P/1 - Anita, primeiro a gente queria agradecer você por nos dar a entrevista, por ter vindo aqui.
R – Nada.
P/1 – Para começar, para identificação da sua entrevista, eu queria que você falasse o seu nome completo, a data e o lugar do seu nascimento.
R – Eu sou Maria Anita Davies Costa. Moro no Retiro da Ex-Colônia Velha, comunidade de remanescentes de quilombos. Sou do um do um de 75.
P/1 – Um do um de 75, está bom. Anita, antes da gente começar falando sobre a sua história mesmo, eu queria que você falasse um pouco da sua família, assim, você conhece a história da sua família? Dos seus avós... Você conhece a história deles, chegou a conhecer seus avós...?
R – Eu conheci os meus avós, meus pais eu não conheci. Meus pais já faz 36 anos que faleceram, então eu fui criada por meu avô, que vai fazer um mês que faleceu. Eu fui criada por ele então, ele é o pai que eu tenho. E ele contava muita história, que uma vó dele morava aqui em Cananéia, daí – eu não sei contar direito, mas tinha alguma coisa, o avô dele era escravo e não sei por que ele fugiu daqui, ele fugiu de canoa por dentro da água e foi parar lá nas colônias. Daí lá ele formou um barraquinho na cabaceira do rio e formou a família dele lá. Depois disto ele comprou um sítio mais para cima, onde a gente se criou. Ele viveu lá a vida toda. E a gente viveu lá durante muito tempo, faz uns 15 anos que mudamos por causa das dificuldades, mas a gente cresceu lá trabalhando na roça. Por isso que eu não tenho muito estudo, eu morava num sítio muito distante, por causa da dificuldade não fui muito para a escola, frequentei da primeira até a quinta série, depois não fui mais. Por causa da dificuldade, e não por falta de vontade. Daí lá no sítio se plantava arroz, feijão, criava porco, galinha... Vivia da roça de subsistência mesmo! Às vezes ele me fazia trabalhar fora, mas era só para complementar, porque a maior parte da alimentação saía do...
Continuar leituraP/1 - Anita, primeiro a gente queria agradecer você por nos dar a entrevista, por ter vindo aqui.
R – Nada.
P/1 – Para começar, para identificação da sua entrevista, eu queria que você falasse o seu nome completo, a data e o lugar do seu nascimento.
R – Eu sou Maria Anita Davies Costa. Moro no Retiro da Ex-Colônia Velha, comunidade de remanescentes de quilombos. Sou do um do um de 75.
P/1 – Um do um de 75, está bom. Anita, antes da gente começar falando sobre a sua história mesmo, eu queria que você falasse um pouco da sua família, assim, você conhece a história da sua família? Dos seus avós... Você conhece a história deles, chegou a conhecer seus avós...?
R – Eu conheci os meus avós, meus pais eu não conheci. Meus pais já faz 36 anos que faleceram, então eu fui criada por meu avô, que vai fazer um mês que faleceu. Eu fui criada por ele então, ele é o pai que eu tenho. E ele contava muita história, que uma vó dele morava aqui em Cananéia, daí – eu não sei contar direito, mas tinha alguma coisa, o avô dele era escravo e não sei por que ele fugiu daqui, ele fugiu de canoa por dentro da água e foi parar lá nas colônias. Daí lá ele formou um barraquinho na cabaceira do rio e formou a família dele lá. Depois disto ele comprou um sítio mais para cima, onde a gente se criou. Ele viveu lá a vida toda. E a gente viveu lá durante muito tempo, faz uns 15 anos que mudamos por causa das dificuldades, mas a gente cresceu lá trabalhando na roça. Por isso que eu não tenho muito estudo, eu morava num sítio muito distante, por causa da dificuldade não fui muito para a escola, frequentei da primeira até a quinta série, depois não fui mais. Por causa da dificuldade, e não por falta de vontade. Daí lá no sítio se plantava arroz, feijão, criava porco, galinha... Vivia da roça de subsistência mesmo! Às vezes ele me fazia trabalhar fora, mas era só para complementar, porque a maior parte da alimentação saía do próprio sítio onde a gente convivia.
P/1 – Eu vou perguntar sobre tudo isso (risos). Então, ficando nessa... Você contou essa história: o avô é o pai do seu avô...? E já tinha gente no lugar?
R –... Eu não sei, se quando ele contava já morava alguém. Eu sei que ele fugiu, se escondeu lá e formou a família, foi subindo para a parte de cima. Subiu mais um pouquinho e parou onde meu avô morava – que eu chamo meu pai, mas é onde meu avô morava. Porque a gente morou lá, a gente conviveu lá.
P/1 – Você disse que ele contava muitas histórias... Por exemplo, o que é que você lembra desde criança...?
R – Contava (…). Ah, ele contava que o pai dele era um homem muito honesto, muito trabalhador e sincero, que sempre ensinou a levar as coisas assim com honestidade, tudo que for fazer faça com muita honestidade, não fazer nada de qualquer jeito! Meu pai nunca gostou de fazer as coisas de qualquer jeito. Uma coisa ele ensinou para os filhos dele, para mim, para todos nós: “Façam as coisas sérias, não vão levar as coisas nada na brincadeira! Porque ó: se eu vou fazer o serviço na roça, faça direitinho, para não ter que ir lá e corrigir de novo!”. Aí ele contava que o trabalho era pesado! Só que tinha muita fartura nesse tempo. Tinha um lado que era o da pobreza, de falta de alguma coisa, por exemplo: roupa, calçado, mas a alimentação era muito rica! A pessoa não ficava comendo essas coisas de mercado cheia de agrotóxico, era tudo natural, tudo sem nenhum tipo de contaminação!
P/1 – E sua avó, conta um pouquinho para gente assim, como que é?
R – Ah, minha avó também... Ela está com 88 anos, vivia lá também, trabalhava na roça, toda a vida foi muito companheira, nós íamos para roça, ajudávamos a carpir, a colher e a plantar... Não tinha muito de ficar naquela... A gente morava em sítio, não tinha luz, não tinha água encanada, então... E eu às vezes ficava em casa, eu tinha que buscar lenha, lavar roupa no rio, buscar água, fazer comida... Para que quando ela chegasse já estivesse tudo pronto...
P/1 – Essa era a dinâmica da casa...?
R – Era.
P/1 – E tem irmãos também...?
R – Tem, tem meus tios...
P/1 – Como é que era essa casa, descreve para mim...?
R – A casa era uma casa de pau a pique e terra, chão batido. Aí dividia os cômodos. Não havia fogão a gás. Era fogão à lenha. E não tinha luz elétrica. Mas a vida era muito boa, todo mundo vivia muito feliz!
P/1 – Quantas pessoas na casa moravam?
R – Meu avô, minha avó, meus dois tios e eu. Cinco pessoas.
P/1 – Todo mundo ia trabalhar, você era a menor...?
R – É, às vezes eu ficava, às vezes eu ia... Mas às vezes eu ia também...
P/1 – Entendi. Conta um pouquinho, como que é... Você chamou de Ex-Colônia, por quê?
R – Ex-Colônia, segundo o que ele falou era uma colônia de ingleses. Daí eu não sei se eles chegaram primeiro, ou se os negros chegaram primeiro ou se chegaram depois. Porque eles falam muito: “Ah, aquele lugar, aquela estrada ali foi feita no tempo da escravatura”. Aí perguntava: “Por que na escravatura?”. “Ah, foi feita a braço”... “Ah, não sei quem colocava as pessoas para fazer e ficava sentado lá: vai logo, anda logo, não tem nada que ficar fazendo corpo mole para trabalhar! Tem que: 'Faça sol, faça chuva, tinha que trabalhar sem parar mesmo'”. Então ele ainda pegou um pouquinho desse tempo dos escravos. As pessoas eram muito rígidas no serviço!
P/1 – Mas esse terreno em que fica a comunidade, assim, era uma grande fazenda de alguém...?
R – É, a região era toda com pequenos sítios de sitiantes. E o fazendeiro foi comprando pedaço por pedaço, por causa da dificuldade alguns que abandonaram as casas, e muita coisa ficou para a fazenda...
P/1 –... Quando você fala da dificuldade você fala do que, o que é essa dificuldade?
R – Difícil acesso, difícil a comunicação, estrada ruim... Muito... Hoje a gente mora numa vizinhança perto, antes a gente morava longe um do outro. Dois, três quilômetros pra chegar de uma casa para a outra. Então, tudo era difícil.
P/1 – Entendi. Esse sítio que você falou da sua infância, como que era? Conta para gente como era a dinâmica com as pessoas e o dia-a-dia de vocês?
R – O dia-a-dia era mais com a família mesmo, porque dava mais ou menos uns quatro, cinco quilômetros de caminho, daquelas trilhas para você chegar... Por exemplo: eu saía seis horas pra chegar oito e meia na escola, só pela trilha.
Interrupção
R – Não, eu já cresci lá.
P/1 –... Então, já cresceu lá, que seu avô foi...
R – É já foi e todo mundo criou-se lá...
P/1 – A família dele que subiu primeiro lá, né? O pai do seu avô que subiu para aquela região, e a origem dela você não sabe? Esses pequenos sitiantes...?
R – Não. Aí já formou-se lá. A origem do pai dele, do meu bisavô, aí eu não sei, isso eu não sei explicar como era.
P/1 – E quando ele chegou lá você não sabe se tinha outras pessoas...?
R – Não. Isso eu não sei como que era.
P/1 – Quando você nasceu, na sua infância, já tinham quantas famílias...?
R – Ah, tinha os meus tios que foram casando e foram ficando ali mesmo. Porque os meus tios, por incrível que pareça, eram todos casados com primos! Não era aquela família bem distante! Que a minha mãe era casada com primo. Meus outros tios que tem, eram casados todos com primos! Que já moravam todos mais próximos por ali também. Eram todos próximos e foi crescendo a família e a origem do sobrenome é o mesmo. Por exemplo: eu tenho Costa, os deles não, já pegava o mesmo sobrenome... Mudava pouca coisa.
P/1 – E o Davies?
R – Davies era do meu pai. O Davies era do meu pai, mas o meu avô... A minha avó é irmã do meu avô. A minha avó era irmã do meu avô. Que eram cunhados também.
P/1 – Era tudo na família, né?
R – Era tudo uma família! Não mudava muito.
P/1 – E pegando a sua infância: como que era? Mudou muito do que é hoje? Conta um pouco como era na sua infância o lugar?
R – Ah, mudou um pouco. A gente morava num lugar bem distante! Era difícil sair de lá, não saíamos muito de casa. Havia aquela rotina de ficar ali mesmo, porque se viesse do sítio para Cananéia teria de vir a pé! E são 24 quilômetros, tinha de sair cedo e voltar tarde! Então a gente vivia mais em casa, saía muito pouco... Quando saíamos era no dia de domingo quando íamos à igreja, mas sem demora. Antes meu pai era católico, neste tempo eu devia ter uns quatro anos, não lembro muito, mas aí eles iam em baile, saíam mais... Depois quando eu era maior já não lembro mais. Ele se tornou evangélico, daí ficava mais em casa: de casa para roça, de roça para casa... Não era que nem hoje: as crianças saem... Nós não saíamos de casa assim: “Ah, vai ficar com o tio lá uma semana” - não ia! Éramos aquelas crianças caseiras, que não saíam.
P/1 –... E hoje os seus filhos saem, é isso?
R – Os meus filhos saem, desde pequenininhos, ficam semanas com os tios, não ligo! E eu não saía.
P/1 – (risos) Mudou, né?
R – Mudou muito! Saí de casa já tinha 16 anos...
(telefone toca)
P/1 – É melhor pausar, né? Tá tocando o telefone.
Interrupção
P/1 –… Quilombo... Ex-Colônia e quilombo... Eu não entendo isso...
R –... Ex-Colônia... Não, a gente descobriu que era um quilombo hoje, agora, há quatro anos.
P/1 –… Vocês descobriram que era um quilombo?!
R – É. Antes a gente não sabia que era remanescente de quilombo. A gente não tinha essa consciência... “Ai, é negro porque é negro. É a cor da pessoa, a origem da pessoa”.
P/1 – Então, mas vocês sempre viveram lá, né? Avô, bisavô...
R – Sempre viveu lá. Sempre viveu lá, mas nunca teve esse conhecimento, nunca ninguém foi lá e falou: “Ah, vocês tem origem, vocês são...”.
P/1 – Vocês se viam como – essa é uma boa pergunta! Vocês se viam como cananeenses, como pessoal de Cananéia...
R – Ah, sei lá, a gente se via como pessoas da região, normais... Não tinha esse conhecimento. Aí em um certo tempo foi uma pessoa lá, quis nos falar sobre este conhecimento, mas ninguém deu valor...
P/1 –... Quem foi para lá?
R – Foi a turma do MOAB (Movimento de Atingidos por Barragem), do EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras).
P/1 – MOAB? Do Movimento de Atingidos por Barragem, né?
R – É. Tentaram fazer uma reunião, as pessoas foram, mas não entenderam nada! Ninguém entendeu nada. E ficou por isso mesmo! Vai lá, conversa, ah... A coisa era...
P/1 –... Você lembra desse dia?
R – Lembro...
P/1 –... Como é que foi, quem que chegou, como é que foi esse dia...?
R –... Chegou o Carlos Caetano, Carlos do Eldorado e foi falar que os negros... Como é que viviam, o que faziam... Aí cada um contou sua história... Como é que dividia o sítio, pra mostrar a divisão... E ia lá, cortava um pau, plantava uma madeira de lei lá: “Aqui é minha divisa, ali é divisa do meu compadre, ali é divisa do outro compadre...” E ninguém deu valor, ninguém se interessou. E o tempo foi passando, né?! Teve alguém que chegou e mostrou, mas ninguém interessou!
P/1 – Eu queria entender como é que foi essa dinâmica... Vocês estavam lá, normal, e de repente bateram na porta...? Como é que foi essa chegada, teve uma reunião, como foi...?
R – Teve a chegada, o Carlos Caetano é uma pessoa conhecida, todo mundo recebeu, conversou, numa boa. Mas ninguém interessou!
P/1 – Mas ele queria... Vocês discutiram o que...?
R – Ele queria que as pessoas entendessem que eram remanescentes de quilombo e que tinham direito à terra de volta. Para se reconhecer como remanescentes. Porque as pessoas não aceitavam. “Ah, eu sou preta, mas não sou negra. Eu sou preta, mas não aceito que me chamem de negro, você está me discriminando”. Então foi muito difícil no começo esse tipo aceitar... Daí o tempo foi passando e uma pessoa chegou e conversou comigo... Conversou comigo! Há quatro, cinco anos atrás, a pessoa me falou: “Ah, vocês podiam correr atrás, vocês são remanescentes, estão em cima da terra de quilombo que foi tomada!”. A pessoa chegou, a vizinha do lado chegou e foi conversar comigo. Daí eu peguei, convidei duas primas, um tio e viemos aqui falar com o padre. “Ah, fala com o padre João, que era o padre da época, que ele vai dar uma força para vocês”. Daí eu vim, sabe?! Veio eu, outras pessoas: “Vamos lá ver com o padre”. Daí a gente veio, falou com ele... (...)
INTERRUPÇÃO
P/1 – Desculpa, Anita, de novo interrompemos, vamos voltar... Você conseguiria me descrever esse dia da reunião, da primeira vez que chegou alguém para conversar com vocês...? Você conseguiria... Tá na sua memória...? Vocês estavam em casa, como é que foi...?
R –... Eles chegaram (…) Estava em casa e eles vieram: “Ah, viemos aqui para falar isso”. Aí fomos a minha casa, foram na vizinhança, falaram... E marcaram uma reunião. Nos reunimos, foram algumas pessoas até, e aí a gente contou a nossa história...
P/1 –... Na própria comunidade...?
R – Na própria comunidade...
P/1 – Vocês foram se reunir onde...?
R – A gente se reuniu na igreja (…). Aí cada um contou sua história...
P/1 – Fizeram uma rodada?
R – Fizeram uma rodada, todo mundo se apresentou, todo mundo contou... Só que contou e ficou naquilo, as pessoas acharam que iam marcar outra reunião, mas ninguém voltou, ninguém se interessou...
P/1 – Ninguém da comunidade?
R – Era da cabeça do povo: “Ah, isso é modo de ganhar dinheiro. Isso aí é querer ganhar dinheiro nas nossas costas, né?”. Porque comunidade pequena, o povo todo desentendido, sabe? (…) E não entendem as coisas. Disso passou um bom tempo! Há uns quatro, cinco anos, a pessoa chegou e falou: “Por que você não vai falar com o padre João? Ele pode dar uma força para vocês, pode retomar as terras de vocês. É uma coisa boa! Se vocês se reconhecerem como quilombo”. Aí eu vim. Eu tomei atitude, convidei as pessoas: “Vamos lá?!”. “Então vamos, né?”. E já conheci o Mandira. “Vamos lá!”. Aí viemos aqui e conversamos com ele, que marcou uma reunião lá na minha casa...
P/1 – O padre?
R – O padre. Marcou uma reunião lá em casa. Daí eu convidei as pessoas, e nos reunimos, foram, tiraram fotos... Explicou, perguntou o que é que era um quilombo... Ninguém sabia explicar o que era! Ninguém conhecia o que é que era um quilombo! Eu sabia porque eu já participava dessas reuniões de EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras), então eu já escutava muito falar o que era um quilombo... Dos mais velhos ninguém sabia! Daí falou: “Não, é isso mesmo! Como você sabe?”. Eu falei: “Ah, eu participo de várias reuniões, já faz um tempo, de reunião em reunião eu sei de ouvir falar”. Daí marcou uma, marcou duas... Daí eu falei: “Agora não é minha parte, agora vou passar para irmã Ângela, para advogada, ver se marca uma reunião com o povo, com o pessoal daqui, para ela vir e explicar a vocês como são as coisas”. Daí eu marquei uma reunião com a advogada, só que a nossa comunidade estava um pouco dividida, por causa de falta de recurso, de trabalho, as pessoas foram embora para a cidade, abandonaram a cidade e o sítio, foram embora. Então tem muita gente em Jacupiranga, tem em Cajati. Em cada lugar está um pouquinho da comunidade! Está um pedacinho! Aí você viu? Eu consegui localizar todo mundo, marcar com todo mundo! Teve mais ou menos umas 40 pessoas na reunião, e ela veio explicou tudo direitinho, marcou a próxima! Reunimos todo mundo de novo, marcou mais uma! Falei: “Agora nós temos que montar uma associação”. Ela foi a primeira vez, explicou tudo direitinho o que é que era uma associação, na terceira... Foi na primeira e a segunda vez que ela foi para falar o que era uma associação, e marcar uma terceira e quarta reunião para fazer uma chapa de associação. Daí nós falamos: “Não. Nós queremos montar a associação hoje!”. Ela falou: “Mas vocês estão preparados?”. Falei: “Estamos! Nós já estamos preparados para montar uma associação”. Foi muito rápido, nós nos organizamos muito rápido. Quando ela chegou que ia falar o que era uma associação, nós já estávamos com as pessoas formadas para montá-la: quem era presidente, quem era secretário, quem era tesoureiro, nós já estávamos com tudo pronto! Ela falou: “Vocês já vão fazer?”. Falei: “Vamos!”. Daí dividiu os cargos tudo certinho, já estou há quatro na presidência, já estamos atrasados, porque já era para nós termos feito outra reunião para arrumar outro presidente...
P/1 –... Qual o nome da associação?
R – Associação Retiro Ex-Colônia Velha, dos remanescentes de quilombos Retiro Ex-Colônia Velha.
P/1 – (…) Desculpa... Ah, é. (risos). Um detalhe (risos). Poxa, ninguém percebeu, mas tudo bem! (risos) Eu tô tão concentrado em você que nem olhei pra fita! (risos). Bom, você juntou, conseguiu ir atrás dessas pessoas. Mas eu queria entender um pouquinho antes – eu vou voltar nisso. Quando é que despertou mesmo essa ideia, né? Porque você disse que até então ninguém se via como quilombo. Como quilombola, etc. Quando é que falou: “Poxa, eu sou um quilombola?”.
R – Depois que eu falei com o padre que começou a primeira reunião.
P/1 – Você consegue descrever para gente como é que foi essa reunião com o padre...? Quem que é o Padre João?
R – O padre João já faleceu.
P/1 – E quem ele era...?
R – Ah, o padre João eu conheci desde a minha infância! Ele era muito humilde, que ajudava muito, ele tinha muito esse interesse pelo quadro social, de ir na comunidade, de falar... Ele não tinha isso: “Ah, você é evangélico e eu não vou lá”. Ele não tinha esse tipo de coisa. Ele ia lá, conversava, explicava, ajudava... Ele fazia tudo que podia fazer! Então ele deu essa maior força. Ele encaminhou, tudo que nós tínhamos para a advogada, depois ela foi lá falar com a comunidade.
P/1 – Você lembra dessa conversa com ele? O que é que ele falou para vocês?
R – Ah, ele falou que era uma coisa que ele sabia há muito tempo, mas que não tinha como mexer. Que era do interesse nosso, então nós que tínhamos que correr atrás. Mas como nós o estávamos procurando, então ele ia dar uma força.
P/1 – Isso é algo recente?
R – Faz cinco anos, quatro ou cinco anos...
P/1 – E as demais comunidades quilombolas da região, quando é que você teve acesso, quando é que ouviu falar...?
R – Ah, isso eu sempre tive acesso, mas não tinha interesse. Você conhecia, mas não entendia. Aí de repente, de uma conversa ou outra com a pessoa começou... Começou a surgir aquela luz, a brilhar... Aí começamos a correr atrás, a entender realmente o que é que era...
P/1 –... Você lembra quando é que caiu uma ficha, assim? Em que situação que foi?
R – Ah, foi depois que eu conversei com meu vizinho, quando ele passou a contar: que nas comunidades tem isso, tem aquilo, as pessoas ajudam por ser remanescente... Por que é que nós não corríamos atrás, porque nós tínhamos o mesmo direito que os outros tinham...!
P/1 – O que é que é ser quilombola? O que é ser quilombo? Porque vocês antes não tinham noção, aí depois... Como é que você chegou à conclusão que vocês eram um quilombo, por exemplo? Olhando pra sua comunidade...
R –... Ah, olhando pela comunidade, olhando pelas cores, dos antepassados... E daí meu pai contava dos trabalhos que tinha, a convivência... Através da convivência, o porquê que casava primo com primo, porque é que as pessoas não saiam fora para casar, por exemplo, arrumar uma pessoa que não conheciam... Aí as peças foram se encaixando... Que por isso que: “Ah, então...”. Porque fulano casou com primo... “Aí nós trabalhávamos isso, trabalhávamos de mutirão”... Que era uma coisa da cultura dos quilombos! “E por que é que vocês trabalhavam em mutirão?”. Eles não sabiam também. Eles trabalhavam o dia todo no mutirão, de noite eles faziam o baile... E era a cultura dos quilombos, só que eles eram, mas não se reconheciam! Até mesmo depois da associação, vir com todas as explicações, muitos não aceitavam dizer que eram negros. Até hoje ainda tem aquela rejeição! “Ah, eu sou moreno, mas negro eu não sou!”.
P/1 – Na própria comunidade?
R – Na própria comunidade! “Ah, eu sou escurinho, mas negro eu não sou!”. Ninguém queria se aceitar. E hoje já está bem mais claro! Hoje todo mundo se aceita! Mas no começo era...
P/1 –... Eu queria entender mais o que é que são essas atividades que são do quilombo, que vocês já faziam e nem sabiam que era de quilombo...? O que é, por exemplo: você falou do mutirão...?
R – Então... O mutirão era, por exemplo, convidava o compadre, a comadre... Daí matava o porco, a galinha, juntava aquelas pessoas para fazer uma roça. Ia lá, derrubava... Aí essa semana eu já ia lá no outro compadre: “Ah, hoje nós vamos fazer a roça do compadre”. Juntava as mesmas pessoas, fazia a roça, de noite fazia o baile...
P/1 – Você participou disso?
R – Não. Isso era da minha infância.
P/1 – Infância... Nem lembra assim...?
R – Não... Fazia o baile, no outro dia ia para o outro compadre... E assim uma pessoa ia ajudando o outro no trabalho... Dava doze pessoas, quantas pessoas tinham... Ia lá, fazia a roça, se fosse para colher, colhia, se fosse para plantar, plantava, trabalhava o dia inteiro no pesado e de noite estava na maior animação para fazer o baile e para comemorar o dia de serviço! E assim eles iam fazendo até terminar o serviço!
P/1 –... E o pessoal... Como é que era esse baile? Tinha dança bebida...?
R – Era dança, acho que dançava o fandango. O antigo fandango que eles dançavam. De lampião à vela.
P/1 – E que mais? Que outras atividades você olha e fala: “Poxa, isso aqui também é do quilombo”.
R – Ah, tem várias coisas que as pessoas nunca perdem.
P/1 – Por exemplo?
R – Ah, por exemplo, fogão à lenha. Geralmente quem mora no sítio tem fogão à lenha. Por que: “Ah, vou matar uma galinha caipira, mas eu quero é que cozinhe no fogão à lenha, não quero que cozinhe na panela de pressão. Eu quero ela cozida ali!”.
P/1 – O que... Você falou que teve muitas dificuldades e que muitas pessoas foram saindo, né? E outras pessoas foram comprando essas terras...? O que é que aconteceu? Conta pra mim...
R –... Ah, alguns venderam, por um valor menor, por qualquer preço... Não vendia o preço justo: “Ah, meus filhos estão crescendo, aqui está dificultoso, eu não quero que meus filhos sofram como eu, vou para a cidade, porque dão um serviço melhor, dão estudo melhor para os meus filhos”... E assim foram abandonando, ficaram poucas pessoas na comunidade! Porque estudava de primeira a quarta e não estudava mais...
P/1 – E quem comprou essas terras?
R – Ah, fazenda foi comprando, foi grilando um pedaço... Isso é a história que a gente escuta, né? Alguns abandonaram... Aí a fazenda foi tomando, foi ficando para a fazenda também!
P/1 – E hoje, como é que está ali? Diminuiu a população da comunidade, né?
R – Diminuiu bastante! Daí hoje a maior parte dos quilombos, que eram das famílias, está tudo dentro de uma fazenda!
P/1 –... Particular?
R – Particular. Por causa da dificuldade mesmo, da sobrevivência. Falta de emprego... Difícil acesso para sair...
P/1 – E a sua família nisso tudo, como é que ficou...?
R – Ah, continua lá lutando! Continua teimando, teimando... “Ficar aqui porque aqui é meu, se eu for para a cidade vai ficar pior!”.
P/1 – Você tem uns amigos na cidade?
R – Tenho.
P/1 – E como é que essas pessoas estão vivendo hoje, por exemplo?
R – Ah, alguns estão bem. Alguns vendem o almoço para comer na janta e assim vai indo... Porque eles acham que melhorou, mas melhorou alguma coisa, mas outra coisa não melhorou em nada! Porque eles vão para cidade, daí eles vão no sítio, mas eles querem trazer a galinha caipirinha, a verdura, querem trazer tudo... Então... Que nem, eu não gosto de sair do sítio para ir pra cidade... Eu não troco o sítio pela cidade.
P/1 – Você já morou na cidade?
R – Já morei aqui. Morei dois anos aqui.
P/1 – Ah, é? Conta essa experiência, como é que você veio pra cá...?
R – Ah, eu era solteira, eu vim para trabalhar de doméstica. Depois eu retornei para a casa do meu avô e não saí mais, depois casei...
P/1 – Como foi morar na cidade?
R – Ah, naquele tempo foi bom, porque era sozinha, não tinha nada. Eu trabalhava, tinha meu dinheiro... Mas era só para mim! Mas hoje eu não venho para a cidade! Porque no sítio eu não pago água, só paga a luz. Daí eu faço um cálculo, por exemplo: na cidade, se eu quiser a banana, no sítio eu não compro; se eu quiser limão, no sítio eu não compro! A minha despesa é menor, se eu estiver na cidade vou gastar muito mais! E no sítio eu tenho outra qualidade de vida que não teria na cidade. A minha qualidade de vida no sítio é muito boa! Tem muitas coisas que eu tenho: eu tenho a minha horta... Tem muita coisa que eu não preciso comprar, e se eu vier para cidade eu tenho que comprar. Então para minha qualidade de vida, se eu for fazer um cálculo, eu vou ter um gasto muito alto na cidade, que no sítio eu não tenho.
P/1 – Onde vocês moram hoje não é reserva...?
R – Não.
P/1 – E como está essa relação com a preservação do ambiente, tem esse problema ali? Tem essa discussão?
R – No lugar que eu estou não tem essa discussão.
P/1 – Mas teve pressão de ambientalista, teve essas coisas...?
R – Aonde estou não, na minha comunidade não.
P/1 – Tem quantas famílias na comunidade?
R – Dentro do núcleo devem ter umas doze famílias.
P/1 – Doze. E como é que vocês se organizam...? Tem festa, tem mutirão...?
R – Não. Não tem mais nada disso.
P/1 –... O que é que aconteceu?
R – Isso era coisa do passado, hoje os que estão vivos já não trabalham mais. Os que estão dentro da comunidade são todos empregados em fazenda, então não tem, não existe mais! Foi a cultura que se perdeu!
P/1 – E a estrutura da comunidade, assim, você acha que teve uma melhora?
R –... Ah, melhorou bastante!
P/1 – Por exemplo: o que é que você foi vendo que foi acontecendo... O que é que você vivenciou que você falou: “Poxa, olha como era...”...
R – Ah, eu morava numa casa de pau a pique, sem luz elétrica, hoje a gente mora numa casa de alvenaria com luz elétrica... Tem todo conforto que tem numa casa da cidade...
P/1 – E você lembra como é que foi...? Quando que chegou a luz, por exemplo?
R – Ah, eu faz uns 16 anos que eu moro num lugar que tem luz! Meu pai trocou um pedaço do sítio lá com um pedaço mais para baixo. Porque... Por causa das dificuldades mesmo. Aí foi: “O que não tínhamos lá agora vamos comprar, vamos melhorar a qualidade de vida!”. O lugar ainda é de difícil acesso, mas hoje você tem telefone para comunicação. Antes não tinha.
P/1 – Mas você lembra quando chegou assim? Como foi isso, você lembra?
R – Ah, telefone tem uns quatro anos que a gente conseguiu colocar lá. Não é um telefone fixo, mas é um celular com antena, então todo mundo se comunica a hora que quer, aonde quer.
P/1 – Como é que o Estado, a prefeitura, trabalha com vocês, ou eles não aparecem, como é que funciona?
R – Ah, nunca aparecem! Infelizmente não! Não é uma coisa que a gente pode dizer: “A gente tem apoio daquilo, apoio...”. É bem precário!
P/1 – Como é que é? (…) Acho que vai trocar a fita, tá bom? A prefeitura não aparece então? Quando aparece é para fazer cobrança, é?
R – Para pedir voto.
P/1 – Para pedir voto? (riso). Ai, não é fácil, né?
P/2 – Vocês tem algum imposto?
R – Não, agora não.
P/1 – Vocês não tem imposto?
R – Não, porque antes... Antigamente vinha o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para pagar, e de um tempo para cá não veio mais.
P/1 – O INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) que era o responsável pela região?
R – Não, vinha um documento que a gente pagava que era o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
P/1 – Olha só... Que é das terras, né?
R – É, é um documento das terras.
P/1 – Olha! Vamos lá trocar?
Interrupção
P/1 –... Ah, quero que você me conte muita coisa ainda! (risos) Bom, vamos lá, então vocês estavam num lugar mais para o alto, que eu imagino... Aí vendeu ali...
R – Não, trocou, uma parte, não tudo.
P/1 – Ah, não tudo? E desceram mais... Porque lá tinha mais infraestrutura, pelo jeito...
R –... Porque o lugar que a gente ia era só por trilha, e o lugar que a gente mora agora chega o carro na porta e lá não chegava...
P/1 –... Tem estrada? Entendi.
R – Tem estrada.
P/1 –... E é aquela estrada antiga que você falou?
R – É, porque você fazia uma compra e tinha que carregar nas costas. Subir no morro... Então era bem dificultoso!
P/1 – Por que o pessoal do Movimento de Atingidos por Barragem chegaram em vocês? Por que essa turma e não outro grupo?
R – Ah, acho que porque são eles que mexem com esse negócio de quilombo mesmo...
P/1 –... Entendi. A questão da barragem chegou pra vocês?
R – Não.
P/1 –... Não teve nada...?
R – Não. Que daí chegou não a turma dos atingidos por barragem, mas sim a turma do EAACONE (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras).
P/1 – EAACONE, é?
R – Aí eu não sei falar como ele fala...
P/1 – Mas EAACONE que trabalha com quilombos?
R – Com quilombos, diretamente.
P/1 – Você comentou essa passagem de ter ido procurar um por um fora da comunidade, né, a fazer essa reunião, você podia descrever pra gente como é que foi...?
R –... Não, era tudo parente, eu falei com um parente aqui, ele foi convidando o outro, um foi convidando o outro, eles conseguiram um ônibus e vieram para a comunidade. E permanecem até hoje. Tem um ônibus e pessoas de Jacupiranga que são da comunidade. E que é da nossa associação, lá das Colônias Velhas e que participam com a gente.
P/1 – Em que pé que tá essa disputa?
R – Ah, hoje ela já está bem avançada, porque hoje a gente conseguiu ajuda da Petrobrás, estamos construindo uma sede própria... A Fundação Cultural Palmares doou oito máquinas industriais para a comunidade, para as mulheres trabalharem...
P/1 – Lá na Ex-Colônia…?
R –... Lá na ex-Colônia. E isso foi no primeiro momento! No primeiro ano de associação e a gente já ganhou essas máquinas. E elas estão um pouco paradas porque não temos uma sede própria...! Então leva para lá, leva para cá... Então não estamos trabalhando dentro do projeto, fizemos algumas peças, tivemos dificuldade para vender, mas nós continuamos tentando... Estamos parados, hoje tentando ver se construímos essa sede o mais rápido possível, porque está um pouco lento, para levar as máquinas para lá num lugar nosso, onde possamos deixar todos os materiais e as máquinas. Porque as máquinas estão num local, o material está na minha casa, aí eu vou para lá e esqueço: “Ah, hoje eu levei a linha, esqueci a tesoura, ah, tem que ir lá buscar!”. E é um tempo que a gente perde! E temos dificuldades com a falta de professoras para ensinar, a gente fez uma parceria com a prefeitura, dentro do projeto e foi um pouco precário! Aprendemos umas coisas assim, mas foi bem precário.
P/1 – Essas máquinas são do que?
R – Industriais de corte e costura.
P/1 –... Então vocês conseguiram com a ajuda da Fundação Palmares e com a prefeitura as máquinas e daí tem uma formação para isso...?
R –... É, a prefeitura deu o apoio com a capacitadora.
P/1 – Entendi. E essas máquinas estão aonde hoje?
R – Na igreja da comunidade.
P/1 – Entendi. E qual era a proposta de vocês... Era fazer...?
R – Ah, era fazer alguma coisa para ter uma renda própria para comunidade, para as mulheres da comunidade, porque hoje em dia elas não têm um salário! E todas têm os filhos e querem ajudar o marido, mas não tem muita coisa para se fazer! Daí vai para o bananal carpir: mil pés de banana por 60 reais, é muita coisa! Se mata o mês inteiro para tirar 100 reais! Daí pensamos numa geração de renda para as mulheres, dentro da comunidade e que não fosse um negócio tão...
P/1 –... Me conta como é essa organização, a comunidade tem algo coletivo, ela faz alguma plantação coletiva, como é que é...?
R – Tem, ela faz o corte e costura coletivo...
P/1 – Mas isso as mulheres?
R – As mulheres! A gente produziu algumas peças para vender. Então a peça é do grupo, cada um fez um pouco, mas não é meu, é do grupo! Assim que a pessoa conseguir vender, você reparte 20% para associação, 20% para o fundo e o resto divide o lucro entre as mulheres, o grupo de mulheres.
P/1 – E o restante da comunidade, os homens...? Eles trabalham como agricultores...?
R – Não, eles trabalham em fazendas. Hoje eles trabalham em fazendas.
P/1 – Vocês tem uma produção própria?
R – A gente mora num lugar próprio.
P/1 – Vocês... E tem uma produção de vocês, sua?
R – Muito pouca coisa, mas a gente tem. Tem horta, assim... Mas nem todo mundo da comunidade tem. Nem todos os associados têm. Mas a gente tem.
P/1 – Então a maioria é de homens trabalhando... As mulheres ficam mais em casa e estão se organizando...?
R – É. A gente tem uma horta comunitária com a minha vizinha, que no tempo em que tinha feirinha a gente vendia e dividia o lucro...
P/1 – Como é que era isso? Conta pra gente.
R – Ah, tinha a feirinha aqui, depois foi... Por falta de condução a gente não tem mais ela hoje, daí eu e a minha vizinha fizemos uma horta para nós duas trabalharmos.
P/1 – E conta como é que era essa experiência da feirinha, como é que era isso?
R – Tinha um caminhão que passava todo sábado, cinco da manhã, trazia todo mundo para a feirinha, chegávamos aqui e montávamos as barracas, vendíamos os produtos até uma hora, duas horas e íamos embora. Aí no próximo sábado vínhamos de novo! E era uma experiência boa. Daí você se animava em plantar verdura! Tudo que você tinha você trazia e vendia!
P/1 – Onde é que era?
R – Aqui na Praça do Rocio.
P/1 – E era uma coisa da prefeitura?
R – A condução era da prefeitura. Daí conforme foi mudando, que trocou de prefeito e ele cortou. Daí a feirinha existe até hoje, quem tem condução vem até hoje, quem não tem não vem. Mas era uma coisa boa!
P/1 – Você lembra de um dia desses? Como é que era essa dinâmica assim?
R – Ah, todo sábado você acordava às quatro da manhã, preparava as coisas, já deixava tudo preparado na sexta-feira, quatro da manhã já estávamos acordados esperando o caminhão passar, todo mundo contente... E todos vinham para cá! Aqueles que tinham seus produtos vinham, faziam a feirinha, vendiam as coisas... Chegava no final da tarde todo mundo tinha seu dinheirinho. Todo final de semana as pessoas que faziam a feira tinham o seu dinheirinho e já era uma renda a mais que entrava dentro de casa. Eu fazia, as meninas faziam... Então era cansativo, mas era gostoso!
P/1 – Como é hoje? Como... Conta um dia seu, sua rotina, como que é normalmente...?
R – Ah, hoje você levanta, vai lavar roupa, cuida da horta... A gente não desanima da horta! A gente está sempre lá cuidando, plantando, com a esperança de um dia a feira voltar e você já ter um produto para você... Se o caminhão voltar, você tem o produto para vender na feirinha...
P/1 – Eu quero saber seu dia. (risos) Como que é normalmente?
R – Ah, eu tenho que acordar às cinco da manhã, levar minha filha no ponto, pegar ônibus seis horas, aí eu volto para casa, tomo café, vou para a horta, faço alguma coisa, às vezes vou para o pasto catar esterco, para nunca acabar. E depois eu faço o serviço da casa. Às vezes vou de manhã ou vou à tarde, depois do almoço, sempre eu vou catar esterco para horta não acabar!
P/1 –... Mas sobra ainda, né? Uma produção, né? E o que é que você faz com esse excedente...?
R – Ah, a gente come, ou às vezes deixa lá, só trata, cuida e deixa lá. Fica lá! Se tem bastante você não consegue comer tudo aquilo e fica lá. Se alguém passar e: “Ah, tem isso? Arruma uma para mim?”. “Arrumo!”. Se não fica lá para... Como diz a minha vizinha: “Para enfeitar o morro”. Porque a gente sabe que não tem mercado, não vende, não tem como você se prevenir... A gente sempre cultiva para não deixar faltar. Já nos acostumamos a ter aquela verdura, então...
P/1 – E hoje, assim, vocês estão querendo... Bom, enfim, vocês estão querendo ser reconhecidos como quilombos, né? E o que é que vai acontecer se vocês forem reconhecidos como quilombo?
R – Ah, aí as famílias que estão fora tem interesse em voltar para comunidade para trabalhar em grupo, por exemplo: fazer plantação, plantar para sobreviver da própria terra!
P/1 – Isso é uma coisa que o grupo discute...?
R – É, é uma coisa que o grupo quer: “E aí, vai sair a nossa terra? E aí? Tem alguma novidade?”.
P/1 – O que tá em jogo então é posse de terra?
R – É.
P/1 – E daí quando vocês tiverem a terra... Que hoje são sítios, é isso?
R –... Que hoje é uma fazenda.
P/1 –... Que hoje é uma fazenda... E é grande essa extensão dessa comunidade?
R – Aí as pessoas: “E aí, e a nossa terra? Será que não vai dar nada? E aí, em que pé está?”. Daí as pessoas ficam ligando e me cobrando: “E aí, viu alguma coisa? Tem alguma novidade?”. Falei: “Não, calma!”. Tem que ter paciência, que as coisas não acontecem da noite para o dia, é um processo bem demorado. Alguns desistiram, alguns desanimam... Desanima aquele, entra o outro com a esperança de que vai acontecer... E assim a gente vai indo...
P/1 – E o grupo acha então que quando tiver a posse vão voltar famílias...?
R – Vão voltar famílias, eles têm interesse: “Ah, eu vou criar isso. Eu vou criar aquilo. Eu vou fazer isso...”. Cada um tem a sua ideia planejada já. “Um dia quando eu for dono da terra de novo...”. Cada um já sabe o que quer, o que vai fazer, o que pretende fazer...
P/1 – Ah, é? Como é que vocês estão se organizando...?
R – Ah, cada um conversa: “Ah, se eu ganhar a terra eu quero aquele pedaço lá que eu vou fazer uma roça e plantar milho”. “Ah, eu vou criar os meus porcos em tal lugar”. Então: “Ah, aquela cabeceira de rio vai ser minha”. “Eu vou fazer minha casa lá em tal lugar”. Então cada um fala uma coisa...
P/1 – E você vai mudar o que?
R – Ah, eu só quero um pedaço maior perto de onde eu moro, porque assim posso plantar mais coisas, produzir mais coisas... (…) Porque eu tô na divisa, eu tô num pedaço particular, mas eu tô na divisa.
P/1 – Na divisa...?
R –... Com a fazenda. Daí eu falo: “Daí eu vou mudar minha cerca mais para lá, posso ficar com um pedaço maior, eu posso plantar isso, posso plantar aquilo, posso criar galinha, posso criar isso, posso criar aquilo”... né? Então cada um tem a sua ideia formada já.
P/1 – Porque hoje, assim, como você está, você está com alguma produção pequena...?
R – Ah, de tudo eu tenho um pouquinho. Tenho criação de tenho galinha, tenho pequenos, muito pouca agro-floresta, mínima coisa...
P/1 –... O que é isso da agro-floresta?
R – Agro-floresta você planta tudo, você planta banana se você quiser, planta juçara, palmeira real, plantas frutíferas... Tudo uma perto da outra. Você planta o café o Ingá... Aí conforme vai o tempo da florada você... Umas caem e jogam uma folha, outras botam folha, outras não batem... Então cada um vai dar seu fruto no tempo certo, no tempo dele... eu tenho, assim, tenho várias coisas todas plantadas. Mas é muito pouco! Então a esperança é um dia conseguir a terra para ter umas coisas bem mais amplas.
P/1 – E, bom, pensando na comunidade, o que mais que vocês fazem para... Tem algum movimento para manter tradições de quilombo...?
R – Não. Hoje não tem mais.
P/1 – Antes tinha?
R – Antes tinham as danças deles... Antes faziam os bailes... E hoje não tem mais.
P/1 – Seu avô contava histórias de tempos bem passados...?
R – Contava. Eles andavam muito longe para fazer baile, para ir em mutirão!...
P/1 – E tinha alguma coisa que era bem tradicional, assim...? Que ele contava pra vocês, passou... Por exemplo, mitos, lendas...?
R – Ai... (…) Ele falava: “Vou fazer mutirão para fazer minha roça de arroz esse ano, já tô criando meu porco agora, já estou engordando para quando tiver o mutirão já tá...”. Porco gordo e ele chamava, convidava pessoas para fazer o mutirão, depois para fazer o baile...
P/1 – É tudo planejado?
R – Tudo planejado!
P/1 – Você falou que bom que você veio para cá, você foi trabalhar e depois voltou, né? Como foi retornar...?
R – Ah, eu gostava de lá! Eu saí por uma curiosidade acho, daí pensei: “Não quero mais trabalhar, quero voltar para casa” e voltei!
P/1 – Daí que você conheceu o seu marido?
R – É, e casei... Vizinho mesmo, no bairro...
P/1 – Você conheceu como...?
R –... Quando eu conheci eu já tava trabalhando aqui, daí eu voltei .
P/1 – Como que você conheceu ele...?
R – Ah, eu o conheci no sítio onde eu morava! Ele trabalhava em fazenda e foi trabalhar num sítio perto de casa. Daí eu já conheci lá perto de casa, mas eu morava aqui. De repente eu voltei para lá e casei.
P/1 – E como foi, assim, bom, enfim... Daí depois filhos... Para ter filhos, como vocês fizeram, teve que vir para cá, teve que vir para cidade...? Como que é essa estrutura, por exemplo, de saúde, de... Questão de hospital...
R – Ah, tive que fazer pré-natal em Cananéia, aqui na cidade e depois fui para Pariquera. Se não tiver condução você vai direto para Pariquera. Se você chamar a ambulância você tem que vir para cá, para depois ir para Pariquera...
P/1 – Como foi com você?
R – Ah, eu fui direto para lá!
P/1 – Você lembra do dia como foi?
R – Ah, meu pai chamou um carro e eu fui direto para Pariquera. Do meu primeiro filho eu fui direto. Eu só vim para cá de uma menina só, do terceiro filho eu vim aqui. Do resto eu fui tudo para Pariquera. Fui direto.
P/1 – Quando alguém passa mal ali na comunidade, como é que vocês fazem...?
R – Ah, liga para cá e fica o dia inteiro esperando até eles resolverem ir lá buscar. Como já aconteceu com a minha mãe: liguei ás oito horas, foram buscar duas horas da tarde.
P/1 – Perguntar: e essas ONGs aí, elas ainda continuam indo para a região?
R – Ah, só a Rede.
P/1 – A Rede Cananéia? Qual que é a relação que vocês têm com a Rede, por exemplo?
R – Muito boa!
P/1 – O que é que vocês fazem juntos?
R – Ah, eu faço... Represento a comunidade dentro da Rede, faço parte do projeto da Petrobrás dentro da Rede também. E a Ju (Juliana da rede Cananéia), vai lá direto, conversar... Vê que pé que está, tem a menina que ajuda muito! “Ah, vamos fazer preço nisso!”. Ela vai lá, conversa, calcula, tudo direitinho, então... Dentro da Rede a gente tem o maior apoio, tem bastante apoio! Qualquer coisa que a gente precisa é só conversar com a Ju: “Ah, Ju, estamos com uma dificuldade aqui, assim...”. Daí ela vai lá, explica, fala, dá uma força!
P/1 – Eu estava vendo aquelas suas fotos lá, antes de vir e tal, daí eu vi várias coisas interessantes ali, né? Um a questão daqueles produções que vocês fazem com doce... né? Conta um pouco pra gente o que é que era aquilo...?
R – Aquilo eram os doces de banana que eu fazia para trazer a feira. Como eu fazia feira, fazia também doce de banana para vender. Como acabou a feira, eu nunca mais fiz o doce também. Mas eu fazia bastante doce, porque eu vendia bem na feira.
P/1 – Hoje você trabalha mais para vocês mesma ali? Mais de subsistência ali...?
R – Mais de subsistência e no corte e costura...
P/1 –... E no corte e costura, né? Você falou que enfrentou dificuldades, né, para vender... O que é que aconteceu?
R – Ah, não vendeu... Não sei se por causa do preço, não consegui vender a produção...
P/1 – Mas como foi, vocês tentaram aonde...?
R – Ah, foi colocada numa feirinha, as meninas levam para o produto em Rede também não consegue... Então a gente não desanima, mas tínhamos esperança de um dia vender. Eu vendi na minha casa quatro panos. O que eles trouxeram para cá não vendeu. Outro dia a menina foi lá e comprou mais uns quatro, então a gente... Não é aquele lucro imediato, é um negócio demorado, você tem que ter paciência e tem pessoas que não entendem, acham que tem que vender e já receber. “Que eu tô precisando para ontem e não para amanhã”. Então é uma coisa que você tem que saber trabalhar. É como artesanato você pensar em fazer hoje para receber amanhã. Hoje você tem que ver o tempo dele para você conseguir vender. Naquele momento certo você vai conseguir!
P/1 – O pessoal mais novo que você, como é que está ali na comunidade?
R – Ah, os mais novos já tem interesse de sair, como já saíram várias pessoas. “Na hora em que eu pegar os meus 18 anos, vou embora para Curitiba, vou embora para a cidade, porque eu não quero ficar nesse serviço pesado”. Então várias pessoas têm esse interesse.
P/1 – Você tem muito parente em cidade grande assim, não?
R – Ah, tem alguns. Sempre tem alguns.
P/1 – Você já foi visita-los?
R – Não.
P/1 – Nunca saiu daqui?
R – Saí, mas para visitar eles não!
P/1 – Para onde você já foi? Quando saiu de Cananéia, pra onde você já foi?
R – Ah, eu já fui para Botucatu, Bauru, já fui para Curitiba e para Parati.
P/1 – Como foram essas experiências aí? Foi de férias, foi...?
R – Não, foi dentro da Rede, projeto dentro da Rede, se fazia esses intercâmbios, eles levam todo mundo.
P/1 – Ah, é? Conta uma dessas. Qual foi um intercâmbio que você gostou muito, assim, conta pra gente como foi?
R – Ah, eu gostei de todos, tudo... Eu ia com filho pequeno. Eu fui para Botucatu, eu fui com filho pequeno, mas foi gostoso! É um pouco cansativo, sabe? Mas eu nunca abandonei meus filhos para ir em parte nenhuma. Sempre que eu posso levar eu tô levando. Hoje eu não carrego porque eu não vou deixar eles perderem aula para estar comigo, mas quando eu tinha eles pequenos levava os quatro. Para onde eu ia levava todos os quatro! Eu nunca pus obstáculo em cima deles para eu não ir: “Ah, eu não vou por causa dos meus filhos pequenos”. Não, eu sempre fui, eles nunca me deram trabalho assim...
P/1 – Conta um desses encontros, descreve, assim, como foi, o que é que você aprendeu, o que é que você viu...?
R – Ah, em cada um que você vai se aprende uma coisa nova. Em todos você aprende. Esses encontros sempre são de muita aprendizagem. Alguma coisa você tem que aprender! Só se você não for com interesse de aprender mesmo!
P/1 – (riso) É verdade, né?
R – Qualquer coisa serve para você aprender alguma coisa a mais!
P/1 – Conta o de Botucatu, por exemplo, o que é que foi? Foi o primeiro?
R – Não.
P/1 – Qual foi a primeira vez que você saiu da comunidade?
R – Acho que foi um encontro em São Paulo da agricultura familiar.
P/1 – Conta o que você achou quando chegou e viu São Paulo, por exemplo?
R – Eu acho que eu já tinha ido também. (riso) Eu acho que eu já tinha ido uma vez lá...
P/1 –... Ah, já? (riso) Você lembra a primeira vez em que você foi pra São Paulo, não?
R – Não, não lembro mais, mas eu já tinha ido.
P/1 – Novinha, assim?
R – É, foi. Quando eu era solteira eu fui. Sempre eu fui.
P/1 – E você não lembra a primeira vez em que você foi para a cidade, assim...?!
R – Não, eu já imaginava... Não tem essa... Não tinha aquela curiosidade, sabe? Eu não sou aquela pessoa curiosa para ver o que é que tem lá de diferente... Nunca...
P/1 – Não estranhou?
R – Não!
P/1 – (riso) Tá certo! É... Qual que você acha que foi a maior dificuldade que a comunidade já enfrentou?
R – A pressão. (…) Pressão! Pressão... Pressão com as próprias vizinhanças mesmo... Porque logo que a gente começou a se reunir, iríamos nos reunir em Eldorado, a prefeitura cedia um ônibus e a gente iria de micro-ônibus... E os próprios “olhudos” da comunidade que não faziam parte da Associação, falavam: “É, agora esses pretos andam para baixo e para cima dentro desse ônibus micro, daí quando a gente precisa de um carro não tem!”. Então a gente acha aquilo uma pressão. Por que isso? Por que é que fica falando? Porque essas pessoas que criticaram bastante, hoje estão com a gente, várias pessoas que criticaram e hoje eles já estão junto com a gente.
P/1 – E vitória do grupo?
R – Ah, já teve bastante, né? Porque já conseguimos várias coisas: máquinas, o projeto... Depois de estarmos organizados, estamos construindo a sede... E acho que é uma vitória! Para quem começou do nada e praticamente dentro de quatro anos, já conseguir tudo isso, né?
P/1 – Você chegou a visitar as outras comunidades quilombolas da região?
R – Visitar, visitar não, eu só fui em reunião. Fui a uma no Mandira e uma... Perto de Eldorado, só. Mas ir lá, sair da comunidade para visitar outra comunidade, não.
P/1 – Só foi a trabalho?
R – Só reunião mesmo.
P/1 – E você aprendeu muito com eles, como é que...?
R – Ah, sempre se aprende alguma coisa! Aprende a como se organizar... Como que faz para se organizar cada vez melhor... Porque na nossa associação a gente tenta ser bem transparente com tudo, não tem aquele: “Ai, eu quero que fulano não saiba disso”. Não, a gente é bem transparente. Tudo que vem para a comunidade é bem transparente. Se você ganha uma doação, seja lá o que for, chegou na reunião, ó: “A associação ganhou isso! Trabalho de fulano e tal, a gente ganhou isso para associação, está aqui para todo mundo ver, para ninguém...”. Então a gente tenta ser bem transparente.
P/1 – Você hoje é muito diferente do que há dez anos atrás...?
R – Ah, sim! Tenho a mente bem mais aberta!
P/1 –... Mente mais aberta... Como você era antes e como você é hoje...?
R – Ah, você enxerga as coisas de um jeito, e conforme você vai andando junto com o grupo, você vai vendo que as coisas não são exatamente como as pessoas te ensinaram, como você aprendeu no passado. Você aprende a conviver com os outros. Aquele passado: “Isso é seu e você não pode pegar”. Você aprende a conviver com o grupo. Que muitas pessoas não sabem. A convivência em grupo é bem diferente de você conviver em família! Você tem que saber como que é uma convivência com o grupo e tem pessoas que não sabem, dentro da comunidade tem pessoas que não sabem conviver com o grupo. Eles não entendem até hoje o que é a convivência com o grupo! Então sempre tem aqueles conflitos por causa de não entender o que é isto!
P/1 – E o que é que vocês têm feito pra mobilizar o grupo...?
R – Ah, eu tento passar sempre como é uma convivência. Porque: “Esse copo é meu e você não pode pegar porque ele é meu”. “Não, ele é nosso! Ele não é meu, ele é nosso! Se ela quiser ela pode vir aqui e pegar, porque ele é nosso e não é meu!”. Então eu tento passar esse tipo de coisa: “O que tem no grupo não é meu, é nosso!”. E as pessoas tem muito aquele ego de dizer: “Ah, esse é meu!”. Eu falo: “Não é 'meu', é nosso”. “Ah, fulano conseguiu isso pra ele”. “Não, eu consegui para o grupo”. Eu nunca tento me apresentar em nenhuma parte que eu vou, como eu pessoa, mas como grupo, como o todo do grupo. (pausa).
P/1 – E os seus planos... Qual o seu sonho, assim?
R – Ah, espero que o grupo cresça! Cresça e tenha um trabalho próprio, com a própria comunidade mesmo, dentro da comunidade para os nossos filhos ficarem junto com a gente, dentro da própria comunidade. Para não terem que sair para ir mundo afora. Para ficar na convivência com a própria comunidade, que tenha trabalho, para desenvolver na própria comunidade. Para as mulheres terem também um salário dentro da comunidade. Não ficar naquela dependência!
P/1 – Você conversa isso com seus filhos...?
R – Converso.
P/1 – E eles...? Eles estão com... Fala um pouco dos seus filhos, eles têm quantos anos...?
R – Tem 14, 12, dez e sete.
P/1 – 14, 12, dez e sete. E o de 14, como ele tá em relação a... Já tá mais velhinho, né?
R – Ah, ele esteve para Cajati uma semana e os primos estão em Bauru – em Bauru não, estão no sul. “Ah, assim que você terminar os estudos vou levar você, para você não ficar no serviço pesado aí no sítio não”. Então eles já estão com aquela ideia: “Quando eu tiver de maior eu vou para Blumenau, aqui para Blumenau... Se não aqui para São Paulo, para algum lugar, com meu primo... Não vou ficar aqui não... Ah, não nasci para isso... Ah, será que minha mão não está com calo”. Sabe que não pode ir com a mão calejada para escola. Então eles já estão naquela que...
P/1 – Como é que você vai discutindo com eles? (risos).
R – “Ah, porque aqui não tem nada para fazer, se eu tivesse na cidade eu podia fazer um biquinho e eu comprava isso, comprava aquilo...”. Daí eles ficam querendo me cobrar por que: “Ah, eu quero isso, eu quero aquilo”. E: “Quando puder eu compro. Ah, agora não tenho dinheiro para comprar, quando puder a mãe compra”. Mas eles acham que se estivessem na cidade poderiam fazer alguma coisa e ter o próprio dinheiro deles.
P/1 – E você, como mãe...?
R –... Ah, eu não acho uma boa...
P/1 –... Como é que você vai discutindo com eles...?
R – Ah, eu não acho uma boa ideia, porque como eles estão no sítio estão mais próximos de mim, não saíram de casa, os colegas são todos da vizinhança e eu conheço, são todos da mesma idade... Então eu não tenho que me preocupar com esse tipo de coisa, com o mal envolvimento deles, porque eu conheço. E se eles estivessem na cidade eu já ia ficar um pouco preocupada, né?! Com quem eles estariam andando, o que estariam fazendo... E lá não, é tranquilo, então eles podem sair, ficar fora o dia todo, que eu sei onde estão, o que estão fazendo, eu não tenho muita preocupação! Mas eles já têm... Eles sonham em terminar o estudo e cair fora porque não tem o que fazer...
P/1 – Você vai ser aquela... O pessoal ficando mais velho tem uma discussão... E vai longe isso aí, né? (riso). Olha, a gente vai indo para finalizar, vamos finalizar... Pergunta: tem mais alguma coisa que você queria contar, alguma passagem da sua vida, alguma... Enfim, que a gente não perguntou e que você gostaria de comentar com a gente...? Alguma passagem, algum acontecimento...? Porque, no fim, tem um monte de coisas para gente conversar e se tiver alguma coisa que...
R – Ah, eu acho que foi bom, sabe? O encontro, a conversa... Espero que dê um bom resultado... Que a gente venha a se encontrar de novo... Venha a ver tudo o que aconteceu lá na frente, né?
P/1 – Ah, isso com certeza, né?
R – Tem alguma coisa, assim, alguma história...?
P/1 – Não, a próxima aí... Contar na comunidade, conversar com todo mundo, conhecer a comunidade... Ver em que pé que tá, né?
R – Legal! Então já indo para as últimas aqui... (riso). Anita, qual o sentido da vida pra você?
P/1 – (silêncio). Por que é que eu vivo no sítio...?
R – Não sei. Qual o sentido da vida para você?
P/1 – Ah, ela é boa, tem alguns desgostos na vida, porque você... A vida ela é muito boa, ela é muito feliz, eu tinha meu pai com 91 anos, era uma pessoa que dava todo o apoio, todo o suporte, pessoa que nunca me deixou faltar nada! A gente vivia ali, agora faz um mês que ele faleceu, então tem horas em que desanimo. Hoje desanimo por causa disso, mas tem que pensar lá na frente, porque eu tenho dois filhos que dependem de mim, eu tenho que tocar a vida para frente e saber que a vida é assim mesmo, que uns vão e outros ficam e que não é fácil, eu tenho que dar as condições de meus filhos estudarem, para não serem quem eu sou hoje – apesar de eu não ser arrependida de quem eu sou. Eu sou feliz do jeito que eu sou. Não me arrependo por não ter estudado, gosto da vida que eu levo e espero que eles aprendam também, não achem que o mundo lá fora vai ser melhor do que aqui, né? De conviver no sítio. Que eles aprendam com o avô, com o bisavô que já foi, aprendam com a gente que está aí, com os vizinhos, com os colegas, a achar que a vida no campo é uma vida boa, uma vida saudável, que a vida lá fora ela é bem diferente da vida que a gente leva aqui!
P/1 – Pessoal – abrir para turma aqui – vocês tem alguma questão?
P/3 – Eu fico curioso de saber alguma história que seu avô contava...
R – Ah, ele sempre contava dos compadres dele, que eles matavam porcos juntos, que eles se davam muito bem... Que eles almoçavam juntos, cantavam em noite de mutirão, que dançavam, tomavam as pingas deles... Então ele sempre contava: “Ai, eu tava... Isso era lá no Cedro, a gente saía em tal hora, e passando o rio... A gente ia lá!”. Muitas vezes eles convidavam a pessoa já com uma pinga na cara: “Ai, vai ter um bailinho hoje aqui!”. Ele ia lá no sertão: “Ah, vai ter baile na casa do fulano”. Chegava lá e o fulano já estava dormindo, não tinha baile e não tinha nada... (risos). Mas era a vida que eles gostavam, viviam felizes, mesmo sendo enganados às vezes de não ter o bendito baile, mas era uma coisa deles...
P/1 – Tinha história assim de fantasma, do pessoal da comunidade, tem aquelas lendas antigas de povo da floresta...? De mulher do rio... Tem essas coisas de fantasma...?
R – Não, ele só contava mais da vida real mesmo, dos absurdos que ele fazia na vida real mesmo!
P/1 – E você tem essa prática de contar histórias para os seus filhos?
R – (riso) Não sou muito de contar história não!
P/1 – Tá certo! Então, Anita, em nome da equipe aqui, muito obrigado por ter dado essa entrevista! A gente queria agradecer, obrigado! Ok? Tudo bem?
R – Tudo!
Fim da entrevista
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