P/1 – Bom dia, senhor Ralph. Agradeço ao senhor por ter aceitado o nosso convite para essa entrevista. Eu vou começar perguntando o seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Ralph Mennucci Giesbrecht, nasci em São Paulo, capital, em 13 de novembro de 1951, tenho 58 anos.
P/1 – Qual o nome dos seus pais e a profissão deles?
R – Meu pai se chamava Ernesto Giesbrecht. Minha mãe, Astrea Mennucci Giesbrecht. Os dois eram químicos, formados pela Universidade de São Paulo mais ou menos na mesma época, nos anos de 1940. O meu pai foi catedrático do estudo de Química e diretor de instituto, essas coisas. A minha mãe trabalhou anos na Faculdade de Ciências Biomédicas da USP [Universidade de São Paulo]. A minha mãe está viva, com 86 anos. O meu pai já faleceu há 14 anos.
P/1 – A gente estava falando que o sobrenome Giesbrecht é de origem prussiana? O que o senhor sabe da origem da sua família?
R – Olha, na verdade veio um Giesbrecht de Königsberg, em 1888, era o meu bisavô, Wilhem depois Gulherme, não é? Wilhem Giesbrecht. Ele teve nove filhos, se eu não me engano; a família se dispersou pelo Brasil, principalmente por Minas Gerais e São Paulo. Existem alguns outros Giesbrecht no Brasil, no Paraná e no Mato Grosso, mas que, eventualmente, não são descendentes de Guilherme, se são nossos parentes, a probabilidade é enorme, mas eu nunca, por mais que pesquisei, consegui achar ligação entre eles. Já tive contato com vários. Não sei se todos os Giesbrecht, mas esses outros Giesbrecht foram da Alemanha para a Rússia, na época de Catarina II e depois voltaram para a Alemanha e de lá alguns vieram para o Brasil. Não sei se Guilherme foi um deles, porque nunca se falou nisso, na verdade. Guilherme veio para cá, se casou em Diamantina, em 1890, com uma descendente de espanhol, pelo sobrenome, Menezes de Aguilar. De lá, ele era engenheiro ferroviário, ele começou a...
Continuar leituraP/1 – Bom dia, senhor Ralph. Agradeço ao senhor por ter aceitado o nosso convite para essa entrevista. Eu vou começar perguntando o seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Ralph Mennucci Giesbrecht, nasci em São Paulo, capital, em 13 de novembro de 1951, tenho 58 anos.
P/1 – Qual o nome dos seus pais e a profissão deles?
R – Meu pai se chamava Ernesto Giesbrecht. Minha mãe, Astrea Mennucci Giesbrecht. Os dois eram químicos, formados pela Universidade de São Paulo mais ou menos na mesma época, nos anos de 1940. O meu pai foi catedrático do estudo de Química e diretor de instituto, essas coisas. A minha mãe trabalhou anos na Faculdade de Ciências Biomédicas da USP [Universidade de São Paulo]. A minha mãe está viva, com 86 anos. O meu pai já faleceu há 14 anos.
P/1 – A gente estava falando que o sobrenome Giesbrecht é de origem prussiana? O que o senhor sabe da origem da sua família?
R – Olha, na verdade veio um Giesbrecht de Königsberg, em 1888, era o meu bisavô, Wilhem depois Gulherme, não é? Wilhem Giesbrecht. Ele teve nove filhos, se eu não me engano; a família se dispersou pelo Brasil, principalmente por Minas Gerais e São Paulo. Existem alguns outros Giesbrecht no Brasil, no Paraná e no Mato Grosso, mas que, eventualmente, não são descendentes de Guilherme, se são nossos parentes, a probabilidade é enorme, mas eu nunca, por mais que pesquisei, consegui achar ligação entre eles. Já tive contato com vários. Não sei se todos os Giesbrecht, mas esses outros Giesbrecht foram da Alemanha para a Rússia, na época de Catarina II e depois voltaram para a Alemanha e de lá alguns vieram para o Brasil. Não sei se Guilherme foi um deles, porque nunca se falou nisso, na verdade. Guilherme veio para cá, se casou em Diamantina, em 1890, com uma descendente de espanhol, pelo sobrenome, Menezes de Aguilar. De lá, ele era engenheiro ferroviário, ele começou a trabalhar pelo Brasil inteiro. O primeiro serviço que ele teve foi em Belo Horizonte; depois ele, imediatamente, veio trabalhar para a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro em Jaguariúna, que, na época, era Jaguari, município de Mogi Mirim. Lá nasceu o meu avô. Na verdade, o meu bisavô foi o fundador da cidade, Guilherme Giesbrecht; isso é reconhecido na cidade inclusive. Ele construiu a igreja matriz da cidade em 1904. Depois sumiu de lá e nunca mais voltou. O meu avô também nunca voltou lá. Ele foi para vários lugares: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná etc., o meu bisavô. Meu avô teve uma trajetória, quando criança, difícil de traquear. Provavelmente, ficou em Diamantina muito tempo com a mãe, porque a mãe não ia em todas as viagens com o meu avô, era muito difícil. Meu avô chegou a trabalhar para pesquisa da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em 1908, no Mato Grosso, quando aquilo era uma selva desgraçada.
P/1 – Sertão danado.
R – Exato. E meu avô acabou aparecendo, novamente, na época que se casou em Curitiba com a minha avó, que era de Joinville. Ele se casou em Curitiba, quando já estava trabalhando na Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e ele conheceu a minha avó na casa do tio dela, que era Howard Louis Freich, na época, o Diretor Superintendente da São Paulo-Rio Grande, que era ainda da Brazil Railway Company, e que era uma firma bastante poderosa, na época, e era dona das estradas de ferro no Paraná e Santa Catarina. De lá, esse tio da minha avó acabou indo para outros lugares. O meu avô ficou na Rede como engenheiro até 1933, quando houve um problema com o fundo de caixa, fundo de pensão da rede ferroviária do Paraná-Santa Catarina, em Ponta Grossa, que foi onde o meu pai nasceu. Meu pai estava com onze anos e, embora depois tenha se provado que o meu avô foi jogado de gaiato na história, ele acabou sofrendo muito com isso e foi, praticamente, na época, expulso de lá e acabou chegando em São Paulo com uma mão atrás da outra; aqui ele recomeçou a vida dele trabalhando na Sociedade Técnica de Materiais, a Sotema, que era uma firma poderosa, na época, que hoje não existe mais. Se eu não me engano, a Sotema, eu estou tentando levantar a história dela, não está fácil, tinha ligações com o Oscar Castlering e também com outros políticos, mas a verdade é que eu ainda não cheguei a uma coisa muito clara, a Sotema fechou nos anos de 1970 e desapareceu.
P/1 – Era uma empresa do quê?
R – Era uma empresa importadora de peças, inclusive para o meio ferroviário, mas também fabricante, uma empresa de engenharia que construiu muita estrada por aí. Sociedade Técnica de Materiais era Sotema, ela ficava onde hoje é a esquina da Avenida Francisco Matarazzo com o Viaduto Antártica, Avenida Antártica. Era um prédio novo que foi demolido relativamente há pouco tempo, mas estava abandonado. Meu avô acabou falecendo cedo, em 1961, meu pai morreu em 1996, e essa história da ferrovia em Ponta Grossa com o meu pai e o meu avô eu só vim saber depois da morte do meu pai, e isso dá uma dificuldade enorme em conseguir dados. Eu consegui através de jornais em Ponta Grossa e em Curitiba, mas que ainda não são dados totalmente conclusivos, porque a família mesmo, praticamente, não sabe nada do assunto.
P/1 – E como que o senhor veio saber dessa questão? O senhor falou que ninguém falava muito da ferrovia nessa época.
R – Meu pai não falava nada da ferrovia e o meu pai nasceu num pátio ferroviário e nunca falou nada, eu acho que vinha do trauma da história ou como você quiser chamar. Eu descobri por acaso por uma conversa de um primo meu, o mais velho dos meus primos, que é dez anos mais velho do que eu, que comentou uma vez, en passant, que tinha um problema, a partir disso eu fui procurar e tentar achar alguma coisa no jornal e, finalmente, cheguei lá, porque nem nos arquivos da Rede Ferroviária em Curitiba eu consegui dados sobre isso. O lugar onde mais consegui coisa foi em Ponta Grossa, mas isso foi dez anos depois do meu pai morrer, quando eu finalmente consegui levantar algo mais concreto sobre o assunto. De qualquer forma, eles tinham ligação com a ferrovia e no lado da minha mãe também, o avô dela trabalhou como peão de obra mesmo na Companhia Paulista, lá nos lados Porto Ferreira em 1870, qualquer coisa assim, mas depois saiu do ramo e o meu avô, o pai da minha mãe, que eu estudei e escrevi a biografia dele, Sud Mennucci, não era ferroviário, mas era um cara que tinha uma cultura impressionante e muito material, eu herdei todo o acervo dele e ele tinha uma quantidade de material e documentação sobre a ferrovia muito grande, porque ele gostava do assunto e ele procurava estar a par dos transportes basicamente. Através disso, quando eu comecei a pesquisar ferrovia, comecei a entrar nesses assuntos. Eu não comecei a pesquisar ferrovia por causa dos meus bisavôs, talvez por causa do meu avô, que ele tinha material.
P/1 – O Sud Mennucci?
R – O Sud Mennucci.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa, qual a origem desse nome?
R – Mennucci é italiano, é da região de Lucca na Toscana italiana, Sud é um nome que significa Sul, meu bisavô por algum motivo gostava de por sobrenome geográfico nos filhos, os irmãos também tinham nomes malucos. Não tem uma pessoa ou outra que tivesse se chamado Sud, meu primo-irmão teve um filho há dez anos e queria por o nome de Sud Mennucci e acabou desistindo, porque ele falou: “Olha, a minha mulher até concordou, mas depois eu fiquei pensando, o nome é tão estranho, vão ficar... Sabe? Deixa para lá”. Acabou chamando de Lucca que é a cidade dele.
P/1 – Então eles vieram para São Paulo e construíram a vida aqui?
R – Vieram para São Paulo e construíram a vida aqui, o meu pai já tinha onze anos nessa época.
P/1 – E o senhor nasceu aqui em São Paulo também?
R – Eu nasci em 1951, meu pai já tinha conhecido a minha mãe, que já era daqui.
P/1 – Eles estudaram juntos na faculdade?
R – Eles estudaram juntos na faculdade, não na mesma turma, um ou dois anos de diferença.
P/1 – Conta para a gente de quando o senhor nasceu, na década de 1950, como que era São Paulo? A gente estava falando dos córregos, São Paulo mudou muito? Descreve como que era a cidade na infância do senhor.
R – A partir da hora que eu começo a lembrar, que na verdade é 1956, final de 1955, 1956, quando meus pais foram para os Estados Unidos passar um ano lá por causa de uma bolsa da faculdade, num negócio relacionado à Química mesmo e eu e minha irmã e a babá fomos juntos. Meu pai falou: “Ou eu levo uma babá ou eu estou ferrado”. Ele e a esposa, minha mãe, trabalhavam, ele falou: “Não tem outro jeito e eu não vou contratar uma babá nos Estados Unidos”. Naquela época, você conseguia levar, então as primeiras lembranças mesmo que eu tenho, são da viagem de avião para os Estados Unidos, das voltas que a gente dava nos Estados Unidos, da casa que eu morava e a volta para São Paulo que foi de navio, para Santos. Logo em seguida, chegando ao fim de 1957, início de 1958, meu pai me põe na escola alemã e não põe na escola alemã porque era filho de alemão ou neto de alemão, mas simplesmente porque ele tinha um amigo lá que conseguiu uma vaga para mim, porque ele não estava achando vaga em lugar nenhum, porque estava muito em cima da hora. Então, eu comecei na escola alemã por causa disso. Eu não falava uma palavra de alemão, meu pai falava alemão corrente, mas não comigo e com a minha mãe. Eu fiquei no Colégio Visconde de Porto Seguro até me formar, fui para a escola de Química e depois eu trabalhei em multinacionais tipo Shell, tipo DuPont, até que saí delas em 1996, que foi o último trabalho que eu tive em multinacionais como químico; eu já gostava muito de memória, história geral, memória de São Paulo, colecionava recortes de jornal etc., que foi a mesma época que eu tinha conseguido o acervo do meu avô, meu avô tinha morrido cinquenta anos antes, mas minhas tias estavam de mudança na Vila Mariana, tinham vendido a biblioteca e tinha sobrado lá a papelada dele: “Ah, você quer levar?”; “Quero”. Coloquei tudo no carro e era uma quantidade imensa de caixas e caixas de papel e me diverti com aquilo.
P/1 – O que continha nesse acervo?
R – Olha, tudo que você pode imaginar e que o Museu da Pessoa gostaria de ter.
P/1 – Que ótimo.
R – Documentação, fotografia, coisas sobre ferrovias, coisas sobre outros assuntos, até hoje eu descubro documentos lá. Eu tenho um blog na internet e eu consigo escrever todos os dias sobre um monte de assunto, bobagem, eu coloco muita coisa que eu tiro de lá, até hoje de lá, embora eu já tenha catalogado tudo, às vezes, eu pego coisas ali e falo: “Pô, que legal. Vou escrever sobre isso”. É uma maravilha, tem recorte de jornal, tem coisas que davam para ele, ele era professor também, ele estava no ramo do ensino, davam para ele aquelas lembranças tudo a mão, hoje seria tudo por computador. Naquela época, era feito na mão mesmo, tem coisa ali de babar.
P/1 – Em 1996 o senhor se aposenta, é isso?
R – Eu não me aposentei até hoje.
P/1 – O senhor deixou de trabalhar como...
R – Eu deixei de trabalhar como químico, comecei a trabalhar com a minha esposa numa empresa de recursos humanos que ela tem, trabalho até hoje, mas isso não me tomava todo o tempo, então, eu comecei a pesquisar efetivamente que era o que eu gostava. Eu não sou historiador, eu sou um pesquisador, um “fuçador”, ou o que você quiser. Eu vou atrás disso realmente, eu escrevi a biografia do meu avô em 1997; passou, em 2001, o primeiro livro sobre ferrovia; em 2003, o segundo; e, depois eu não fiz mais livros, mas continuei escrevendo, faço aquele site de estações ferroviárias que é o que me projetou para muita gente, faço o blog. Blog todo mundo faz, de qualquer forma, eu faço, gosto de escrever e sobre ferrovias eu pesquiso rigorosamente todos os dias, nem que seja dez, quinze minutos eu estou lendo alguma coisa.
P/1 – De onde surge essa questão da ferrovia?
R – É difícil saber. Eu fui à Porto Ferreira em 30 de abril de 1996. O curioso é que eu fui lá por outro motivo que eu nem lembro exatamente qual, que é a cidade da minha avó, e vi a estação lá largadinha e falei: “Pô”. Fiquei conversando com os caras, tinha o trilho ainda, hoje não tem mais: “Ainda passa trem aqui?”. Os caras: “Ih, não passa trem aqui há muito tempo”; “Por quê?”, eu perguntei. Aí você começa a se interessar, eu sempre gostei muito das construções antigas. A estação de Porto Ferreira é de 1913, sempre aquela arquitetura típica ferroviária da época, eu gostava disso, acho bonitinho, falei: “Ah, vou tentar descobrir onde estão as estações no meio das fazendas”. Aí, eu fui atrás e você não faz uma coisa isoladamente, não é? Você acaba entrando na história das ferrovias e por onde passava e você vai em frente. Eu comecei a me interessar e fui mesmo de cabeça no assunto, até hoje eu não larguei, não acho que eu vá largar. Dez, catorze anos é muito tempo. Você começa a descobrir coisas que você nem imaginava que ocorresse e porque as coisas ocorrem, quais são os motivos que levam as ferrovias ou o sujeito a fazer uma ferrovia, buscar concessão para outra, esse tipo de coisa. Quando eu tinha esgotado tudo em relação a São Paulo, comecei a sair por outros estados, mas eu não saí do Brasil não, aí é demais, é muita coisa, é muita coisa mesmo.
P/1 – Vamos focar no Estado de São Paulo. O senhor falou da Paulista, da Noroeste, quais são as que o senhor mais pesquisou?
R – As oito ferrovias grandes de São Paulo e, quando a gente fala de oito ferrovias grandes de São Paulo, estamos falando da época do ápice, do auge ferroviário, anos de 1930, 1940. São oito: cinco estaduais que formaram a Ferrovia Paulista S.A. e três federais que formaram a parte paulista da Rede Ferroviária Federal S.A.. Fepasa [Ferrovia Paulista S.A.], você está falando de Paulista, Mogiana, Sorocabana, Araraquarense ou Araraquara, na verdade, e São Paulo–Minas, a Estrada de Ferro São Paulo–Minas era muito pequena, mas você cita porque ela entrou realmente no hall da Fepasa; e três ferrovias que entraram para formar a Rede de Ferrovia Paulista que era a Noroeste, a Central do Brasil e a Santos-Jundiaí. Você tinha outras ferrovias, tanto antes que acabaram sendo compradas por outras, como outras que existem até hoje, tipo a Campos do Jordão; a Campos do Jordão nunca foi Rede Ferroviária, nunca foi Fepasa, ela é Campos de Jordão e a única ferrovia estadual de São Paulo, sem contar a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. A origem delas está toda ligada, não adianta você estudar uma ferrovia, tenho conhecidos meus que estudam uma ferrovia: “Ah, eu só gosto dessa, as outras, não sei o quê”. Eu falei: “Não adianta, meu caro, uma ferrovia de Pernambuco, influencia numa ferrovia do Rio Grande do Sul, você tem que saber o máximo de todas, não adiantava você relegar as outras: ah, porque é uma porcaria. Mesmo que ela seja uma porcaria, elas influem”. Em São Paulo você tem a Campos de Jordão, você tem a Itatibense, você teve a estrada de ferro do Dourado que a Paulista comprou, a São Paulo-Goiás que a Paulista comprou e outras mais antigas que a Mogiana comprou, que a Sorocabana comprou, então você tem todos esses pedaços da Rede de Viação Paraná-Santa Catarina, pedaços da Rede de Mineira de Viação dentro de São Paulo... Quando você fala: quantas ferrovias houve em São Paulo? Um monte, eu nunca nem contei, porque você tem que ver as que foram fundadas e compradas etc., você vai chegar, não, não é milhares, mas umas trinta pelo menos.
P/1 – Eu imagino! O senhor falou do ápice nos anos de 1930, mas, inicialmente, elas são construídas e utilizadas para o transporte do café, é isso?
R – Em São Paulo, a maior parte das ferrovias foi feita para transportar café; não todas. A Sorocabana, por exemplo, o principal nunca foi café, embora ela tenha transportado muito café; a Campos de Jordão, não transportava café, tinha outra função, mas, a maior parte, as pequenas, era para transportar café basicamente mesmo, mas elas não transportavam só café, elas foram montadas seguindo café, mas existe um estudo que coloca a Paulista, por exemplo, como também boiadeira, ou seja, que transporta carne e gado, numa proporção bastante razoável e que pouca gente estuda. Então, você começa a levantar essa área, a Sorocabana foi fundada para transportar algodão, que, aliás, é uma loucura, porque transportar algodão que é extremamente leve só pode dar prejuízo, tanto que com catorze anos, catorze não, com cinco anos de idade, a Sorocabana já estava à beira da falência. Ela acabou sendo resgatada, comprada por um banqueiro carioca; depois, ela foi encampada com a Ituana que ajudou a quebrar mais, porque a Ituana também já estava mal. Depois, ela foi arrematada pelo Governo Federal que vendeu para o Estadual. Por incrível que pareça, foi o Estado que colocou, que começou a colocar dinheiro e a Sorocabana se tornou uma companhia bastante descente, quer dizer, comparada com a Paulista e com a Santos-Jundiaí; não existia companhia ferroviária descente no Brasil, mas vamos dizer, quase descentes você tinha Sorocabana, Central do Brasil, a Leopoldina, esse tipo de coisa, mas ninguém poderia, por exemplo, brigar em lucro com uma Santos-Jundiaí que era monopolista, um verdadeiro funil de ferrovia e só tinha 140 quilômetros, feita de todos os jeitos para matar qualquer iniciativa de concorrência que existisse.
P/1 – Ela era a única?
R – Era dos ingleses que matavam tudo na época. Eles tinham o poder.
P/1 – Se a gente for pensar numa paisagem que essas ferrovias compõem dentro do território urbano, como que a gente estaria vendo numa cidade de porte médio?
R – Em que época?
P/1 – Vamos falar no século XX, desse ápice que o senhor falou.
R – Você pode olhar isso de vários ângulos, por exemplo, as ferrovias nas cidades grandes foram responsáveis pelos crescimentos delas e, ao mesmo tempo, pela deterioração das áreas em que ela ocupa. São Paulo é o típico exemplo, existem pouquíssimas áreas que não foram deterioradas pela ferrovia, uma delas é o alto da Lapa, o resto foi deteriorado pela ferrovia. Você pode pegar qualquer cidade do interior basicamente, São Carlos, ou o que você quiser. A área da ferrovia é sempre deteriorada, com raras exceções. Quando a ferrovia começou, ela não passava dentro das cidades, porque ela não tinha como desapropriar as áreas que já existiam, então ela passava geralmente no limite da zona urbana, foi assim que até em São Paulo, estação da Luz, estava no limite da área urbana naquela época. Em outras cidades ela fundou a cidade, não existia nada, ela teve que colocar uma estação ali por uma questão de...
P/1 – Tangenciando a cidade, não é?
R – E a cidade normalmente chegava à estação e muitas vezes passava ou então ela criava uma cidade. Mas por que por uma estação no meio de coisa nenhuma? Na verdade o motivo é estratégico, abastecimento de água, ponto de cruzamento de locomotiva, quando você põe o desvio e você naquela época pelo menos você precisava colocar uma casinhola lá com um chefe de estação com um telegrafista para ele passar as informações etc.
P/1 – Atendia as fazendas, o pessoal das fazendas?
R – Sim, sim, muitas vezes sim, mas o problema era em que ponto você põe. Existia uma distância média que dependendo da região você fazia e, dependendo do movimento também da ferrovia, quanto mais movimento, mais estações você tinha que ter com a função de posto de cruzamento ou de abastecimento de água. Nesses casos, a cidade acabava se desenvolvendo para os dois lados: primeiro, ela se desenvolvia mais para o lado em que se existia a fachada, ou seja, que você entrava para sair do outro lado da linha; mas, aos poucos, você também cruzava, existem cidades que até hoje não cruzaram e não vão cruzar, por exemplo, Brotas, o que cruzou da linha do trem foi muito pouco e não é uma cidade tão pequena assim, você vai para cidades menores na alta sorocabana, você vê o mapa, elas chegaram até a linha, do outro lado da linha já é uma plantação, a cidade acaba ali, isso é uma questão de porque aconteceu, isso é muito relativo, aí tem que analisar caso a caso. A verdade é que a ferrovia trazia o desenvolvimento e, depois, acabou trazendo a deterioração, mesmo numa cidade pequena, você talvez não tenha aquela enorme deterioração ao longo da ferrovia, porque a cidade é muito pequena, mas você tem a deterioração do próprio prédio da estação e do armazém da estação que normalmente ninguém aproveita e fica ali abandonado e vira ponto de drogado e não sei o quê, a não ser que a Prefeitura compre e faça alguma coisa ou que alguém compre e faça alguma coisa, o que é mais raro, ou que alguém ponha a baixo mesmo não podendo fazer, é o que acontece.
P/1 – Quando a gente fala de deterioração, o senhor está falando uma coisa mais recente, pós-privatização que esses edifícios que estão...
R – Olha, a deterioração das ferrovias mesmo começou com dois motivos, um porque, aos poucos, e não foi tão aos poucos assim, isso porque o processo que durou de dez a quinze anos passou de um quase monopólio ferroviário para quase um monopólio rodoviário, isso foi nos anos de 1940, 1950. A partir da hora, eu detesto essa palavra mas, enfim, que a elite deixou de usar os trens ou que as pessoas mais abastadas deixaram de andar nos trens, logo depois da Segunda Guerra Mundial, a deterioração veio rápido, porque as ferrovias perceberam que não precisavam se preocupar mais, por exemplo, em cuidar tanto tão bem de uma estação ou de uma linha, porque não tinha mais aqueles caras para reclamar, porque quem continuava usando a ferrovia, que não era tão pouca gente assim, o tráfego de passageiros foi aumentando relativamente até meados dos anos 1960, depois começou a baixar rapidamente, mas era porque ao mesmo tempo em que eles não exigiam muita ferrovia, a ferrovia que sabia que eles não exigiam e reagiam pior ainda, era um ciclo vicioso, basicamente foi isso que aconteceu, por quê? Porque as ferrovias, com exceção das novas agora, do metrô e da CPTM [Companhia Paulista de Trens Metropolitanos], não foram feitas para transportar passageiros, elas foram feitas para transportar carga. Passageiro era um subproduto, que não dava lucro, quando dava era mínimo. Então, todo mundo fala: “Ah, ferrovia é para passageiro”. Não. Elas tratavam bem os passageiros porque tinha gente muito rica pagando as passagens e também interessava a elas isso e, por outro lado, as cidades reagiam bem porque as ferrovias traziam riqueza, traziam belas construções em geral, traziam e levavam gente, quer dizer, davam transporte numa época que as estradas eram pavorosas, na época que automóvel nem existia, mas a partir da hora que elas deixaram de fazer isso e passaram a largar tudo no meio da cidade começou aquelas reclamações idiotas: “Ah, eu quero que tire a linha daqui porque fazia muito barulho”. Só que o prefeito nunca responde: “Ah, é?! Só trem que faz barulho, caminhão e ônibus não fazem? Quer uma avenida? A gente põe”. Então, os governos começaram a perceber que arrancar uma linha e colocar uma avenida era um grande negócio que todo mundo ficava contente, só que avenida, nos últimos vinte, trinta anos, qualquer avenida que você construa ela já é automaticamente um foco de deterioração muito pior do que a da ferrovia, porque a ferrovia já estava ali, o que deteriorou já teve que deteriorar, você quebra aquilo e põe uma avenida, você deteriora mais ainda e as pessoas parecem não estar percebendo isso.
P/1 – O senhor falou desse trânsito de pessoas, que as estradas ferroviárias eram muito precárias, dessas coisas dos viajantes que vão vender os seus produtos, os hotéis de viajantes que ficam perto das linhas, das ferrovias...
R – Toda ferrovia tinha um hotel por pior que fosse, tinha pelo menos um hotel perto da estação, podia ser em frente, ao lado, isso era muito comum e você vê ainda esses hotéis até hoje. Muitos ainda chamam, ou chamaram, Hotel dos Viajantes, mas tem outros nomes, por exemplo, em Araraquara você vê em volta da estação, três ou quatro hoteizinhos, alguns são até simpáticos, mas, geralmente, estão deteriorados e mesmo quando não estão, quando o cara investe alguma coisa para reformar, ninguém fica naquele ponto, vai ficar lá na cidade, mais perto, porque é muito difícil a estação ficar realmente no centro da cidade. Araraquara é só você atravessar dois, três quarteirões e você está no centro da cidade, mas olha o tamanho de Araraquara, três quarteirões, mesmo hoje, com o tamanho que ela tem de 170 mil habitantes, três quarteirões é muita coisa, não é para São Paulo, para Araraquara se você andar três quarteirões, já está fora do centro, você precisa pensar nisso também. Eu só estou dando exemplos, no caso de São Carlos, a mesma coisa.
P/1 – No caso de Araraquara seria o quê? O Hotel Municipal ou no Grande Hotel Uirapuru?
R – O Hotel Municipal, por exemplo, ele não fica na região da estação, fica a três ou quatro quarteirões para frente. O Uirapuru fica a meio quarteirão da estação, eu conheço o Uirapuru e tem um que fica em frente a estação, na frente da avenida, não lembro como é que é aquela avenida que chega lá, não sei se é Brasil, é na esquina da Brasil com a rua que passa em frente a estação, esse é bonitinho. O Uirapuru é feioso, enfim, você tem uma série de coisas, muitas vezes o meu site tem fotografia do hotel da estação.
P/1 – Esse hotel dos viajantes, junto com a gare, onde os passageiros compram bilhetes e embarcam, quais outros prédios comporiam essa fotografia?
R – O que você tem? O armazém, o hotel, a casa do telegrafista que, às vezes, é junto da estação, às vezes é separado, o armazém que, às vezes, é junto; o armazém da ferrovia, não estou falando do armazém da vila, quer dizer, o armazém que fica em frente que recebe os produtos para revender para o povo, tem esse tipo de coisa básica. A igreja, normalmente, não é tão perto da estação. A igreja só é mais perto da estação quando a cidade se formou a partir da estação. O curioso é você tentar descobrir porque tem certas cidades que até hoje a estação, que não é tão longe assim, está fora da região urbana, Analândia, por exemplo.
P/1 – É completamente fora.
R – Você já foi à Analândia? É completamente fora, não sei se ainda é assim, mas você tem que pegar uma estradinha de terra para chegar lá, por que a cidade não chegou lá? Meu Deus, não sei! Talvez tivesse um cara com uma propriedade muito grande que nunca tenha interessado em lotear, o mais provável é isso, na verdade.
P/1 – O que chama a atenção na estação de Analândia é que Dom Pedro esteve ali, o pessoal sempre fala isso, aí tem aquela coisa do Império, Imperador.
R – Essa história que Dom Pedro esteve ali precisa ser olhada com muito cuidado, porque eu já vi vários casos em que Dom Pedro nunca esteve.
P/1 – É mesmo?
R – É, que é só folclore, um deles é no ramal de Ribeirão Bonito, da Companhia Paulista que o cara falava: “Ah, estação Monjolinho, ali perto de São Carlos, foi inaugurada, o Imperador esteve ali”; “Quando foi inaugurada?”; “1893”. Claro, o Imperador esteve aí, sabe?. “Ah, então a data de inauguração está errada”. Não está, basta você pegar o relatório da Paulista e ver a data de inauguração, se Dom Pedro I estivesse estado em todas as estações que falaram que ele esteve, ele não teria tempo de fazer mais nada! Toda vez que o cara fala isso, eu fico meio assim até conferir com várias outras fontes.
P/1 – O senhor falou da vila. Essa vila era dos funcionários?
R – É. Você tem a vila ferroviária em si que era propriedade da ferrovia e a vila que ficava junto a ela que não era da ferrovia. Em alguns casos, a vila ferroviária passa a ser a própria vila, porque houve acordo em algum momento, mas, na maioria das vezes, a vila ferroviária continua. Como a Rede Ferroviária e a Fepasa sempre tiveram aquela filosofia de “não dou, não empresto, não alugo, não arrendo, não faço nada”, a coisa foi deteriorando ali dentro, mas, dependendo do lugar isso não acontece, alguém reforma, alguém compra, alguém consegue a autorização para fazer e por aí vai. O problema é que com a lei de responsabilidade fiscal, ficou mais difícil fazer esse tipo de coisa, porque antes a Prefeitura pegava, colocava as coisas lá dentro, reformava e dane-se a Rede, mas um dia a Rede chegava e falava: “Pô, isso é meu, você tem que comprar”. Quer dizer, hoje em dia o cara fala: “Eu posso até tombar o negócio, mas eu não vou colocar um centavo nisso daí enquanto isso não tiver ou com o meu direito de uso por trinta anos ou eu conseguir desapropriar ou comprar”. Então, isso ocorreu em São José dos Campos, que até o ano passado tinha uma estação que estava caindo, aí foi lá o Ministério Público e acionou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, porque a estação estava caindo, o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] falou: “Desculpe, eu não tenho nada a ver com isso”; “Ah, vocês são os donos da estação de acordo com o decreto tal”; “Não somos não, leia o decreto direito”. E realmente, só que o IPHAN resolveu ir a São José dos Campos para checar como é que estava pra dar algum subsídio para a Prefeitura, aí o cara da Prefeitura falou: “Nós também não somos donos de imóvel. Nós estamos esperando há dez anos que repassem isso pra gente, olha aqui os papéis”. E quem que assina? Aciona o espólio da Rede Ferroviária, o cara sabe que isso não adianta nada, então, fica tudo por isso mesmo. Agora parece que a Prefeitura conseguiu normalizar a coisa lá em São José dos Campos, isso só são exemplos.
P/1 – Eu vou puxar para um lado que eu conheço, porque eu sou natural de Bauru, entroncamento ferroviário. Existe outro lugar que teve entroncamento ferroviário no Estado de São Paulo?
R – Nossa! Milhares. Entroncamentos ferroviários podem ser dois tipos, um dentro da mesma companhia, você pega a Itirapina, por exemplo, era onde bifurcavam as duas linhas tronco da Companhia Paulista, e Itirapina não cresceu muito: “Ah, mas era entroncamento ferroviário”. Sim, mas você só tinha uma companhia ali e a companhia só usava aquilo mesmo como entroncamento. Em Itirapina tem um baita pátio ferroviário, enorme, mas era só controlado por uma ferrovia, então, ela se virava ali dentro, não precisava de nada, agora você pega Bauru, Araraquara. Araraquara é um entroncamento da Paulista e da Estrada de Ferro Araraquara. Bauru é entroncamento de três ferrovias: Noroeste, Sorocabana e Paulista. Então, você tinha três ferrovias mandando gente de peso para lá, para poder, como se diz? Tentar fazer acordos com a outra, isso tinha que ser feito in loco e uma das três tinha os escritórios centrais lá, que era a Noroeste. A Sorocabana e a Paulista não tinham, elas tinham escritórios com algum poder, mas não... Nessas cidades, a tendência é crescer muito, Araraquara também, que o escritório central da Estrada de Ferro de Araraquara era lá. Campinas você tinha escritório da Mogiana e você tinha uma posição muito grande de peso da Paulista, se bem que o escritório mesmo da Paulista era em São Paulo, onde a Paulista nem chegava e tinha ainda as oficinas em Jundiaí. A Paulista tinha vários pontos, agora, a Mogiana, por exemplo, tinha a central em Campinas, depois ela tinha escritórios representativos muito fortes em Casa Branca e em Ribeirão Preto que, aos poucos, foram mudando por causa de vários motivos. Casa Branca hoje é uma cidade "decadentíssima", mas por causa do café, realmente, você tem armazéns de café enormes, tudo abandonado, caindo aos pedaços porque eles não têm nem o que fazer com aquilo. Tudo isso variava: “Presidente Prudente cresceu muito”. Sim, mas Presidente Prudente cresceu porque uma pessoa foi lá e resolveu fazer dois loteamentos juntos, numa época que a ferrovia estava chegando. Várias outras cidades estiveram na mesma posição de Presidente Prudente e Presidente Prudente nunca foi um entroncamento, então cada uma tem uma história a contar.
P/1 – No caso de Bauru foi justamente um entroncamento que gerou a cidade, que a cidade era uma vila.
R – A cidade já existia na verdade, era muito pequena, mas existia já fazia dez anos quando a Sorocabana, que foi a primeira, chegou lá. Mas a Sorocabana usava aquilo como ponta de linha, é diferente. A Noroeste chegou ali e colocou os escritórios e, a partir dali, ela coordenava toda a expansão dela e das cidades ao longo da linha.
P/1 – Em direção ao Mato Grosso?
R – Em direção ao Mato Grosso.
P/1 – Quando a gente fala depredação, tem uma coisa de “bares noturnos”, de uma noite perto, de casa de prostituição também ou isso é...
R – Não, não é. Isso existia obviamente porque, por exemplo, as pessoas gostavam de ir à estação simplesmente para ver o trem passar, coisa que não acontece, por exemplo, numa estação rodoviária, onde estão pouco se lixando para os ônibus. Muita gente ia lá para ver trem manobrar, trem passar, trem chegar, trem sair, conhecer pessoas, bater papo, então, era normal que existisse um ou outro bar perto, aliás, o bar da estação era muito comum, o cara conseguiu o contrato de arrendamento para operar um bar dentro da estação. Nós esquecemos dos bares naquela hora que eu falei, restaurantes, às vezes, não era um bar, era um restaurante mesmo. Tinha estações, por exemplo, tenho fotos de restaurantes, em cidades relativamente pequenas, como Jaguariaíva e Irati no Paraná com restaurantes lindíssimos dentro, em estações, que não eram tão grandes assim. Existia também a iniciativa particular, o cara que põe o bar na frente da estação e esperava realmente o pessoal descer, dependia quanto tempo o trem parava ali, se o trem parava ali por um minuto, obviamente, o bar não tinha outra coisa, agora se era um entroncamento, Cordeirópolis, por exemplo, valia a pena o cara colocar um bar. O pátio de Cordeirópolis, que é um dos poucos pátios triangulares que existe, você tinha até 1996, quando um imbecil ateou fogo no negócio, um bêbado, o chamado quiosque, o bar construído em 1914 do qual eu tenho até a planta. Era um negócio que tudo mundo conhecia, o Botequim de Cordeirópolis, um negócio fantástico. Mas, em 1996, já estava abandonadíssimo, aí foi um idiota lá e ateou fogo, e esse botequim que era lindo e todo mundo conhecia porque dali saía o ramal de Descalvado, o pessoal parava e ficava esperando outro trem, tomando alguma coisa, comendo alguma coisa no Botequim de Cordeirópolis...
P/1 – Fala um pouquinho das oficinas que o senhor citou, em alguns textos que eu já li dizem que as oficinas geraram a industrialização em algumas cidades. Que estrutura é essa que a gente está falando das oficinas? Como que elas se organizam?
R – Olha, várias cidades tinham oficinas, algumas numa determinada época só, por exemplo, eu tenho aquelas listas de discussões de trem que a gente participa com os fanáticos e, às vezes, dá briga, o sujeito fala: “A rotunda de Casa Branca”. O cara fala: “Casa Branca não tem rotunda...”. Sim, Casa Branca teve rotunda, mas foi demolida em 1950, qual de nós conheceu? .“Ah, mas tinha, eu não sabia”. Sabe esse tipo de coisa?
P/1 – Sei, sei.
R – Então, oficinas iam e voltavam, por exemplo, quando no Rio Grande do Sul, em 1910, quando a Compagnie Auxiliaire des Chémins de Fer au Brésil, dos belgas, que a Brazil Railway tinha comprado com Percival Farquhar etc., eles transferiram as oficinas que eram em Rio Grande para Santa Maria, quase deu uma revolução em Rio Grande, mas, no fim, transferiram o pessoal da Brazil Railway, não queriam saber: “Vamos transferir, dane-se, eles querem, eles ficam, problema deles”. Então, tinha uma importância muito grande, importância que aos poucos foi se perdendo, porque as ferrovias começaram a entrar em débâcle pelas razões que a gente sabe, mas quais as cidades hoje que tem oficina? Você tem, por exemplo, Araraquara, não são tão poucas assim, mas as oficinas nem de longe tem o poder que tinham naquela época. Ponta Grossa, quando deu aquele rolo com o meu avô, as oficinas eram em Ponta Grossa e ele trabalhava nas oficinas e para você ter uma ideia, o chefe das oficinas, na época, era o prefeito da cidade, sabe? Não faz sentido um negócio desses, mas, na época fazia, e Ponta Grossa tinha, ainda tem, as oficinas, é no mesmo lugar, mas trabalha meia dúzia de pessoas, sabe? Então, você tem esse tipo de problema, Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, as oficinas de Campinas ainda estão funcionando, da Mogiana, não as da Paulista, mas é tão pequeno o movimento, mesmo as de Araraquara que funciona hoje, eles querem mudar para fora da cidade, estão construindo uma variante que nunca fica pronta, fica nas histórias que você conhece do Brasil. Enfim, eu posso dar um monte de exemplo. Tem as oficinas da Lapa que também são muitíssimo menores, não em área, mas em termos de serviço que hoje boa parte delas é da CPTM e uma pequena parte é da MRS Logística, que é concessionária do trecho Rio-São Paulo. Então, você tem um decréscimo de importância muito grande; até os anos de 1950, 1960 era um negócio assombroso, é muito interessante quando você vai a Pindamonhangaba e passa na estrada que acompanha a linha, perto da cidade, você sai da estação, da linha da Campos do Jordão eu estou falando. Você sai da estação e anda uns dois, três quarteirões, você, de repente, olha a esquerda e tem uma oficina ferroviária com o pessoal mexendo em máquina, até um número razoável de pessoas, você fica surpreso, esse negócio ainda aberto do lado? É oficina da Campos do Jordão, que funciona ali, pequenininha, mas ela ainda parece... Ela se parece muito com uma oficina de sessenta anos atrás.
P/1 – Outra coisa que a gente leu um pouco e algumas pessoas comentaram lá em Recife é a questão dos hortos florestais, que eles surgiram para fornecer...
R – Fornecer madeira, carvão e dormentes. A introdução do eucalipto no Brasil que foi no começo do século XX, foi trazida basicamente pelo Navarro de Andrade que era um diretor da Companhia Paulista que fez isso no horto de Rio Claro. Rio Claro tinha dois hortos, o de Rio Claro e o de Camacuã, e você tinha mais, eu tenho relação de hortos, inclusive mapas. A Paulista tinha um monte de horto, a Sorocabana, tinha até linhas particulares que entravam dentro desses hortos para trazer madeira e carvão, agora, isso era um problema sério, porque foi uma das causas do desmatamento. Os hortos não davam conta, você não pode dizer que um horto é um desmatamento, porque você tem um horto ali justamente para você plantar, tirar, plantar de novo e tirar, mas, por exemplo, Santana de Parnaíba onde eu moro, eu trabalhei para a Prefeitura fazendo uma pesquisa ali durante cinco anos, de história da cidade. Santana de Parnaíba foi totalmente desmatada até o topo das montanhas e o município não é pequeno, é um dos maiores municípios em área da grande São Paulo até os anos de 1940, se você olhava para o Voturuna, para o (Votocavaru?), que são morros que tem ali, e nada, virou campo aquilo lá, porque todo mundo pegava, levava para Barueri, embarcava na Sorocabana e mandava madeira, aí fala: “Ah, era madeira para o consumo da Sorocabana?”. Era madeira para dois motivos, porque aquilo era tudo floresta virgem, mata virgem, era madeira para a Sorocabana usar como lenha. Aliás, me desculpe, eu falei em carvão, mas fazer carvão você fazia pouco, usava lenha direto. Então, o pessoal embarcava. A Sorocabana também usava lenha, mas o grosso da coisa ia para São Paulo, porque muita coisa era movida a lenha, fábricas a vapor, fogão a lenha etc. Nos anos de 1940, eles começam a perceber que estava tudo sendo desmatado e começam a dar um chega para lá na coisa. Aos poucos, isso foi reduzindo, mas Santana de Parnaíba é onde eu pesquisei, obviamente em Cotia, Itapevi ocorreram a mesma coisa, Itapevi mais ainda porque a ferrovia estava dentro da cidade, Barueri ainda pertencia a Parnaíba nessa época, mas também sofreu.
P/1 – A chegada desses hortos é justamente para você fornecer e deixar de ter desmatamento?
R – É, justamente. Para você ter madeira para combustível, como lenha na maioria das vezes, fazer carvão, não, quase não fazia, no começo se tentou, mas, depois não valia a pena, era melhor você usar como lenha mesmo e, em alguns casos específicos, era também para fazer dormente, mas se você considerar a quantidade de dormente com a quantidade de lenha usada, a quantidade de dormente era muito inferior a da usada como lenha, de qualquer forma era desmatamento de horto. Boa parte desses hortos acabou sendo passado tudo para a mão do Estado com a chegada da Fepasa, hoje eu acho que muito poucos deles, muito poucos pedaços, áreas, pertencem à Rede Ferroviária com passagem dos espólios da Fepasa para a Rede Ferroviária. A maioria acabou ficando com o Estado, o Estado revendeu alguns; eu passei, por exemplo, num dos hortos em Aurora que é lá em Descalvado, horto relativamente pequeno que tinha de uma linha que já saiu da Paulista há cinquenta anos, você olha ali e é meio desolador, mas alguém comprou, o Estado comprou e usa para outra coisa. Os hortos, hoje, poucas das áreas deles ainda são utilizadas como horto mesmo.
P/1 – Agora, o Navarro de Andrade trouxe espécimes mais apropriados?
R – O eucalipto não é originado do Brasil, então o Navarro de Andrade não trouxe eucalipto só, ele estudou toda a ciência do eucalipto, eu não sou entendido de eucalipto, mas eu sei que ele trazia espécies e tentava desenvolver outras espécies no sentido de atender melhor as especificações que ele precisava. Agora, se as outras ferrovias fizeram isso, duvido. Eu acho que elas simplesmente iam na cola do que o Navarro publicava.
P/1 – Que era o horto de Rio Claro?
R – Que era o horto de Rio Claro, talvez fizesse explorações, Loreto talvez, que é em Araras, que era da Paulista também, o horto de Loreto, eu acho que ainda tinha alguma coisa a ver com o Navarro de Andrade, mas a Paulista tinha muitos outros hortos por aí, na Sorocabana, Mogiana, Central do Brasil, por exemplo, o horto da Central do Brasil, o horto não, o banhado em São José dos Campos, conhece o banhado?
P/1 – Não.
R – Conhece São José dos Campos? São José dos Campos é um negócio maravilhoso. Você está no centro da cidade, você anda dois quarteirões tem uma avenida que fica na beira do precipício e nesse precipício você vê o que a gente chama de banhado, que é aquela coisa que quando você está na cidade e olha, parece que está na praia, parece que a rua acaba na praia, quando você chega lá você percebe que é um negócio assim e toda aquela área lá que na verdade é a várzea do Paraíba que passa lá no fundão, é chamado de banhado. Aquilo hoje é tombado pela Prefeitura, mas em 1916, 1917, a Prefeitura era dona daquilo e vendeu para a Central do Brasil para ela usar como lenha, porque não tinha carvão vindo da Europa por causa da Primeira Guerra Mundial. Quem destruiu aquilo foi a Prefeitura e a Central do Brasil e hoje você não vê floresta nenhuma ali, você vê um alagado com algumas árvores no meio, então, para você ter uma ideia, mas não era um horto realmente, a Central pegou aquilo e...
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa, vindo mais para os anos de 1990, tem todo esse declínio das ferrovias em função do crescimento das rodovias...
R – O declínio vem do final da Segunda Guerra Mundial.
P/1 – E o que acontece com as ferrovias quando vem o processo de privatização de inúmeras delas? Várias empresas são privatizadas, mas dentre elas algumas das ferrovias também?
R – As ferrovias foram privatizadas entre 1996 e 1998 e foram privatizadas numa lei cheia de falhas, e se percebesse claramente que o governo não está nem a fim de fiscalizar, porque se ele fiscalizasse na marra teria tomado concessão de praticamente todas elas e teria que operar um negócio que ele não tem dinheiro para operar, então as ferrovias sabem disso e começam a fazer simplesmente o que elas querem, várias delas. A América Latina Logística, por exemplo, bom, eu não vou falar, aqui é meio complicado, eu não posso acusar.
P/1 – Hoje é muito mais um transporte de carga?
R – Não, hoje é só um transporte de cargas, porque as concessões foram dadas só para carga. As concessões diziam o seguinte: “Nós estamos dando aqui as concessões para carga, se alguém quiser passar trem de passageiro nessa linha, por favor, peça sua concessão”. Então, se você tem essa linha que vai para o Rio de Janeiro, se você chegar a conclusão que você vai juntar ela e ele e pedir uma concessão para colocar um trem de passageiros, em teoria você pode, na prática, mas vai ser um cano, mesmo que você receba a concessão você vai receber tanta sabotagem por parte das concessionárias, tanta pressão para você não encher o saco deles com trem de passageiro que tem que cumprir horário, que tem que cumprir não sei o que, ao contrário do trem de carga, que você vai desistir.
P/1 – O trem de passageiro atrapalha o trem de carga?
R – Sim, atrapalha. O trem de passageiro, existe uma lei federal que está em vigor até hoje, está sempre em preferência, por quê? Porque ele tem horário. O trem de carga não, só que com o abandono do trem de passageiros isso daí ficou ao Deus dará e agora as concessionárias teriam que seguir isso, mas elas fazem o possível para isso não sair. Eu já fiz vários exemplos disso, você não sabe, por exemplo, a briga da CPTM com a MRS, com a ALL [América Latina Logística] para trafegar... É claro que a CPTM nesse caso tem um poder de fogo muito maior, porque ela está dentro de São Paulo, mas são brigas homéricas.
P/1 – Trem de passageiro a gente tem onde, em Carajás? Tem algum outro?
R – Olha, existem quatro linhas de passageiros regulares que trafegam todo dia ou a cada dois dias, são: a Vitória-Minas, um ramal da Vitória-Minas que vai para Ipatinga, a Carajás e a Estrada de Ferro Amapá. As outras ferrovias são trens de subúrbio, trens metropolitanos ou metrôs, que são trens de passageiros também, mas com uma característica diferente e, finalmente, você tem os trens turísticos, só que os trens turísticos só funcionam no fim de semana, em feriado, eles fazem período curto, enfim, não dá para contar. O único que poderia ser chamado de trem de passageiro é o Curitiba-Paranaguá, porque ele tem todos os dias, apesar de ser caríssimo porque a função dele é ser um trem turístico. Você pode englobar o Curitiba-Paranaguá como sendo a quinta linha de passageiros do Brasil, ou não, depende de como você quiser catalogar, os outros não são turísticos, são trens de passageiros.
P/1 – Porque ali a concessão é da ALL também?
R – Não, na verdade, a condução, a concessão é da Serra Verde Express, ela aluga uma locomotiva da ALL para puxar o trem todos os dias, a litorina que eles têm eu não tenho certeza se ela é Serra Verde ou se é ALL.
P/1 – O que é uma litorina?
R – Litorina é aquela sozinha, é a própria locomotiva e o próprio carro também. Você tem ali, sei lá, um restaurante, uma poltrona, enfim, é para um número um pouco menor de pessoas, mas é um negócio cheio de glamour, ou como você quiser chamar.
P/1 – Essa saída de usar alguns desses ramais, desses trilhos para finalidades turísticas, o que o senhor acha disso?
R – Eu acho isso legal, mas não resolve a situação.
P/1 – É paliativo?
R – Não é nem paliativo, é simplesmente um brinquedo. É legal que tenha trem andando. Acho muito melhor você pegar um trem, ou uma locomotiva a vapor, ou uma diesel e colocar para rodar do que deixá-la exposta no museu. A locomotiva a vapor sempre impressionou mais do que o diesel, mas você não imagina o que tem de admiradores de locomotiva a diesel e de locomotivas elétricas também. Eu, por exemplo, gosto das três. Aliás, eu diria que eu gosto mais das elétricas e das diesel do que das a vapor. Mas ali é mesmo um brinquedo, é como o sujeito que opera o trenzinho elétrico ali na casa dele e, de repente, ele tem uma brincadeira na escala um para um, que ele pode colocar pessoas que também se divertem indo e voltando.
P/1 – O senhor falou dessa coisa da diversão, que paixão é essa pelo trem que a gente vê em tantas pessoas?
R – Não sei. É um negócio curioso, porque as pessoas, em geral, gostam e mesmo que elas não liguem para o assunto, quando você leva alguém para uma estação ferroviária e vê aquele trem manobrando, o cara fica empolgado. Pode ser que ele não fique pelo resto da vida empolgado, mas ele fica. É difícil uma pessoa não se impressionar com isso, não sei. Eu tenho a impressão que os trens deixam mais a vista os maquinários, como eles funcionam, mesmo a locomotiva a diesel, você ainda tem muita coisa ali exposta que você pode olhar, já o automóvel, um carro, você pode até gostar muito de carro ou de ônibus: “Ah, legal, eu ando nele, esse é o modelo ‘A’, modelo ‘B’”, mas você não vai numa estação para ver esse carro manobrando, você não vai na garagem do vizinho para ver uma Ferrari manobrando, o vizinho compra uma Ferrari, bota na garagem simplesmente para impressionar o outro e coitado, ele não pode nem andar em São Paulo porque ele arrebenta o carro, você já pensou andando numa Ferrari aqui? Mesmo andando a sessenta quilômetros por hora você arrebenta o carro nos buracos, nas valetas, nas lombadas; vai ser assaltado e por aí afora. Então, é mais ou menos por aí, é muito difícil saber isso mesmo, muita gente já se perguntou e não chegou à conclusão nenhuma.
P/1 – É uma incógnita até hoje?
R – É uma incógnita.
P/1 – Vamos falar um pouco das atividades do senhor. O senhor começou a pesquisar sobre os assuntos, leu, montou o blog, o site sobre ferrovias...
R – Não, o site é, na verdade, sobre estações ferroviárias, mas que não se prende somente a estações ferroviárias, colocando uma página para cada estação que existe no Brasil, são cinco mil, mas também fala sobre trens. Tem outras coisas e faço outros estudos também fora das ferrovias.
P/1 – Tem alguma ferrovia que o senhor tem uma paixão maior? Que tem uma memória afetiva?
R – Para ser sincero, tem várias que eu gosto mais do que outras e isso também é muito de fase. Às vezes, você está recebendo muito material sobre uma determinada ferrovia e você está trabalhando em cima dela no site, por exemplo, e, naquele momento, você acha aquela lá a mais legal do mundo, mas é óbvio que, geralmente, principalmente para um paulista, o que impressiona mais é a Companhia Paulista, porque não a Santos-Jundiaí? Por dois motivos, primeiro porque a Santos-Jundiaí acabou sendo incorporada pela Rede Ferroviária Federal e não pelo governo do Estado paulista, eu já digo qual a implicação disso; segundo, porque era uma ferrovia muito curta e que apesar de ter aquele sistema da cremalheira, toda aquela movimentação de Paranapiacaba, ela não tinha o glamour dos trens do interior, sabe? Você ia à São Paulo, Santos; São Paulo, Jundiaí, acabou. Na Companhia Paulista, você tinha uma diretoria que era vidrada em colocar tudo que era de melhor na época possível dentro da situação financeira dela para os passageiros. Ela chegou a investir em trem de passageiro pesado na década de 1950 quando ninguém mais estava fazendo isso.
P/1 – Tinha o famoso carro Pullman Standard?
R – Sim, mas o carro Pullman já vinha de antes. O que eu estou dizendo que nos anos de 1950, ela comprou duas ferrovias obsoletas, a Companhia do Dourado e a São Paulo-Goiás e começou a investir pesadamente para trens de passageiros, para melhorar o transporte de passageiro. Resultado: ela ficou sem caixa. Em 1961, teve aquela greve e o governo desapropriou as ações da Companhia Paulista, ela se ferrou por causa disso, mas a verdade é que ela tinha um rigor enorme nos horário etc. Você saía de São Paulo, embora a Paulista começasse em Jundiaí, com os trens e você viajava uma boa parte do interior, que era a parte rica do interior e você se impressionava com ela, com os trens que ela dava, com os serviços, com o rigor, com horário que ela tinha e com o respeito que ela tinha com os passageiros; isso era uma realidade. A Companhia Paulista é vista hoje pelo pessoal de São Paulo e por muita gente no Brasil como sendo ideal em termos de companhia, o que todo mundo queria ser. Tem gente que gosta da Central do Brasil, o cara chega e fala: “É, mas a Central do Brasil era uma companhia do governo que só dava prejuízo”, e que apesar da linha Rio-São Paulo ser uma boa linha, o resto era um geral lixo, Central do Brasil tinha uma quilometragem bem maior do que a Companhia Paulista, com ramais por aí afora que eram umas verdadeiras porcarias. Já Santos-Jundiaí, que eu falei porque não tanto, a Santos-Jundiaí, a Central do Brasil em São Paulo e a Noroeste foram açambarcadas pela Rede Federal quando foi criada em 1957, porque elas tinham concessão federal e também porque elas tinham patrimônio ligado ao Governo Federal. A Rede Ferroviária no geral, como a maior parte do governo, os governantes nacionais em outros assuntos, em outros campos, nunca ligou muito para São Paulo; naquela história de São Paulo que cuide dele sozinho, a Rede Ferroviária não era nada diferente. Então, para quem gostava de trem, o pessoal olhava meio torto para a Rede Ferroviária Federal em São Paulo. É lógico que o pessoal da Noroeste adorava a Noroeste, o pessoal do Vale do Paraíba adorava a Central e aqui em São Paulo tinha-se muito respeito pela Santos-Jundiaí, mas num termo geral, quando você vê isso nos anos seguintes com a decadência que houve, essas companhias decaíram. Primeiro, elas decaíram muito mais rápido do que as ferrovias estaduais, principalmente porque o Governo Federal não tinha dinheiro para investir nelas, menos ainda para investir em São Paulo, apesar do ramal Rio-São Paulo ser o ramal mais rentável da Central do Brasil em toda história. Isso não significava que ela pusesse mais dinheiro nele, muito pelo contrário, então você vê certas decisões totalmente impensadas em relação às ferrovias federais dentro de São Paulo, aí você diz: “Mas a Fepasa foi uma maravilha?”. Não, longe disso, a Fepasa também foi uma porcaria, mas os investimentos feitos pela Fepasa nos primeiros quinze anos de existência dela ainda foram muitíssimos maiores do que a Rede Ferroviária podia ter, apesar da Fepasa ter terminado numa draga desgraçada.
P/1 – E falando da Rede Ferroviária de Pernambuco, o que o senhor conhece um pouco dessa história que o senhor poderia deixar registrado?
R – Então, eu já fui à Pernambuco algumas vezes. A última vez que eu fui à Pernambuco eu nem me preocupava com trens, ou seja, Pernambuco para mim existe nos livros, a ferrovia de Pernambuco. Eu estudei bastante a história de Pernambuco, é uma história curiosa, quer dizer, três ferrovias grandes construídas em época diferentes, uma delas em época muito antiga, a segunda ferrovia do Brasil foi construída em Pernambuco. A primeira foi a do Mauá, a Central do Brasil é posterior a de Pernambuco. Então, você vê que esse pessoal é certamente muito mais arraigado com o trem do que outros lugares, porque eles tiveram uma ferrovia muito boa inicialmente, construída por ingleses, que poderiam ser o que fosse, mas eram pessoas que, como se diz? Eram muito exigentes com o que faziam, com qualidade e numa época que Pernambuco era um Estado muito mais rico proporcionalmente do que é hoje. Ele tinha uma influência muito grande no Brasil, tanto cultural, monetária, como política, muito mais do que ele tem hoje. Aos poucos, isso foi se deteriorando. A ferrovia em Pernambuco acabou principalmente depois da saída dos ingleses depois da Segunda Guerra, causada porque os ingleses estavam vendendo tudo o que era ativo no mundo para custear os gastos que tiveram com a guerra. A Great Western of Brazil Railway até demorou, foi vendida só em 1950, mas já estava no estado de draga bastante razoável; um dos motivos não era só por ser inglesa, o que aconteceu foi que no final da Segunda Guerra Mundial praticamente todas as ferrovias do Brasil estavam em uma situação lamentável, não tinha peças de reposição para comprar em números suficientes por causa da guerra, o governo passou a utilizar as ferrovias muito mais do que usava antes, porque, principalmente depois de 1942, ele não podia fazer cabotagem, transporte Porto Alegre-São Paulo, São Paulo-Rio, Rio-Bahia, Bahia-Fortaleza-Recife, por causa do problema dos submarinos alemães e as ferrovias foram esticadas até o máximo onde podiam aguentar com pouca reposição de peças, resultado: acabou a guerra, as ferrovias em geral estavam lamentáveis, principalmente as ferrovias de ligação, Sorocabana, Paraná-Santa Catarina, algumas de Pernambuco, as da Bahia, as de Minas Gerais. A Paulista, por exemplo, não sofreu tanto, mas a Paulista, nessa época, era também a única ferrovia particular do Brasil, privada, a única que sobrou nessa época. Então, você tem esse desgaste muito grande da ferrovia no final da Segunda Guerra Mundial e, no caso das ferrovias inglesas, ainda agravadas porque eles não tinham mais dinheiro, precisavam levantar dinheiro. Eles venderam a São Paulo-Paraná, por exemplo, que é a ferrovia que liga Ourinhos à Londrina e à Maringá, em 1944, então você imagina realmente o desgaste que tinha. Com a chegada, no fim da Segunda Guerra Mundial, um pouco além, da indústria automobilística, aí é que vem a história das classes mais abastadas, elas falaram: “Bom, nós temos automóvel e a ferrovia está uma droga...”. Mas, quase que de repente, começaram a debandar e surge aquela história: “Bom, vamos consertar as ferrovias? Ou não? Nós temos dinheiro para isso? Nem tanto. Nós vamos investir em automóvel? Vamos”. Então, você imagina. Pernambuco sofreu muito com isso e o Nordeste sofreu mais do que o Sul, quando você fala, por exemplo, no apocalipse das ferrovias em São Paulo, me desculpe, no apocalipse das ferrovias no Brasil, que foi anos de 1980 e 1990, que as últimas linhas de passageiro foram sendo cortadas. Você se queixa: “Mas também a linha da Paulista estava uma droga nessa época”. Você fala, é porque você não viu como estavam as ferrovias na Bahia e em Pernambuco, onde quem tomava era só o cara que realmente não tinha dinheiro para nada, tomava um trem imundo em que ninguém ligava para nada e que qualquer pessoa teria asco de tomar. A situação lá era bastante pior, agora a ferrovia é sempre mais lembrada no imaginário como sendo algo fantástico e maravilhoso dos bons tempos e nem sempre isso era verdade, mas muita gente se lembra dessa forma, quanto mais dentro do interior e das regiões pobres ela está.
P/1 – Ela tem a imagem de progresso?
R – Ela teve a imagem de progresso, mas ela tem muita imaginação do caipira tomando o trem levando um bode, o que acontecia, tem certas ferrovias, acontecia bastante no Nordeste, acontecia muito na Leopoldina, Minas Gerais-Rio de Janeiro e acontecia um pouco em São Paulo, a ferrovia do Dourado, algumas linhas da Sorocabana etc. A Paulista já não permitia, se bem que eu também não vou duvidar que isso tenha acontecido em algum momento. A Mogiana era uma ferrovia daquelas meio “vai, vai, não vai”, das três ferrovias maiores paulistas ela com certeza é a pior, Paulista, Sorocabana e Mogiana... Esse imaginário, quanto mais no interior você está, quanto mais no interior de Minas você está, no Nordeste você está, mais as pessoas se lembram. Eu conversei com muita gente que tomava trem em Pernambuco, na Bahia, conversei aqui em São Paulo: “Ah, eu tomava trem, não sei o quê”. Você tem que reparar também que muitas dessas pessoas, a maioria delas, nem se lembram que trem tomavam, o que eles sabem: “Ah, sim, eu morava numa cidadezinha, eu tomava esse trem”; “Para onde você ia?”; “Não sei, mas eu tomava sempre o trem. É que eu era pequeno”. Você percebe que em São Paulo as pessoas se lembram mais do que elas faziam dentro do trem, provavelmente por causa da cultura, até por causa de uma condição social ou financeira.
P/1 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou que o senhor acha interessante deixar registrado?
R – Vocês provavelmente não perguntaram 95% das coisas, não há como...
P/1 – Perguntar tudo?
R – Não, ferrovia é um papo para dois dias se não for mais.
P/1 – Mas acho que deu para a gente ter um bom panorama aí.
R – Eu acho, de Pernambuco não falamos muito, mas enfim.
P/1 – Mas o senhor fez essa leitura bastante interessante para a gente. Eu gostaria de agradecer a entrevista do senhor, por ter vindo até o Museu da Pessoa e colaborar com a gente no projeto.
R – Obrigado, eu gosto dessas coisas.
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