P/2 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/2 - Para começar, eu gostaria que o senhor dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Roberto Duailibi, eu nasci em oito de outubro de 1935, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul agora. De maneira que eu sou, realmente, uma espécie em extinção (risos).
P/2 - E os pais do senhor também são de Campo Grande?
R – Não. Meu pai é libanês, minha mãe é brasileira, mas cresceu no Líbano também. E eles eram tipicamente os imigrantes que obtinham o sustento da sua família através do comércio. Nós tínhamos uma loja em Campo Grande, Mato Grosso. O meu pai tinha vindo para o Brasil para fundar a Coty. Ele era farmacêutico e especializado em essências. E como vinha de uma família de joalheiros, entendia muito de pedras também. Então em Mato Grosso, além do comércio, ele entrou muito em garimpo também.
P/2 - E como foi a infância do senhor em Campo Grande?
R - Ah, foi divertida, foi fantástica. Era uma infância num lugar muito quente, de maneira que a gente crescia, na verdade, de pés descalços e aquele calçãozinho azul de elástico, que era o que bastava para uma criança crescer realmente em uma cidade. Era uma cidade planejada, era uma cidade organizada. Devia ter na ocasião os seus cinco mil habitantes, no máximo, quando eu nasci, quando meus pais foram para lá. E ruas largas e muito longas. Então além daquele núcleo inicial onde havia o comércio, um pouco para a direita, um pouco para a esquerda, um pouco para o norte, um pouco para o sul já era mato, era um cerrado. Era muito divertido, havia córregos... Eu tive uma infância ecologicamente correta (risos). Quer dizer, cacei muito passarinho, que era o padrão, joguei bolita. E curiosamente a cidade era, de uma certa maneira, na época, bilíngue, porque falava-se o português e o espanhol, por causa da proximidade do Paraguai e da influência das emissoras de rádio argentinas que chegavam na...
Continuar leituraP/2 - Bom dia.
R - Bom dia.
P/2 - Para começar, eu gostaria que o senhor dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Roberto Duailibi, eu nasci em oito de outubro de 1935, na cidade de Campo Grande, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul agora. De maneira que eu sou, realmente, uma espécie em extinção (risos).
P/2 - E os pais do senhor também são de Campo Grande?
R – Não. Meu pai é libanês, minha mãe é brasileira, mas cresceu no Líbano também. E eles eram tipicamente os imigrantes que obtinham o sustento da sua família através do comércio. Nós tínhamos uma loja em Campo Grande, Mato Grosso. O meu pai tinha vindo para o Brasil para fundar a Coty. Ele era farmacêutico e especializado em essências. E como vinha de uma família de joalheiros, entendia muito de pedras também. Então em Mato Grosso, além do comércio, ele entrou muito em garimpo também.
P/2 - E como foi a infância do senhor em Campo Grande?
R - Ah, foi divertida, foi fantástica. Era uma infância num lugar muito quente, de maneira que a gente crescia, na verdade, de pés descalços e aquele calçãozinho azul de elástico, que era o que bastava para uma criança crescer realmente em uma cidade. Era uma cidade planejada, era uma cidade organizada. Devia ter na ocasião os seus cinco mil habitantes, no máximo, quando eu nasci, quando meus pais foram para lá. E ruas largas e muito longas. Então além daquele núcleo inicial onde havia o comércio, um pouco para a direita, um pouco para a esquerda, um pouco para o norte, um pouco para o sul já era mato, era um cerrado. Era muito divertido, havia córregos... Eu tive uma infância ecologicamente correta (risos). Quer dizer, cacei muito passarinho, que era o padrão, joguei bolita. E curiosamente a cidade era, de uma certa maneira, na época, bilíngue, porque falava-se o português e o espanhol, por causa da proximidade do Paraguai e da influência das emissoras de rádio argentinas que chegavam na região mais do que a própria Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que também, a partir de um determinado ponto, começou uma penetração bastante significativa lá e que foi muito bom. Mas então no fundo, e dentro da comunidade libanesa, falava-se o árabe. Então a infância foi uma infância trilíngue na verdade: português, espanhol, árabe. Assistia-se muito filme de cowboy, havia um cinema na cidade. Era uma vida típica do interior, e do interior pioneiro, do interior levado pela estrada de ferro. Porque no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, a estrada de ferro é que levava as pessoas para os lugares, enquanto que lá as pessoas iam primeiro para o lugar, depois é que a estrada de ferro seguia. Aqui não, a Noroeste do Brasil teve um papel de penetração no Oeste brasileiro extremamente importante. E as cidades eram aquelas: Cuiabá, Corumbá, Três Lagoas, Maracaju. Todas essas cidades por onde meu pai viajava também como representante comercial, e que faziam muito parte da vida da gente, inclusive da música popular. Cantava-se muito rasqueado, a guarânia, e neste tipo de música exalta-se muito o local onde se vive.
P/1 - E a sua família era grande, Seu Duailibi?
R - Era grande sim, nós éramos m sete filhos. Você imagina uma mãe criar sete filhos em Mato Grosso, e dando escola, alimento e disciplina para todos eles. Não era uma vida fácil, como vocês podem imaginar. Mas era uma vida agradável, porque os meus pais tinham uma confecção para fazer roupa popular, roupa para colono de fazenda e também roupa boa. A loja era uma loja de primeira categoria. Vendia armarinhos, vendia botões, vendia roupas, costurava-se muito. Numa das ocasiões havia mais de quinze moças trabalhando na confecção. E evidentemente, os filhos dos patrões, que eram patrões extremamente generosos, eu diria, para os padrões da época - porque era uma coisa muito familiar, no fundo - era uma gigantesca família, na verdade. As crianças, que eram meus irmãos, sempre foram crianças muito bonitinhas, muito simpáticas. Então havia uma integração muito grande e até uma solidariedade muito grande. Portanto a família extrapolava a unidade familiar do pai, mãe e filhos; era realmente uma pequena comunidade que incluía até os outros comerciantes e seus filhos também, por causa até da origem comum era de fato uma colônia, no sentido da colônia árabe, colônia libanesa, ou sírio-libanesa, porque o Líbano ainda estava em busca da sua independência.
P/2 - E a família do senhor mantinha diversas tradições tipicamente libanesas, coisas assim?
R - É, principalmente a culinária. A culinária foi o grande traço de manutenção, principalmente nas comunidades cristãs que até 1960 era a única comunidade que imigrava fortemente. Era muito raro você ver os muçulmanos, os drusos vindos para o Brasil. Então os católicos, os ortodoxos e os greco-católicos - os melquitas - eram os cristãos que vinham. E a tradição era principalmente a manutenção da religião e a culinária. Não se dançava. O “Dabke”, por exemplo, é uma coisa folclórica que não era, não fazia parte realmente da cultura. As músicas eram três ou quatro só, da época. Havia uma vontade de ocidentalizar-se rapidamente, que estava muito ligado à própria influência do mandato francês naquela região.
P/1 - E a educação do senhor, se deu em Campo Grande mesmo?
R - Se deu em Campo Grande, a inicial. A deseducação, na verdade. Porque eu estava num colégio de padres salesianos, italianos, jovens. Ressentidíssimos, porque você imagina, eles eram obrigados a andar de batina preta, comprida... Num lugar onde a média de temperatura era 38 graus. Então você imagina aqueles padres suados o tempo todo, padres vindos das regiões alpinas da Itália. E eles descarregavam muito nas crianças isso. O que eu levei de reguada na vida, não está escrito. A tal ponto que eu não conseguia aprender a ler em Campo Grande. Aí meus pais me mandaram para São Paulo, na casa de uma tia minha que morava na Rua Major Maragliano, na Vila Mariana, perto ali da Domingos de Moraes. E eu fui para uma escola primária na Domingos de Moraes, que tinha uma professora muito bonita e que para mim era em si uma novidade. Professor para mim tinha que ser padre e feio. (risos) De repente tem uma professora bonita. Eu aprendi a ler em uma semana. Quer dizer, no fundo a gente sabia, porque na minha casa sempre circulava muito livro, meus pais nunca tiveram obstáculos quanto a deixar os filhos comprar histórias em quadrinhos - que era o grande elemento de manutenção da alfabetização; se aprendia a ler e continuava a prática da leitura através de leituras fáceis e não de leituras difíceis. Esse é um erros que se comete com o negócio da alfabetização, imaginar que as pessoas vão se alfabetizar para o sacrifício da leitura, quando na verdade a leitura tem que ser uma coisa, para ser mantida, tem que ser uma coisa simples. E lá então em uma semana eu aprendi a ler e a escrever. E a minha avó me obrigava a ler o jornal O Estado de São Paulo todos os dias, de cabo a rabo. Uma das tarefas que eu tinha era ler, ler, ler. E isso foi uma coisa que foi muito positiva na minha vida.
P/2 - E em que ano foi essa sua vinda para São Paulo para estudar?
R - Eu tinha seis, sete anos... Foi 1941, por aí.
P/2 - E qual foi o impacto que você teve quando chegou em São Paulo?
R – Bom, na verdade, Campo Grande é uma extensão do interior do Estado de São Paulo. A tal ponto que quando se discutiu a separação do Estado em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul teve um gaiato que sugeriu que o Estado se chamasse São Paulo do Oeste e não Mato Grosso do Sul. O que no fundo teria sido até melhor, porque Mato Grosso do Sul não pegou e o Estado hoje é não existente, eu diria. Quando fala-se em Mato Grosso, pensa-se Mato Grosso. Eu até fui fazer uma palestra lá sugerindo que se mudasse o nome para Estado do Pantanal, e 40% da população concorda com essa mudança, mas os 60% restantes são muito vocais e se agarram ao nome. Mudanças são sempre difíceis. De maneira que o impacto, a gente ouvia falar tanto de São Paulo... Falava-se de São Paulo muito mal na época, porque a propaganda getulista apresentava São Paulo como um Estado que queria se separar do Brasil e que foi o Getúlio que salvou, etc... Então fora de São Paulo havia muito preconceito contra São Paulo, inclusive em Mato Grosso, por causa exatamente... Por isso que eu tenho um certo horror a propaganda governamental manipulativa. Na época, o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda, utilizava o rádio com uma eficiência fora do comum para os objetivos da ditadura getulista. Mas dentro da minha casa havia um obstáculo ao Getúlio. Era gozado, a minha mãe era muito politizada e ela achava o Getúlio, ela tinha consciência do que era o Getúlio Vargas, de maneira que para mim o grande impacto, na verdade, de São Paulo, foi o cheiro de fumaça dos ônibus, do diesel. Curioso, né?
P/2 - É.
R - Bonde era uma coisa que me fazia acordar de madrugada de maneira confortável, porque a vida recomeçava. Eu me lembro que na Major Maragliano, que ficava a uma quadra da Domingos de Moraes, por onde passavam bondes, ouvir o bonde de madrugada, que ele tinha um ‘tchim-tchim-tchim-tchim’ dos trilhos, era uma coisa boa porque voltava-se a vida e sabia-se que você estava rodeado de outras criaturas humanas, o que é um sentimento confortável para quem vem, muitas vezes, do interior, onde se tem um pouco - embora morando numa família grande -, se tem a impressão da solidão, do abandono.
P/2 - E essa sua vinda para São Paulo foi definitiva ou você voltou a retornar?
R - Não, não, ficava-se sempre indo e vindo. A viagem era em si uma festa, era uma viagem de três dias, fazia-se baldeação em Bauru. E para criança tudo é festa. Então você pegar um trem para a estação, e na estação o seu pai normalmente - o meu pai pelo menos fazia isso -, ele comprava um almanaque para a gente ir lendo enquanto viajava, aqueles almanaques de capa dura, com mil histórias em quadrinhos. Era sempre um presente, uma festa aquilo. E a própria bagagem. A bagagem, os pais vinham para São Paulo para comprar mercadoria para vender. Mercadoria e, na época, ingredientes para a culinária, para a cozinha, é curioso isso. Então a bagagem era sempre farta, o despacho da bagagem, o carregador, os carregadores que a gente acabava conhecendo, descer em Bauru, o trem, o barulho, o vapor, era tudo uma festa realmente. A chegada na cidade, a estação. As estações de trem na cidade do interior, no passado, eram um ponto de referência da maior importância para a sobrevivência mental das pessoas até.
P/2 - E a sua adolescência o senhor passou...?
R - A adolescência eu passei mais em São Paulo. Eu vim para São Paulo - aí sim, definitivamente - com doze anos, porque morreu um irmão meu com dezoito anos e isso é um choque na família brutal. E a isso se acrescentou uma moratória das dívidas agrícolas com o comércio da cidade e o comércio dessa época feneceu, em 1948. E os meus pais resolveram voltar para São Paulo. E eu vim com doze anos de idade, vim morar na Rua Eça de Queiroz, numa casa que tinha um compridíssimo quintal, era uma casa geminada mas muito simpática, cabia a família toda. Era em frente ao Colégio Benjamin Constant, onde eu passei a estudar, e comecei inclusive a aprender alemão ali e praticar muito esporte, coisa que os padres não estimulavam. Não sei se não estimulavam ou por causa do calor. E aí começou de fato uma nova vida, uma nova vida da adolescência, muito voltada para o desenho. Porque eu desenhava e esse meu irmão que morreu desenhava muito bem também. E eu sentia que aí havia um caminho. Por uma coincidência, havia uma tipografia de um senhor japonês, ali na Rua Domingos de Moraes, que comprava os desenhos da gente, ele usava. Porque aí eu comecei a aprender a usa nanquim, por exemplo, que eram feitos clichês para utilização, quase como um clip-art hoje. Ele tinha o seu estoque de clip-art também, exatamente de pessoas que sabiam desenhar ali, bem ou mal. É uma tradição no jornal brasileiro, também o Belmont, o J. Carlos, eram pessoas que trabalhavam na gráfica preenchendo espaços vazios no diagrama do jornal. E hoje é uma coleção fantástica. As gráficas de São Paulo devem ter coleções também de desenhos, que até, evidentemente, destruídas e mofadas, mas deve ter coisas impressionantes.
P/2 - E aqui seus pais continuaram no ramo do comércio?
R - A minha mãe costurava e o meu pai continuou como representante comercial, com grandes dificuldades para os filhos. Por sorte, nessa época um dos meus irmãos se formou em Química, no Rio de Janeiro, e começou a trabalhar. Ele sempre foi um talento muito grande para Química, ele conseguiu empregos bons. Eu também comecei a trabalhar já com os meus quinze, dezesseis anos, no Banco de Boston, na Rua Três de Dezembro. A minha irmã no Citibank. Então a vida recomeçou de maneira difícil, foi uma época extremamente difícil, eu diria, os anos 1950... O fim dos 1940 e o começo dos 1950. São Paulo era uma cidade que já era um dínamo comercial, industrial e bancário, e ela propiciou, sem dúvida nenhuma, o encaminhamento da família. Os valores familiares sempre foram muito cultivados em casa. Quer dizer, meus pais eram duros com os filhos no que se refere ao comportamento, a bebida. De maneira que, por sorte, nós tivemos uma família onde nunca houve nenhum desses problemas. E onde havia exatamente muita solidariedade, os irmãos se ajudavam muito na escola, no trabalho. Eu me lembro que quando meu irmão mais velho conseguiu comprar um carro. Na época, o primeiro carro que foi comprado na Rua Eça de Queiroz era de uma família que tinha uma joalheria no centro da cidade, os Galimberti, eles ficaram tão orgulhosos do carro que pararam de falar com as outras pessoas da rua. E o meu irmão conseguiu comprar um Austin. Era uma coisa fora do comum você ter um carro. Carro era... Não se fabricava carro no Brasil, então os carros eram importados. E o grande sucesso na época era o Perfecto, um carrinho que era o carro também das auto-escolas. Mas um Austin era... Ele acordava de madrugada para ir olhar o Austin na rua, porque as casas também não tinham garagem. Então foi um período difícil, mas que foi tornado mais leve exatamente pelo emprego. Esse primeiro emprego. O meu primeiro emprego foi no Banco de Boston. Era uma coisa fantástica você ter uma receita regular mensal, era em si uma coisa fora do comum para qualquer jovem. E essa receita que me propiciou entrar depois no Bandeirantes, onde eu fiz o científico. Interpretei minha primeira peça com Flávio Rangel, com Manuel Carlos. E começamos também uma longa amizade. E esse era um outro ingrediente muito forte, exatamente a criação das comunidades, do grupo de amigos que você faz na escola. E o Bandeirantes era uma grande escola, realmente, aprendia-se bem. E eu tinha um professor que além de ensinar Física, ele exaltava o espírito científico. Isso eu acho que era muito importante, você ensinar mas dar também para os jovens uma filosofia. Ele era um cara que era muito contra a metafísica, contra a filosofia, digamos, barata. E era mais exatamente pelos cálculos, pela experimentação, pela atividade científica em si, que admite a tentativa e o erro repetidamente, até você encontrar uma fórmula que permita repetir a experiência. Paulo Dias da Silveira era o nome dele, apelidado PDS, e foi fundamental nesse ponto, na vida da gente. Aí aconteceu uma coisa sensacional. Um dia eu abri O Estado de São Paulo e a Colgate-Palmolive estava procurando alguém para o departamento de propaganda. E a Colgate-Palmolive era vizinha de onde eu morava, era ali na Rua Rio Grande. Eu me candidatei. O chefe era um rapaz chamado Hélio Domingues Alvarez. E houve uma identificação com a gente. Eu já escrevia bem, no Benjamim Constant eu tinha sido orador da turma. No Bandeirantes estava muito metido em política clandestina, que na época qualquer coisa era. Então eu também discursava e debatia muito. Isso também fez muito parte desse período da nossa vida.
P/1 - O senhor tinha quantos anos, Seu Duailibi, no Bandeirantes?
R - No Bandeirantes eu estava acho que com dezoito, dezenove anos já. Mas foi um período bom, porque também a Vila Mariana era uma comunidade, que é aquela região da Domingos de Moraes, da Rua Estela, da Rua Eça de Queiroz. Era uma área de concentração de famílias libanesas. Não era exclusivo, tinha muito italiano também, mas era... E na época existiam a chamadas “turmas”. Era a “turma da Eça de Queiroz”, a “turma da Estela”, que se enfrentavam. Havia encontros que eram mais ou menos justas medievais, os caras trocavam porrada como louco. E a gente fazia isso no campo do Olímpicos, que hoje é a Avenida 23 de Maio. Mas o Olímpicos era um clube de futebol que havia ali, tinha um campo de futebol de várzea, e normalmente os meninos de desafiava um indo na rua do outro. E não se usava armas, nem cacetetes, nem nada, era tudo na base da porrada mesmo. E eram encontros muito rápidos. Isso é curioso, que esse conceito de turma não sei se existe ainda, mas eram mini-gangues no fundo. Não se cometia nenhum crime, era só realmente uma solidariedade de proximidade geográfica, muito próprio da adolescência. Não existia televisão na época. Eu me lembro, a primeira televisão na nossa rua também foi na casa dos Galimberti. Eles deixavam numa posição perto da janela, de maneira que os vizinhos podiam ver da janela o que estava acontecendo na televisão. Era um veículo absolutamente novo e foi depois a revolução que foi. Quer dizer, televisão começou a ser vendida para todo mundo, cada casa passou a ter a sua, e da mesma forma que o automóvel levou as pessoas para fora, a televisão trouxe as pessoas para dentro das casas. E foram modificações que eu vivi muito intensamente, da sociedade. Uma sociedade que tinha como veículos, principalmente, os jornais, as revistas muito voltadas para a moda praticamente - com exceção do Cruzeiro, não existiam revistas de interesse geral. Existia o Jornal das Moças, o Fom-Fom, que eram revistas muito boas para a época. E nós crescemos lendo essas revistas. Um jornal local, que era sempre uma coisa terrível, e os jornais nacionais, principalmente O Estado de São Paulo. E rádio. Ainda agora estava me lembrando, eu estava lendo a letra de uma música da Isaurinha Garcia, do Carteiro, é curioso como a gente tem um repertório de música popular brasileira gigantesco na memória porque a gente ouvia no rádio. E isso foi outro ingrediente, eu acho, do gostar da poesia como uma consequência de saber letra de música. Bom, essa foi uma adolescência muito voltada exatamente para o desenho. E depois na Colgate-Palmolive, trabalhando no departamento de propaganda, que também era outra coisa muito boa, você pertencer a uma empresa, também ter um salário. Embora sempre fossem salários pequenos mas eram salários, era uma renda regular, o que é uma coisa fora do comum. E num ambiente muito bonito, era a parte de escritório da fábrica. Era fábrica e escritório. Era tudo muito limpo, muito organizado e tinha aquele cheiro de sabonete, um cheiro extremamente agradável. E trabalhar ali... Porque essa questão de cheiros é engraçado, ali onde eu cresci tinha o cheiro da Colgate-Palmolive e o cheiro da Lacta, que tinha a sua fábrica ali também, e que às cinco horas invadia a cidade, o bairro, ou aquela micro-região, com aroma de chocolate. Eu acho que é quando eles limpavam as panelas, ou sei lá como que era o processo de produção. Mas às cinco horas você respirava aquele chocolate gostoso, era uma coisa realmente muito forte para criança. Aí aconteceu uma coisa fundamental na minha vida: eu estava todo preparado para ir para Medicina, por isso que eu fiz o científico no Bandeirantes, olhando exatamente o vestibular de Medicina, que era uma coisa absolutamente dificílima, o curso superior, naquela época, era absolutamente excepcional. Eu resolvi fazer o vestibular da Escola de Propaganda. Escola de Propaganda tinha sido fundada há... Isso foi 1956, ela tinha sido fundada em 1954, portanto eu era a segunda turma. E eu fui com muito receio, eram já vários candidatos e apenas quarenta vagas. E quando eu voltei lá na Rua Sete de Abril, no Museu de Arte de São Paulo, onde era a Escola - a Escola estava dentro do Museu de Arte - e eu me lembro que eu cruzava muito com o Professor Bardi, que era o diretor do Museu na época, e foi realmente o cara que instalou a Escola, junto com os publicitários, o Rodolfo Lima Marte, José Kfouri, o Renato Castelo Branco, Otávio da Costa Eduardo, Caio Domingues. E nós estudávamos, portanto, dentro do Museu, sentados naquela cadeira de couro da Lina Bo Bardi, planejada por ela, feita de jacarandá na época. Hoje a gente olha e fala: “Puxa, que privilégio que era!” Mas na época era apenas uma cadeira dobrável. Eu me lembro de uma ocasião, eu passei em frente aos Diários Associados, onde estava exatamente o Museu, e eu vi no lixo duas dessas cadeiras. Parei meu carro e peguei as cadeiras jogadas no lixo. Levamos no marceneiro, o marceneiro restaurou a cadeira. E eu tinha duas dessas cadeiras da Lina Bo na minha casa. Aí também um dia desapareceram, não sei porquê. E hoje são raríssimas. E por coincidência, eu sou conselheiro do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, que estão tentando recuperar. Mas isso foi vital na minha vida. E quando eu voltei lá para ver se eu tinha passado, coisa que eu não acreditava que fosse possível, eu vi que eu passei em segundo lugar. O cara que passou em primeiro lugar foi o Evaldo Dantas Ferreira, que depois fez aquela - era um grande jornalista -, fez aquelas reportagens sobre o Mengele, foi para o Paraguai descobrir o Mengele etc. Foi o cara que ganhou o Prêmio Esso. Era uma turma da pesada na Escola. Os quarenta alunos eram realmente... E tinha uma coisa revolucionária na época, era um curso de um ano. Portanto foi vital na minha vida isso, porque eu estava preparado para passar seis anos numa família pobre, digamos assim, estudando, para depois ainda fazer residência e começar a ganhar a vida depois de seis anos numa matéria difícil, que era Medicina. No entanto queimou-se etapas tão rapidamente, dando uma profissão, propiciando o emprego onde eu já estava e me encaminhando para a vida muito mais rapidamente do que os métodos tradicionais. Então ao fim de um ano, que eu cumpri brilhantemente, porque eu fui um aluno brilhante, por sorte, pelo menos é o que os outros professores diziam, principalmente na parte de redação. Meu professor de redação era o José Kfouri, que foi provavelmente um dos grandes redatores brasileiros. E ele me estimulava muito na parte de criação, ele até me tomou meio como padrão para os outros alunos e isso foi fundamental na minha vida. Eu já estava praticando a profissão na Colgate-Palmolive. A minha tarefa era levantar tudo o que a concorrência fazia. Portanto para mim era uma festa, porque eu lia todos os jornais e revistas publicados no país e recebia relatórios de rádio. Tinha que saber tudo o que a Lever estava fazendo, que a Phebo estava fazendo, que os concorrentes da época faziam, a Gessy. E eu tinha que fazer um relatório, tinha que escrever um relatório semanal. Eu levantava todo custo de mídia, que também foi uma coisa fantástica, porque eu acabei fiando, sabendo o preço de todos... Já era um Ibope monitor próprio na época. Lia muito. E aí tinha uma redatora na Colgate-Palmolive, chamada Silvia Jatobá, que era uma senhora maravilhosa e que também me estimulou muito a continuar escrevendo. Ela me dava tarefas de traduzir textos americanos, de escrever coisas. E eu tinha uma percepção grande porque eu via tudo, eu lia tudo que a concorrência fazia. E tinha que escrever relatórios, eram relatórios muito divertidos. E quando eu comecei a perceber que eu colocava piada no relatório, ou comentários irônicos, a diretoria da Colgate-Palmolive adorava e vinham até comentar comigo, rindo. Porque dentro de uma empresa pouca coisa acontece que saia da rotina. E aqueles relatórios passaram a ser esperados pela diretoria, inclusive pelos americanos - havia dois ou três - porque gozava a concorrência. E era uma coisa que depois eu comecei a perceber como o humor é importante, como também esse espírito de batalha na vida concorrencial, em você exaltar o seu produto e espicaçar o do concorrente tem um valor motivacional impressionante. Porque no fundo eu estava fazendo aquilo sem querer. Mas tinha o chefe de vendas, por exemplo, quando reunia os vendedores, lia trechos do meu relatório para estimular o grupo dele. Isso eu tinha dezenove anos de idade. Mas ao mesmo tempo também tinha o chefe da área de propaganda, era um ex-vendedor, chamado Bueno. Aí é outra coisa que hoje, eu, muitas vezes ressinto nesse pessoal de marketing: a indústria era fundamentalmente baseada nas pessoas de vendas, no cara que saía com a pastinha embaixo do braço e ia de porta em porta vendendo os seus produtos. Eu os conhecia bem, porque na loja lá em Campo Grande, os representantes que vinham de São Paulo para vender os produtos na loja eram sempre pessoas extremamente divertidas, eram a imagem do cosmopolitanismo para mim, porque o treinamento da venda tinha que fazer isso. E os meus pais adoravam recebê-los, criava-se muita amizade. Eu me lembro que tinha um vendedor das Linhas Corrente, era um senhor português que quando chegava em Campo Grande o meu pai preparava um almoço para ele, porque eram amigos. E as Linhas Corrente tinha uma espécie de vitrine giratória - que um dia eu ainda quero descobrir em algum antiquário - que era uma obra de marcenaria fantástica realmente, um negócio incrível. E tudo aquilo fazia parte exatamente da vida da infância da gente. E na Colgate também todos os diretores eram ex-vendedores. E esse Seu Bueno, que era um cara super elegante, me chamou na sala dele, e isso já era uma coisa, um rapazinho, quase um office boy, sendo chamado. Aí ele falou: “Bom, Seu Roberto, quer dizer que o senhor passou... A Dona Silvia falou que o senhor passou na Escola de Propaganda.” Eu todo alegre: “É, eu passei lá.” Seu Bueno falou: “Bom, então eu quero que você saiba o seguinte: quem entende de propaganda aqui sou eu!” (risos) Que já era também uma outra lição, o perigo do conhecimento. Você se torna uma pessoa perigosa quando você conhece um pouco mais do que seu chefe. Mas na Colgate quem fazia aquilo que eu fazia, esses relatórios, era o Dirceu de Azevedo Borges, que hoje tem uma empresa de vale-refeição. Sempre foi um rapaz extremamente inteligente. E ele foi para a CIN. E algum tempo depois a CIN estava precisando de um redator, ele me chamou. Então eu já saí da Colgate-Palmolive para ir para uma agência, que tinha um charme fora do comum. Porque da fábrica na Rua Rio Grande, na Vila Mariana, ao lado da casa do Jânio, onde eu conheci o Jânio, exatamente ali. Ele morava, ele era um professor de português do Colégio Dante Alighieri, de Campo Grande também. Então a gente ficou amigo e isso me levou um pouco também para essa área política. Mas a CIN era no Edifício Califórnia, que hoje eu nem sei como está, mas na época era o ‘último do chique’ (risos), trabalhar no Edifício Califórnia, que já era um projeto do Niemeyer. A CIN estava ao lado da produtora do Gilberto Martins, que também foi outro ingrediente de muita sorte, que a gente trabalhava tanto com a CIN quanto com Humberto Martins, que tinha o melhor equipamento para jingles. E nisso a gente conheceu muito cantor, muito compositor, músicos que iam lá gravar. Então aquele andar do Edifício Califórnia fervilhava. Eu trabalhava com Manuel Vítor, que é um grande desenhista. Essa é outra origem também que foi muito importante na minha vida. O diretor de arte que sabia desenhar. Hoje eu conheço vários diretores de arte que não têm a menor noção de desenho, eles trabalham com computadores, então a coisa... Não é nada contra, mas a comunicação exige o desenho, exige o domínio do espaço. E o Manuel Vítor era certamente um dos melhores desenhistas da época. A convivência com ele - eu como redator, ele como diretor de arte - era uma coisa extremamente boa também. E na CIN foi um período maravilhoso da minha vida também, porque exatamente com vinte, 21 anos de idade a CIN começou a crescer. Nós tínhamos a conta da Vemag, contas onde foi a minha primeira apresentação de uma campanha, foi exatamente para o dono do Banco Novo Mundo, que era também dono da Vemag, cuja origem da fortuna era o Jogo do Bicho. Ele era banqueiro do Jogo do Bicho e chamava-se Domingos Fernandes, já era um senhor de idade. Eu me lembro que a primeira apresentação que eu fiz foi uma campanha, três anúncios de imprensa para o lançamento do Vemaguet. Eu fui lá com o Samuel Vilmar, que era o dono da CIN, num edifício na Praça Antônio Prado, uma sala gigantesca, toda forrada de madeira. Ele trabalhava numa daquelas mesas todas lavradas. E durante a apresentação eu percebi que sob o vidro da mesa ele tinha um cartazinho, aqueles cartazinhos feitos em gráfica, escrito ‘hei de vencer’, com aquela letrinha que tinha uma sombrinha de lado. Aí na saída eu virei para o Samuel - ele aprovou, felizmente -, na saída eu virei para o Samuel Vilmar, no elevador, e falei: “Puxa, que fantástico, um cara que é banqueiro, rico para burro, tem uma fábrica de automóveis, imagina que coisa fantástica, e ainda tem cartazinho dizendo ‘hei de vencer’.” Aí o Samuel Vilmar falou com a maior naturalidade: “É, ele tá fazendo um tratamento contra a impotência.” (risos) Falei: “Eu com 21 anos de idade sou muito mais rico do que ele.” (risos) Eu andava de pau duro o tempo todo, então era muito mais rico do que ele (risos). E essa foi a primeira apresentação realmente. E eu fui muito bem na CIN porque a gente sempre procurava fazer as coisas diferentes. Quer dizer, o anúncio não podia ser um anúncio como a Mccann fazia, como a Thompson fazia, que eram na época os padrões e que tinham o conceito exatamente do ‘Unique Selling Proposition’. Uma vez que você encontra o argumento de ordem exclusiva, a essência da mensagem, você terminou seu trabalho criativo. Eu achava que não. Eu acho que na hora que a gente encontrava esse argumento de ordem exclusiva, aí é que começava a criação. Você tinha que fazer alguma coisa que fosse, ao invés de dizer, por exemplo, um rolo de papel higiênico: “5% mais papel” ou “10% mais macio”, esse tipo de coisa que era muito exclusivo do produto, aí é que começava a criação. Como que você apresenta isso de maneira interessante. Eu acho que nisso foi bom exatamente essa prática do desenho, da história em quadrinhos, do teatro, da poesia, que era uma coisa que acrescentava ao texto. E o meu texto sempre começou a fazer sucesso, eu comecei a fazer muito freelance. Eu acho que eu fui o maior freelenceiro que existiu em São Paulo, porque eu ganhava muito mais dinheiro fazendo freelance do que o salário. Eu me lembro até de uma ocasião, eu fazia muito freelance para a Varig, e o superintendente de propaganda da Varig, um cara chamado Clóvis Hazar, hoje ele tem emissoras de rádio em Santos. Ele tinha três superintendentes regionais, um em São Paulo, um no Rio e um em Porto Alegre. E também gostava muito de mim, porque os anúncios eram muito bons que a gente fazia para a Varig. A Varig teve um período... Aí quando o Clóvis Hazar saiu, eles quiseram que eu fosse o superintendente e me levaram para o Rio para falar com o Rubem Berta. E conversando com o Rubem Berta, nos despedimos, voltei para São Paulo. No dia seguinte o Ivan, que era o superintendente de São Paulo, me ligou e falou: “Olha, Duailibi, não deu certo, porque depois que você saiu o Rubem Berta virou para nós e falou: ‘Mas este menino ganha mais do que eu!’” (risos) Aí eu falei: “Pô, então eu não vou trabalhar numa companhia onde o presidente ganha menos do que eu fazendo freelance.” E também foi outra sorte. Porque essas coisas,às vezes, são momentos na vida que podem mudar totalmente o destino de uma pessoa. A outra coisa que eu acho que foi a grande mudança no meu destino foi quando eu ainda trabalhava no Banco de Boston, e o Bradesco abriu um concurso. E um dos exames do Bradesco, que era em máquinas de escrever, era escrever um texto em uma daquelas máquinas que tinha uma tampa sobre o teclado. Você tinha que escrever. Evidentemente eu fui um desastre e fui reprovado. E um dia eu vi um anúncio do Bradesco mostrando a carteira de trabalho do trabalhador, dez mil. Falei: “Puta, que sorte que eu fui reprovado, imagina se eu tivesse feito uma carreira no Bradesco?” E de fato, mais tarde, já na DPZ, o Lázaro Brandão nos chamou uma vez, fizemos aquele SOS Bradesco, que já era uma revolução no Bradesco, que era um banco muito caipira, tudo era muito de mau gosto no Bradesco. Mas o Lázaro Brandão já tinha uma noção disso. E nos chamou, nós fomos até a Cidade de Deus; eu fiquei horrorizado, aquele negócio realmente... E as pessoas moram lá. Quer dizer, imagina a pressão social que existe nas famílias, um observando o outro, as mulheres fofocando, as crianças. Eu falei: “Puta, eu podia estar aqui, imagina que tragédia que seria!” Porque no Boston eu cheguei a ter asma, eu acordava de manhã e falava: “Puts, eu vou fazer hoje a mesma coisa que eu fiz ontem e a mesma coisa que eu vou fazer amanhã. Será que trabalhar é isso?” Então o trabalho no banco estava associado a sofrimento e não a alegria. Aí lá no Bradesco o Lázaro Brandão conseguiu aprovar o SOS Bradesco, e ele pensou em mudar o símbolo do Bradesco e nos contratou. Fomos eu e o Petit fazer a apresentação para a diretoria, sem o seu Amador. Aí no meio da apresentação entra o Amador Aguiar e vira: “Ô Brandão, o que vocês estão fazendo aí?” Aí o Brandão levantou todo preocupado: “Seu Amador, nós estávamos pensando em fazer uma surpresa para o senhor. Nós estamos vendo a possibilidade de fazer um novo símbolo para o banco.” Aí ele falou: “Ô Brandão, eu desenhei esse símbolo com as minhas próprias mãos há quarenta anos em Amparo, ele sempre nos acompanhou e nos deu sorte. Se vocês mudar o símbolo do banco, eu peço demissão!” E saiu. E acabou, esvaziou a apresentação (risos). Você imagina o ambiente ditatorial que era aquilo. Mas esses foram episódios que marcam, quer dizer, ficam na memória. Da CIN eu fui trabalhar na Thompson, que era também um sonho, porque eu tinha então 23, 24 anos e fui ser chefe de redação da Thompson, que era uma coisa absolutamente excepcional. Eu me lembro que nessa época também eu fiz a minha primeira viagem para a Europa. Viajar naquela época era uma coisa absolutamente excepcional. Eu apresentei uma tese num congresso do IAA. Era um patrocínio da Philips, que tinha inventado o transistor, então eles fizeram um concurso no mundo inteiro entre os jovens, o que ia ser o transistor, qual era o futuro do transistor. E por uma sorte também, naquela semana havia um conflito entre o Egito e a Etiópia... A Líbia, não a Etiópia. A Líbia tinha um imperador - um rei - que era inimigo Gamal Abdel-Nasser, do Egito; e o Nasser queria derrubá-lo. O Nasser era um militar, era um coronel, era populista, moderno. Ele tinha já derrubado também o rei do Egito, que era um corrupto. E ele queria estender isso para a Líbia. E para fazer isso ele comprou lá da Phillips, coisa assim de cem mil radiozinhos transistores, que tinham sido inventados naquele mês praticamente, só sintonizados na Rádio Cairo. E bombardeou a Líbia com rádios em pequenos pára-quedas e uma pilha. Então a polícia e o exército líbio não conseguiram pegar todos os rádios, recolher tudo. Então espalhou-se entre a população. E mesmo a polícia e o exército líbio quando conseguiam sequestrar da população, vendia, os caras vendiam, porque aquilo tinha um valorzinho comercial qualquer. Mas era só a Rádio Cairo, eles só ficavam ouvindo a Rádio Cairo. E em quatro dias derrubaram o imperador da Líbia. Então foi o primeiro uso do transistor, foi com objetivo político revolucionário. E muito criativo, porque você encomendar cem mil radinhos e ganhar uma guerra com rádio transistor é fantástico. Porque poderia ter sido uma batalha terrível: os exércitos egípcios invadirem a Líbia ou os líbios resistirem, ia ser terrível. E com o rádio ele derrubou o cara em três dias. Claro, já tinha, o fermento estava ali. E eu usei isso como metáfora para mostrar o futuro e ganhei a viagem para Londres e Paris. E em Londres, o programa da IAA - International Advertising Association - previa uma visita à Thompson. E eu estava recém casado com a Silvia, com quem estou casado até hoje, excepcionalmente no mundo da publicidade. E aproveitamos para fazer uma extensão da lua-de-mel. Foi uma lua-de-mel também muito engraçada sob o ponto-de-vista... Não essa, a primeira. E na apresentação da Thompson, na redação... Porque não existia criação, existia a redação e a direção de arte, que eram inimigos mortais entre si. O chefe de redação da Thompson era um senhor, porque escrever em inglês, você precisava ser um cara com formação literária muito sólida. E eu tinha 24 anos. A Silvia falou: “Fala para ele que você também é chefe de redação na Thompson.” Eu falei: “Fica quieta, não fala nada, porque eles nunca vão acreditar que um cara de 24 anos pode ter o mesmo cargo que aquele tinha em Londres.” Esse é um outro ponto-de-vista do Brasil como país da oportunidade. Realmente você pode queimar etapas muito rapidamente. E da Thompson eu voltei para a CIN. Aí fui para a Mccann, da Mccann voltei para a CIN. Da CIN fui para a Standard. O que mostra também que eu sempre deixava portas abertas, eu nunca saí brigado nem nada. Mas essa ida da CIN para a Mccann foi muito engraçada, porque durou 28 dias na Mccann. E eu odiei, porque na CIN era um paraíso para mim. Porque, primeiro, eles aceitavam todos os textos que eu fazia; segundo, ali no Conjunto Califórnia - eu até gostaria de voltar lá para ver como que está esse prédio, porque ele era muito charmoso - o Niemeyer tinha feito no centro do prédio, onde tinha também a ventilação, tinham escritórios, tinha o corredor e os escritórios que davam para a Rua Barão de Itapetininga, que tinha varanda. E a CIN se expandiu e alugou um desses conjuntos que davam para lá. Foi um paraíso para mim, um paraíso realmente. Eu já comecei dando aula na Escola de Propaganda e vinha à noite, já ficava lá... Eu dava aula na Sete de Abril e trabalhava na Barão de Itapetininga, então era uma quadra. Eu já ficava nessa sala. E essa sala se transformou num grande atrativo feminino do prédio. Então para mim era uma coisa maravilhosa. Fora do expediente era o lugar ideal para se estar, inclusive depois de dar aula, entende, que depois da aula a gente ia corrigir provas lá com algumas moças. Então era muito divertido, era realmente muito divertido. E na Mccann era o oposto, era tudo rígido. O chefe de redação era um cara que hoje é super amigo meu, uma criatura admirável, que é o Francisco Gracioso, presidente da ESPM, que era um chato de galocha como chefe de redação. Ele tinha um defeito nos dedos. Uma vez jogando voleibol ele prendeu os dedos na rede e puxaram a rede para tirá-lo e decepou o dedo dele, então teve que ser colocado. Ele tinha um defeito nesses dois dedos, ele pegava o lápis assim, e ele riscava o meu texto. Eu achava aquilo o fim da picada. E eu continuava fazendo freelance para a CIN. Aí o Samuel Vilmar falou: “Pô, volta para a CIN, te pago o dobro!” Quer dizer, eu aumentei de salário, dupliquei o meu salário. Eu saí da CIN para a Mccann já com um bom aumento. Na Mccann, voltei para a CIN com o dobro do salário. Então em um mês eu tripliquei praticamente o meu salário. Mas aí eu peguei um texto do Gracioso no arquivo, rebati na máquina, naquele papel rascunho que a Mccann dava e levei para o Gracioso o texto dele. E eu avisei os outros redatores, o Henrique Novak, o Leão. O Leão era gozado, porque ele era Trotskista, ele apanhava dos comunistas e da polícia. Aí o Gracioso pegou o texto dele e começou a riscar (risos). Aí eu falei: “Gracioso, olha...” - eu estava já com a carta de demissão no bolso – “... é uma brincadeira que eu estou fazendo com você, que eu recebi uma proposta e estou saindo. Mas eu só queria que você visse seu próprio texto, para você ver que esse se cacoete de riscar texto dos outros é muito chato.” Sempre fomos amigos, mas foi o tipo da coisa que também mostrava que ou você acredita no que você escreve e defende, ou você se torna um cara medíocre, porque alguém vai mexer ali. E vai mexer por mexer, porque era o exercício da autoridade. E isso me deixava doente. E não adiantava discutir com o Gracioso, que o Gracioso era inamovível. Eu dizia: “Mas Gracioso, este título tá melhor.” “Ah não!” E riscava. E ele riscou o próprio texto dele todo. E aí voltei para a CIN. Depois também iniciou um período muito importante na minha vida, que foi a proposta que eu recebi da Standard, com o Júlio Cozi, o Licínio de Almeida, para ir para lá, que também era muito charmoso, era na Praça Roosevelt. Aí como essa parte da cidade, que era tão bonita, era tão gostosa, era uma coisa elegante, começo a partir da década de 1960 entrar numa decadência, e hoje é um pardieiro horroroso, que é uma pena. Porque ali a Praça Roosevelt era também super chique, com o Colégio Porto Seguro na frente. E as pessoas que estavam lá, Júlio Cozi, o Licínio de Almeida, o Lívio Rangan, quando nós começamos a trabalhar para a Rhodia e criar uma verdadeira revolução na moda brasileira, criar a profissão de modelo, criar um conceito de butique, criar o conceito de estações para roupa masculina, que não existia. Um terno masculino tinha uma vida média de quatorze anos, e a gente criar a ideia de que a pessoa pode usar roupa diferente. A introdução do jeans, não como uma roupa de rancheiro americano, mas como uma coisa elegante. Esse foi um período extremamente rico. A importância da televisão e da criatividade na televisão através das produtoras e dos filmes. O Júlio Cozi foi fundamental nisso porque ele começou a importar filmes americanos e mostrar para nós como que se fazia comercial. Bom, depois foi esse período da Standard, que eu acho que foi fundamental também na minha vida, porque a gente teve a oportunidade de trabalhar com o Lívio Rangan, que foi o cara que revolucionou a moda brasileira. E o Lívio é uma história também extremamente interessante, porque ele era um jovem italiano imigrado para o Brasil, dançarino. Quando veio para São Paulo, a companhia de danças dele se desfez e ele teve que viver dirigindo teatro infantil. E como era um cara que falava francês bem - ele era de Trieste, era super bem educado - ele conseguiu emprego na Rhodia. A Rhodia era meramente uma fabricante de fibras sintéticas e de produtos químicos. Outro episódio que eu me lembro, numa ocasião nós fomos para Campinas inaugurar um laboratório de pesquisa da Rhodia e o presidente era um francês chamado Senhor Maurice. E eu fui com ele no carro. E ele era bem um francês químico, a Rhodia era uma empresa fundamentalmente química, ele me dizia o seguinte: “Maldito Jânio Quadros, quando nós conseguimos atingir 95% de pureza na lança perfume, ele proibiu!” (risos). Para ele era um problema químico, não tinha nada que ver com o uso que faziam de lança perfume. E o Jânio Quadros proibiu mesmo a lança perfume porque tinha degenerado, talvez até exatamente por causa da pureza, porque você cheirava e já não dava mais dor de cabeça. Eu passei a minha infância brincando carnaval com lança perfume, mas ninguém cheirava. E eu acho que à medida que eles foram tornando mais pura o lança perfume, criou-se um hábito novo e um novo uso para a lança perfume, que acabou sendo o grande prejuízo. A Rhodia não tinha verba, a Rhodia fazia uns anúncios institucionais muito bobinhos: ‘O fio de Ariadne’, falava sobre os fios. E os sintéticos não pegavam no Brasil de maneira nenhuma. O tergal, por exemplo, não amassava, já era uma grande vantagem, mas as pessoas diziam: “Ele desceu - diziam a respeito do Aldemir Martins - ele desceu do seu pau-de-arara vestindo seu terninho de tergal” (risos). E o Lívio foi contratado e não tinha verba. Aí o gerente da Standard em São Paulo era o Said Farah, depois veio a ser ministro das comunicações, e é um intelectual fantástico, está vivo até hoje, já velhinho mas extremamente ativo mentalmente. E como ele queria se livrar desse cliente me mandou. Na época nós tínhamos na Standard um departamento de outdoor - imagina, de cartazes de rua, não se chamava nem outdoor - e o chefe do departamento, que era uma cadeira só, era um cara chamado Renato Rosa, que era o sujeito encarregado de percorrer a cidade, ver se os cartazes estavam postos. Era uma tarefa dentro da área de produção gráfica, uma tarefa modesta. Então o Farah para se livrar da Rhodia mandou o Lívio Rangan conversar com o Renato Rosa, que era para dizer: “Não vou te dar nenhum contato, vou te dar o chefe do departamento de outdoor.” E o Renato Rosa não entendia nada de propaganda, naquele desespero de ter que atender um cliente, entre aspas, me chamou e eu achei divertido aquilo, as possibilidades. Gozado... Como eu cresci dentro de uma loja de roupa, talvez tivesse uma sensibilidade especial exatamente para essa coisa do tecido, da roupa, da necessidade da mulher. Eu falei com o Lívio: “Por que nós, ao invés de fazer anúncio, que você não tem dinheiro para isso, vamos fazer reportagens de moda e vender para as revistas.” E o Lívio viu nisso uma possibilidade e realmente topamos. Ele falaria com os fabricantes de tecidos e com as confecções. Nós tínhamos o estúdio fotográfico na Standard, que era dirigido pelo Otto Stupakoff, então a gente produziria reportagens de moda, que era uma coisa já revolucionária na época também. E o Lívio levou isso ao extremo. Vocês vêem como às vezes a semente de uma ideia significa uma coisa gigantesca. Mas aí muito ajudado também pela juventude. Porque o Bloch, por exemplo, que produzia várias revistas, desfile, a Manchete - viu nisso também uma oportunidade de economizar. Os fabricantes, os confeccionistas também viram uma oportunidade de divulgar os seus produtos e o pessoal dos tecidos. E o Lívio teve uma intuição boa de pegar a informação que vinha da França para ele e repassar para o pessoal de tecidos e para o pessoal de confecções. E passou a criar um centro de informação de moda, que era uma coisa muito importante, porque as tecelagens tinham sempre a tragédia do estoque não vendido. Tanto que o avô do Afif Domingues, que tinha uma tecelagem ali no Ipiranga - e o Afif Domingues conta isso, que hoje é o presidente da Associação Comercial, conta como uma lição de vida - dizia: “Meu filho, fazer tecido branco é ouro; fazer tecido de cor é prata; fazer tecido estampado é merda!” (risos). Porque realmente você nunca sabia, porque se falhou está falhado; se você mandar estampar uma coisa errada, fica aquele estoque para o resto da vida. E se tivesse alguém que encaminhasse o que vai ser a moda, como que nós vamos apoiar essas coisas que vocês adotarem, tanto no que se refere à estampa do tecido quanto à sua aplicação em roupa e dar espaço para divulgar, era o ideal. O que precisava era exatamente alguém que fosse o click. E na ocasião quem era o gerente de propaganda do Bloch aqui em São Paulo era um rapaz carioca chamado Roberto Vasconcelos, que também foi incluído na escolha das manequins, porque a gente precisava ter manequim. E não existia essa profissão. Então nisso o Lívio também foi fundamental, na escolha de quem seriam as moças para carregar os tecidos e como elas seriam remuneradas, porque também criou-se um fundo com os fabricantes de tecidos e os fabricantes de roupas. Aí ia entrar nas tinturarias também. Tudo sem dinheiro, era impressionante. E a escolha da manequim. A manequim normalmente na época era uma ou outra moça da sociedade que topava desfilar, não era uma profissão. Então era preciso criar uma profissão, era preciso transformar essas moças inclusive em celebridades. E formou-se o primeiro grupo de manequins e começou-se a viajar. E aí também na questão da viagem foi muito engraçado porque eu falei para o Lívio: “Por que a gente não pega coisas bem brasileiras? Vamos, por exemplo, fotografar em Ouro Preto.” Ele não conhecia Ouro Preto. Eu mostrei um livro que tinha Ouro Preto, ele achou ótimo. E Ouro Preto não se tinha noção ainda da preservação. E nesse ponto eu acho que a SOS Mata Atlântica, é a primeira campanha de reflorestamento. Eu inventei a palavra reflorestamento, não existia o conceito de reflorestamento. E Ouro Preto era um negócio caindo aos pedaços, não havia nenhuma preservação, ela era apenas uma cidade velha. Mas tinha o charme exatamente para mostrar a moda moderna. E eu me lembro que quando nós avisamos o representante da Standard em Belo Horizonte, que nós íamos fotografar lá, falou: “Em Ouro Preto? Por que vocês não ficam aqui em Belo Horizonte mesmo, a gente tem uns clubes tão bonitos.” (risos). Mas aí começou exatamente essa noção de que você ia buscar as coisas bonitas nas raízes do seu país. Fomos para a Bahia, fomos para a Amazônia, e isso era absolutamente revolucionário. E também tudo de graça, porque a gente fazia acordos com as companhias aéreas, principalmente com a Panair, que nos dava as passagens de graça para poder aparecer nas páginas da revista. E para o Bloch foi também uma descoberta, porque ele não pagava nada, ele dava páginas de revista. Ele encomendava os móveis, na hora de receber ele falava: “Olha, a mercadoria que eu tenho é página de revista, não é dinheiro.” E criava anunciantes. Os caras, para poder aproveitar, acabavam anunciando. Então foi uma época realmente, assim, seminal da propaganda brasileira, eu diria nesse sentido de lançar conceitos novos, de usar a propaganda como uma arma revolucionária para o desenvolvimento da sociedade, para fazer com que a profissão tivesse dignidade. Porque ao invés de ser uma profissão de corretores de espaço dos jornais e revistas, ela passou a ser uma profissão onde a criação tinha a prioridade, a ideia. A coisa, o comércio em si é uma permanente exposição de ideias e exposição de coisas novas. Exatamente por essa natureza ele encontra muita resistência por parte de pessoas conservadoras. E foi exatamente no começo da televisão brasileira, da televisão que utiliza a linguagem dos trinta segundos como um resumo da mensagem. O ano passado eu fui quatro vezes a Cuba exatamente porque eu fui uma vez e tive a intuição de levar um rolo de comerciais sociais. E eu fui para uma palestra para jornalistas lá, mas descobri que tinha quinze agências em Cuba, cada uma ligada a um ministério, e eles não têm acesso à televisão nem ao jornal, eles só fazem folhetos, cartazes. E o grande sonho deles é exatamente esse acesso. Eles nunca tinham visto um comercial de trinta segundos - em quarenta anos de ditadura socialista, nunca tinham visto. Então para eles um rolo de comerciais foi uma descoberta. E se a gente pensar bem, a década de cinquenta para nós também. A linguagem, quando saiu da televisão ao vivo para o filme, já foi um grande passo. E depois do filme preto e branco para o filme colorido, outro grande passo; a utilização da música também. Foram momentos sempre muito importantes, dos quais, de uma certa maneira eu tive a sorte de participar. Depois, em 1968, numa crise no Brasil brutal - acho que foi a pior crise recessiva que o Brasil viveu - o Ministro do Planejamento era o Roberto Campos e o Ministro da Fazenda era o Bulhões de Carvalho. Havia uma moratória virtual no país, ninguém pagava ninguém. Eu era o gerente da Standard aqui em São Paulo e odiava aquele trabalho, porque o que eu fazia era redigir, quer dizer, eu não ficava cobrando de cliente e sendo cobrado por veículo, era infernal para mim. E eu fazia muito freelance para o Petit e para o Zaragoza e aí resolvemos nos juntar e fazer a DPZ, que está portanto completando 36 anos, 37. E foi também um episódio engraçado, porque como éramos três criativos, criou-se um bolão entre as agências da ocasião dizendo: “Quantos meses vai durar essa sociedade?” E o pessoal achava que ia durar três meses. E por sorte está durando 37 anos, milagrosamente. E a gente também procurou fazer coisas sempre revolucionárias, mas aí muito baseado também no bom gosto do Petit e do Zaragoza, que são pessoas com uma formação de direção de arte fantástica. E nós fizemos campanhas sempre muito criativas e tivemos um progresso muito grande nesses anos todos, felizmente.
P/1 - Assim, nessa década, na década de 1970, quais as grandes campanhas que a DPZ participou?
R - Nós fizemos a Suíta, por exemplo: “Ninguém ama um homem gordo”, que foi uma campanha que eu diria que introduziu o hábito da dieta no Brasil e o padrão da magreza. A Olivetti, a Borda do Campo, a Scala D’Oro, também na área de moda. A parte de fotografia sempre foi também muito cultivada. Depois nós pegamos o Banco Itaú, que também estabeleceu padrões de bom gosto no que se refere a banco, porque os bancos eram anunciantes primitivos até no passado. Enfim, sempre tivemos anunciantes. A Sadia, a própria Rhodia, que foi cliente nossa também durante muito tempo, a Telesp. Nós introduzimos o conceito do anunciante governamental, usar o espaço do empréstimo para anunciar. Porque antigamente o governo emprestava dinheiro para os jornais e para as revistas e ficava eternamente à espera de ser pago. E nós introduzimos o conceito: “Por que ao invés de cobrar, não se utiliza o espaço para comunicar as coisas do governo e fazer campanhas sociais?” Isso revolucionou também, eu acho, porque é assim até hoje. Hoje, eu diria, até degenerou, porque o governo passou a ser de novo um manipulador, o que é uma pena. Mas foram momentos importantes.
P/1 - E Seu Duailibi, nessa década, na década de 1970, as mídias, a publicidade, elas já estavam preocupadas com essa questão ambiental, em meio ambiente, já se pensava?
R - Não, eu diria para você o seguinte: qual foi a semente da preocupação ambiental? Foi uma campanha feita pelo jornal O Estado de São Paulo, sob a liderança de um jovem jornalista na ocasião, chamado Lobato, que começou a se preocupar exatamente com a devastação das florestas no Estado de São Paulo. Porque até então não existia o conceito de floresta, existia o conceito de mato. E do mato vinham todos os perigos: vinha o índio, vinha a cobra, vinha a onça, vinha o mosquito. E o padrão, tanto no interior de São Paulo quanto nas capitais, era você derrubar as árvores e cobrir a terra com cimento. Isso era o progresso. Progresso era sair do mato. Eu vivi a São Paulo dos matagais, que eram locais perigosos onde se escondiam bandidos. E como a topografia é muito irregular, nós tínhamos vales escondidos por florestas, que eram lugares selvagens até. Quando eu me lembro ali, aquela região exatamente da Vergueiro, da Vila Mariana, com aqueles vales escondidíssimos, você ficava sempre no alto da serra. A cidade se estendia no alto da serra. Hoje mesmo, se vocês percorrerem São Paulo e notarem como ali, naquela região da Rebouças, na própria Vila Madalena, Pinheiros, você tem ladeiras. Vocês lembram daquilo coberto de mato. O Rio Pinheiros era um rio super sinuoso, um rio de maleita. O fato de terem regulado o rio e coberto aquelas matas com terra, criando o Jóquei Clube, criando tudo isso, era grande sinal de progresso. Então a questão ambiental era olhada sob o outro ponto de vista; o mato era o inimigo. O conceito de floresta começou exatamente com essa campanha, onde nós colaboramos e usamos a palavra ‘reflorestar’ pela primeira vez, como uma atividade que compensasse as derrubadas, até porque a madeira também era um recurso econômico. As pessoas derrubavam a mata para fazer lenha, para fazer chão, para construir casas, porque era a matéria-prima mais ao alcance das pessoas. É uma luta difícil, porque as pessoas vivem da madeira. Então o conceito de reflorestar começou a criar exatamente esse conceito de que a devastação não é uma coisa boa. E quando nós olhamos a história econômica e a história do Brasil, de fato do mato vinham todos os perigos, a começar do índio. Vocês lêem o Hans Staden, vocês vêem que a construção das clareiras era um meio de defesa contra a surpresa dos ataques do inimigo. Então a gente nunca apreciou a mata. A ideia da Mata Atlântica, por exemplo, foi uma surpresa para muita gente - chamar o mato de mata. Então vocês vêem como toda essa questão semântica também é importante na educação e na mudança de atitudes. E foi importante na minha opinião também, ainda semanticamente, a criação do símbolo da Mata Atlântica com a bandeira brasileira sendo comida, quer dizer, a mata desaparecendo, que foi uma coisa que marcou muito. Por sorte, a instituição foi sempre bem administrada, então foi uma combinação boa de boa comunicação com boa administração.
P/1 - Isso nós já estamos na década de 1980?
R - É.
P/1 – Então vamos voltar um pouquinho. Na década de 1970 não se falava...?
R - Eu identifico as etapas, digamos, como a etapa da floresta como inimigo, a floresta como algo a ser refeito e a mudança de percepção da floresta como meio de sobrevivência econômica, como meio de sobrevivência da saúde humana e da fauna. A fauna, por exemplo, o pássaro era para ser aprisionado. Você caçava, até hoje caça-se passarinho. Eu moro ali no Morumbi, eu tive que perseguir uns caras que botavam as armadilhas numa praça em frente à minha casa. Porque para eles é um meio de vida. Ele vende o curió, ele vende o canarinho que está lá, ele captura os periquitos para vender, porque é um meio dele ganhar um dinheirinho. E mudanças assim, você faz com educação e com repressão. Porque só educação não adianta, você tem que ter a multa, você tem que ter a perseguição, você tem que ter até a ameaça de cadeia.
P/1 - Sua aproximação com essa questão ambiental, ela se deu com a chegada da SOS?
R - Não, ela se deu com a campanha pelo reflorestamento do Estado de São Paulo.
P/1 - E como chegou depois a SOS na DPZ?
R - Isso já era na DPZ, nós fomos procurados pelo Roberto Klabin, que era amigo nosso, a gente sempre morou perto. E a tarefa foi passada para o Neil Ferreira e para o Zaragoza, que até por diversão resolveram fazer gratuitamente a campanha e colaborar com o que a gente tinha, que é o nosso talento. Foi uma combinação bem dialética de valores que gerou uma coisa importante, eu acho, que mudou muito o conceito, exatamente pela seriedade; mudou muito o conceito do que é a necessidade de preservar, de preservar e auto-sustentar, isso que é também importante. Porque quando a gente fala em preservação e não oferece uma alternativa para as pessoas que vivem daquilo... O Brasil era sempre um país extrativista; em Sociologia a gente aprende o seguinte: existe entre os índios, você tem três tipos de tribos ou de comunidades, normalmente muito pequenas, as tribos normalmente têm cinquenta, sessenta pessoas. Você tem o coletor, você tem o agricultor e você o caçador, são três etapas de desenvolvimento. O índio mais primitivo é aquele que coleta as coisas da natureza e se sustenta com o que coleta. Chegar a ser agricultor, a plantar o milho e saber que tem que ter um tempo, já é um grande avanço. E criar ferramentas para caçar, já é um outro avanço. O caçador é o índio mais avançado. Nós somos ainda, em várias regiões do Brasil, coletores, a gente vive do que a natureza nos dá. E toda história, o começo econômico do Brasil foi isso. O café só foi introduzido muito depois. A agricultura de sobrevivência, que acompanhou, digamos, os primeiros colonizadores, os primeiros ocupantes da terra, era muito primitiva no fundo, comia-se muito mal. Porque nós éramos ainda coletores. Então essa questão ambiental, eu acho que a semente dela foi essa campanha do jornal O Estado de São Paulo, alertando para a devastação e para o perigo da desertificação do Estado de São Paulo.
P/1- E aí foi um passo.
R - Porque a palavra deserto também criou um inimigo visível e muito perigoso. Porque nós temos o exemplo da desertificação do Nordeste transportado para São Paulo; foi uma coisa que criou de fato uma emoção muito forte.
P/1 - Seu Duailibi, eu gostaria que o senhor falasse um pouquinho como foi essa sua relação com a SOS Mata Atlântica; se a partir dessa campanha...?
R - Aí foi uma relação mais de filosofia. Eu já tinha essa noção da preservação e do auto-sustentável, que eu expliquei para o Zaragoza e para o Neil. O Neil também é um cara que sempre foi bem informado. E a relação se deu através da prestação de serviço voluntário, que é muito importante também se você considerar que uma campanha como essa, a ideia atrás dela e os primeiros anúncios, a obtenção do espaço gratuito nos veículos, se você olhasse sob o ponto de vista econômico, valeu milhões de dólares, era uma coisa que disseminou uma ideia que passou a ter um grande valor. Claro que ela também é uma entidade de fins não lucrativos, mas para se sustentar ela precisa da coisa fundamental de toda entidade de fins não lucrativos: toda entidade precisa de três coisas fundamentais: dinheiro, trabalho voluntário e simpatia. Toda entidade - museu, escolas quando são de fins não lucrativos, instituições artísticas, beneficentes - sempre precisam de dinheiro, trabalho voluntário e simpatia. Pega a escola de samba, por exemplo, ela tem o dinheiro, que é pouco, no fundo, dos bicheiros em geral, e agora de alguns patrocínios que vão degenerar totalmente a ideia de escola de samba. Trabalho voluntário, quando você pensa as horas que aquelas comunidades dedicam para fazer as fantasias, a ensaiar, a tocar a coisa, é gigantesco. Se você transformasse isso em valor econômico, são também bilhões, não são milhões. E a simpatia, que é o ingrediente fundamental, porque quando você tem a simpatia da população as coisas caminham mais facilmente. Na medida que você tem oposição ou obstáculos, você tem mais dificuldades. Então o que nós fizemos no caso da SOS Mata Atlântica? Foi tentar obter as três coisas com gente que já estava na empresa fazendo isso, na entidade. Então foi uma combinação de valores que deu um bom resultado. De lá para cá, várias outras entidades... Aliás, as entidades de fins não lucrativos, elas tiveram grande desenvolvimento no Brasil com as ondas migratórias, porque antes a coisa se concentrava muito nas Santas Casas. Depois é que com os imigrantes e a necessidade de coerção e auto-ajuda - auto-ajuda não no sentido de se auto-ajudar, mas da comunidade se auto-ajudar - começaram a ser feitos os hospitais, os orfanatos, as escolas. Foi um período que, na minha opinião, começou realmente no Brasil a partir de 1900, quando as ondas migratórias começaram, e atingiram seu alvo na década de 1920.
P/1 - E assim, voltando um pouquinho. A DPZ imaginava que ia repercutir tanto essa campanha?
R - Não. Quando você faz uma campanha voluntária, você sabe que você vai obter adesões e você vai obter correligionários, no sentido de pessoas que praticam a mesma religião, no sentido filosófico da coisa. Porque toda entidade que tem uma causa, ela propõe exatamente uma solução para a alma das pessoas. Porque você pode colaborar com dinheiro, você pode ir lá trabalhar voluntariamente, você pode dar sua simpatia, mas elas satisfazem uma necessidade de sobrevivência importantíssima, de equilíbrio psicológico. A gente nunca sabe que resultado vai dar, mas como nós fazemos muita campanha voluntária, até por causa da nossa formação, é muito raro uma campanha que não tenha dado certo. Quer dizer, dentro dos objetivos que a gente traça normalmente, objetivos até modestos, mas tem coisas que a gente fez, grandes. O Hospital Sírio-Libanês é uma coisa de campanha voluntária também, da qual nós nos orgulhamos. Quando você olha para um Einstein, vai lá e vê, por exemplo, aquela exposição que está lá agora, de como começou, e vê o que é hoje, é um negócio fantástico também. Agora, isso é uma coisa muito típica de São Paulo, é curioso. No Rio, por exemplo, é dificílimo. Com exceção exatamente das escolas de samba, que são o maior exemplo de trabalho voluntário de entidade de fim não lucrativo, é dificílimo você conseguir a adesão das elites cariocas. Claro que o fato de deixarem de ser capital vai acabar fazendo com que eles melhorem. Mas é impressionante como em São Paulo existe uma vocação natural de colaborar. Pega o Masp, pega o MAM, coisas que são exemplos de grandes entidades que deram certo através do trabalho voluntário, com colaboração de agência ou não.
P/1 - Seu Duailibi, a SOS completa dezoito anos. O senhor acompanhou um pouco esse desenvolvimento nesses dezoito anos?
R - Muito, muito. Porque sempre as diretorias foram compostas por amigos nossos, então a gente acompanhava. Mais do que acompanhava, a gente torcia pela entidade. Dado o fato que ela tem uma causa que precisa ter um apoio. Então nos preocupava se ela fosse menos eficiente e começasse a perder a causa para os devastadores.
P/2 - E daquela campanha do reflorestamento lá na década de 1970 para hoje, o senhor acha que graças aos veículos de comunicação, a conscientização aumentou?
R - Aumentou muito. Houve uma adesão muito grande dentro da redação dos jornais, revistas, emissoras de televisão e emissoras de rádio. Passou a ser também uma religião, digamos assim, do redator defender essas causas e atacar os devastadores ou a legislação leniente, a legislação que propiciava a devastação. Você vê o caso dos governadores da Amazônia, que sempre que eles defendiam a devastação eles eram atacados. E criou-se um movimento nacional, criou-se uma consciência, felizmente, que acabou dando um apoio muito grande a esse causa.
P/1 - Seu Duailibi, eu gostaria de perguntar para o senhor. Um recado, uma mensagem que o senhor gostaria de dar para a SOS nesses dezoito anos.
R - Eu acho que a mensagem fundamental é dizer a gente tem que aprender com o passado, mas não se conformar com o que foi feito. É preciso traçar novas metas, planos mais ambiciosos ainda e ter a noção sempre de que o primeiro objetivo é sempre a sobrevivência, mas o segundo grande objetivo é a expansão. E a expansão precisa de mais trabalho ainda. Levar essa ideia para todas as comunidades, para todos os lugares onde as pessoas ainda, para sobreviver, muitas vezes estão devastando as florestas, e criar esse conceito de que a coisa pode ser reposta.
P/1 - O senhor, como uma pessoa que está sempre envolvido em muitas questões, o senhor está sempre lendo, se informando, como o senhor vê hoje, no século XXI, a questão ambiental no mundo; não no Brasil só, mas no mundo?
R - Eu acho que a explosão demográfica... Evidentemente o planeta tem os seus limites, e quando nós vemos as fotografias do chinês, número um bilhão e trezentos milhões, e comemorado - claro, todo nascimento de uma criança tem que ser comemorado -, é claro que a gente se preocupa. Até onde os recursos naturais poderão ser preservados? Todos os recursos da Terra poderão ser substituídos, eventualmente, pelo talento humano e pela capacidade de combinar ingredientes para sobrevivência saudável. Agora, claro que nós somos uma geração... Eu nasci no mato, eu nasci em Mato Grosso, eu cresci exatamente no meio do mato, no meio da floresta, brincando, caçando. Caçando no limite. Mas para eu ver a coisa devastada, o ambiente natural substituído por prédios ou por coisas... Claro que as pessoas melhoram de vida, mas não é o mesmo planeta no qual eu nasci. Então eu não sei se isso é uma visão egoísta ou se é apenas uma visão de sobrevivência também para todos que estão no planeta, porque a natureza é absolutamente necessária. Se a gente olhar e ver o afastamento da criatura da natureza, nós vamos criar monstros.
P/1 - E o senhor lembra de uma outra campanha ou de um outro programa, não programa em mídia, mas programa de trabalho, que a SOS tenha feito e que o senhor tenha ficado mais próximo, que o senhor tenha achado que foi excelente?
R - Eu me lembro sempre dos eventos que ela promove, que são importantes exatamente para congregar os seus correligionários em momentos importantes da sua vida. Eu acho que um passo que a SOS Mata Atlântica poderia dar era eventualmente a sua transformação até em partido político, sem nada que ver com o PV, que virou um partido político realmente. Mas alguma coisa que permitisse que as pessoas pudessem expressar sua adesão não apenas com dinheiro, não apenas com trabalho voluntário e não apenas com simpatia, mas com uma pressão política real.
P/1 - Alguma coisa que o senhor gostaria de falar em relação à SOS que nós não tocamos, que o senhor lembre?
R - Eu acho que toda entidade de fins não lucrativos bem sucedida corre sempre o risco de ser utilizada por aventureiros. Por sorte, nunca aconteceu isso com a SOS Mata Atlântica. E a gente vê isso acontecer muito. E isso eu acho que é um alerta que é inútil nesse instante, mas que para o futuro deve ser dado: “Mantenham a pureza da causa.”
P/1 - Para nós terminarmos: o senhor acha que para o senhor ter tido uma infância como a que o senhor teve, ter nascido tão próximo da mata, isso faz com que o senhor tenha uma sensibilidade maior em relação às questões ambientais e no relacionamento com a SOS?
R - Eu acho que sim. Mas veja, quando eu nasci a mata era o inimigo, não era o amigo, pelo menos naquela época. Exatamente dentro desse conceito de que…. Mas eu acho que com a evolução do perigo da desertificação, principalmente no Estado de São Paulo, é que esse conceito mudou. Porque eu sou de uma geração que olhava a mata como inimiga e não como amiga. Claro, isso pode ter ajudado por causa da nostalgia, dizer: “Puxa, eu era feliz e não sabia.” Pode ser, você tem razão neste ponto, aumenta a sensibilidade porque eu nasci, eu cresci no meio dela. Não sei se uma criança urbana nascida num condomínio vai olhar a questão ambiental como a praça onde existe umas árvores.
P/1 - E o senhor costumava ou costuma ir para o litoral sul, norte?
R - Não. Eu confesso para você que até hoje eu não fui à Ilhabela, por exemplo, por medo dos mosquitos (risos). É verdade. Até essa semana eu estava conversando com uma amiga que foi passar o réveillon na Ilhabela: “Você precisa ir!” E para mim aquilo apavora exatamente por causa do excesso de mosquito. Eu tenho casa no Guarujá, adoro a vista que eu tenho, porque eu vejo toda a mata da serra e dou um valor enorme a isso. Odeio aquelas antenas que estão colocando agora, de celulares, no meio da mata, e acho que tem que haver uma solução estética para esse problema. Mas eu fiz turismo ecológico; eu faço habitualmente, indo para Bonito, para o Pantanal, para a Chapada dos Guimarães, para Fernando de Noronha. Realmente acho isso de um valor extraordinário, você poder passar, por exemplo, uma semana em Fernando de Noronha, é uma bênção de Deus hoje em dia. Ou em Bonito. Bonito me impressionou profundamente, porque era exatamente uma volta àqueles valores das coisas com as quais eu cresci. A Chapada dos Guimarães... São coisas assim, maravilhosas. Então eu acho que esse é o usufruto que eu faço hoje aos 69 anos de idade, que já não dá mais para acampar.
P/1 - Seu Duailibi, eu sei que o senhor está...
R - OK, eu tenho, tá bom.
P/1 - Eu agradeço muito, nós agradecemos o senhor ter dado o seu depoimento.
R - Muito obrigado, muito obrigado pela oportunidade.
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