P/1 – Bom dia, seu Darci! Queria agradecer de o senhor ter vindo hoje aqui nesse sábado de frio dar seu depoimento. Eu gostaria que nós começássemos com o senhor se apresentando. Falando o seu nome, data e local de nascimento.
R – Pois não. Eu me chamo Darci Callegari. Eu nasci na cidade de Capivari, interior de São Paulo, no dia 2 de junho de 1938.
P/1 – Seu Darci, e o nome dos seus pais?
R – Os meus pais foram Ângelo Callegari e Rosa Catarina Davanzo.
P/1 – E a profissão deles?
R – A minha mãe era do lar, só de casa. E o meu pai era lavrador e posteriormente quando mudamos para São Paulo ele foi trabalhar do faxineiro nas Indústrias Cama Patente L. Líscio S. A., uma indústria que atualmente não existe mais.
P/1 – E seu Darci o senhor lembra o nome de seus avós?
R – Os meus avós, os dois maternos chamavam-se Pietro, Pedro que eram italianos. Uma minha avó era Rosa e a outra Amábile, sendo que Amábile era por parte paterna e a Rosa por lado materno.
P/1 – E os seus avós por parte de pai e de mãe eles vieram da Itália ou não?
R – Vieram da Itália, são italianos, eram italianos.
P/1 – Eram italianos. E o senhor veio com que idade pra São Paulo que o senhor saiu de Capivari?
R – Eu vim pra São Paulo com sete anos. Logo após o término da Segunda Guerra, mil novecentos e quarenta e cinco.
P/1 – Veio a família toda?
R – A família toda.
P/1 – E quando o senhor chegou aqui em São Paulo o senhor foi morar aonde?
R – Fui morar num bairro, em Tucuruvi, na zona norte de São Paulo.
P/1 – E o senhor já tinha parentes aqui, o senhor conhecia alguém?
R – Tinha, tinha parentes pro lado materno. Inclusive essa casa que o meu pai comprou pertencia ao meu tio, irmão de minha mãe.
P/1 – E quantos irmãos eram na família?
R – Nós éramos em oito irmãos.
P/1 – O senhor é mais...
Continuar leituraP/1 – Bom dia, seu Darci! Queria agradecer de o senhor ter vindo hoje aqui nesse sábado de frio dar seu depoimento. Eu gostaria que nós começássemos com o senhor se apresentando. Falando o seu nome, data e local de nascimento.
R – Pois não. Eu me chamo Darci Callegari. Eu nasci na cidade de Capivari, interior de São Paulo, no dia 2 de junho de 1938.
P/1 – Seu Darci, e o nome dos seus pais?
R – Os meus pais foram Ângelo Callegari e Rosa Catarina Davanzo.
P/1 – E a profissão deles?
R – A minha mãe era do lar, só de casa. E o meu pai era lavrador e posteriormente quando mudamos para São Paulo ele foi trabalhar do faxineiro nas Indústrias Cama Patente L. Líscio S. A., uma indústria que atualmente não existe mais.
P/1 – E seu Darci o senhor lembra o nome de seus avós?
R – Os meus avós, os dois maternos chamavam-se Pietro, Pedro que eram italianos. Uma minha avó era Rosa e a outra Amábile, sendo que Amábile era por parte paterna e a Rosa por lado materno.
P/1 – E os seus avós por parte de pai e de mãe eles vieram da Itália ou não?
R – Vieram da Itália, são italianos, eram italianos.
P/1 – Eram italianos. E o senhor veio com que idade pra São Paulo que o senhor saiu de Capivari?
R – Eu vim pra São Paulo com sete anos. Logo após o término da Segunda Guerra, mil novecentos e quarenta e cinco.
P/1 – Veio a família toda?
R – A família toda.
P/1 – E quando o senhor chegou aqui em São Paulo o senhor foi morar aonde?
R – Fui morar num bairro, em Tucuruvi, na zona norte de São Paulo.
P/1 – E o senhor já tinha parentes aqui, o senhor conhecia alguém?
R – Tinha, tinha parentes pro lado materno. Inclusive essa casa que o meu pai comprou pertencia ao meu tio, irmão de minha mãe.
P/1 – E quantos irmãos eram na família?
R – Nós éramos em oito irmãos.
P/1 – O senhor é mais novo, mais velho...
R – Não eu sou o penúltimo da escala, abaixo de mim só tem o caçula que é o Antonio que é dois anos mais novo do que eu.
P/1 – Então quando a sua família chegou a São Paulo alguns irmãos do senhor já foram trabalhar?
R – Já, a maioria deles, quase todos. Somente eu, a minha irmã mais velha, a Paulina que é dois anos mais velha e meu irmão mais novo também não trabalhava. O resto todos trabalhavam, arrumaram serviço.
P/1 – E como que era assim, o senhor lembra um pouco de como era o Tucuruvi, o bairro na época que o senhor chegou. Qual foi a sua impressão quando chegou em São Paulo?
R – Ah, pra mim foi tudo novidade porque uma pessoa que sempre viveu na roça praticamente. Eu morava numa fazenda, somente tinha uma vilinha de umas cinco, seis casas incluindo a nossa. Então quando você vem pra São Paulo esse mundaréu de casa, uma em cima da outra. Quer dizer, pra gente era uma surpresa violenta. Começamos a viver nesse emaranhado de prédio, de casa aqui, eu estranhava... Apesar de que naquela época não era como hoje. Há quarenta e poucos anos, cinquenta anos praticamente, quarenta e cinco pra hoje dá cinquenta e nove anos, é um bocado de tempo, né? E foi aí que começamos. A gente estranhava muito. Estávamos acostumados a viver naquela vida do interior. Tem até uma passagem bem interessante, que logo que mudamos pra São Paulo as vizinhanças, a molecada, os moleques vizinhos chegavam e falavam: “É, chegaram uns caipiras no pedaço aí, vamos tirar um sarro...”. Naquele tempo não usava essa expressão “sarro”. “Vamos azucrinar a vida deles, vamos bagunçar com eles”. Então eles queriam aproveitar da nossa ingenuidade, da nossa pouca experiência ou nenhuma experiência da cidade e brigavam. Vinham bater na gente, brigar. Eu e meu irmão mais novo éramos fraquinhos, abusavam dele. Uma vez aconteceu um fato interessante que um garoto bateu no meu irmão, eu estava perto, eu vi, eu corri em cima, dei-lhe um soco e arrebentei um dente dele. Aí a mãe dele foi à minha casa reclamar com a minha mãe, minha mãe nem precisa contar, pegou o chinelo e bateu até. Em frente à nossa casa morava um casalzinho de portugueses, por coincidência ele se chamava seu Joaquim e ela dona Joaquina. E ela presenciou, ela viu esse ato. Então ela chegou e falou: “A senhora vai me perdoar, eu não conheço a senhora, a senhora chegou aqui há pouco tempo. Eu moro aí em frente.” A minha mãe falou: “Ah, eu já vi a senhora por aí, já conheço a senhora de vista sim.”. Ela se apresentou, a minha mãe também se apresentou. Ela falou: “Eu vim aqui pedir pra senhora não bater assim mais no teu filho não. Pelo que parece a senhora veio do interior, a vida lá é outra, outro sistema. Aqui em São Paulo tem muitas mães recalcadas que o filho dela apronta na rua e ela vai reclamar pra mãe. E se ela souber que mãe bate no filho elas vêm reclamar sempre do seu filho pra senhora. Mesmo que não seja o seu filho que tenha batido no filho dela ela vem reclamar pra senhora porque ela tem prazer em ver o seu filho sofrendo, apanhando. A senhora não muda mais... Muda a sua maneira de agir, não faz mais isso não. Quando ela vier reclamar aqui a senhora fala que os filhos tem que se virar na rua. Os moleques tão na rua, tão se divertindo, eles se viram na rua, não quer saber de problema dentro de casa.”. Eu tinha minha irmã mais velha, Angelina, ela ouviu essa conversa. Ela também era meio estouradinha, meia, não deixava nada barato. Aconteceu, um mês praticamente depois, essa mesma senhora voltou em casa, veio reclamar novamente de mim. Então a minha mãe tava ouvindo a conversa dela falando, saiu a minha irmã. Ela falou: “Olha, o negócio é o seguinte, o meu irmão bateu no seu filho e agora eu vou bater na mãe do seu filho!”. A mulher se virou no pé, sumiu e até hoje não apareceu mais pra reclamar de mim em casa. Infelizmente esse casal, essa dona Joaquina logo depois veio a falecer, depois de um mês morreram os dois. Acho que o desgosto, era um casal bem de velhinho já. E é um fato que minha memória é gravada até hoje, que eu nunca vou esquecer esse alívio que eles me deram na minha surra, né, posso dizer assim.
P/1 – Não apanhou mais por causa disso, né?
R – Não apanhei mais por causa de briga na rua.
P/1 – E seu Darci, na casa do senhor era o senhor, seu pai, sua mãe e seus irmãos. Eram essas as pessoas?
R – Exatamente.
P/1 – E como que funcionava assim o dia a dia, como que era essa relação?
R – O meu pai ele saia cedinho pra trabalhar. Até nós tínhamos um fogão a lenha em casa, um fogão que mantinha a água sempre quente, a comida sempre quente, porque como nós éramos em muitos irmãos, às vezes chegava um pra almoçar fora de hora, o negócio nem precisava esquentar, tava sempre quentinha a comida em cima do fogão. E meu pai, como ele trabalhava na Cama Patente, lá tinha resto de madeira que eles usavam pra fazer camas, a maioria camas, não sei se fazia sofá. Mas o foco dele era cama Patente, era, né, a marca da cama Patente. Ele comprava essas amparas de madeira, esse resto, pra alimentar o nosso fogão. Então nós tínhamos, nunca faltou matéria prima pra manter o fogão sempre aceso em casa. A minha mãe ficava lá, minhas irmãs iam trabalhar, meus irmãos. Tive um irmão que arrumou emprego na Sorocabana, era chefe de trem, naquele ramal da Cantareira mesmo que já não existe mais. Que ia aqui da João Teodoro na cidade, perto da Rua Cantareira mesmo, ia até Guarulhos, um ramal. E o outro ramal ia para a Cantareira. E outros irmãos também, o Pedro que é o mais velho dos irmãos arrumou um serviço na Willy Overland, fábrica de jipes lá em São Bernardo. Ele se deslocava diariamente de Tucuruvi pra São Bernardo pra trabalhar, era uma vida custosa. Eu tive a minha infância praticamente jogando futebol num campinho que tinha perto da minha casa, já não existem mais hoje. E a estação do metrô Tucuruvi, era um campo de futebol naquele local ali. Fiz o meu curso primário, que antigamente era primário, agora nem sei se é Básico, Fundamental, mudaram a denominação dos cursos, no grupo escolar Silva Jardim que era na Avenida Tucuruvi, perto de casa, uns quinhentos metros de casa, nem isso. E quando eu estava completando o curso, tava no quarto ano, veio o representante de um curso de admissão, que naquela época existia um curso e admissão pra gente entrar no ginásio, chamava-se ginásio, era de Santana. Escolheram os melhores alunos que existiam na classe pra fazer esse curso de admissão. E o professor me indicou, eu e outros rapazes. Então eu estudava de manhã e à tarde ia pra Santana nesse curso, o curso de admissão. Mas eu garoto, criança, só queria saber de campinho, campinho de futebol, jogar bola. Chegava à casa do cursinho de admissão, jogava os cadernos em cima da mesa, saia correndo pro campo. Porque já perdia praticamente o dia inteiro, queria aproveitar o tempinho que restava do dia. Consequentemente não fazia a lição do cursinho lá de admissão. Aí um dia o diretor lá do cursinho chamou minha mãe e falou: “Olha, o rapaz não é burro. A gente vê que lê é inteligente tudo, mas tem uma coisa, ele não faz a lição de casa, ele não faz nada, ele não tem interesse em estudar. Ele vem aqui todo dia ele fica numa sala separada fazendo a lição do dia anterior. Ele ta perdendo a aula, porque os outros tão na aula e ele ta fazendo a lição dele. Então eu aconselhava a senhora a tirar ele da admissão.”. Eu fiquei, acabou meu curso primário, eu recebi o diploma, a minha mãe me mandou trabalhar com um tio que tinha uma padaria a cem metros de casa praticamente. Eu ia lá, eu ajudava a lavar o material dos confeiteiros, lavar as formas pros doces, lavar os tachos, eu que fazia esse serviço, ajudante de confeiteiro. Até tem um fato interessante, que uma vez eu estava no balcão e chegaram umas pessoas lá pediram um café, eu servi. Depois chegou outro pediu um aperitivo. Eu não estou sabendo, peguei um copo de pinga, fui servir uma caninha, uma cachaça pra ele. Ele pegou perguntou: “Quantos anos você tem?”. Falei, naquele tempo eu tinha o que, uns treze anos. Falou: “Quem é o dono do estabelecimento?”. Falei: “É meu tio!”. “Ele está?”. “Está.”. Aí eu chamei, ele chegou, falou: “O senhor não pode ter um menor de idade servindo bebida alcoólica. O senhor não sabe que é contra a lei? O senhor está incurso no artigo, o senhor vai ser multado.”. Meu tio falou: “Ah, mas o senhor vai fazer isso...”. “Então o senhor precisa mandá-lo no juizado de menor pedir uma autorização pra ele trabalhar. Menor de catorze anos tem que ter autorização do juiz pra trabalhar”. Então eu fui, né, na Rua Asdrúbal Nascimento, se não me engano, aí na cidade, perto da Bela Vista, conseguir essa autorização. Estava trabalhando nessa padaria até uns catorze anos quando esse meu irmão que trabalhava na Willys ele foi procurar fazer um curso no SENAI. Chegando ao SENAI o diretor falou que pra ele não tinha curso, mas tinha curso pra menores. Então ele chegou a casa falou pra minha mãe: “Olha, eu vou levar o Darci pro SENAI”. Pegamos, ele me levou no Brás que tinha um curso chamado vocacional, até os catorze anos podia fazer esse curso. Eu fui lá, fiz o curso, trabalhei em diversas oficinas que tinha lá, oficina mecânica, oficina de ourives, todas, depois fui de gráfica. Completou a minha idade, solicitaram a presença do meu pai, da minha mãe. No caso sempre a minha mãe que ia, porque meu pai coitado era de muita, não tinha nenhuma instrução praticamente, viveu na lavoura e veio trabalhar de faxineiro. Então não tinha... Minha mãe foi ele falou: “Olha, o teu filho tem duas profissões que talvez se adaptem bem a ele, encadernador ou linotipista. Mas nós não temos aqui nessa unidade do SENAI do Brás, ele vai ter que fazer lá no Cambuci, ele vai ser transferido pra lá.”. Então pra você reparar, pra eu ir de Tucuruvi pro Cambuci pra entrar sete horas da manhã na escola como foi a minha vida.
P/1 – Isso você tinha quantos anos seu Darci?
R – Três anos.
P/1 – Não, quantos anos o senhor tinha?
R – Eu tinha catorze anos.
P/1 – Catorze?
R – Catorze. Catorze anos eu levantava quatro e meia, mais ou menos, pegava um trem cinco e quinze na estação Tucuruvi pra eu entrar sete horas lá no Cambuci. Eu ia de trem até Rua Cantareira, lá pegava um bonde até a praça Fernando Costa, nem existe mais essa praça, hoje é Parque Dom Pedro aquilo ali, aquele pedaço. Subia até a Praça João Mendes e pegava um bonde pro Cambuci. Saía às cinco horas da tarde, fazia o caminho inverso, chegava a casa umas sete horas mais ou menos, da noite. E isso eu fazia seis meses por ano e seis meses eu ia trabalhar na empresa Diário da Noite que foi quem me custeou os estudos no SENAI.
P/1 – E quando o senhor ia cedinho pro Cambuci e voltava no começo da noite, como é que ficou o jogo de bola...
R – Aí acabou tudo! Acabou, acabou a alegria do menino de rua, foi. Porque lá nós tínhamos um intervalo das onze à uma que era a hora do almoço. A comida vinha do SESI, servia naqueles tachão, tinha uma bandeja, comia lá. A gente aproveitava pra fazer as nossas artes das onze à uma.
P/2 – Que artes eram essas além do futebol?
R – Eram umas artes meio perigosas pode se dizer, que perto do SENAI ali no Cambuci tem a igreja, se não me engano é Nossa Senhora da Glória, essa igreja existe lá. E do lado existia umas casas que tinha goiabeira, tinha frutas em geral. E nós aproveitávamos esse intervalo pra aproveitar, pular o muro e surrupiar umas goiabas, que até aconteceu um caso... Porque nós éramos uns dez praticamente, que era aquela turminha do levado. Então chegávamos lá, cada dia escalava um: “Hoje é teu dia de entrar”. Pulava o muro, entrava lá, enchia de goiaba e voltava. Uma vez foi a minha vez, a minha maior surpresa, pulei o muro e a dona da casa ta escondida atrás de uma árvore. Ela me sai com uma vassoura na mão, eu tive um impacto, falei: “Fica quieta, fica quieta, não fala nada. “. “Por quê? Quem são vocês? Você veio roubar goiaba?”. “Não, não, não. Eu vim aqui que o diretor da escola percebeu que tão roubando goiaba, a molecada vem aqui. E me mandou vir aqui pra ver quem são esses moleques. Eu to aqui fazendo esse papel, então...”. Ela falou: “Então vem cá, não fica aqui fora que eles vão te ver, vamos entrar em casa.”. Cheguei lá entrei com a senhora dentro de casa, ficamos lá conversando, batendo papo. E os meus amigos lá atrás do muro esperando, eu não voltava nunca. Falaram: “Ah o que aconteceu com o moleque? Eu acho que a mulher o pegou, acho que o prendeu”. Aí faltavam uns quinze minutos pra uma hora, hora de voltar. Eu falei: “Ah, minha senhora eu acho que hoje eles perceberam que tinha alguma coisa de anormal, eles não vão vir não. Eu preciso ir embora que vai começar minha aula. Ela falou: “Ah, mas você não vai embora sem levar umas goiabas, né?”. Eu falei: “Não, não quero, nem gosto disso.”. Ela falou: “Não, mas você vai levar!”. Pegou uma sacola, me encheu a sacola e deu. Eu voltei ela falou: “Não, você não vai pular o muro não, você vai sair pelo portão da frente. Por que pular o muro? Pular o muro deixa pra eles que vem aqui fazer arte. Você não, você veio aqui fazer um papel, você vai sair pela frente.”. E os colegas lá atrás do muro perceberam, correram, saíram pela rua, chegou lá fomos todos comendo goiaba pra escola. E até hoje passei pelo bom menino.
P/1 – O senhor se deu bem.
R – Dei bem naquela lá, né, felizmente.
P/1 – E seu Darci o senhor sempre morou no Tucuruvi?
R – Sempre, sempre, só depois que eu casei eu mudei pra onde eu moro atualmente no Butantã. Comprei uma casa pelo plano lá do BNH que existiu aquele plano da habitação. Eu trabalhava nessa época no jornal Estado de São Paulo e abriram inscrições, eu fui fazer essas inscrições... É um caso também... A minha vida vocês vão ver é cheia de passinhos interessantes.
P/1 – Então vamos voltar um pouquinho. O senhor casou, o senhor mudou do Tucuruvi pro Butantã em que ano?
R – Foi setenta e dois, setenta e dois.
P/1 E o senhor conheceu sua esposa como?
R – Lá em Tucuruvi mesmo. Como tinha essa padaria do meu tio onde eu trabalhei de criança, como trabalhava praticamente na parte da manhã, à tarde ficava livre, ficava lá com ele, conversando, tomando uma cervejinha, batendo papo. E aí foi lá que eu conheci essa minha namorada, passava lá, via no bar, via no bar, um dia... Ela dava uma olhadinha, dava outra, foi indo, foi indo. Um dia nós se encontramos no cinema, batemos um papo e começamos a namorar, e estamos até hoje.
P/1 – Isso foi em que ano?
R – Isso foi 78, por aí mais ou menos. 77, 78.
P/1 – E o senhor casou em que ano?
R – Eu casei foi treze de janeiro de sessenta e oito. Então esse namoro foi um pouquinho antes, foi sessenta e seis, sessenta e sete, namoramos praticamente uns dois anos.
P/1 – Foi rápido.
R – Foi rápido, também já tava na idade um pouquinho, né? Quase trinta anos acho que já chega de aprontar por aí, então falei vamos descansar um pouco, vamos calmar um pouquinho com a atribulação e vamos viver um pouquinho mais sossegado. Foi onde que a barriga cresceu.
P/2 - E como era esse namoro, o que vocês faziam, vocês iam passear aonde?
R – Era um namoro praticamente normal. Porque a minha mulher nunca foi de querer sair assim. Às vezes a gente ia passear até a terra dela que é Minas Gerais, cidadezinha chamada Pratápolis, perto de São Sebastião do Paraíso, Passos, essas redondezas aí. Mas o resto é cinema, coisa, não é que nem hoje. Hoje não namoram mais, hoje ficam, não sei que lá, ta namorando, ta ficando. Meu tempo era outro, né, era cultura, outro negócio, hoje mudou tudo. A gente estranha muito, a gente vê falar na televisão: “Não, eu não estou namorando, eu estou ficando com ele”. Eu não entendo isso, não dá pra entender. Como é que uma pessoa pode ficar depois ta com outro, um dia ta com um, é, modernidade, fazer o que, né?
P/1 – Seu Darci, vamos falar um pouquinho assim, o seu primeiro trabalho como o senhor falou foi na padaria, né? E aí vamos assim fazer sua trajetória profissional. Nos lugares que o senhor trabalhou, como o senhor descobriu a sua profissão...
R – Essa profissão, como eu falei pra você no começo foi, eu fiz esse curso vocacional no SENAI e eles me indicaram pra fazer esse curso. Eu fui até o Cambuci, na unidade do SENAI no Cambuci, ainda existe lá, só que não é mais de arte gráfica. O SENAI de ate gráfica agora se não me engano ta lá na Radial Leste, na Rua Bresser, ali por perto. Agora se não me engano esse SENAI é de têxtil, se não me engano, no Cambuci, não tenho bem certeza, mas deve ser isso. Nessa escola que tinha esse ofício que eles me recomendaram. Eu fui lá, me dei bem, gostei, aí comecei. Eles me puseram na empresa Diário da Noite, foi quem custeou os meus estudos, que eu ia receber meio salário mínimo. Estudava e ia receber na empresa meio salário mínimo. A gente ficava seis meses na escola e depois ficava seis meses na indústria. E nesse tempo que tava na escola a gente ia só à empresa receber o pagamento. Uma ajuda de custo praticamente, né, não era um pagamento, mas ajudava muito.
P/2 – Aprendiz de linotipo?
R – Aprendiz de linotipo.
P/1 – E o senhor podia contar assim pra nós o que é uma linotipo?
R – O linotipo é uma máquina que veio pra substituir o trabalho do tipógrafo, apesar de que não substituiu porque até hoje existe tipógrafos por aí. O tipógrafo é aquela pessoa que trabalha numa caixa grande onde tem os tipos móveis, pegava um por um e ia ajuntando num chamado componedor, juntava as letrinhas, formava as palavras, formava letra e depois passava pra chapa que nós chamamos, pra ser impresso depois no papel. Papel ou algum outro material, né? E a linotipo é uma máquina que funde essa linha que o tipógrafo fazia tipo por tipo, ela funde a linha todinha numa linha só. Você acha interessante eu mostrar uma linha da linotipo?
P/1 – Pode mostrar.
R – Eu tenho aqui comigo, eu peguei, na linotipo tem uma linha. Como que é o trabalho dessa linotipo? Quer por perto pra mostrar, o que vocês acham melhor?
P/1 – Não, dá pra ver, não dá?
R – Essas são as linhas que a linotipo faz, por intermédio dessas matrizes, vocês reparam que ela tem um olho em baixo relevo. Deu pra pegar? Nesses caracteres que aqui estão impressos é onde é gravado o chumbo. Esse chumbo é derretido a caloria mais ou menos a trezentos graus, duzentos e oitenta, trezentos graus pra fundir esta linha. E depois essas matrizes têm, talvez vocês não vão conseguir pegar, uns dentinhos aqui em cima. Esses dentes se vocês repararem uma e outra dão uma diferença, tem uns maiores e outros menores. Esses dentinhos funcionam que nem um segredo de cadeado, a própria máquina depois que alinha é fundida, elas levam essas matrizes pra um dispositivo especial, tem um prisma e essa matriz ao correr no prisma, quando coincidir a falta de dente aqui, ou dente lá, desprende automaticamente e torna a cair no lugar dela. Tem uma caixa onde são armazenadas essas matrizes e elas caem direitinho lá porque quando a gente aciona o teclado, o teclado tem umas peças que desprende dessa matriz, ela cai e vai formando essa linha. Depois essa linha vai pra fundição e repete-se todo o sistema. Compõe-se, funde, distribui, torna a cair lá em cima no magazine que chamamos aquele depósito e assim é a rotativa da linotipo, é o funcionamento básico dela. Essa máquina consiste de um teclado que tem noventa teclas, são trinta teclas de letra minúsculas, trinta de sinais e numerações e trinta de letras maiúsculas. Sendo que muitas letras que não constam no teclado elas caem fora, ela tem todos os dentes nessa matriz, que eu mostrei pra vocês anteriormente, todos os dentes grandes. Ela passa o prisma, que nós chamamos, totalmente, e cai por uma... Como vou dizer pra vocês? Um escaninho que traz essa matriz até o lado aí que elas ficam... Você pega com a mão no caso quando chega um “w”, um “y”, letra maiúscula que não tem acento, não tem no teclado, um “a” til, um “a” tremado, um “u” tremado. Você pega com a mão e põe no local no componedor pra formar a palavra. Esse é o funcionamento básico da linotipo.
P/1 – E como foi quando o senhor começou a trabalhar né, no... Desculpa, o senhor falou, primeiro foi no Diário da Noite?
R - O primeiro foi Diário da Noite, foi quem custeou os meu curso no SENAI.
P/1 – Quando o senhor chegou lá no Diário da Noite como que foi essa relação do senhor lá? Assim, a primeira impressão que o senhor teve...
R – É completamente diferente da escola. A gente chega à escola é uma coisa, chega ao local de trabalho é outra. Tanto é que eu não fui trabalhar praticamente na linotipo logo que eu cheguei ao Diário da Noite, na oficina eu fundia, na mesma máquina da linotipo só que tem um material, uns apetrechos especiais, nós chamamos de matrizes também, mas é inteiriça, dá o tamanho máximo que a linotipo compõe, que dá, nós chamamos de vinte e oito cícero, dá, em centímetros isso dá... Um cícero é quatro e meio, quatro e meio, não, doze cícero é quatro e meio centímetros. Daria mais ou menos uns onze centímetros, doze dá quatro e meio, vinte e quatro dá nove, com mais quatro são mais... É daria uns, onze, doze centímetros é o máximo que a máquina funde, a linotipo. Então eu fundia esses fios que vão, vinhetas que colocam em anúncio, fios também vão em anúncios, em baixo de manchetes. Eu fazia esse serviço, até determinado horário. Quando os linotipistas propriamente ditos terminavam a edição do jornal eu de posse de uma mangueira de ar comprimido derrubava o chumbo que acumula o... Que essa linha ao ser fundida ela vem bruta e pra sair assim toda direitinha ela passa por umas lâminas que aparam a traseira e apara a lateral e aquilo forma umas fagulhinhas de chumbo, umas aparas pequenininhas. Eu derrubava aquelas aparas, varria aquele chumbo, punha num carrinho e levava pra fundição. Porque se funde nesse chumbo depois de usado, ele é novamente fundido e é reaproveitado na máquina novamente pra tornar usar a reciclagem. Sendo que periodicamente ele precisa ser adicionado o estanho e o antimônio, porque essa aqui, esse chumbo nós chamamos, é uma liga de estanho, chumbo e antimônio. Sendo parece, se não me engano, é oitenta e quatro de chumbo, onze de estanho e cinco de antimônio. Essa é a fórmula da composição da liga desse chumbo que nós usamos. E com o tempo muito derreter o antimônio ele vai perdendo, a terra, o antimônio vira uma terra de muito queimar, muita caloria. Então vai perdendo essa qualidade, ele fica mais, mais mole, que o antimônio serve pra endurecer o chumbo e o estanho. Então normalmente tem que refazer essa liga pra poder trabalhar cem por cento. E eu fazia esse serviço no Diário da Noite, quando acabava o linotipista, acabava a composição, varria e levava pra fundição essas amparinhas que sobravam do chumbo.
P/2 – Só pra registrar, o Diário da Noite era um grande jornal, não é isso?
R – Era um grande jornal.
P/2 – Da família Chateaubriand.
R – Da família Chateaubriand. Ele fazia o “Diário de São Paulo” à noite e de manhã era o “Diário da Noite”. Que o “Diário da Noite” tinha duas edições, saía uma praticamente às dez horas na rua, outra saída uma hora, duas horas mais ou menos. Duas edições diárias e uma no Diário da Noite. Aliás, à noite fazia o “Diário de São Paulo”, na mesma oficina, né? Foi onde praticamente, ao terminar o curso, como não tinham lugares pra linotipistas vagos lá, eu fui dispensado e comecei a peregrinação por diversos lugares por aí, que eu nunca fui de esquentar cadeira, nunca fui de... Sempre que aparecia um emprego melhor eu debandava em procura de outro mesmo. Tanto é que quando eu me aposentei ___(?) eu tinha doze registros na minha carteira. Até a pessoa que me fez minha contagem de tempo falou: “Poxa, mas você não parava em lugar nenhum? Você foi um cigano da profissão.”. Falei: “É, só você dar uma olhadinha na carteira aí que não tem nenhum abaixo de salário não, sempre foi aumentando.”. Então sempre fui assim, nunca fui de fazer muito esquentar lugar não.
P/1 – E seu Darci, em quais jornais o senhor trabalhou?
R- Em jornais praticamente eu trabalhei no “Diário da Noite”, eu trabalhei na “A Nação”, que foi um jornal que teve vida curta. Trabalhei... Eu não me lembro a época precisa, mas houve um tempo que tinha um racionamento de luz em São Paulo e tinha a Hora e o Esporte só funcionava de madrugada. Eu cheguei a trabalhar um tempo de madrugada nesse jornal “O Esporte e a Hora”. Mas nesse foi muito pouco tempo, que logo acabou o racionamento, tudo voltou. Depois eu trabalhei no “Jornal Paulista” que é um jornal já dedicado à colonização japonesa, a comunidade japonesa em São Paulo, que da mesma linha do “São Paulo Shimbun”, que é mais conhecido, mas esse é “Jornal Paulista”. Trabalhei na edição de esportes do “Estado de São Paulo”, que era uma edição que só circulava segunda-feira. Então eu trabalhava no domingo na parte da tarde pra fazer a edição de segunda-feira de esporte. Sendo que essa edição se transformou no “Jornal da Tarde”. Quando foi criado o “Jornal da Tarde” então eu passei a trabalhar no “Jornal da Tarde”, que foi a empresa onde eu fiquei mais tempo, foi no “Estado de São Paulo”. Somente saí porque houve uma reviravolta na chefia, o meu chefe também foi embora porque pegaram um engenheiro, um rapaz recém-formado e puseram na chefia da oficina. O meu chefe simplesmente chegou à reunião da diretoria e falou: “Olha, não tenho nada contra o rapaz aí, nunca me fez nada nem conheço, ele está chegando aqui agora, mas vocês vão me desculpar eu não vou trabalhar pra ele ficar atrás de mim e assinar só um relatório. Eu não vou ser chamado boi de piranha pra outro aparecer, então eu vou.”. E foi embora. E aí esse novo engenheiro, um rapaz que não tinha experiência em jornal, começou impor um montão de normas novas que não se adaptavam, eu acabei brigando com ele e fui embora. Meu estilo sempre foi esse, eu nunca fui de levar... De deixar barato pra se dizer vai como se diz hoje. Então eu não admitia ser passado pra trás, ser menosprezado. Ele começou uma nova linha. Também o jornal “Estado de São Paulo” já tava em vias de mudar de prédio tudo então... Foi quando que eu saí e entrei na Imprensa Oficial, fui fazer o “Diário Oficial”. Aí foi outra briga que eu tive no “Diário Oficial”. Porque nós estávamos na Rua da Mooca, num local amplamente ventilado e tudo, porque você imagina trabalhar num local com trinta, quarenta máquina linotipo, com trezentos graus de caloria cada máquina, como é que se torna esse ambiente, o calor que se faz aí dentro. E esse prédio no Brás, na Mooca, aliás, pra onde o “Diário Oficial” mudou, era uma fábrica de calçados, calçados Clark. Sendo que existiam umas janelas bem altas, tinha mais de dois, três metros de altura e muito estreita, praticamente meio metro ou um pouquinho mais de largura por dois, três metros de altura. E aquilo lá dentro era um forno. Foram instalados uns aparelhos de ar condicionado muito grandes, muito gigantes mesmo, mas mesmo assim não refrigerava o ar. Não dava, era muito, muitas máquinas, muita caloria, então... Eu não me adaptava, chegava lá e ia abrir a janelinha. O chefe chegava e falava: “A janelinha você não pode abrir se não o ar condicionado não funciona.”. Chegava e comentava com ele: “O negócio é o seguinte, esse ar condicionado não resolve nada. A gente não suporta ficar aqui dentro.”. Ele simplesmente me respondia: “Como que o meu funciona?”. Eu falava: “É claro, você trabalha num local que só tem o teu aparelho atrás de você, não tem máquina nenhuma do seu lado. Lá é uma geladeira, lá funciona mesmo, mas vem aqui no meio.”. Ele falava: “Não, não pode, se abrir não funciona...”. Era uma briga constante. Então eu trabalhava só de camiseta, ele chamava atenção que não podia. Eu arregaçava as calças até aqui em cima e ficava trabalhando praticamente de bermuda. Ele não... E teve uma época lá precisavam dispensar dezoito, oito pessoas. E tínhamos duas turmas, uma turma da tarde, uma turma da noite. Esse chefe meu que eu trabalhava a tarde chegou pro chefe da noite que era superior a ele, o encarregado, e falou: “Quantas pessoas vão embora?”. Ele falou: “Vão oito.”. Falou: “Como que vão ser esses oito?”. “Vão quatro da tarde e quatro da noite”. Aí ele falou: “E o Jacaré ta nessa?”. Depois eu vou contar pra vocês a história que o meu apelido Jacaré. Aí chegou ele falou: “Não, o Jacaré não está.”. “Não, então tem que ser dez, o Jacaré tem que ir embora. Eu não agüento mais trabalhar com esse rapaz aqui dentro. Ele não me deixa trabalhar sossegado...”. Pra encurtar a história mandaram dez. Aí eu quis saber qual o motivo da minha dispensa. Eu tinha um colega que morava em frente à casa do Washington Natel, que era irmão do Laudo Natel e naquela época ele era chefe da casa civil do governo do estado de São Paulo, sendo que o Laudo Natel era governador. Cheguei, falei: “Aiubi...”, é o nome desse colega meu. Falei: “Aiubi, você mora perto da casa do...”. Falou: “Ah, eu conheço inclusive os filhos dele e tudo, tenho uma amizade.”. Falei: “Você não podia me arrumar falar com o Washington?”. Ele falou: “Vou falar com ele e trago a resposta.”. Ele foi, ele falou: “Sábado ele quer falar com você”. No sábado me desloquei até a residência do Washington Natel. Depois de muita conversa, ele me contou praticamente a vida dele toda, foi uma conversa informal, conversa de amizade, nada de oficial não. Aí no fim da conversa eu cheguei pra ele eu falei: “Doutor o negócio é o seguinte, a minha preocupação, eu vim até a sua residência pedir um favor pro senhor.”. Ele falou: “Pode falar, o que você quer?”. Eu falei: “Até mês passado eu fazia parte do quadro de funcionários da Imprensa Oficial e eu fui mandado embora. Me despediram sem me explicar o motivo. Então eu quero, se tiver na sua possibilidade, eu creio que está o senhor sendo chefe da casa civil, fazendo uma solicitação à Imprensa Oficial eles poderiam mandar a minha ficha pro senhor. E o senhor me daria o motivo da dispensa que ta marcado na ficha.”. Falou: ”O senhor pode vir aqui sábado que vem?”. “Pois não.”. Sábado seguinte voltando lá e ele entregou a minha ficha: “Tá aqui a sua ficha.”. Eu fui no fim da ficha lá, “dispensado no dia tal”. Foi no fim, no começo de maio. Falou “Motivo da dispensa: contenção de despesa”. Eu falei: “Doutor, mas eu não entendo. Eles mandaram quinze, mandaram dez embora e admitiram quinze.”. Simplesmente falou: “Nós não podemos fazer nada. Você tava ali pela lei da CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, que acabaram com a CLF, que é a lei do funcionalismo na Imprensa Oficial. E você pela CLT e a CLT tem um dispositivo que permite ao patrão fazer a dispensa por contenção despesa.”. Falou: “Infelizmente, eu não posso fazer nada.”.
(troca de fita)
R – Eu então esse Washington Natel chegou e falou... Eu falei: “Doutor, pro senhor ver, nós estamos em maio de 71, eu tenho um filho que nasceu agora dia 22 de março, que foi o Wagner. Eu tenho com menos de dois meses e me encontro no olho da rua. O que o senhor acha que a gente deve fazer pro cargo de chefia que me fez essa perseguição?”. Ele falou: ”Eu acho você não fazer nada.”. Ele falou: “Faz o seguinte, segunda-feira você vai até o palácio, fala comigo que eu vou te arrumar um serviço lá no palácio.”. Falei: “Doutor, não é querendo cobrar nada não, mas o senhor está com a minha ficha na sua mão. O senhor vê qual era o meu salário. Vê se dá pra o senhor arrumar um emprego pra mim nessa faixa mais ou menos que nós temos o nosso nível de vida ta baseado nisso e cair muito não tem condições.”. Ele falou: “Bom, esse salário teu é um cargo de chefia lá. Eu vou te arrumar um cargo de chefia de qualquer coisa. Você pode ser chefe dos faxineiros, chefe de não sei o que lá. Eu te arrumo um cargo de chefia você vai ganhar o mesmo salário. Ta de acordo?”. “Tô de acordo.” Ele falou: “Então segunda-feira você pega põe um terninho, uma gravatinha...”. Falei: “Ih doutor! Azedou tudo, terno e gravata o senhor vai desculpar, mas não é comigo não. Eu sempre andei assim, eu sempre andei à vontade. Eu não vou me sujeitar a um emprego de terno e gravata porque não dá.”. Então eu peguei, dispensei o emprego que ele tava me oferecendo. Porque inclusive eu o questionei, falei assim: “Esse emprego será definitivo, ou temporário?”. Ele me falou: “Enquanto eu estiver lá você está comigo.”. Eu falei: “E depois que o senhor sair?”. “Aí dependerá da nova, do novo chefe de gabinete que chegar. Se ele quiser te aproveitar te aproveitar te aproveita, se não você vai embora comigo.”. Eu falei: “Doutor, o senhor está no fim de mandato, o teu irmão já vai deixar o governo e eu sei que o senhor vai junto. Praticamente muda o governo, muda todo o secretariado, muda tudo e o senhor também. E eu vou junto com o senhor. Então praticamente eu vou apenas adiar o meu problema. Então eu vou procurar resolve-lo mesmo, de imediato, procurar outro serviço e...”. Então peguei e dispensei o emprego que ele tava me oferecendo. E agora eu vou dizer pra vocês então o apelido do meu... Aliás, a razão do meu apelido Jacaré. Quando nós trabalhávamos no jornal “Estado de São Paulo”, mas especificamente no “Jornal da Tarde”, o jornal funcionava da seguinte maneira: o repórter saia pra rua, pegava a notícia, ia pra redação, datilografava, descia pra oficina, mandava o original __(?) pra oficina. Nós compúnhamos, depois ia pra revisão, voltava pra gente fazer as correções que tinha, era paginado e aí seguia o ritmo normal do jornal. E nesse intervalo de um original pra outro às vezes não tinha o original continuamente e ficavam umas pessoas vagas, uns linotipistas sem fazer nada, esperando descer o original. Eles colocavam então em frente onde pegava o original, chamava de mesa lá, em frente à mesa, um quadrinho negro, uma lousa, com giz pra você marcar o número da sua máquina. Pra não ter cada um fazer corpo mole, trabalhar menos do que outro, ficar se escondendo, sabe como é, tem muita malandragem, operário brasileiro é cheio de boas idéias. E eu chamava, ficava lá por perto, descia o original, primeiro número três, três no jogo do bicho é burro. Eu gritava: “Burro! Burro, quem é o burro?”. Então o cara chegava e pegava o original. Tinha lá o dois, o dois era águia: “Águia!”. Assim por diante. Sendo que a minha máquina era quinze e quinze, o grupo quinze no jogo de bicho era o jacaré. Pra encurtar a história o único apelido que pegou foi o meu. Os outros que eu chamava por apelido ninguém pegou e o meu ficou: “Jacaré, jacaré, jacaré!”. E eu sou Jacaré até hoje! Essa é a razão do meu apelido Jacaré, que foi adquirido dentro do serviço na gráfica, na oficina do “Estado de São Paulo” e “Jornal da Tarde”.
P/1 – O senhor ficou conhecido como Jacaré? Até hoje?
R – Até hoje. Tanto é que no sindicato, onde eu faço parte da associação de aposentados, muitas pessoas chegam lá procurar pelo Darci Callegari eles não conhecem. Falou por Jacaré, “Ah, Jacaré é aqui, Jacaré ta aí!”. Assim que todo mundo... Então ficou... Também no Sindicato Nacional dos Aposentados da força sindical onde eu sou o diretor de comunicações também todos estados que eu vou por aí conhecem como Jacaré. E ficou Jacaré, e eu vou ser Jacaré até o fim da vida, fazer o que, né?
P/2 – E lá no Estadão você trabalhou na época do regime militar?
R – Do regime militar.
P/2 – Como é que era a questão da censura e o trabalho de trocar a notícia lá na linotipo?
R – Isso aí tem um fato interessante. Nessa época da ditadura porque a turma fala revolução, mas revolução não vi nenhuma. Porque no dia da revolução, 31 de março, 1 de abril, que eles não querem que fale primeiro de abril porque primeiro de abril é a data da mentira. Então eles falam que foi trinta e um de março. Mas eu não estava nem aqui em São Paulo, eu estava na cidade de Capivari, com o meu primo, eu tava viajando com uma combi. Depois nós fomos a Capivari, fomos até Rio das Pedras, em Rio das Pedras demos a volta, fomos parar em Americana. Chegamos a Americana não estávamos sabendo de nada. Nós fomos num posto reabastecer a perua, chegou ao posto o cara falou: “Não, não temos combustível.”. Falei: “Não tem problema, nós vamos a outro posto”. Falou: “Não, você não vai achar combustível em posto nenhum”. Falei: ”Como não vamos achar combustível em posto nenhum?”. “Você não tá sabendo?”. “Sabendo do que?”. “Houve uma revolução no Brasil”. Falei: “Revolução? Aqui no Brasil?”. “É, revolução.”. Falei: “Não tô acreditando.”. Falou: “Não, o senhor não tem, o senhor não vai achar combustível. O exército requisitou todo o combustível, ta tudo... Bomba tudo na direção do exército.”. Falei: ”Como nós vamos embora pra São Paulo? Ta no fim o tanque...”. Falei: “É, até esse...”. O proprietário do posto falou: “Faz o seguinte, pega a sua perua e põe lá atrás na oficina mecânica”. Eu falei: “O que eu vou fazer na oficina mecânica?”. Ele falou: “Põe lá, põe lá e vai dar uma volta.”. Eu falei: “Por que razão isso?”. Falou: “Não, eu tenho uns tambores de combustível lá de gasolina que nós usamos pra lavar peças, essas coisas, eu vou te abastecer usa perua.”. Eu falei: “Mas não é gasolina suja?”. Ele falou: “Não, gasolina limpinha. Gasolina tirada da bomba, pode ir lá, não tem...”. Pusemos o carro no fundo, a perua lá na oficina mecânica e fomos dar uma volta na cidade. Daí meia hora voltamos ele falou: “Tá aqui a chave pode pegar e vai embora que tá com o tanque cheio.”. Aí mexemos lá, falamos: “Quanto que é?”. Ele falou: “Deu tantos litros é tantos cruzeiros.”. Até meu primo falou: “Mas o senhor não vai cobrar a mais?”. Ele falou: “Não, porque razão cobrar a mais. É combustível que eu pus lá, combustível é o preço de bomba.”. Aí meu primo pra agradecer a ele comprou uma lata de óleo que não ia usar, comprou deixou lá na perua. E perto desse posto tinha estação ferroviária, não tinha trem também. A estação apinhada de gente. Cheguei pra ele falei... Esse meu primo o chamo de Pelanca, ele chama Valdemar Davanço, mas eu o chamo de Pelanca. Falei: “Pelanca, vamos dar uma passadinha ali, ver se, vamos levar alguém embora. Ver se alguém vai pra lá, se servir. Não vamos cobrar nada.”. Falei: “Vamos pegar e levar. Nós vamos vazio mesmo, não custa nada levar alguém.” . __(?) fomos embora da estação tinha uma rodinha de umas seis, sete moças conversando, falei: “Vamos ver pra onde vai aquela turma ali. Se a gente puder levar alguém a gente leva”. Abri a porta, cheguei e perguntei, falei: “Olha vocês estão o que?”. “Ah, nós somos professoras, nós vamos, precisamos dar aula...”. Falei, “Mas aonde que vocês vão?”. Cada uma falou que ia num local sendo todas no caminho nosso. A mais, que ia mais longe ia até Jundiaí. Falamos: “Ai, se servir na Anhanguera, por ali, se quiser deixar vocês...”. Falou: Puxa, é caminho, cem por cento!”. Falei: “Então faz o seguinte, vamos devagar, não vão correndo porque se você correr todo mundo vai querer entrar, não vai dar. Vão vocês essa turminha aqui, chega naquela perua ali, sentam lá que nós vamos levar vocês embora.”. “É, mas quem são vocês?”. Falei: “Não, nós estamos...”. Expliquei o caso pra ela, aceitaram e foi o que nós trouxemos. Então cheguei pro meu primo falei: “Olha, agora quando chegar em São Paulo vamos ficar de olho vivo porque se teve revolução o negócio deve ta feio lá. Deve ter canhão pela rua, bomba.”. Nós morávamos em Tucuruvi, pegamos a Anhanguera na Lapa, viemos e chegamos em casa e não vimos nada. Eu em casa falei pra minha mãe: “Mãe, cadê a revolução?”. “Que revolução filho? Você ta no Brasil, você pensa que você ta aonde?”. Falei: ”Ah bom, já que é assim então.”. E foi a revolução. Sendo que nessa ao vim de Tucuruvi pra trabalhar no jornal, que eu trabalhava nessa época no “Estado de São Paulo”, ao passar na Ponte da Bandeira, na Ponte Grande tinha ali na praça em frente ao clube Atlética São Paulo, Tietê, uns tanques de guerra. E a garotada brincava de esconde-esconde nesses tanques. Subiam, pulavam pela escotilha, desciam embaixo das lagartas tudo. Falei: “Olha a revolução nessa terra como que é!”. Cheguei no jornal falei pra um fotógrafo: “Vai lá dar uma, bate uma foto daquilo lá só pra eu daqui vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos quando eu falar, se eu tiver vivo, pra turma não dizer que eu to mentindo.”. Ele falou: “Não, eu não posso fazer isso. Se eu for lá, bater uma foto e me pegarem eles somem comigo.”. Ele falou: “Vai você, pega uma máquina e vai lá meio, finge que você ta fotografando a praça tudo e dá...”. Falei: “Não, se somem com você comigo então mais fácil ainda. Você sendo repórter jornalista é mais difícil eles sumirem, com uma pessoa do povo então...”. Então infelizmente não tem isso gravado, não tenho como provar, mas que existiu, existiu.
(pausa longa)
R – Antes Bety eu quero me falar o que o Piora me pediu aqui, como que era a censura no jornal... Isso daí aconteceu um caso interessante, que nós passamos por uma época de censura meio rigorosa aqui mesmo. Na época da revolução, tudo, os jornais não podiam publicar o que lhes desse na telha, tinha que ser com autorização, matéria que não depusesse do regime nem nada, poderia sair. Do contrário era cortada. Existia no jornal, no quarto andar do prédio do jornal “Estado de São Paulo”, uma sacada que dava entrada para o restaurante. E do lado pela Rua Major Quedinho tinha essa livraria que eu já falei com você, não sei se eu falei aqui, _(?). Nós ficávamos lá em cima nessa sacada vendo eles jogarem jornais por cima do muro, pegar as peruas e saiam pra banca. E os censores ficavam na porta do jornal principal lendo o jornal e cortando o que não podia sair. Então o jornal voltava, ia pra oficina, a oficina não sei se é pra, pra não perder tempo ou pra demonstrar a população que tinha alguma coisa naquele espaço que foi retirado que não podia ser publicado, eles publicavam receita de bolo. Era bolo de chocolate, bolo de fubá, bolo de coco, bolo... Você pegava o jornal daquela época, se vocês tiverem alguma dúvida é só procurar o “Estado de São Paulo”, vocês vão ver na primeira página muitas receitas de doce, de bolo. Que eles faziam isso pra burlar a censura, pra não por outra matéria. A censura pensando que estava censurando e ao contrário. Então eles estavam usando dessa artimanha pra... O leito como já sabia que lá ia sair alguma coisa já pensava: “É, aqui tinha alguma coisa que nós não podemos ficar sabendo, a censura não deixa”. E é por isso naquela época a censura era feita desse tipo.
P/1 – E como que era a relação, né, do senhor, das pessoas que trabalhavam com o senhor, que trabalhavam nas gráficas, com os jornalistas?
R – Eram boas. Apesar de que nós tínhamos muito contato, porque os jornalistas eram uma área separada, trabalhavam em andares diferentes tudo. Nós só tínhamos contato com alguns jornalistas que às vezes desciam na oficina pra pedir pra pedir destaque em alguma matéria, pedir... Quando, no fechamento do jornal, quando tá pra encerrar a edição, se está estourando a matéria, estourando que se diz é que tem matéria a mais que não cabe no espaço que lhe foi reservado. Então eles desciam na oficina e cortava o que podia cortar da matéria pra poder encaixar naquele espaço que hoje no computador você aperta uma tecla, você muda todinho, ta em trinta centímetros você quer menos, você aperta uma tecla diminui o corpo o arquivo automaticamente diminui. Com o chumbo não, com a linotipo não tem essa facilidade. Se você tivesse fazendo o que nós chamamos de corpo. Corpo é o tamanho da letra, corpo seis é menorzinho, oito, dez e assim por diante. Se a matéria tivesse composta no corpo dez e estourassem, não cabia. Então tinha que refazer a matéria no corpo seis e no corpo oito, que era pra poder caber naquele espaço. Jogavasse fora o corpo dez e fazia tudo de novo no corpo oito. Agora no computador você pega uma setinha chega lá no __(?) e põe lá corpo, dez, doze, você põe oito, aperta, diminui. Naquele tempo não, fazia tudo de novo. Então pra não ter, às vezes não tinha esse tempo hábil, precisava por, tinha horário pra lançar edição na rua, o jornalista ia lá e cortava matéria, tirava algum tópico que podia tirar ele fazia esse serviço. Nossa relação se restringia a isso com o jornalista praticamente. A não ser depois do expediente, geralmente a gente nunca ia pra casa. A gente se reunia num bar perto. Aqui em São Paulo tem um bar que ficou famoso entre os gráficos na Praça Clóvis, o __(?), que lá era o ponto de encontro de todos os gráficos de jornais e jornalistas, se reuniam nesse bar de madrugada. Saíam, fechavam jornal edição. Fechar que eu digo é quando acaba a edição do jornal, fala fechou, quer dizer que fechou acabou a matéria do jornal tudo, pode ir embora. Então a gente se reunia nesse bar. A gente precisava de emprego, chegava lá de manhã, encontrava com os amigos de madrugada. “Ô estou desempregado.”. “Aparece lá que tem uma vaga lá pra você”. A gente arrumava emprego desse jeito antigamente. Era lá e no restaurante Gouveia, são os dois pontos que a gente tinha de referência pra se encontrar com os gráficos de jornais, praticamente era nesses dois bares. E a nossa relação com jornalistas praticamente isso, tomar uma cervejinha, bater um papo, contar, relembrar alguma matéria que ele publicou, alguma coisa, um fato interessante que aconteceu na reportagem. A gente... Nosso relacionamento era praticamente esse.
P/1 – E seu Darci, como senhor vê a profissão do senhor, essa trajetória que ela teve, esse histórico dela hoje, de quando o senhor começou até hoje. Como que o senhor vê a sua profissão?
R – Olha, sinceramente a gente, porque eu vou ser sincero com você, eu amo a minha profissão. Aprendi a gostar dela desde quando começamos... Quando que me convidaram pra vir aqui fazer esse depoimento eu gostei, gostei mesmo. Eu falei: “Vou falar de uma coisa que eu gosto.”. Uma coisa, se eu tenho alguma coisa na vida hoje eu devo a ela. Não posso dizer mal da minha profissão. Eu creio que um dos motivos maiores que existe nessa transformação foi a força que os linotipistas tinham dentro de uma redação de jornal. Dentro de um jornal, praticamente, não de uma redação, de um jornal. Porque o linotipista tem por obrigação ser um pouco alfabetizado, ele é obrigado a ler a notícia pra ele compor. Então não pode ser analfabeto, ele tem que ter um pouco de instrução. E nós, cientes da nossa importância, nós reivindicávamos muitas coisas pro jornal. A nossa melhoria salarial, melhoria de material, melhoria de cargo de chefia, muitas coisas nós questionávamos. E nós éramos uma pedra no sapato dos editores de jornais, dos jornalistas, dos donos de jornais. Porque se nós parássemos o jornal não saia, não existia matéria prima. Eles viam o linotipista como uma classe muito reivindicatória. Então eles queriam procurar ao máximo eliminar com a gente. Eu me lembro, que essa daí talvez ninguém tenha conhecimento, a última parada de jornais que nós tivemos. Eu tive parte importante nessa paralisação. Porque nós chegamos ao nosso diretor... Isso foi no jornal “Diário da Noite”. “Diário Popular”, que foi o último jornal a utilizar o sistema de composição a quente aqui em São Paulo. Fizemos reivindicações pro nosso diretor industrial, melhorias, já estávamos vendo o fim da linotipo, o fim da nossa profissão, o fim da nossa carreira. Nós vamos fazer umas reivindicações pra gente poder ter uma aposentadoria melhor, pra aumentar nosso salário, muitas reivindicações. Em conversa, eu fiz parte de uma comissão de salário. Fomos escolhidos três profissionais para falar com o diretor, eu fazendo parte dessa comissão, cheguei, fizemos as reivindicações. E ao término das reivindicações eu falei: “Olha doutor, achava bom o senhor dar pelo menos alguma coisa do que foi reivindicado aqui que o seu jornal está na iminência de não ser publicado amanhã, de não sair na rua.”. Então ele fala: “Isso é uma ameaça?”. Falo: “Não, não. É um aviso pro senhor. O senhor também é novo aqui no jornal, o senhor tem cargo de confiança, o senhor deve pensar bem nisso. Nessa possibilidade que talvez possa custar o seu emprego. Eu estou avisando o senhor como amigo.”. “Tá, tá bom, amanhã dou uma resposta pra vocês.” Na noite seguinte toda a equipe reunida foi cobrar da chefia a resposta do diretor. Chegou falou: “É, ele disse não a todas as quatro cláusulas que vocês falaram com ele”. Falei: “Bom, então o senhor faz o favor, você pega o telefone e avisa ele que o jornal não sai.”. “Por que não sai?”. Falei: “Não, eu avisei ele ontem que se não tivéssemos nenhuma das nossas reivindicações atendidas o jornal correria o risco de não sair. E nós já reunimos a corporação todinha, achamos por bem não trabalhar se não tivermos nada atendido.”. Comunicou a diretoria, o diretor industrial. Logo em seguida ele desceu na oficina, chamou os membros da comissão, que fizeram parte, eu e outros dois e falou: “É, em vista disso nós vamos atender essa reivindicação e essa, nós vamos dar.”. Eu simplesmente falei pra ele: “Doutor, só que tem o seguinte, agora tem mais uma a fazer.”. Ele me virou e falou: “Você ta parecendo um moleque! Vocês me falam uma coisa ontem, hoje vocês querem outra?”. Eu falei: “O senhor vai perdoar a minha sinceridade, moleque tá parecendo o senhor. Se o senhor depois que teve a reação que o negócio não ia sair, o senhor vem aqui querer agora dar o que nós pedimos? Coagido o senhor vai trabalhar, o senhor ta sendo moleque! Mas a corporação achou já que ele não quer dar nada, então exigimos mais isso aí!”. “É, mas aí não temos condições.”. Bom, pra encurtar a história, ele não nos deu nada, o jornal não ia sair. Pegaram um rapaz, um que debandou da nossa turma, usaram ele, foram na redação, davam matéria pra ele, ele descia, pegava um táxi e mandou fazer numa tipografia fora. O jornal saiu com uma edição reduzida. Costumava sair no máximo, no mínimo, aliás com vinte e quatro, trinta e duas páginas, saiu com oito páginas. Sendo que na primeira página eles puseram um aviso, que por motivos técnicos aquela edição estaria sendo suprimida, sendo diminuída e voltaria a normalidade no dia seguinte. Perderam muitos anunciantes, muitos anúncios, que o “Diário Popular” era praticamente feito de anúncio, não saiu anúncio nenhum naquele dia. E no dia seguinte tivemos uma reunião onde entramos em um acordo, ele deu em parte o que nós pedimos, outra parte nós cedemos. Então, essa foi a última paralisação que fizemos em jornal em São Paulo. Não deu pra perceber porque o jornal chegou a sair.
P/2 – Que ano que foi isso?
R – Foi em mil novecentos... Já fazem... Foi 1989 ou 90 e eu tenho em casa esse exemplar que eu guardei, que consta na primeira página que por motivos técnicos eles tiveram que reduzir o número de páginas... Foi nessa época, acho que foi em oitenta e nove, noventa. E foi na época que deixou de circular a edição do jornal “Diário Popular” a quente, a linotipo.
P/1 – E seu Darci como, voltando um pouco, essa evolução tecnológica, né, que houve dentro das redações, eu estou falando redações porque a gente tá falando dela. Não só dela se quando o senhor for falar a respeito o senhor pode falar de toda essa renovação tecnológica dentro da profissão de gráfico, né, da profissão de linotipografia, dos tipógrafos. Como que o senhor foi vendo isso e isso foi se perdendo, né? Porque hoje é uma profissão que ela ta sendo extinta.
R – Isso nós estamos vendo que em certa parte o culpado disso foram os sindicatos. O Sindicato permitiu essa eliminação da categoria, praticamente eliminação da categoria gráfica em jornais. Porque o jornal hoje só usa o gráfico na impressão, nos outros sistemas, nas outras etapas da confecção do jornal não existe mais o gráfico. Porque existia o gráfico linotipista, existia o gráfico tirador de prova, existia o gráfico calandrista, existia o gráfico fundidor de telhas que nós chamávamos, e posteriormente o impressor. Hoje como todos nós sabemos o redator chega à redação, compõe a matéria dele, aperta um botão no computador, já transmite praticamente para a máquina de impressão. Ele já põe a disposição que ele quer na matéria, põe o tamanho, põe tudo. Eliminou todas essas etapas. E aí houve um desemprego muito violento no setor gráfico e consequentemente a perda de força do nosso sindicato. Porque a força que o sindicato de gráficos tem em São Paulo é uma das forças que era um sindicato que servia praticamente de paradigma para todas as outras nos aumentos salariais. Os metalúrgicos inclusive que hoje são uma das maiores forças, o bancário, eles se baseavam no aumento que os gráficos tinham, porque os gráficos tinham a data base, o dissídio coletivo dele era antes dessas categorias. Então nós servíamos de ponto de referência pra eles. O aumento que nós recebíamos, a reposição salarial que nós tínhamos, ela praticamente servia de base pros outros sindicatos também pedir o mesmo aumento, por perto, né, um pouco mais, um pouco menos. E essa mudança influiu muito na situação do país, porque nós mesmos, os gráficos, nós chamamos, falo nós, perdemos toda a nossa força. Não temos mais... Agora o gráfico somente em casa de obras. Casa de obras que eu digo são pessoal que faz pequenos serviços, trabalha pra... Não tem quase mais serviço pro gráfico, pro gráfico mesmo, tem pro impressor, que não deixa de ser um gráfico, mas é o único gráfico talvez que esteja atuante até hoje em dia. Porque o resto foi tudo eliminado. O computador tomou conta de tudo. Apesar de que o computador esta tendo, melhorou muito a qualidade do jornal, porque no começo da era computador nós pegávamos o jornal, nós como gráficos a gente ia ler um jornal a gente ficava com vergonha. Sendo corte de palavra, você punha uma letra numa linha, uma palavra no fim, ficava aquele brancão no meio. Hoje em dia já não se vê mais isso. Cortes de palavra principalmente, cortes que um gráfico, um linotipista não fazia muito. Vou dar um exemplo que veio na cabeça aqui agora, cortar a palavra criança, põe a “cri” em cima, “ança” embaixo. Nós nunca podíamos fazer um corte desse, apesar de que corretamente não é errado, graficamente não é errado você cortar a palavra, é cri/an/ça. Você pode cortar no “cri”, mas é anti-estético, anti-ético você fazer isso. Ou você pular, vamos por, você por “I” em cima, “piranga” em baixo. Isso a gente não podia fazer nunca. Se a gente fizesse isso era despedido do jornal, não servia pra ser... Porque nós praticávamos uma arte gráfica e essa arte gráfica infelizmente hoje em dia não existe mais. O que existe são o diagramador e o designer gráfico que ele faz muitas coisas, aí o que faz é o computador. Eu em conversa há pouco tempo com o __(?) que eu ia fazer, falar umas coisas lá no SESC Vila Mariana, ele me falou. Ele falou: “Jacaré, eu sou um apaixonado pela linotipo. Eu como jornalista desci muitas vezes na oficina, eu sujava a mão de tinta.”. E por sinal é uma tinta ruim de sair, que tem que pegar passar o que, gasolina, o negócio, a tinta não sai da mão, que é uma tinta que impregna na mão que você não tira mais ela. Ele falava: “Eu senti muito esse avanço. Hoje em dia eu sou um expert em computador.”, ele falou. “Que eu tenho o meu computador há uns dez anos e sou uma das pessoas que mais lida com computador, mais sabe usar computador sou eu, mas eu senti muito essa mudança.”. Infelizmente vou fazer o que? É o que dizem, né, é o progresso, é a evolução. Tá andando e talvez amanhã ou depois o computador seja ultrapassado, apareça outro sistema. Assim como existiu no passado o tipógrafo que tinha que fazer letrinha por letrinha, veio o linotipista que fazia, compunha a linha inteira, agora vem o computador, futuramente vai vir outro sistema, outra coisa que vai deixar o computador obsoleto. É o que dizem, é o progresso, é a evolução.
P/1 – E hoje o senhor ta aposentado, mas trabalhando.
R – Hoje eu to trabalhando, que por coincidência outro fato interessante corriqueiro na minha vida que sempre foi feito de aventura praticamente. Na Secretaria de Saúde em mil novecentos e noventa e dois, noventa e dois, houve um concurso para linotipista. Eu como estava sempre no sindicato, comecei a frequentar o sindicato, estava lá. Um colega chegou falou: “Jacaré, você não quer fazer um concurso pra linotipista lá na Secretaria da Saúde? Eu vou fazer o de impressor. E tão precisando uma pessoa pra coordenar o de linotipista, você não quer coordenar esse concurso.”. Eu falei: “Não...”. “Vai lá, vai ganhar uns trocadinhos, é sábado, domingo só mesmo. Dois dias você tem uma gaitinha lá e...”. E eu fui. Chegando lá ele falou: “Não, olha, infelizmente um funcionário aqui da gráfica já se predispôs a fazer o concurso então nós demos preferência a ele.”. Aí tudo certo, é claro, não vai pegar, deixar de pegar com um colaborador dele e pegar um estranho. Quando eu voltei pro sindicato esse colega falou: “Por que você não presta o concurso então? Já que você não vai coordenar por que você não presta esse concurso?”. Falei: “Eu não, quero saber de trabalhar mais. Eu to aposentado há cinco anos, vou fazer o que agora?”. Mentira, já há dez anos. Falei: “Já tô aposentado.”. “Vai lá, presta.”. Falei: “Mas acho que nem posso.”. Ele falou: “Mas vai lá, vai se inteirar”. Eu fui, cheguei lá no departamento pessoal do CRH da Secretaria de Saúde, expliquei meu caso. Falei que eu era aposentado, tinha cinquenta e quatro anos na época, se eu podia prestar aquele concurso. A menina se comunicou internamente, deve ser com a coordenadora do concurso. Falou: “Não, o senhor pode sim. O senhor não é aposentado pelo IPESP é?”. Falei: “Não, sou pelo INSS.”. “Ah, então você pode!”. Peguei uma ficha de inscrição, fui fazer a inscrição, prestei o concurso, tive a felicidade de passar em primeiro lugar, me colocaram, estou lá até hoje. Na gráfica da Secretaria de Saúde, departamento de administração da Secretaria da Saúde.
P/1 – Voltando ao que o senhor falou o seu trabalho é uma grande paixão e o senhor não pára nunca de trabalhar.
R – Não, só quando morrer acho.
P/1 – E hoje o senhor ta trabalhando, o senhor ta morando no Butantã...
R – Hoje eu moro no Butantã. Faço parte da Associação dos Aposentados Trabalhadores na Indústria Gráfica do Estado de São Paulo, onde eu sou o presidente. E faço parte do Sindicato Nacional dos Aposentados e Pensionistas da Força Sindical, onde eu sou diretor de comunicação.
P/1 – E como que o senhor chegou nessa coisa assim política com o sindicato...
R – A vivência. Porque você trabalhando no jornal obrigatoriamente você tem que estar a par dos acontecimentos que acontecem no Brasil e no mundo. Você tem que ler, __(?), pra você compor, você tem que ler. Então muitas coisas a gente assimila, muitas não. Muitas passam despercebidas, você bate, compõe lá e você acabou de compor já esqueceu, mas muitas te chamam atenção. Então você pega a gente... Quando compôs, pega-se o jornal e vai ler. Aí a gente lê com mais calma, interpreta o que tá escrito, porque uma matéria... Tem outra coisa, no jornal, na época da linotipo não era um linotipista só que fazia a matéria inteira, que a matéria dessa redação às vezes uma página de matéria, se fosse um linotipista só compor demoraria horas e isso atrasaria muito a edição. Então esse rapaz que fica na mesa, que distribui os originais, ele cortava em muitos pedaços a matéria. Eles punham uma retranca que chamavam lá, um código, um, dois, três, quatro e distribuía pra cinco, dez linotipistas, sendo uma numeração seguida. E no último ele punha em baixo um “X”, quer dizer que ali era o pé da matéria. Se tinha, vamos supor, o pé era doze, na hora de tirar a prova você tinha que juntar os onze pedaços restantes pra juntar aquele doze, punha no fim pra formar a matéria completa. Então por aí você às vezes lia um negócio e se interessava, mas você não tinha a matéria completa. E nós sempre recebíamos, no dia seguinte ia trabalhar, a edição anterior estava à disposição lá na oficina. A gente pegava, levava pra casa a gente ia ler aquela matéria pra ver qual é o conteúdo dela inteirinho, ver que a gente se interessou por ela. Então a gente vai adquirindo certa, certo... Porque geralmente todo gráfico tem um pouco de tendência pra esquerda. Ele nunca, porque tanto... Ele é bitolado pelo jornalista, que todo jornalista então ele escreve... O jornalista político principalmente tem obrigação de contar o que tá acontecendo de real no país, que tem muitas redações que o patrão, o jornalista, ele proíbe muita coisa que sai do governo de sair. Na época atual não, mas no tempo da ditadura publicava-se o que o patrão queria, o que o patrão achava que podia ser publicado. Nós tivemos no diário popular um coronel, se não me engano, que era o chefe de redação, pra você ver o crivo da censura até que ponto chegava. Se chegava uma matéria, o redator fazia, chegava nele, simplesmente riscava e jogava no lixo, falava: ”Faz outra, essa não pode sair.”. Nós tivemos aqui no nosso país infelizmente essa época. Hoje parece que não tem mais, parece que já mudou muito a forma dos patrões de jornais verem a notícia da maneira mais concreta, mais o que ta acontecendo mesmo. Mas nós passamos por esse período aqui no nosso país.
P/1 – Seu Darci, como eu tava falando eu aprendi muito com a nossa conversa, eu vou ser sincera com o senhor, eu conheço muito pouco sobre essa sua profissão. Mas eu fiquei já apaixonada como o senhor é apaixonado por ela. Eu queria agradecer pelo senhor ter vindo, ter dado o seu depoimento, e se o senhor quiser falar alguma coisa que o senhor não falou, que o senhor acha que é importante...
R – Não, eu quero dizer a você Bety, você Fiora, que eu quando fui consultado se eu poderia fazer, dar esse depoimento meu, sinceramente eu gostei. Porque originariamente era pra nós darmos esse depoimento lá no SESC Pompéia no seminário, mas houve um... Infelizmente um infausto acontecimento lá, o coordenador parece que sentiu-se mal, precisou ser hospitalizado e tudo. Em conversa me falaram se era possível prestar esse depoimento aqui no Museu da Pessoa e eu vim sinceramente, eu fiz com o máximo prazer. Porque eu estou aqui deixando um legado para a posteridade que eu sei que houve um fato interessante dessas matrizes que eu tenho, mostrei pra vocês aqui agora. Eu dei pro meu netinho, falei: “Bruno, você leva na escola e fala pro teus colegas se algum deles já viram uma pecinha dessa.”. Ele chegou em casa ontem, pra minha surpresa ele disse: “Vô, os meus colegas nenhum viu e muito menos as minhas professoras, que eu mostrei pra elas todinhas e elas falavam ‘O que que é isso?’, ficaram apaixonadas.” Eu expliquei pra ele, dei também um folheto pra ele, um folheto que eu distribui lá no SESC, que é a linotipo... Desde quando a linotipo existe, que foi no final do século XVIII, foi mil setecentos e oitenta... Mil oitocentos e oitenta e seis, quer dizer que ta fazendo cento e poucos anos, ela teve vida curta. Porque sinceramente um invento pra viver cem anos só, acho que é tempo relativamente curto. E nesse tempo chegou lá os Bill Gates da vida, do negócio e computador e introduziram o computador e pegou. Agora, nós... Eu tenho certeza que não vou viver até o fim do computador, mas vai ter, que é uma experiência... Porque nós temos na China uns jornais, e isso não é de hoje, de muito se muitos anos, jornais que tira mais de um bilhão de exemplares diariamente. Sendo que numa parte da China imprime tantos mil, na outra parte, por meio de telex, não sei qual o sistema que eles usam, eles transmitem pra lá os maquinários do outro estado, do outro lugar em cima imprime. Eles só mudam a primeira página, a primeira página são notícias locais, o resto é jornal pro país inteiro. Aqui no Brasil não atingimos isso ainda, mas vamos atingir, não é difícil. Temos muitas organizações aí, que nem a Globo, outras, eles vão... São uma potência, apesar que morreu o Roberto Marinho agora há poucos dias, mas... Acho que vai ficar, os filhos dele vão levar avante esse negócio.
P/1 – Mais uma vez obrigada seu Darci, o Museu agradece o senhor ter vindo até aqui. Nós dois agradecemos por o senhor ter dado o seu depoimento.
R – Eu que agradeço a vocês essa oportunidade de dar esse depoimento, pode ter certeza.
P/1 – Obrigada.
FIM
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