Magalhães
P/1 – Bom, eu vou começar, o senhor vai repetir para mim o seu nome completo, apesar de o senhor ter me dito que não gosta dele, onde o senhor nasceu e quando?
R – Meu nome é Edivar Ignez dos Santos, nasci em Juiz de Fora, Minas Gerais, dia 19 de Abril de 1962.
P/1 – E os nomes dos seus pais eram quais?
R – Meu pai era Sebastião Ignez dos Santos e a minha mãe Maria Ondina dos Santos.
P/1 – O quê que eles faziam?
R – Meu pai era padeiro e a minha mãe lavava roupa para fora.
P/1 – Em Juiz de Fora?
R – Não, aqui.
P/1 – Ah, então o senhor veio pequeno? Com qual idade?
R – Com quatro anos.
P/1 – Com quatro anos o senhor veio de Juiz de Fora para cá?
R – Sim.
P/1 – O senhor se lembra de alguma história que o seu pai ou a sua mãe contavam da infância deles?
R – A minha mãe, sim, porque ela trabalhava muito. Ela trabalhava na roça, com o meu avô e eram onze mulheres e um homem, isso. Então, elas que tinham que fazer o trabalho duro, cortar lenha, capinar, plantar. E o homem fazia menos o que Papai Noel no verão, dizendo, nada, porque era o único homem. Então, aonde que o meu avô ia, ele ia. Ele era o, entre aspas, “bebezinho”.
P/1 – Entendi. E a sua família sempre morava em Juiz de Fora? Pais e avós? E o quê que eles plantavam?
R – Todos. De tudo. Vamos dizer, café, arroz, milho.
P/1 – E por quê que eles vieram para São Paulo?
R – É que o meu pai deu a ideia de vir porque nós tínhamos aqui um tio e o tio escreveu para ele e disse: “Vem que aqui é grande. Em São Paulo você tem mais possibilidades”. E o meu pai decidiu que... Nós éramos cinco irmãos: mala e cuia para São Paulo.
P/1 – Todo mundo?
R – Todo mundo, no mesmo ônibus.
P/1 – O senhor se lembra dessa viagem?
R – Não bem, mas eu lembro que o meu pai disse que íamos para uma casa. Só que, chegando aqui, nós fomos para uma favela. Então, foi diferente, porque você sai de uma casa, casa mesmo, aí você chega em São Paulo, sem conhecer absolutamente nada, você encontra um quarto como esse, morar sete pessoas.
P/1 – Você sabe em que bairro vocês foram morar?
R – Na Vila Guilherme, na Rua São Quirino. Isso já faz anos e anos.
P/1 – O senhor se lembra como era esse lugar quando o senhor chegou?
R – Foi, assim, para mim mesmo era estranho, porque do lado tinha o quê? Um lixão. E eu nunca tinha visto um urubu, cheirava mal, a casa era aqui, o lixão aqui. E você via ratos para cá e para lá, urubus. Então eu tinha quatro, cinco anos, vai, e foi difícil porque eu nunca tinha visto. Para o meu irmão caçula foi pior ainda porque ele tinha quatro anos e ele queria pegar os ratos. Eu falava: “Kiko, não pode”. Urubu ele corria atrás, começamos, sabe, foi difícil a vida, a chegada mesmo porque, aí, até que o meu pai encontrou trabalho nós tínhamos que depender desse meu tio que morava do lado do... Do lado nosso.
P/1 – Era seu vizinho?
R – Vizinho. E que vizinho! Entende? Então, até que o meu pai começou a arrumar um bico, a minha irmã, os meus dois irmãos arrumaram algo, assim, mas temporário, sabe? Faz aqui uma coisa, ali outra e íamos indo. Só que era pequeno para cinco, tinha que tomar banho numa bacia de plástico dessas grandes, sabe? Comida mesmo era sopa de folha de batata, praticamente todos os dias, no almoço e jantar. Eu e mais o meu outro irmão perguntávamos: “Mãe, o quê que vai ser hoje do almoço?”. “Sopa de folha de batata”.
P/1 – O senhor foi à escola?
R – Fui. Aí, começamos a melhorar até que o meu pai conseguiu o trabalho fixo e os meus outros irmãos também, daí fomos morar numa casa mesmo.
P/1 – E onde era essa casa?
R – Na Vila Guilherme, na Rua Chico Pontes.
P/1 – E o seu pai foi trabalhar no quê, numa padaria?
R – É. Fixo, sabe? E os meus outros três irmãos trabalhando já.
P/1 – E o quê que os seus irmãos faziam?
R – A minha irmã e um outro irmão trabalhavam numa fábrica de tecido e o outro arrumou de caminhoneiro. Então, a minha mãe batalhou para que eu fosse para escola mesmo, sabe? Claro, quando você é criança você não quer ir para escola.
P/1 – Quantos anos o senhor tinha quando foi para escola?
R – Sete anos.
P/1 – E o senhor se lembra dessa escola?
R – Lembro, também fica no mesmo bairro. Afrânio Peixoto.
P/1 – E como foi? Conta o primeiro dia que você foi na escola.
R – Olha, eu fui com calção pequeno, chinelo de dedo, chorando, porque você não sabe nada e você vê os outros companheiros de tênis, bem arrumadinhos, sabe? Lancheira... E você: caderno e um lápis. Você entra, outro mundo, comecei vendo favela, depois uma casa mesmo, depois a escola. Aí, eu apanhei. Por quê? Repeti o primeiro ano e a minha mãe ficou nervosíssima, comprou livros. Até então ela lavava roupa para fora e trabalhava muito para eu ter roupa limpa porque nessa época era, sabe, shorts mesmo, camisa branca, um uniforme que a minha mãe teve que batalhar muito. Lavava roupa mas, sabe, quantidade, não é duas peças, não. Repeti, apanhei, meu Deus do Céu, eu não queria nem mais voltar. Aí, no outro ano, ela disse: “Vavá, não repita outra vez”. Eu falei: “Vou tentar, mãe”. E minha mãe, ela era o quê? Analfabeta, só sabia assinar o nome dela, mas ela era tão boa de matemática que eu não acreditava. Ela me dava classes de Matemática que eu me perguntava “como que ela sabe mais Matemática que eu?” Até que fomos indo e indo, eu disse: “Mãe, não se preocupa, esse ano eu passo”. Só que na minha época, todas as sextas feiras as mães iam na classe para ver como que estava Fulano de tal, Fulano de tal, eu, Vavá. A minha mãe entrava de chinelo de dedo, uma saia,
sabe, simples, simples e as outras mães já estavam bem mais assim. A minha mãe ia com uma cinta assim, uma cinta mesmo de homem. As professoras conheciam a minha mãe e invés de dizer “não, ele tá indo mais ou menos, ele precisa…” Ah, nada! “o Vavá não tá indo bem nisso, não tá indo bem naquilo, caligrafia péssima, matemática pior ainda”. A Classe era de quarenta e cinco alunos e eu estava lá no fundo, a minha mãe escutando, escutando, e a professora invés de mentir um pouco, ela falava: “A senhora me dá licença?”, e a professora: “Sim, senhora Maria”. Tirava a cinta, ia lá no fundo e falava: “Não chora na frente de todo mundo, não se mexe”. Nós saímos acho que às quatro horas da tarde, eu chorando já, já sabia, o coro ia comer em casa. Chegávamos em casa, ah, dito e feito. Ele me pegava e falava: “Já te avisei que nesse ano você não vai repetir” e apanhava. Esse meu irmão caçula era tão meu irmão que ele ria, eu apanhando e ele rindo.
P/1 – Aí, seu Vavá, o senhor continuou na escola?
R – Continuei.
P/1 – E o senhor estudou até que ano?
R – Até superior, sou técnico em química hoje, graças à minha mãe, graças à ela. Nessa época, tinha um tênis que era moda, Kichute, todo mundo tinha esse tênis, todo mundo menos eu. Aí, minha mãe: “Se você passar de ano, você vai ter um presente”. Eu nem, tá bom, passei. Um dia, um sábado, ela falou: “Vamos sair” “Ui, aqui já vai cair a casa”. Paramos numa loja de calçados, ela entrou e falou: “Esse que é o tênis que você sonha tanto?” “É”, foi lá e me comprou o bendito do Kichute. Desde então, não repeti um ano mais até que ela faleceu, porque eu estudava bastante, aprendi tudo o que eu sei até hoje graças à minha mãe, mas apanhei de dia, de tarde e de noite.
P/1 – Seu Vavá, quando é que o senhor começou a trabalhar?
R – Eu? Com quatorze para quinze anos.
P/1 – E o quê que o senhor foi fazer?
R – Eu comecei como office boy numa multinacional alemã. Só que uma semana antes eu tinha perdido a minha mãe, faleceu. Mas eu tinha que seguir, seguir mesmo, trabalhava de dia e estudava de noite. Era duro. Aí, depois eu fui para auxiliar de escritório.
P/1 – Na mesma empresa?
R – Na mesma empresa, boa empresa. Depois, meu chefe alemão, claro, ele veio e disse: “Edivar, você quer trabalhar mesmo?” “Quero” “Porque no laboratório vai ter uma vaga” “Olha que bacana!” “Só que tem uma coisa, você vai ter que estudar química” “Ah, isso é fácil” “Pensa bem”. Ele me deu um dia para pensar, aí, no outro dia, veio e falou: “Olha, quer ir?” “Quero” “Então, a empresa te paga cinquenta por cento do curso técnico e você paga os outros. Só que a empresa pagando esses cinquenta quer ver o quê? Resultados positivos, claro”. Então, foi assim, fui trabalhar num laboratório da empresa mesmo.
P/1 – E estudar?
R – Estudar de noite.
P/1 – E quando o senhor não tava estudando como é que o senhor se divertia? O quê você fazia?
R – Eu fui DJ nos meus tempos livres por muitos anos.
P/1 – E tocava onde?
R – Discotecas. Eu era o que fazia o pessoal dançar, sabe?
P/1 – Que músicas eram o que tocava nessa época?
R – Na minha época, eu tinha mais ou menos dezenove anos, vinte anos, era soul music e funk. Mas não esses funks de hoje, era funk de discoteca mesmo. Bons tempos esses. E, aí, na segunda feira, vamos trabalhar com química. Eu fui colorista de plásticos, fui.
P/1 – Como é esse trabalho?
R – Vamos dizer: cores para qualquer tipo de plástico, qualquer coisa que seria de plástico era o meu departamento. Eu tinha que imitar uma cor, vamos dizer azul. O cliente vinha e dizia “eu quero esse azul” e eu tinha que fazer um azul igual, noventa e oito por cento igual, cem por cento dava. Um trabalho gostoso, só que quando eu saia, eu tinha que ir para escola. Aí, a química, física, técnico-química, uma matéria química, uma matéria muito difícil. Por quê? Prática eu tinha, mas a teoria era, não o que me matava, mas era cansativo. Eu entrava sete da manhã, saía às cinco. Escola das seis horas até dez horas, e eu trabalhava em São Caetano do Sul. A escola também era lá e eu morando aqui. É, eu pegava o ônibus, que era uma hora e dez, chegava em casa, tomava um banho, jantava, cama. No outro dia acordava cedo, aí, pegar o ônibus, dormir nele até chegar lá, chegava lá trabalhava, escola, sabe? Por isso que no sábado eu tinha que tocar música, fazer o pessoal dançar, para mim tirar esse... Cansava mesmo, era um estresse.
P/1 – E o senhor ficou muito tempo com esse cotidiano?
R – Fiquei, fiquei bastante. Por isso que trabalhei na empresa dez anos, foram três anos, não, minto. Mais anos ainda era trabalhar de segunda à sexta e escola. Voltava para casa, no outro dia, nem de despertador eu não precisava!
P/1 – E você trabalhou com as cores. Depois de trabalhar tanto com elas, quais são as cores que o senhor adora?
R – Olha, uma coisa, nunca existe uma cor pura, não existe. Nem um branco ele só é branco. Uma cor vai com outra, com outra, com outra, sabe? Não existe uma cor cem por cento pura. Agora, azul, verde, preto, só essas. Mas existe infinidade de tipos de verdes, azuis, branco mesmo: um branco ele pode parecer branco mas ele tem um pinguinho de verde ou de preto mesmo, sabe? Verde ele pode ser tanto pro lado amarelo como pro lado vermelho, não existe uma cor pura. A pior cor que eu fiz, lembra desses discos da RCA? Esses bolachões da nossa época? É preto, não é? Ali tem quatro cores, eu fiz quarenta tentativas dessa cor, que até o meu chefe falou: “Edivar, essa cor aqui tá como? Isso não sai?”. Eu fiquei cinco dias para fazer essa cor e era preto, se você olhar vai falar “essa cor eu faço”.
P/1 – E depois que você saiu dessa empresa o quê que você foi fazer?
R – Olha, eu já estava cansado da empresa, do meu chefe, do meu bairro, amigos e, aí, eu decidi e falei lá, pro meu chefe. Nessa época era já era auxiliar de laboratório B, eu ganhava bem, bem mesmo, só que tava cansado. Aí, eu fui pro meu chefe e disse: “Tô saindo fora” “Para onde?” “Europa” “Pensa bem!” “Não, Antônio, já não dá mais. Eu tenho que mudar porque já não dá”.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Acho que vinte e dois.
P/1 – E aonde você foi?
R – Começando Inglaterra, Londres. E aprendi porque eu pensei que sabia inglês, anedota. Eu fiquei quarenta, minto, trinta minutos na fila do metrô para comprar o bilhete! Eu pensei que sabia inglês, não sabia nada!
P/1 – E aprendeu?
R – Aí vem: depois que eu comprei o bilhete eu tava suando. Sabe o que é você estar ali angustiado? Você falar alguma coisa e o cara não entendia e eu também não entendia ele. Aí, comprei, saí, respirei fundo e disse: “Você tem que aprender o idioma”. E, no outro dia, escola de inglês. E, aí, em Londres eu fiquei um ano e oito meses, trabalhando em bares, restaurantes, hotéis, até que não me deram o visa para ficar lá mais tempo, então, eu falei: “Eu vou sair”. E fui para onde? Portugal. E fui, cheguei lá, não gostei nada.
P/1 – Por quê?
R – Porque nessa época eles não gostavam dos brasileiros, porque nós temos uma fama mal vista, mal vista, sabe? Aí, eu fiquei lá seis meses.
P/1 – Fazendo o quê?
R – Aí vem, tinha trabalho? Tinha mas me olhavam, assim, diferente, principalmente quando você não é branco, sabe? E aí, me encheu, eu fui para Espanha porque lá eu conhecia, eu tinha um amigo que morou na Inglaterra, então ele falou: “Santos (outro nome meu) se você vai para Espanha, o telefone tá aqui, me chama e a gente vê”, “Tá bom, Carlos”. Aí, eu tinha esse número, já to aqui na Espanha, telefonei e falei: “E, aí, Carlos?” “Oi, Santos, tudo bem” “É, tá bem”. E o dinheiro que eu tinha ganhado já começou a diminuir, esse que é o ruim. Ganhei bastante só que você gasta. Aí, eu disse: “Eu tô procurando trabalho” “Eu vou tentar para ver se eu posso te ajudar” “Tudo bem”. Só que o tempo passava e o dinheiro diminuía e o dinheiro começou a diminuir e eu tive que pedir para ele todas as noites o dinheiro para pagar a pensão e também pro almoço. Até que um dia ele disse: “Olha, Santos, já não dá mais, irmão, não dá mais” “Caramba. Então tá bom”. Só que antes de eu ir para Portugal, em Londres eu conheci uma irlandesa, Jessica. Aí, como eu tinha que sair, eu disse: “Jessica, eu vou ter que ir embora” “Então, vamos para Israel” “Ai, meu Deus, Israel?”.
P/1 – E você foi para Israel?
R – Só que eu fui antes. Então, nós dissemos tal dia, tal hora, ou uma hora a mais, tal, lá. É, bonito, não? Só que chegando lá, eu antes de ir fui para Itália e também conheci duas amigas de Londres, dizendo “se você passar na Itália, você vai e fica lá um tempo”. Tudo bem, o dinheiro acabando e fui. Deu errado.
P/1 – Como era Israel quando o senhor chegou lá?
R – Boa pergunta, porque eu desci, o avião na pista, aduana, entrei. Só que era uma época de muitos atentados dentro de Israel e eu, como muitos brasileiros, nos parecemos como os árabes, feição, sabe? E uma abençoada, para não dizer outro nome, polícia: “O senhor: brasileiro, não?” “Olha aqui” “Siga-me”. Ah! Aí, entramos lá numa sala: “Tira tudo da mala”, tirei tudo. “Para onde que você vai?” “Vim aqui para ficar nos kibutz” “Mas você não é brasileiro?” “Mas como que eu não? Olha aqui.” “Como que você fala inglês?” “Porque eu aprendi, porque se estamos falando o mesmo idioma, você não fala português e eu também não falo hebreu, então tem que ser o inglês”. Meu Deus do Céu, eu fiquei quinze minutos nessa sala, me compraram o bilhete e me mandaram embora, me deportaram.
P/1 – Aí, você foi para onde?
R – Itália. Eu falei “Agora tô lascado”. Sabe quando você começa a ir e as coisas já começam a dar errado? Eu falei “Voltar pro Brasil eu não vou, não vou mesmo”. Voltei para casa das minhas amigas outra vez. E, aí, fiquei lá um tempo e falei “não, eu tenho que ir para Espanha” e fui para Madrid, para ver esse meu amigo. Não tinha trabalho “ih, meu Deus do Céu”. Portugal mais uma vez e lá eu conheci um amigo holandês, o Arnold, gente finíssima. Só que o meu inglês já era avançado, aí, ele falou: “Você quer ir para Holanda” “Mas lá dá para trabalhar?” “A gente vê”. Nós fomos de carona, que é fácil lá. Ele olhos azuis e eu como eu sou. Fomos, fiquei lá, nessa última vez, cinco anos. Fiz de tudo.
P/1 – Por exemplo?
R – Limpar casas, restaurantes, bares e também, uma coisa que eu adoro: Teatro. Eu sou técnico de som e luzes, faço bem, bem mesmo. Só que as coisas começaram a ficar meio assim, porque os grupos de teatro me pediam a documentação legalizada para que eu pudesse trabalhar, só que eu não tinha. Então, aonde que eu fui? Eu vi um anúncio no jornal: Barcelona. Eu falei “oh, meu Deus do Céu”. Telefonei, era para vender quadros a óleo na rua, porta em porta. Sabe quando você tá... Eu falei “vou ter que ir porque aqui não tá dando” e peguei o ônibus, lá vai o Vavá viajar mais uma vez. Barcelona.
P/1 – E, aí, você trabalhou vendendo quadros? E como eram os quadros?
R – Sim. A óleo. Eram falsificados porque vinham da China, sabe? Essas picaretagens que tem em qualquer coisa, é pirataria pura mas entre aspas.
P/1 – E as pessoas compravam?
R – Ô! De montão. O espanhol, na casa deles não falta um quadro. Não falta.
P/1 – E quando você resolveu voltar pro Brasil?
R – Foi quando bateu a saudade, entre aspas.
P/1 – E há quanto tempo você já tava lá?
R – Em Barcelona?
P/1 – Não, tudo, essa viagem imensa.
R – Essa viagem imensa: Vinte anos. Me casei com uma espanhola.
P/1 – Lá?
R – Lá, de Madrid mesmo e depois disso, casei com ela e ela prestou um concurso para ir pro Marrocos, trabalhar na embaixada espanhola em Marrocos e eu, como era o marido dela, fui.
P/1 – E morou em Marrocos?
R – Cinco anos e pouco.
P/1 – Como era Marrocos nessa época?
R – Olha, gostei. Gostei mesmo porque uma que era outra coisa nova, idioma novo, cultura, meu Deus, é completamente diferente.
P/1 – E a cidade?
R – Bonita.
P/1 – Como era a sua vida lá?
R – Olha, como ela trabalhava eu era o que controlava empregada, jardineiro, chofer, não fazia nada porque ela ganhava tão bem que ela disse: “Olha, aqui é um país pobre, emprego, se tem, você vai ganhar pouca coisa. Então, você só cuida da casa”. Olha só que bonito.
P/1 – E você gostou dessa vida?
R – Olha, é que não tinha outra alternativa. Ou ela ficava sozinha e eu voltava para a Espanha, mas como ela disse: “Você é meu marido, aonde eu for você vai” e, aí, foi. Gostei, sim, não vou dizer que não e não era por dinheiro só que eu tinha que cuidar de tudo que acontecia com as contas, como banco, sabe, eu tinha que... Não era só “ah, que vida boa”. Foi boa, mas eu também tinha responsabilidades.
P/1 – E do Marrocos para onde você foi?
R – Aí, começou tudo, as brigas, sabe, mutuamente mesmo. Dissemos “já é hora” e quando dois começam com gritos, gritos mesmo, essas coisas assim, é melhor se separar.
P/1 – E, aí, você voltou pro Brasil?
R – Não. Eu fui para Barcelona e lá eu fiquei, eu fui vender quadros na rua...
(pausa)
P/1 – Vamos voltar aqui. Eu queria, então, agora continuando, como foi a sua volta ao Brasil e quando que foi?
R – Voltei em 2005. A volta foi com expectativa, sabe? Pensando. Eu tenho aqui uma irmã, então, ansioso, pensando que seria um mar de rosas, que o meu país estaria numa situação, vamos dizer “boa”, esperava algo que não era o meu país de 1985. Claro que não, foram vinte anos, sabe? Quando eu cheguei, eu vi que errei. Porque eu voltei pensando na minha irmã e pensei que bateu aqui (batendo no peito), é hora de voltar.
P/1 – Você nunca tinha vindo aqui nesse período?
R – Sim, vim em 1989, porque faleceu o meu pai. Aí, como era pai, a minha esposa disse: “Morreu o seu pai então você tem que ir lá para ver” “É”. Eu vim, fiquei quarenta e cinco dias e depois voltei pro Marrocos.
P/1 – Então, vamos voltar, quando você voltou pro Brasil de vez você tinha uma expectativa?
R – É, me decepcionei comigo mesmo.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu penso muito e eu vinha, sabe, pensando que ia ser assim, você monta um castelo no mar e daqui a pouco esse castelo vai para baixo. E agora não tem mais volta, e como que você faz?
P/1 – Você chegou e com quem você foi morar?
R – Com a minha irmã.
P/1 – E, aí, foi trabalhar?
R – Fui, eu com quinze dias já tinha trabalho. Só que a minha irmã, ela tem hoje 62 anos e ela foi a minha segunda mãe. Eu cresci, mas ela pensava que eu ainda era a criancinha, sabe? “Você não faz isso”, tal isso, tal aquilo. E eu não, sempre tive total liberdade com a minha vida e ela... Até que, um dia, ela disse: “Olha, nós vamos mudar de casa, só que nós vamos te pagar uma pensão” “Bom”. E, aí, começou a minha outra parte, mais decepcionado ainda, porque tive que morar em pensão, trabalhava em obra, sabe? Até que a empresa, entre aspas, faliu. Aí, trabalhando em obra e morando na obra, só que esse chefe meu não pagava e não pagava e começou, em vez de dever cem já era dois mil e não se pode trabalhar sem receber. E aí, eu fui morar em albergue, que é uma coisa que nunca tinha visto.
P/1 – Como foi chegar no albergue?
R – Estranho, bastante estranho. Gente que grita, gente que fala palavrão para cá, gente porca mesmo, sabe. Lá fora tem albergue, você paga o mínimo mas só é o café da manhã e você tem que sair. Aqui é gente com saúde e não quer trabalhar porque é grátis, tem lugares em que eles comem, lugares em que pegam roupa e para mim, esse mundo, eu comecei a cair. Eu já tinha depressão, começou a aumentar bastante. Aí, me encheu o cabelo que eu não tenho e eu fui morar na rua. Fiquei um ano e oito meses morando na rua, foi onde eu fiquei doente, tanto das pernas, como eu tive duas pneumonias e duas tuberculoses. Graças a Deus, sarei. Porque na rua tem todo tipo de gente, tem gente que sabe ler, tem gente que não sabe ler, tem gente que tem filhos mas não quer nem ver e os filhos também não querem ver, tem gente que tem cabeça, mas se acostumou com a rua. Quem se acostuma com a rua pode dizer tchau, mesmo, porque vai ser até morrer. Se come mal, higiene é mínima, bebia, vamos dizer, é praticamente vinte e quatro horas, os caras vão lá “aqui tem isso, bebe”, chovendo e um frio, roubam comida, água.
P/1 – Mas você foi para a rua porque você achou que era melhor do que ficar no albergue?
R – Não, mas sabe quando você tá perdido, tá perdido? Caí mais uma vez e conheci gente boa, mas noventa por cento é gente que não vale o que come. E todos reclamam que o Brasil é, que os políticos... Gente, lá fora, se você ver gente que mora na rua são poucos, são poucos, sabe, eu não vi muitos assim. Malocas? Olha, é nulo. “Não, é que os políticos…”. Gente, vocês que votam neles, vocês que colocaram eles lá. Eu pensei “de pensar morreu um bobo”, mas é mesmo. Até que, sabe, eu tava já, começou a ficar cansativo, as mesmas coisas, as mesmas coisas. Eu falei: “O quê, vou ter que voltar para um albergue, querendo ou não”.
P/1 – É onde você vive hoje?
R – É.
P/1 – Onde você vive hoje?
R – Na Rua São Domingos, se chama “Lígia Jardim”.
P/1 – E o quê que você faz hoje?
R – Palestras com o poder.
P/1 – E você fala o que nas palestras?
R – Eu tenho dois temas que eu vi na própria pele: racismo e música negra, jazz, blues, sabe? Eu nem leio nada, isso sai automaticamente, porque racismo, aqui e lá fora, no mundo inteiro existe e tem muitos que dizem “eu não sou racista”, mas tem vários tipos de racismo. E outra, eu pego latinha para ganhar um pouco, vamos dizer cinco, dez reais, para mim ir indo, e a minha irmã também me deixa algo, sabe? Mas eu também não quero me acostumar com ela dizendo: “toma aqui cem” ou “x”, porque ela já tem a vida dela, meu cunhado é boa gente, cuida dela maravilha. Então, ela tem a vida dela e eu também tenho que ter a minha, mesmo nessa situação. Mas eu tenho algo bom, que eu acordo e falo “obrigado por mais um dia”, porque poderia ser pior.
P/1 – Você tem um sonho?
R – Olha, o meu sonho é não mudar, ser como eu sou.
P/1 – E o quê que você achou de contar essa história?
R – Experiência e novidade, porque eu gosto de coisas novas, sabe, como essa minha biografia. Para mim, a Odete disse: “Eu tenho uma ideia. Vavá, você quer? Vamos fazer isso”. É novo? Eu topo. Coisas novas que me atraem e me fazem ainda pensar que não é tão mal assim, poderia ser pior. Doença? Tenho, mas eu ainda tô respirando. Eu ando com dificuldade? Sim, mas eu ainda tenho muito para ver. Eu gosto de coisas novas, por isso que quando eu saí nunca tinha pensado em ver o Big Ben ao vivo, eu vi. Quantos vão ver o Big Ben ali? Pouca gente. Sofri? Claro, sofro hoje, mas para mim é suave. Porque gente como a Odete, vocês mesmos, a minha irmã, onde eu moro, eles vêem algo positivo. Eu bebo? Sim, mas controladamente. Droga? Não. Cigarro? Fumo, mas coisas que para mim, comparado com outros, não é que eu sou mais que outros, não, só que tem outros que não pensam, que não querem pensar, não querem. Eles podem, mas são parasitas, eles falam muito e só falar, só falar e isso não é tudo. Eu faço pouco, pouco mesmo, latinha, palestra, coisas poucas, mas para mim não, é algo construtivo ainda. Idiomas eu falo quatro, tem gente que nem o português sabe. Mas eu fico quieto, eu não quero mais que ninguém, só que quando me colocam em prova, aí, sim, eu mostro o outro lado da moeda. Por isso que não sonho não, porque sonho é quando você dorme porque a realidade… Quando eu saio de onde eu moro, me benzo e falo: “Obrigado por mais um dia”, por começar mais um dia e saio e vou. Para mim tá bom demais porque eu não sei se amanhã eu vou acordar, essa é a pior parte do filme, se você soubesse, o mundo seria maravilhoso.
P/1 – Entendi. Muito obrigada pela entrevista.
R – Obrigado vocês.
(A entrevistadora se despede e outras pessoas pedem para que o entrevistado continue a entrevista)
P/2 – Então, Vavá, você saiu da pensão e foi pro albergue? Como foi isso?
R – Não, eu fui... É porque o meu chefe não me pagava, sabe, então você não tem dinheiro, albergue é grátis, comida você come, tal, dorme, tem um banho quente. Eu nunca tinha entrado num e quando eu entrei fiquei assustado. Era novo, porque fora eu viajei e tinha as minhas coisas, eu corria atrás delas. Aqui eu estava, sabe, eu não sabia o que fazer porque se eu ficasse na barra da saia da minha irmã seria pior porque você não tem...
P/3 – E você, Vavá, prefere viajar ou estar num lugar só depois de tantas andanças?
R – Eu gostaria de ir para Jamaica, Austrália, Bahamas, viajar mesmo, eu gostaria, eu adoro. Adoro viajar porque você conhece costumes, ideias, gente, idiomas, sabe? É sair de uma casca de ovo, o pintinho tá lá dentro mas quando ele sai, ele sai curioso. Conhece a mãe, depois ele vê uma minhoquinha, ele brinca, sabe? É isso. Um pássaro quando ele aprende a voar, ele se sente livre. É isso que eu gosto: de me sentir livre. Dependo hoje da bengala, da bile? Sim. Dependo do albergue, mas quando eu posso eu dependo do que eu tenho aqui e uso mesmo. Onde que eu moro tem muitos que falam: “Você fala muito”. Falo não, lá fora se você não se comunica você se trumbica e você tem mesmo que se expandir, porque se você fica só no seu mundo não vai conhecer e, então, não vai adiantar nada você viajar. Se você viaja é para você aprender.
P/3 – Valem a pena os perrengues?
R – Mas tem que ter! Porque senão a vida seria uma maravilha, mas não é. Já pensou se todo o mundo tivesse os mesmos gostos, falasse o mesmo idioma, a mesma cor? Não ia ter graça. Por isso que eu digo muito, tudo o que sobe desce e sobe outra vez, é isso que eu tenho. Medo? Não, eu já com cinquenta anos eu tenho medo de eu cair, porque eu também tenho convulsão e eu caio às vezes e, às vezes, não passa ninguém para me ajudar a levantar, porque pensam que eu estou alcoolizado. E não! Sabe, isso sim, é o meu medo. Mas da morte, sair, andar, não tenho medo. De conhecer gente nova? Medo? Eu tenho que ficar contente em conhecer, eu gosto mesmo de conhecer coisas novas. Por isso que quando começam a ser repetitivos alguns que eu conheço, eu falo “diga alguma coisa que eu não saiba”.
P/2 – E, Vavá, você se sente brasileiro ou você se sente do mundo?
R – Do mundo, porque quando você viaja muito, nômade, eu sou um nômade. Agora não, mas nômade mesmo eu sou, sabe, porque ele anda, ele sai daqui, vai para lá, ele viaja e não se cansa (...)
FINAL DA ENTREVISTARecolher