Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de Patrícia Sant’Anna
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 31 de julho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV006
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:36) P1 – ‘Bora’ lá!
R1 – Vamos lá!
(00:37) P1 – Pra começar, quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, ter ‘topado’ dividir um pouco da sua história com a gente. E queria que você começasse se apresentando: dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R1 – Imagina! Primeiro de tudo, obrigada vocês pelo convite. Meu nome é Patrícia Sant’Anna, eu tenho 48 anos... 49 anos, na verdade. Nasci no dia 22 de junho de 1974, em São José dos Campos, São Paulo.
(01:08) P1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R1 – Sim. Eu nasci num dia de jogo do Brasil, da Copa, Brasil x Zaire, o Brasil ganhou e minha mãe estava tão emocionada, que o Brasil tinha dado uma goleada, que eu nasci mais cedo (risos) por conta disso.
(01:23) P1 – Jura?
R1 – Eu nasci de oito meses. (risos) Eu sou a filha mais nova, então era oito meses mesmo. (risos)
(01:31) P1 – E você tem alguma história do seu nome? Por que você se chama Patrícia?
R1 – Meu pai queria ter uma filha Patrícia, só que a filha que ele teve antes, a Renata, que é mais velha do que eu, tinha uma novela com o nome de Renata e aí tinha todo um debate que nome ia ser e minhas tias conseguiram colocar o nome da minha irmã de Renata. E aí, quando a minha mãe ficou grávida, muito tempo depois, cinco anos depois e eu vim pro mundo, (risos) ele falou assim: “Como é a última filha” – que ele tinha operado pra não ter mais filhos – “eu que vou dar o nome. Eu não dei o nome de ninguém. O nome dela é Patrícia, porque eu tenho que ter uma filha que eu vou chamar de Pati”. (risos) Aí ficou. Foi por causa do apelido que ele me deu o nome. Ele gosta do apelido.
(02:21) P1 –...
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Entrevista de Patrícia Sant’Anna
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo, 31 de julho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV006
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:36) P1 – ‘Bora’ lá!
R1 – Vamos lá!
(00:37) P1 – Pra começar, quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, ter ‘topado’ dividir um pouco da sua história com a gente. E queria que você começasse se apresentando: dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R1 – Imagina! Primeiro de tudo, obrigada vocês pelo convite. Meu nome é Patrícia Sant’Anna, eu tenho 48 anos... 49 anos, na verdade. Nasci no dia 22 de junho de 1974, em São José dos Campos, São Paulo.
(01:08) P1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R1 – Sim. Eu nasci num dia de jogo do Brasil, da Copa, Brasil x Zaire, o Brasil ganhou e minha mãe estava tão emocionada, que o Brasil tinha dado uma goleada, que eu nasci mais cedo (risos) por conta disso.
(01:23) P1 – Jura?
R1 – Eu nasci de oito meses. (risos) Eu sou a filha mais nova, então era oito meses mesmo. (risos)
(01:31) P1 – E você tem alguma história do seu nome? Por que você se chama Patrícia?
R1 – Meu pai queria ter uma filha Patrícia, só que a filha que ele teve antes, a Renata, que é mais velha do que eu, tinha uma novela com o nome de Renata e aí tinha todo um debate que nome ia ser e minhas tias conseguiram colocar o nome da minha irmã de Renata. E aí, quando a minha mãe ficou grávida, muito tempo depois, cinco anos depois e eu vim pro mundo, (risos) ele falou assim: “Como é a última filha” – que ele tinha operado pra não ter mais filhos – “eu que vou dar o nome. Eu não dei o nome de ninguém. O nome dela é Patrícia, porque eu tenho que ter uma filha que eu vou chamar de Pati”. (risos) Aí ficou. Foi por causa do apelido que ele me deu o nome. Ele gosta do apelido.
(02:21) P1 – E vocês são em duas filhas, ou tem mais?
R1 – Não, nós somos em quatro. Tem dois irmãos mais velhos, ainda. O Rodolfo é o mais velho, que é quatorze anos mais velho do que eu; depois vem o Paulo e a Renata, que estão bem perto e aí, depois de cinco anos, vem eu.
(02:36) P1 – E na infância, como era a relação de vocês?
R1 – Era ótima. A gente sempre brincou muito, mesmo com a diferença de idade, sempre os quatro andaram muito juntos, um cuidava do outro. Quer dizer, eu era cuidada por todo mundo, porque eu era mais nova, mas eu estava sempre com eles, sempre um deles estava cuidando de mim, brincando comigo, então foi bem tranquilo. Eu nasci e cresci dentro de uma base militar, também. Então, isso faz diferença pra você ter uma qualidade de vida de brincar na rua, desde a mais tenra infância sempre estava na rua, com muita liberdade, muita abertura, por conta disso, mais fácil.
(03:12) P1 – E como seus pais se conheceram?
R1 – Eles se conheceram em São José dos Campos mesmo, na pracinha principal. Na época era uma cidade bem pequenininha, a pracinha principal, os dois estavam andando, que era o footing, que é o que todo mundo fazia naquele momento: mulheres rodam de um lado da praça, homens rodam do outro lado da praça e aí eles se conheceram. Ele tinha uma namorada, terminou o namoro pra ficar com ela, todo apaixonado. (risos) Eu tenho o vestido que os dois se conheceram, até hoje. Um vestido que minha mãe estava usando no dia que eles se conheceram, eu o tenho até hoje, eu herdei dela esse vestido.
(03:51) P1 – Ela te deu?
R1 – Me deu. Na verdade, foi uma coisa: ela faleceu, a gente foi dividir as coisas e ela tinha deixado várias coisas, que ela falou assim: “Isso daqui eu não tenho”. Ela virava e falava que não tinha aquelas roupas e não é, eram roupas que ela não queria dar, porque ela queria guardar pra ela, aí eu falei: “Esses vestidos, então, são todos meus agora, que eu que trabalha com moda e eu que sou interessada na parte de…”. E a minha irmã falou: “Tudo bem, porque pra mim isso daí é a caixa do terror, do choro. (risos) Não quero ficar com nada disso”. Aí eu fiquei com todos os vestidos e o primeiro, o mais antigo, é o vestido que ela conheceu meu pai. A cintura desse tamanho, assim, cor de rosa. [É] muito bonito o vestido.
(04:29) P1 – Quantos anos eles tinham?
R1 – Eles tinham mais ou menos uns vinte anos. Pra aquele momento, até, eles já eram bem mais velhos. Ela já tinha uns vinte anos, mais ou menos, quando eles se conheceram. Eles tinham uma diferença muito pequena de idade. Não chegava nem a um ano de diferença entre os dois.
(04:49) P1 – E como você os descreveria? O jeitinho.
R1 – Os dois? Os dois são lindos. Lindos, lindos, lindos. Muito bonitos, mesmo. Tinha fotografias de cinema, de ator e atriz de cinema. Nenhum dos filhos é tão bonito quanto eles. (risos) Longe! Mas eles eram muito apaixonados também: até o final da vida da minha mãe, eles andavam de mãozinha dada e tudo o mais, muito ‘grudados’, muito parceiros um do outro, então isso também fez muita diferença. Um exemplo de relacionamento: sempre foi um relacionamento muito saudável, de conversar, brigar, discutir, mas sempre resolver as coisas e deixar tudo em ‘pratos limpos’. Então, isso foi uma boa. Depois, quando eu saí de casa, aos dezessete anos, é que eu vi que era raríssimo isso, que a maioria das pessoas não tinha isso dentro de casa. Os relacionamentos eram bem mais complexos do que eu tinha e estava acostumada dentro de casa.
(05:48) P1 – E o que eles faziam? Com o que eles trabalhavam?
R1 – Meu pai foi militar até o final da vida, praticamente. Então até o final da vida profissional dele, ele foi militar, entrou na reforma, que fala, no mundo militar; você não aposenta. Você entra na reserva, depois você entra na reforma. Ele entrou na reforma mais ou menos nos anos noventa, entrou na reserva em 1988, que foi quando a gente saiu da base, que eu cresci dentro da base, do CTA, que é Centro Técnico Aeroespacial, lá em São José dos Campos. E minha mãe trabalhava antes de ter o primeiro filho, aí ela teve o primeiro filho e o machismo [a] fez ficar em casa, mas ela era muito chateada disso, ela sempre gostou de ter o seu próprio espaço, de ser mais independente e isso, pra ela, era difícil, mas ela foi uma dona de casa dedicadíssima. Pra ela isso era uma coisa importante. (risos)
(06:59) P1 – E você conheceu seus avós?
R1 – Sim, conheci todos os meus avós. Minha família vive demais. (risos) Vive até os noventa e ‘lá vai bordoada’, então eu conheci meus quatro avós. Hoje os quatros já são falecidos, mas conheci meus quatro avós e conheci minha bisavó, o que era uma coisa muito rara pra minha geração, conhecer bisavós. Eu conheci minha bisavó também. Minha bisavó ainda estava por aí quando eu tinha uns quatro, cinco, até uns sete anos, mais ou menos, a minha bisavó ainda estava na casa da minha avó, morava com minha avó e meu avô. Aí, depois, ela faleceu, com 99 anos. (risos) Viveu bastante.
(07:42) P1 – E qual é a história deles? Você sabe um pouco da origem da sua família?
R1 – Sei muito pouco, na verdade, mas eles são do lado da região mesmo, são todos do Vale do Paraíba, de muito tempo. Minha mãe vem de família mais de roça, então ela é da região: Jambeiro, Caçapava, toda aquela região, cidades cafeeiras. A família dela era de produtores de café e tinha muita ‘grana’, mas aí ‘quebrou’, teve que morar na cidade [e] não era o que o meu avô era acostumado. Meu avô sofreu muito de morar na cidade, a vida inteira, nunca aceitou muito essa coisa de morar na cidade, mas não tinha jeito, já não tinha mais fazenda, já não tinha aquela vida de playboy que ele tinha, ele deixou de ter e não tinha o que fazer. Do lado do meu pai, não. Eles sempre foram pessoas de cidade mesmo. Meu avô era carteiro, pai do meu pai, conheceu a minha avó bem jovenzinha, ele tinha dezoito e ela tinha treze, foi o escândalo da cidade, porque ela ficou grávida (risos) e isso, na época, era um grande escândalo e o padre não quis casá-los, vieram pra São Paulo pra poder casar e tudo o mais, e ficaram a vida inteira juntos. Eles tiveram um monte de filhos, tenho treze tios. Só do lado do meu pai, eu tenho 53 primos de primeiro grau. (risos) Uma coisa bem gigantesca mesmo! (risos) E cada um faz uma coisa diferente, mas está tudo naquela região. A maioria mora naquela região. Um ou outro só que mora fora.
(09:22) P1 – E você tem alguma lembrança de alguma história, ou alguma atividade muito marcante que você fazia com eles?
R1 – Com meus avós?
(09:29) P1 – É.
R1 – Eu gostava muito do meu avô paterno. Meu avô paterno vinha me visitar, então ele chegava, ele parecia um... hoje eu acho até que eu idealizava a memória dele, mas ele chegava de bicicleta, aquelas barra forte, assim, com aquelas bicicletinhas, boininhas na cabeça, cardigãzinho, assim, e uma pilha de jornal atrás da bicicleta, porque ele juntava jornal e caixinha de ovo pra levar pra uma fábrica de cerâmica que tinha em São José dos Campos, que era muito chique, da época, que chamava Cerâmica Weiss. Ele levava lá pra trocar por cerâmica e poder dar de presente pras pessoas. Então, ele fazia isso, era o hobby dele. Então, ele estava sempre com a bicicletinha, um monte de jornal atrás, bem ‘veinho’. Chegava ali em casa, ficava um pouco comigo, depois ia passear de bicicleta pela cidade, catar os ‘cacarecos’ dele. (risos)
(10:27) P1 – (risos) E como era o dia a dia da sua infância? Como...
R1 – Eu ia pra escola de manhã. Dentro da base é tudo muito perto, você faz tudo de bicicleta, tudo a pé e a criança tem muita independência, muita autonomia. Então, quem cresce dentro de base militar da Aeronáutica, pelo menos. A gente ia de manhã, sozinha, pra escola, desde o pré, voltava, almoçava, pegava a bicicleta, ia pro clube, passava o dia com as minhas amigas, na piscina, e voltava. Quando era inverno, a gente ficava uma na casa da outra, brincando, mas era muito gostoso, uma delícia, era só brincadeira, o tempo inteiro. Eu tive uma infância muito boa, não tenho o que me queixar.
(11:17) P1 – E a escola era dentro da base?
R1 – Dentro. Tudo dentro da base, fazia tudo dentro. Porque tem tudo dentro da base. Não são todas. Eu não sei como é quartel, que é mundo do Exército ou da Marinha, não sei como funciona, mas dentro da Aeronáutica geralmente as bases são completas, tem tudo lá dentro: supermercado... então você não sai da base pra nada, fica dentro da base o tempo inteiro. Estuda na base, brinca dentro... é um espaço imenso. No caso, a base de São José dos Campos é feita pelo escritório do Niemeyer; foi o projeto piloto pra fazer Brasília, então, é uma mini Brasília. Quando eu vou pra Brasília, eu tenho a sensação que eu estou na minha infância. Eu levo meu pai, às vezes, pra Brasília, pra ele ter essa sensação, porque ele fica feliz, até, de ver: “Nossa, parece muito o CTA”. É igual, idêntico àquele CTA que a gente tem na memória, porque hoje ele já é muito desconfigurado, infelizmente. Como não foi tombado, então eles desconfiguraram quase tudo, já. Infelizmente. Era muito bonita a base. Hoje já não é mais. (risos)’Detonada’, já.
(12:29) P1 – E você é de uma família muito grande.
R1 – Sim.
(12:33) P1 – Desses outros parentes, tem algum que foi muito marcante, muito significativo pra você? Primos, tios, ou vizinhos, amigos dos pais?
R1 – Tenho primos que são mais próximos. Primas, na verdade, que são mais próximas, que é a Dani, que é advogada e capoeirista (risos) e a irmã dela, Ana Cristina, que é fisioterapeuta e política da cidade, extremamente o oposto da gente, porque ela é meio ‘direitosa’, o resto da família é de ‘esquerda’, (risos) mas tudo bem, a gente convive com a diferença, faz parte da democracia, mas são as que mais convivia, que brincavam mais, ficavam na minha casa. Eu ficava na casa delas, a mãe e o pai delas são meus padrinhos, então passavam férias, eles moraram um bom tempo em Caraguatatuba, que é litoral norte, a gente passava [as] férias inteiras. Depois do Natal, eu ia pra lá e só voltava antes do carnaval, isso quando não ficava o carnaval e só voltava depois do carnaval, dependendo do ano. Então, muitos anos passamos praticamente morando muitos meses juntos. Minhas primas mais próximas, sem dúvida nenhuma, são elas. E hoje é aniversário da minha tia, inclusive, da minha madrinha.
(13:47) P1 – E vocês tinham algum costume especial de família, data comemorativa?
R1 – Tem uma coisa que a gente fazia, hoje a gente não faz... quer dizer, o pessoal da roça ainda faz, a gente que não faz mais, porque a gente não frequenta mais: mas a gente ia pra Caçapava, pra subir o Morro de Santa Cruz, que é um morro que tem dentro da fazenda. A fazenda ainda está lá, não é mais uma super produtora de nada, está quase inteira, arrendada pra vários tipos de empreendimentos diferentes. A gente mesmo não tem nenhuma participação mais, mas tem o morro lá e esse morro, em algum momento da história, teve alguém que fez uma promessa que tinha que subir esse morro e aí isso virou uma festa. Quando a gente sobe o morro, a gente vai parando nas cruzes, que são os passos de Cristo, doze, e a gente para, reza, para, vai, sobe, para, reza, para. Então, aí quando a gente chega lá no topo, mesmo, aí é uma festança, o padre faz a missa, acaba a missa, tudo num descampado, não é nada glamouroso, nem esse imaginário, porque quando eu mudei pra São Paulo eu lembro que o pessoal tem um imaginário sobre festa popular, que eu ficava olhando, falava assim: “Gente, vocês estão ‘viajando’, não é nada disso, é só na cabeça, não tem nada de glamour nesse negócio”. O pessoal glamouriza muito aqui em São Paulo, (risos) principalmente. O pessoal ‘viaja’ muito ‘na maionese’, o que é uma festa popular. É comer macarrão empapado, porque ele subiu no trator. Não tem nada de glamour, nada mesmo. Um ‘puta’ sol, não tem lugar pra você ir ao banheiro, é tudo no meio da plantação. Não é legal. E a plantação não é uma plantaçãoooooo, é plantação de milho pro porco, sabe? (risos) Não é glamouroso, mas o pessoal aqui meio que ‘pira’ nisso. A gente subia isso, comia macarrão empastelado lá, tudo, depois comia um monte de doce, que vai tudo naquelas latas de óleo, não sei se vocês lembram aquelas latonas de óleo, quando você compra óleo no atacado, então vai todas aquelas comidas no óleo, que sobe no trator e a gente come aquilo lá e aí, depois, a gente fica todo mundo lá em cima. E aí, depois de tudo, que a gente levanta o santo, que levanta o palco com o santo, lá em cima, assim, aí acabou a festa. Agora a gente pode descer, mas aí está todo mundo exausto, já, mesmo, todo mundo já quer descer, mesmo. E aí a gente vai embora pra casa. Então, era uma coisa que a gente fazia uma vez ao ano, geralmente em junho. E tinha também a festa de São Gonçalo, que era uma festa que a gente fazia também, na roça, a mesma coisa. Aí você tem que dançar na festa de São Gonçalo. Dançou um, tem que dançar três; dançou o quarto, você tem que ir até o seis; dançou seis... não pode errar pro santo, tem que fazer certo pro santo. (risos) Mas eram essas coisas. Mas com o tempo a gente foi parando de frequentar as festas e hoje já nem sei se o pessoal da roça ainda faz. Santa Cruz, eu sei que eles fazem, porque continuam pagando a promessa. Ninguém sabe mais quem fez a promessa, mas continua pagando (risos) a promessa até hoje.
(16:45) P1 – E você comentou que tem uma avó indígena.
R1 – Tenho.
(16:50) P1 – Você quer falar um pouco?
R1 – Minha avó Tereza. Ela falava que ela não era indígena, que ela era bugre, que ela já é mistura de branco com indígena e por ela ser de origem indígena, o meu avô não podia casar com ela. Então, meu avô, pra casar com ela, ‘abriu mão’ da herança dele. Aí ele casa com ela e aí tem a quebra da bolsa, acontece tudo ao mesmo tempo, eles acabam vindo pra cidade, mas ela era bem... ela tinha olhos azuis e cabelo preto, igual graúna, nunca teve cabelo branco. Mas ela foi a minha única avó que morreu cedo, antes dos setenta anos, sessenta e poucos anos, 65 anos, 63 anos, ela faleceu. Ela arrumou a casa inteira, deitou pra dormir, à tarde, e não acordou mais. Ninguém sabe o que aconteceu, provavelmente foi um ataque cardíaco fulminante, alguma coisa assim. Foi velada em casa - naquela época velava em casa ainda -, aí dizem, eu não lembro disso, o que eu lembro era que eu achava que era uma festa. Isso eu lembro, que eu achava que estava acontecendo uma festa. Era uma festa, porque minha avó fazia tudo virar uma festa, então, provavelmente, no tempo dela deve ter sido, com muita comida, muita coisa assim e ela sendo velada na sala e que eu ficava chamando-a pra vir pra festa, que balançava o... (risos) aí todo mundo chorava. Mas eu não lembro de eu fazer isso, mas todo mundo conta que eu fiz isso. Mas isso eu não tenho memória, não. Isso daí ouvi falar.
(18:24) P1 – As lendas da família.
R1 - É. Lenda de família essas aí, que nem essa da promessa, gente, que a gente cumpre uma promessa pra uma pessoa que a gente não sabe quem é. Não sabe nem pra que foi feita essa promessa. (risos) A gente faz, sobe no sol a pino, no meio do mato. É tudo ‘louco’, na verdade, mas tem a ver com essa coisa de união de família. A família muita extensa, muito grande, de roça, então acaba que faz sentido pra todo mundo, é um momento de estar junto. Também tem isso: comemoração de estar junto.
(18:56) P1 – E a sua família tinha a tradição de contar história? Você ouvia muita história?
R1 – Não muitas. Meu avô contava história pra gente ficar com medo. Então, eu não gostava. Quando ele vinha com essas histórias, que ele vinha contar história, eu já falava: “Não, estou dormindo, já”. Puxava o cobertor e já estava dormindo, porque ele adorava fazer a gente passar medo. Meu avô do lado da minha mãe. Meu avô do lado do meu pai, não. Eu nunca dormi, não lembro de dormir na casa dos meus avós paternos. Eu lembro de dormir só na casa dos meus avós maternos, então não tenho essa memória, não. E do outro lado tinha primo demais, coitados dos meus avós, eles tinham que cuidar de muita criança ao mesmo tempo, então nem ‘tchuns’ de contar história. (risos)
(19:38) P1 – E a escola? Que recordações você tem dessa época?
R1 – Eu comecei estudando lá, numa escola que chamava Pequenópolis, existe até hoje, o meu sobrinho estudou nessa escola, inclusive foi alfabetizado na mesma escola que eu, que é a escola dentro da base militar. E eu lembro da minha primeira professora, ‘tia’ Iracema, a melhor professora do universo, eu acho, que eu sempre fui esquisita: (risos) “Não quero estudar”. Então, eu não tinha muitos amigos, tinha poucos, sempre fui muito ‘desligada’, muito na minha, gostava muito de brincar sozinha, então minha mãe tinha muito medo de eu ter algum problema, me levava ao médico pra saber, mas não, era só porque eu era cercada, na verdade, por adultos, então quando eu fui pra escola eu achava meio estranho aquele lugar que era com muita criança, achava muito barulhento, muito cheio de algazarra e às vezes eu brincava, às vezes não. Não era também o tempo inteiro freak, mas brincava pouco com as outras crianças. Eu interagia muito com a minha professora, gostava muito dela e ela era da base, eu conhecia a família dela. Até ela falecer, inclusive, eu tive contato com ela, essa ‘tia’ Iracema, da Pequenópolis. Me ensinou a ler, que era a coisa que eu mais queria na minha vida. Eu sempre ficava brincando de escrever na lousa, inventava letras e eu não sabia o que eu estava fazendo, não tinha... porque eu queria aprender a ler, ficava fascinada com os outros lendo. Então, quando eu aprendi a ler, pra mim foi ‘uau’, uma coisa transformadora, falei: “Nossa, agora sim”. Aí virei uma leitora voraz. (risos) Lia qualquer coisa que ‘caísse’ na minha mão. E aí fui assim, até hoje. (risos) Até hoje eu ando com livro dentro da minha bolsa e leio compulsivamente.
(21:33) P1 – Nessa época, tem algum livro de infância que te marcou?
R1 – Tem um que a minha irmã tinha e eu o lia bastante, eu gostava do nome dele, que era Trombão, Trombinha e Serelepe. (risos) Eu adorava esse livro, que era a história de uma anta, que era Trombinha; um elefante, que é o Tromba e Serelepe, que era um esquilinho e eu achava que esquilo era uma coisa que não existia no Brasil, depois que eu descobri que existia, mas eu ficava fascinada com aquela historinha, falava: “Nossa!”. Elefante eu sabia que não existia mesmo, mas anta eu sabia que existia aqui, então, de mato, você sabe o bicho que existe, então esse eu sabia, mas talvez as crianças, hoje, nem saibam o que é um bicho daqui, o que não é um bicho daqui, mas na época eu sabia muito bem o que era uma anta, já tinha visto antas na minha vida e o elefante, pra mim, era uma coisa de circo e o Serelepe era uma coisa de desenho animado. (risos) Lembrava do Tico e Teco. Então, era meu livrinho predileto, lia várias vezes. E também A Rainha de Gelo. Eram os dois livros também que eu lia bastante. Achava terrível. Eu ficava fascinada com a ideia de uma mulher má. Sempre achava demais as feiticeiras, as que eram más, eu achava, falava: “Nossa, gente!”, porque eu era cercada de mulheres boas, então falava: “Nossa!”. Eu achava fascinante, muito poderosas, então achava bem legal. Aí eu sempre lia esse livro também, eram os dois que eu lia bastante. Um eu ainda tenho até hoje, eu guardo as coisas da família. Acho que eu sou a que mais tenho. Não fiz à toa Museologia. (risos)
(23:15) P1 – A guardiã.
R1 – Eu gosto de guardar as coisas.
(23:20) P1 – E que outras recordações você tem da escola?
R1 – Da escola, eu lembro de brincar muito. Eu tinha coleguinhas do pré que são minhas amigas até hoje. Tenho amigos e amigas do pré. É engraçado isso, mas é real, a gente já chegou a fazer até reunião, amigos do pré, que a gente é amigo até hoje. É tudo filho de militar, então acaba tendo uma vida muito difícil por um lado, que às vezes não se fala, que é essa coisa que você perde seus amigos de quatro em quatro anos, por conta dessa coisa de ficar rodando nas bases militares. Então o meu pai não mudava de base, porque ele optou, deixou de ser uma coisa que ele gostava de ser, que era trabalhar diretamente com avião, assistente de mecânico de voo e foi trabalhar numa coisa que era super fora do escopo tradicional, que é trabalhar com tratamento de água, porque assim ele ficava fixo na base de São José dos Campos e com a família, daqui ele não precisava mudar, mas eu acabava sentindo, com os meus irmãos, os nossos amigos passando por nós do mesmo jeito, como se a gente nem mudasse, porque eles, de quatro em quatro anos, estavam mudando de base, então era gente chegando e saindo. Então, isso é bastante comum. A gente acaba tendo ‘laços’ muito fortes. Quando você pega uma amizade, essa amizade fica durante muitos anos mesmo.
(24:47) P1 – E vocês ouviam música, filme, programas de TV? Isso fazia parte da sua vida?
R1 – Sim, fazia parte. No domingo, eu chegava na casa do meu avô materno. Sábado era na casa dos meus avós paternos e no domingo era na casa dos meus avós maternos. Então quando a gente chegava lá de manhã era Sílvio Santos de manhã até (risos) de noite, todos os programas possíveis e imagináveis passavam ali. E em casa a gente ouvia muito som, porque os meus irmãos mais velhos juntaram dinheiro, compraram aparelho de som e a gente ouvia muito rock, muito heavy metal. Então, eu cresci ouvindo muito som ‘pesado’, achava que isso era normal, depois descobri que não também, que era por conta de eu ter irmãos mais velhos que eu tinha aquele gosto musical e que tenho até hoje, inclusive, mas era uma coisa do período mesmo. Ouvi muito Iron Maiden, muito som ‘pesado’. Adorava. Deep Purple. Adoro. Adorava, não. Adoro. Ainda escuto. (risos)
(25:58) P1 – E a sua casa? Vocês tinham quartos separados, os irmãos?
R1 – Não. A gente tinha um quarto das meninas, um quarto dos meninos, o quarto dos meus pais, uma casa de três quartos, quintal, mas era um apartamento, porque era um apartamento térreo. Niemeyer. (risos) Um prédio ‘deitado’, vamos dizer assim, então tem apartamentos em cima, embaixo. A gente morava no apartamento térreo, que era de três quartos: andar 18B, apartamento 102. Lembro até hoje. Tem coisas que eu consigo lembrar, de número. Esse é um deles, porque eu fiquei mais de dez anos, quinze anos e esses anos iniciais você tem a memória mais forte, aí cresci ali e era muito tranquilo. Era uma televisão, não tinha controle remoto, não existia, então tinha aquela lei de quem está de pé que vai fazer tudo, então ninguém fazia nada, ficava morrendo pra ir no banheiro, mas só que eu não vou levantar, que se eu levantar vou ter que trocar de canal, vou ter que pegar água pra todo mundo, então ficava... ou então caía no chão, também a gente fazia isso. Estava levantando pra fazer alguma coisa, falava assim: “Já que você...”, pá, caía no chão com tudo, pra não fazer: “Não, estou no chão, estou deitada”. Então, era uma coisa de convivência de crianças, mesmo. Crianças e jovens, porque meu irmão já era mais adolescente. Quando eu estava na infância, o Rodolfo já tinha quatorze, quinze, dezesseis anos, ele é bem mais velho. Sobrava pra ele cuidar de todo mundo. (risos) Mas ele cuidou de todos nós, ‘de boa’, até hoje. (risos)
(27:40) P1 – E nessa época, você pensava o que você queria fazer, ser, quando crescesse?
R1 – Eu sempre quis trabalhar com moda. Fazia muitas roupas. Mas nunca quis ser modelo, essas coisas assim. Eu sempre quis ser estilista mesmo, trabalhar na parte de trás. Então, eu fazia várias roupas pra minha Barbie. Eu tinha uma Barbie só. Meus irmãos deixaram de ganhar presente de Natal pra eu ganhar uma Barbie, porque era muito cara mesmo. Minha família é de origem muito humilde, militar não ganhava bem, meu pai nem era de patente alta, era um sargento, na época, então meus irmãos deixaram, ‘abriram mão’ de ganhar presente de Natal pra eu poder ganhar a minha Barbie. Então, eu cuidava. Tenho até hoje a minha Barbie. (risos) Só a tive, inclusive. Eu lembro que tinha uma pink (rosa), uma azul, aí tinha uma de vestido preto, glamourosa. A minha mãe: “Qual você quer? A cor de rosa?”. Eu falei: “Não, essa glamourosa, de preto. Pelo amor de Deus”. Ela: “Não tem dinheiro”. Depois ela pegou e me deu, aí eu fiquei superfeliz. Foi ‘o’ grande presente de Natal que eu ganhei.
(28:50) P1 – Você lembra?
R1 – Lembro. Eu não ganhava muita boneca, essas coisas assim. As que eu tinha, eu cuidava, gostava, mas eu nunca fui muito... eu sempre fui de fazer os meus brinquedos, eu gostava de fazer boneca de papel, sabe? Não sei se você sabe o que é isso, mas boneca de papel é uma coisa que eu amava, eu tinha as bonequinhas de papel, eu fazia as roupas da bonequinha de papel, desenhava e isso era uma coisa que eu sempre, desde pequena aprendia, fazia cursos desde pequena mesmo. Antes, em 1985, eu estava na quinta série, em 1986, eu já fazia curso de corte e costura na igreja, pra aprender a cortar, essas coisas. E minha mãe não gostava de costurar. (risos) Ela sabia muito bem costurar, mas ela não gostava. Então, ela tentava me dissuadir dessa história: “Veja bem, Patrícia, a gente não precisa fazer essas coisas”. Eu falava assim: “Mãe, mas eu gosto”. Ela falava: “Então tá, quando você chegar na quinta série, eu te ensino a bordar”. Aí eu cheguei na quinta série, ela falou que era na oitava. Aí chegou na oitava, era no colegial, que agora é ensino médio. Aí, quando terminou tudo, falei assim: “Mãe, agora estou indo fazer Unicamp, estou indo embora e não aprendi a bordar”. E até hoje eu não sei bordar. (risos) Ela morreu e não me ensinou a bordar, e ela bordava bem pra caramba, mas ela não gostava. Ela falava: “Não, é um trabalho muito chato”. Ela gostava de pintar porcelana, que ela trabalhou nessa Cerâmica Weiss. Ela gostava disso, na verdade. Gostava de pintura, dessas coisas, mas nunca desenvolveu, nunca foi, nunca se deixou fazer essas coisas também. Aí eu não, fui indo, contra tudo e contra todos, aprendendo a costurar, fazer modelagem e aprendendo,l. Aí na hora de chegar na faculdade, meu pai não tinha dinheiro pra pagar Santa Marcelina. Engraçado que hoje eu dou aula na Santa Marcelina, mas ele não tinha dinheiro pra pagar, em hipótese alguma [e], ainda [mais], sustentar uma filha em São Paulo. Totalmente inviável. Aí eu fui ver outras faculdades, pra fazer, aí prestei Arquitetura e Ciências Sociais, aí fiz Ciências Sociais. Passei nas duas, inclusive, aí numa conversa com meu pai, também, ele virou e falou: “Veja bem, em Arquitetura você vai ter que fazer conta, (risos) não sei se você vai gostar. (risos) Faz Ciências Sociais. Se você não gostar, o ano que vem você presta de novo. Passou uma vez, você passa outra vez em Arquitetura”. Eu falei: “É verdade”. E foi a melhor coisa que eu fiz, porque eu sou uma boa historiadora de Arquitetura. (risos) Não seria, não teria paciência pra ser uma arquiteta, não. Acho que eu não ia gostar, realmente, de ser arquiteta mesmo, acho que eu não ia gostar de ser, mas cientista social que estuda isso, historiadora que estuda isso, isso eu adoro, gosto mesmo.
(31:40) P1 – Vou voltar um pouquinho, tá?
R1 – Tá, não tem problema.
(31:58) P1 – Eu queria te perguntar: por que será que sua mãe...
R1 - ...não gostava de costurar?
(32:04) P1 – É.
R1 – É que ela saiu de uma... ela trabalhava na Cerâmica Weiss. Ela adorava, que era onde ela pintava. Meu avô a tirou de lá e a colocou em outro lugar, pra trabalhar, que, no caso, era Tecelagens Parahyba, que é de fazer cobertor, então ela odiava, pegou trauma e ela era meio ‘bicho ruim’ nesse sentido: se ela pegava um negócio que ela não gostava, ela pegava ódio naquilo e não queria mais saber daquilo. Então, ela falava que, por exemplo, ela não gostava de rádio por causa da minha tia, que ela ouvia música, aí minha tia brigou com ela por conta de ouvir música, porque queria ver, ouvir novela de rádio e ela brigou tão feio com a minha tia, que ela pegou e falou assim: “Não quero mais saber de ouvir música” e ela pegou raiva de ouvir música, ficou um tempão sem ouvir música por conta disso. (risos) Então ela tinha um gênio muito forte, nesse sentido, quando ela decidia alguma coisa. Então, ela não gostava de costurar, não queria mais saber de costurar, tinha raiva de costurar. Eu falava: “Pô, mas eu queria justamente aprender a costurar”. Falava assim: “Não vale a pena”. (risos) Falava que não era legal. E foi pra onde eu fui, na verdade. Eu adoro. Não costuro mais, mas gosto bastante.
(33:13) P1 – E nessa época a moda era um pouco restringida a isso, à costura, ou se falava já...
R1 – Não. Isso foi nos anos noventa, momento de decidir profissão. Primeiro que o mundo da moda era muito pequeno. O Brasil ainda estava vivendo um período de inflação terrível naquele momento. Costurar não era uma coisa que dava dinheiro. Ainda não é, não é valorizado, a pessoa que costura raramente é valorizada, mas naquele momento muito menos e trabalhar com moda era a mesma coisa que... eu não sei dizer hoje em dia. Hoje até estava conversando isso com meu marido, falando sobre restauro, ele falando: “É difícil a gente conseguir formar a turma de restauro”, porque ele queria fazer um curso de restauro e abre uma vez no ano só, no Museu de Arte Sacra. Aí ele falou assim: “Nossa, demora tanto tempo!”. Eu falei: “Por que não abre turma no meio do ano?” Aquela ‘louca’, já está com cabeça de faculdade particular: “Podia abrir uma turma no meio do ano”. Ele falou: “Não forma turma, porque não tem também mercado pra tudo isso, não é tão fácil, é uma profissão que exige muito dinheiro, muito investimento”. Falei: “É verdade, é tipo moda nos anos noventa”. Então, quando eu virava e falava que ia fazer moda, as pessoas olhavam pra minha cara e falavam assim: “Você é filha de rico? Porque se for filha de rico você consegue fazer, senão você não vai conseguir fazer”. E só tinha a Santa Marcelina. Era a única que tinha. Então, eu tive que pensar em como, qual seria uma outra faculdade que eu faria e que seria muito legal também fazer e foi Ciências Sociais. Adorei. Foi a melhor escolha que eu podia... hoje eu falo pra todo mundo, se a pessoa vir falar: “Não sei o que eu vou fazer”, eu falo: “Faz Ciências Sociais. Uma formação ampla. Faz Filosofia, uma formação ampla. Depois você vê o que você vai fazer da sua vida. Faculdade é só o primeiro passo, não define muita coisa. Define o seu repertório. Então, quanto mais rico seu repertório, melhor”. E foi isso o que as Ciências Sociais me deu: um ‘puta’ repertório. Imagina! Estudar na Unicamp nos anos noventa, só tive aula com os ‘feras’, com uma ‘galera’ que é tipo: ninguém ‘chega aos pés’, mais, deles. Uma ‘galera’ muito, muito forte, que fundou a universidade. Então, foi uma sorte muito grande.
(35:37) P1 – Já vou chegar lá! Eu só queria te perguntar: por que moda? O que te encantou? Talvez tenha mudado, ou acrescentado outras, ao longo da vida.
R1 – Não, acho que não. No meu caso, eu sempre fui fascinada com a ideia de como as pessoas constroem a aparência delas. Isso sempre foi o que me fascinou: a ideia do que faz a gente achar uma coisa bonita. Eu sempre fui uma ‘louca’ da National Geographic, então eu lia todas as que chegavam. Data, pra mim, não era importante. O que era importante, pra mim, era justamente poder ver aquilo, acho que por isso que a antropologia fez todo sentido na minha vida, depois, inclusive. Mas tinha muito isso, de falar: “Nossa, por que no interior da África, no interior da Indonésia as pessoas se vestem e têm uma aparência tão diferente da gente? Por que essa aparência é considerada bonita por eles? Pra gente não, mas pra eles é considerado lindo”. Isso, pra mim, sempre foi, desde criança, eu sempre fiquei muito fascinada com essa ideia das diferenças culturais e como cada cultura desenvolve uma aparência. Então, isso, pra mim, foi muito fundamental. Fazer Ciências Sociais fez muito sentido mesmo, por conta disso, que eu me encontrei ali. Talvez, se eu tivesse feito faculdade de moda não seria tão (risos) feliz com a minha formação, que ela seria muito mais superficial nesse sentido, de embasamento teórico que eu ganhei fazendo Antropologia. Isso não tem nem dúvida, nem passa perto da formação que eu tive. Então, isso, pra mim, foi muito importante, mas a moda, pra mim, é isso: uma manifestação cultural das mais relevantes. Se não a mais relevante pra pensar na vida cotidiana. Quem fala que não ‘liga’ pra moda, tem que saber o que é moda pra falar que não ‘liga’. Então, você está todo de preto, de calça jeans, de camiseta branca... até a ideia de neutro é uma construção cultural. Então, isso, pra mim, é fascinante perceber que, mesmo quem não quer falar, está falando (risos) alguma coisa com a sua aparência. Então, eu acho divertidíssimo. Inclusive eu já fiz várias, já dei palestras onde as pessoas falavam: “É um absurdo isso, aquilo”. A pessoa fala, fala, fala, quando termina de falar, eu falo assim: “Você já pensou o look que você veio aqui, pra essa palestra?”. Aí ‘desmonta’ a pessoa na hora, porque a pessoa fala assim: “Eu pensei, realmente”. Eu falo: “É, você não vem com qualquer roupa, pelada”. E mesmo vir pelada quer dizer alguma coisa. (risos) A ausência também é uma expressão de alguma coisa. Isso, pra mim, é fascinante, eu gosto bastante de pensar a respeito. É um bom objeto de pensamento. A moda é um ótimo objeto de pensamento, bom pra fazer a gente pensar. Mas essa não é uma fala minha, é do Lévi-Strauss, (risos) coisas que são boas pra pensar e moda é uma boa coisa pra me fazer pensar, pelo menos.
(38:51) P1 – Então você saiu de casa pra ir pra Unicamp?
R1 – Isso.
(38:55) P1 – Com dezessete anos?
R1 – Com dezessete anos. Fui a única filha que saiu de casa, pra fazer faculdade fora.
(39:01) P1 - Como foi esse momento? Como você se sentiu?
R1 – Maravilhoso! Foi a melhor coisa que eu podia fazer. Família muito grande, muito presente e muito feliz. Minha família é muito happy family (família feliz), muito ‘margarina’, (risos) de certa maneira. Ela tem um lado ruim, que é você estar sempre muito protegido, você não sabe lidar com adversidades, com problemas, porque tudo é resolvido ali dentro, fica tudo dentro daquele... é muito endogâmico, (risos) usando uma palavra bem antropológica, quando a família é muito grande. Então, sair, pra mim, foi muito libertador. Eu sonhava em poder ser anônima em algum lugar. Naquele momento, em São José dos Campos, eu não era anônima, não tinha como ser, metade da cidade era meu primo, (risos) não tinha jeito. Tinha uma amiga minha que sempre ‘tirava sarro’ de mim, ela falava: “Não tem uma saída à noite que a gente sai que você não encontra com um primo seu, não tem jeito”. Só do lado do meu pai tinha 53 de primeiro grau, mais segundo grau, mais o filho do filho do primo. Daí já era, todo mundo é seu parente, na cidade. Então, isso, pra mim, foi muito bom: sair, ir pra um lugar onde eu era anônima, eu era só mais uma no meio da multidão. Apesar de ser uma multidão pequenininha, porque a Unicamp era pequenininha naquela época, hoje é bem maior. Era uma universidade nova, tinha acabado de fazer 25 anos. De ponta, mas nova. E foi muito legal, porque Ciências Sociais ‘abriu demais a minha cabeça’ e naquele momento, na Unicamp, nos anos noventa, foi um lugar muito especial. Quem era diretor da faculdade era o Quartim de Moraes, que é um super filósofo, uma pessoa super reconhecida. E era ‘muito louca’ a maneira de administrar o lugar, então toda terça-feira, por exemplo, tinha um show. Eles tinham ‘grana’ pra bancar shows. Então, eu lembro de sair da sala de aula, entrar no auditório do lado e estar ‘rolando’ Duofel ao vivo. Aí saía, no outro dia... esse dia foi o mais incrível: a gente saiu de uma aula que não tinha entendido nada, porque eu não entendia nada no primeiro ano de faculdade, eles falavam ‘grego’, não entendia absolutamente nada, porque eu ainda estava passando por um processo de letramento, na verdade, sobre a área. Eu lembro da gente sair e estava o Tom Zé tocando no corredor da faculdade, Tom Zé tocando, não sei o que, eu falei assim: “Nossa, que legal! Acho que eu já vi esse ‘cara’” e o pessoal da música todo lá e batendo palma e bate palma no meio da música, porque é coisa de músico aquela coisa assim: toca uma coisa que você... eu não tenho educação musical, então tocava alguma coisa diferente, pessoal de jazz, que eles gostam dessas improvisações, fazia: “Ehhhhhh”. Eu falava: “Nossa, o que foi de genial que aconteceu, que eu não entendi nada?”, mas eu lembro de ficar vendo aquilo e ficar pensando: “Nossa, que coisa ‘louca’ a gente ter esse contato!”. Show do Hermeto Pascoal. Essas coisas aconteciam no departamento, não era que acontecia na universidade. O departamento tinha. Época de ‘jogar pérolas aos porcos’, porque ali era todo mundo ‘porco’ ainda, todo mundo novo. Não vou falar um palavrão muito vulgar aqui, (risos) mas era todo mundo virgem naquilo, então a gente estava nascendo ali, naquele momento, e logo de cara, assim, exposta a Duofel, Tom Zé, Hermeto Pascoal, isso em questão de alguns meses. A nossa ‘calourada’ foi Gilberto Gil, uma coisa absurda. Então todo esse ‘universo’, fora coral, teatro, coisas assim, ‘rodando’, ‘rolando’ ao mesmo tempo, que eram muito ricas. A cidade, Campinas, era uma cidade, nos anos noventa, muito em efervescência. Tinha, inclusive, um Instituto Itaú Cultural lá. Então, tinha a CPFL, muita coisa acontecendo, naquele momento, naquela década, na cidade. Então, era uma cidade muito rica, em termos culturais. Então, imagina, sair de São José dos Campos, que era uma cidade de trezentos mil habitantes, na época, que não tinha nada, que o foco era totalmente de engenharia, porque é até hoje, tecnologia, essas coisas assim, ligadas mais a uma ciência mais hard, e ‘cair nesse universo’ de arte, de cultura. Então, pra mim foi fabuloso, abriu totalmente, falei: “Não volto mais. (risos) Me esquece. Vou ficar aqui até esse lugar ainda estar bom pra mim, eu vou continuar”. Aí de lá eu vim pra São Paulo. Aí eu fiz a graduação inteira, me formei em Antropologia, que você escolhe, então foi o que eu escolhi. Não fiz licenciatura, nunca quis dar aula em colégio, queria dar aula em faculdade, mas em colégio nunca quis, então não fiz licenciatura, fiz só bacharelado e aí eu prestei mestrado, entrei no mestrado de Antropologia, aqui na USP e na Unicamp e optei ficar na Unicamp. Aí, depois que começou as aulas eu me arrependi do ‘fundo da alma’, porque eu tinha aula com os mesmos professores. Então, era meio repeteco. Por mais que os alunos que viessem de fora percebiam e falava: “Nossa, é muito ‘puxado’, é muito avançado”, pra mim não era, eu falei: “Nossa, eu devia ter ido pra USP, pra pelo menos ter um outro tipo de...”, mas aí já tinha optado ficar lá, então fiquei e fiz mestrado lá. Foi difícil fazer o meu mestrado, foi bem cheio de muito conflito com a minha orientadora, então foi mais difícil, mas foi, consegui. Aí fiz Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Não conta com uma especialização, nem nada, mas o Cebrap, naquele momento, tinha um grupo de formação de quadros profissionais, esse nome pomposo, mas basicamente eram alunos de pós-graduação que eram selecionados, do Brasil inteiro, que poderiam se inscrever, pelo Giannotti, que era quem encabeçava o Cebrap naquele momento, e a gente, simplesmente, montava as nossas grades de leitura: a gente lia, debatia duas vezes por semana, quatro horas seguidas. Também foi o segundo momento mais transformador. O mestrado não foi transformador, o que foi transformador, pra mim, foi fazer Cebrap. O Cebrap fez eu terminar o mestrado, porque eu ia largar, aí eu não larguei por conta do Cebrap, que eu falei: “Não, eu sou pesquisadora. Eu gosto demais disso. Estou no lugar errado, fazendo aquele mestrado. Vou terminar, porque senão ele vai terminar comigo”. (risos) Aí, no final, inclusive, minha orientadora foi fazer pós-doutorado nos Estados Unidos, me largou, aí eu defendi sozinha, ela nunca leu a minha última versão (risos) do mestrado, mas eu ganhei louvor e distinção. Não precisei dela. (risos) Essa foi a lição que ela levou. Não fui eu que levei essa lição, (risos) foi ela que levou essa lição, que eu ganhei louvor e distinção e ela nunca leu a última versão. Depois ela leu, deu curso, inclusive, baseado. Mas é bem ‘cara de pau’. (risos)
(46:37) P1 – Qual era o tema de pesquisa?
R1 – Era moda. Eu sempre pesquisei moda, desde a graduação. Na graduação eu estudei a relação de Publicidade, a linguagem publicitária dentro das revistas de moda brasileiras. No mestrado, eu fiz um estudo sobre Elle, Vogue e Marie Claire no Brasil durante a década de noventa inteira, todas as revistas. Eu fiz um estudo de análise fotográfica, entrevista com todos os grandes fotógrafos daquele momento, então, J.R. Duran, Klaus Mitteldorf, Jairo Goldflus, todos eles eu entrevistei, pra minha dissertação, que eu lembro que na banca final, até uma das pessoas, a Solange, depois se tornou minha amiga, virou e falou: “Pra mim é uma tese de doutorado (risos) isso daqui”. Minha tese de doutorado não é tão grande quanto a minha dissertação de mestrado, que é um calhamaço. E aí eu fiz essa análise da linguagem, como ela foi sendo elaborada ao longo da década de noventa, que é quando a gente tem o estabelecimento de uma linguagem de moda no Brasil, de certa maneira, que o Brasil começa a se reconhecer como um produtor de moda, não mais só ‘chão de fábrica’, mas também criador, então começa a ter um processo ali de formação mesmo dos primeiros profissionais, das pessoas começarem... é muito um momento nascente desse processo de profissionalização. E aí eu vim pra São Paulo pra fazer trabalho de campo. Foi quando eu me mudei pra São Paulo, foi justamente nesse momento. Aí eu fazia Cebrap e morava aqui em São Paulo. O Cebrap é em São Paulo também, então eu ficava aqui mesmo, direto. Então, eu fiz meu mestrado em cinco anos, (risos) por conta disso, demorei um tempão pra fazer, mas foi muito bom. Se não fosse o Cebrap, eu não tinha terminado o mestrado de maneira alguma. Foi fundamental.
(48:37) P1 – Vou voltar só um pouquinho pra formação. Você comentou que teve professores muito marcantes. Se você quiser compartilhar um pouco um momento de muitas descobertas e desafios, acho que pessoais, se entendendo como uma pessoa em si e acho que podendo estar fora de casa, com outro ciclo. Como foi tudo isso pra você? Essas descobertas e os seus interesses também. Diversão, se você saía, onde você morava, dividia casa, ou não.
R1 – Sim. Vamos começar dos meus professores, que são importantes. Mestres são sempre importantes, pessoas que inspiram a gente. Eu lembro que quando eu entrei na faculdade, eu não sabia quem era quem do ‘universo’ das Ciências Sociais. Eu estava tendo aula com os maiores intelectuais do país e não tinha a menor ideia de quem (risos) eram aqueles ‘caras’ na minha frente. Depois que eu fui ‘ligando lé com cré’, falei: “Nossa, esse nome aí estava na Folha de São Paulo! Não, não é esse nome que estava na Folha de São Paulo, é ele que escreve na Folha de São Paulo”. (risos) Aí é que eu ia ligando, assim. Então, meu primeiro dia de aula foi com o Marco Aurélio Garcia e eu lembro até hoje, porque eu cheguei, entrei, sentei, cheguei atrasada, porque estava procurando lugar pra dormir, nem tinha lugar ainda e tudo o mais, aí minha mãe, minha irmã e meu irmão estavam procurando ainda, eu fui pra aula, porque já estava no horário da aula, fui pra aula, sentei, aí minha mãe bateu na porta, abriu assim, falou: “Me desculpa, com licença”, no meio da aula, ele fumando aqueles cigarros franceses super fedidos, aí ela entrou, deixou a mala comigo, minha mala estava no carro, então ela trouxe, deixou a mala, uma bolsa, no meu pé, assim, falou: “Olha, esse aqui é o endereço de onde você vai ficar, não sei o quê. Fica com Deus, não sei o que, nãnãnã”. Imagina! Na hora que ela saiu, fechou a porta, foi uma gozação em cima de mim, mas uma gozação! Ele falava um monte de coisa, todo mundo ria e eu nem entendia qual era a piada que ele estava fazendo, não sabia do que ele estava falando. Aí, depois de muito tempo que eu fui entender as piadas (risos) ‘tirando um sarro pesado da minha cara’. Mas ele foi um professor do tipo que eu tenho que entender o que ele está falando, porque eu não entendia nada do que ele falava. Então, a começar por aí, assim. Mas muito inspirador, muito dedicado, muito crível. As aulas dele eram muito, muito boas. A Amneris Maroni, que foi professora de Política I e II, deu o básico: Rousseau, Maquiavel a gente leu com ela. Completamente encantadora e feroz, ao mesmo tempo. Muito... uma faca, super afiada, bem... e ela pegava tudo, muito, no ‘ar’, muito rápido e ela ‘cortava’ também, que era uma coisa que eu não estava habituada. Eu estava habituada com um tipo de professor, por conta da base militar, a gente estudava em colégio que, mal ou bem, está dentro de uma lógica militar. Não era um colégio militar, mas estava dentro dessa lógica, onde a hierarquia era uma coisa muito forte. Então, você não ‘abre a boca’ pra professor, não reclama, nada. Você só obedece. E ali na Unicamp tinha uma coisa de ‘cutucar’ você, pra falar, mas aí você falava, ‘neguinho pá’: “Você é muito ignorante ainda pra falar comigo. Pode ler isso, isso, isso e isso, aí você vem conversar. Você não pode achar, você tem que ter certeza do que você está falando”. Então, a coisa da argumentação. Isso foi uma coisa que foi muito forte pra mim, essa relação mais próxima com professor, ‘quebrar’ um pouco essa hierarquia, isso foi bem legal, bem frutífero e a Amneris era ‘rainha’ disso, ‘cutucar’. Sidney Chalhoub, que eu não sei por que sabia do meu nome. (risos) Hoje ele é professor em Harvard e ele sempre lembrava meu nome, perguntava. Acho que ele gostava de mim, tinha uma simpatia comigo, por algum motivo: “Você, menininha surfista”. Eu era meio surfista quando eu entrei na faculdade. “Você, Patrícia, o que acha disso?” Eu falava: “Nossa, por que ele perguntou pra mim?”. Eu até tinha lido todos os textos, mas eu falava que não tinha lido, porque eu não sabia o que falar. Eu entrava em pânico quando ele falava comigo, então eu ‘cortava’. Faltava à aula, pra não... e, no entanto, eu adorava as aulas dele. A aula dele era muito boa. É muito boa a aula dele. Mas pra eu decidir o que eu ia fazer da minha vida mesmo foi o Jorge Coli. Eu me lembro até hoje de entrar na sala de aula pra assistir... ele deu um curso de Análise Imagética, pra você aprender a ler uma obra de arte, vamos dizer assim, [a] grosso modo, e ele mostrou um Pollock logo de cara, aí ele falou assim: “O que vocês estão vendo?”. As pessoas ficavam interpretando, aí ele falou assim: “Então, vocês não estão vendo nada disso, é só tinta mesmo (risos) e cor, não tem nada aí, mas nada disso que vocês estão vendo aí”. E depois ele colocou Masaccio, um pintor renascentista. Então, era aquela coisa totalmente diferente do início do relacionamento. Aí colocou, eu lembro de tomar um susto, ele falou: “É isso mesmo, a gente não precisa ter ordem cronológica pra sentir uma obra de arte e tudo o mais”. Então, foi um dos cursos mais... depois que eu fiz aquele curso, eu falei assim: “Eu tenho que trabalhar com arte. Não posso não trabalhar com arte. Isso é muito fácil pra mim”. Fácil no sentido de eu ‘me jogo’ nisso com facilidade, foco e ganho dez. Nunca ganhava dez, nunca tirava A. (risos) Em História da Arte, eu sempre tirei A. Os professores, como ele, como Nelson Aguilar, o Luiz Marques. Então, eu falei assim: “Não, eu tenho que ir pra História da Arte mesmo”. Eu tenho facilidade, mas não é só facilidade, é uma facilidade porque eu tenho muito prazer com isso. Então, pra mim ele foi muito definidor da minha carreira, de eu falar: “Eu não vou pros outros caminhos possíveis, de Antropologia. Apesar de gostar muito também de Antropologia Indígena, mas não é esse o meu lugar, o meu lugar é com as Artes mesmo”. E eu fui tentando juntar Antropologia, História da Arte e deu certo. E sempre [a] Moda como objeto de estudo. Sempre. O meu doutorado foi sobre a coleção Rhodia do Masp. Eu não sei se vocês lembram há um tempo, teve uma exposição, há alguns anos, no Masp, de vestuário, que é a coleção Rhodia, aquela exposição foi baseada no meu doutorado. Eu que fiz o texto que deu base pra eles fazerem a curadoria. (risos)
(55:43) P1 – Uau!
R1 – Eu trabalhei no Masp também, antes, quando eu fiz Museologia. Foi meu estágio.
(55:52) P1 – E casa, afinal, você morava onde, em Campinas?
R1 – Morei primeiro num pensionato, depois eu morei numa república, na moradia, depois eu montei uma república com duas amigas. Com uma amiga e depois com duas amigas. Depois essas amigas se formaram, eu também, aí eu fiquei fazendo mestrado, aí montei uma outra república com mais outras duas amigas e aí eu vim pra São Paulo, morar numa república gigante, nunca tinha morado numa república gigante e acabei virando morar em São Paulo numa república gigante, no apartamento da Nádia Farage, que era uma professora nossa de Antropologia Indígena, que ficou com o apartamento vazio em São Paulo, que ela tinha optado morar em Campinas naquele momento e eu falei pra ela: “Você pode alugar pra gente?”. Ela: “Posso”. Ela alugou pra mim e pra três amigos meus que faziam Filosofia que tinham entrado no mestrado na USP e uma amiga minha que entrou no mestrado de Antropologia da USP também. Eu mudei pra São Paulo pra fazer, na verdade, trabalho de campo pra poder entrar no ‘mundo da moda’, com trabalho de campo.
(57:01) P1 – Como que era isso, da sua...
R1 – Esse período, em Campinas?
(57:06) P1 – É.
R1 – É um período de muitas descobertas, sem dúvida nenhuma. Eu andava com vários grupos ao mesmo tempo, nunca fui uma pessoa de andar com um grupo só. Tinha os meus amigos mais de estudar, depois tinha os meus amigos mais de ‘balada’. De certa maneira, todos eles são meus amigos até hoje. Eu tenho... meu network é muito poderoso, por causa disso. Essas pessoas são muito bem-sucedidas hoje, graças a Deus, mas eram meus amigos de faculdade e foram muito importantes, com várias descobertas na minha vida. Nem sempre profissionais, mas sempre pra construir mesmo o que é que eu queria, como eu queria elaborar a minha vida, o que eu ‘topava’ e o que eu não ‘topava’ na minha vida. Então, algumas coisas eu lembro de ver amigos meus, tipo: terminou a faculdade, voltou pra cidade de origem. Falei: “De jeito nenhum, isso eu não quero” e são superfelizes, bem-sucedidos. Mas aí eu falo: “Não”. Aí eu ia vendo as coisas não acontecendo, ia vendo que sim, ou não. Nunca fui muito ‘baladeira’. Nunca fui muito, não. Eu gosto de boteco. (risos) Eu gosto de sentar, tomar cerveja, mas eu acho [que] nasci meio ‘véia’, sabe? Eu nasci meio adulta. Eu sempre quis ser adulta, quando eu era criança. (risos) Então, não achava nenhum problema em ser meio ‘véia’, essa coisa: eu ficava muito preocupada em como eu tinha que voltar pra casa, algumas coisas assim, então eu ficava assim: “Melhor não, então eu fico aqui, tomo uma cerveja e posso ir embora sozinha, por minha conta”. Sempre gostei dessa coisa da independência. Isso em São Paulo também era muito fácil. Então, pra mim foi bem tranquilo, mas em Campinas foi muito feliz. Depois eu voltei a morar em Campinas, inclusive. Morei aqui em São Paulo e voltei a morar em Campinas, fiquei quinze anos morando em Campinas e aí, agora, quando eu fui fazer doutorado, acabei voltando pra Campinas e fiquei muito tempo lá. Mas eu gosto muito desse momento da faculdade. Foi muito feliz, mesmo. Namoradinhos meus, era bem beijoqueira, saía com muitas pessoas, mas não era muito da coisa da aprontação, nunca foi o [meu] forte, não. Sempre fui muito tranquila. Então, sempre obedeci muito o que eu tenho vontade de fazer, então isso nunca me colocou numa ‘roubada’ muito grande, na verdade. Pelo contrário, sempre fui muito cuidadosa, então foi bem tranquilo.
(59:49) P1 – E como foi seguindo a trajetória profissional? Não sei se você quer falar mais sobre o mestrado...
R1 – O que ‘rolou’? Quando eu vim fazer trabalho de campo aconteceu, além de eu ter feito o curso do Jorge Coli, foi uma das últimas disciplinas de graduação que eu fiz, quando eu entrei no mestrado, eu resolvi fazer uma disciplina do Nelson Aguilar, fabuloso! Eu quero ser ele, quando eu crescer. É pessoa incrível, de uma erudição absurda, mas não esnobe, é de prazer de saber, sabe? Então, é um tesão. Ele realmente é uma pessoa especial. E aí eu fiz uma disciplina com ele, nesse período. Então, eu lembro que foi a primeira vez que eu fui na bienal, inclusive. Já tinha ido na bienal como visitante, mas a primeira vez que eu entrei lá no bastidor da bienal, que ele queria entregar os trabalhos pros alunos pessoalmente e ele falava de cada uma das provas. Ele só dá prova, não dá trabalho, que ele fala que é pra ‘pegar o pensamento no ar’. Eu acho isso uma super sacada: (risos) você ‘pegar o pensamento no ar’ das pessoas. E aí eu lembro que eu fiquei com medo e não fui na aula que ele foi devolver, aí uma amiga minha, ele virou e falou assim: “O que essa pessoa que não aparece, não sei o quê”. Ela falou: “Não, professor, ela é supertipo...”. E ele não falou a nota, só ficou falando. “Posso falar pra ela ir procurar o senhor”, “Então fala pra ela”. E lá na bienal ele era curador naquele ano, então: “Fala pra ela ir lá na bienal pra pegar a prova dela comigo”. Eu falei: “Nossa, não acredito, me meti numa ‘furada’, vou ter que pegar a prova com o professor”. Aí eu cheguei lá, foi a primeira vez que eu vi um monte de mulher vestida de Chanel (risos) na minha vida, aquelas mulheres bem-nascidas e bem-casadas, todas lá, trabalhando na bienal. Achei isso superlegal. A primeira vez que eu estava naquele meio de artes mesmo, [com] aquelas pessoas superbacanas também, todo mundo muito ‘descolado’. Eu lembro que eu fiquei olhando aquilo, falei: “Nossa!”. E eu me sentia bem fora, por conta de ser muito estudante ainda, então, visualmente, eu falei: “Nossa, eu sou muito inadequada nesse lugar”. Mas é ‘muito louco’, por conta de trabalhar com moda mesmo, então eu ficava o tempo inteiro pensando nas aparências, o que as pessoas estavam ‘lendo’ da minha aparência. Então, eu peguei e cheguei lá na mesa dele, era um dos salões da bienal cheio de gente - pelo menos na minha memória é assim - trabalhando, todo mundo altamente ‘descolado’, umas cinquenta pessoas ‘descoladas’ e eu lá, ‘Zezona’, (risos) no meio de todo mundo. Aí eu cheguei pro Nelson... o Nelson, hoje, é uma pessoa bastante... mas naquele momento ele era uma pessoa muito hypada também, sabe? Usava óculos diferente, roupa diferente, tudo diferente. Aí eu lembro que eu sentei na frente dele e ele falou assim: “Quem é você?”. Eu falei: “Nossa, vai acabar comigo agora”. Aí eu falei assim: “Eu vim pegar a prova. Eu sou a Patrícia Sant’ Anna”. Aí ele pegou e fez assim com a prova: “O que você estuda? Qual a sua pesquisa?”. Aí eu contei um pouco da minha pesquisa de mestrado pra ele, ele falou: “Você tem que estudar tal fotógrafo, tal fotógrafo, tal fotógrafo, tal fotógrafo”. Eu fui anotando, aí ele deu a prova pra mim e falou assim: “Foi a melhor prova, estava muito boa, impecável. Você tem o ‘olho bom’”. Só dando, ‘rasgando’ elogio e eu falei: “Pô, podia ter ficado, ganhado esse monte de elogio na frente dos meus amigos”, mas foi melhor, eu ganhei na bienal (risos) esses elogios. Eu falei: “Nossa!”. Ele falou: “Muito boa essa prova. É uma pena você estar na Antropologia. (risos) Jura que você está na Antropologia?”. Eu falei: “Juro”. Ele falou: “Não. Tá bom. Então estuda isso, isso, isso, isso e isso”. Então, foi bem bacana. Ele foi uma pessoa muito importante. E aí, por conta disso, eu fiquei meio fascinada e fui fazer uma pesquisa na ECA, enquanto o xerox fazia a cópia, porque nessa época a gente fazia cópia de xerox, eu estava lendo o mural e tinha lá vaga pra trabalhar na Mostra do Redescobrimento, que foi a mostra de comemoração de quinhentos anos de descoberta, entre aspas, do Brasil. Tanto que era redescobrimento, já tinha uma coisa ali e era o Nelson Aguilar que era curador também. E aí eu lembro de pegar, tinha vaga de ação educativa, aí eu peguei, nem sabia o que era isso, me lembro que eu peguei, aí uma amiga me falou: “Monitor, aquele pessoal que fica andando com a ‘galera’”, “Ah!”. Na Unicamp isso não era muito comum. Na USP, eu vi que era uma coisa muito comum, trabalhar, o pessoal de São Paulo. Na PUC era muito comum trabalhar. Na FAAP, tinha muita gente também, depois, lá. Aí eu fiz a seleção. Quem era a chefe do educativo era a Renata Bittencourt, que depois virou amiga minha de doutorado, ela fez doutorado junto comigo, na História da Arte, orientanda do Jorge Coli, tudo maravilhoso, sobre mulheres negras, pinturas de mulheres pretas no Brasil e tudo o mais. Fabulosa! Ela é maravilhosa. Mas não a conhecia, a conheci naquele momento, ali. Fiz a seleção, tudo e aí me chamou pra trabalhar na Mostra do Redescobrimento. Aí foi muito legal. Pra mim foi transformador passar aqueles oito meses trabalhando ali do lado das obras, isso foi... aí eu entendi uma fala muito recorrente do Jorge Coli, que era: “Nada substitui a sua relação com a obra de arte”. Então, a gente vê um livro, um catálogo, é uma reprodução, uma reapresentação daquilo, mas nada é a mesma coisa que estar, realmente, na frente da obra de arte e conviver com ela. Então, aqueles oito meses foram fabulosos, porque era desde a pré-história do Brasil, arqueologia, até arte contemporânea, tudo disponível, ali, a gente trabalhando todo dia junto com as obras e foi ali que eu conheci meu marido. (risos) Ele trabalhava na mostra também, aí a gente se conheceu, mas a gente começou a namorar no final, só, da mostra. Mas foi muito bacana, foi outro momento transformador. Foi entrar na faculdade, no Cebrap, que aí eu descobri que eu era pesquisadora e ali, na Mostra do Redescobrimento, que eu queria trabalhar com exposição, museu, arte, com alguma coisa ligada a isso também e fazer à parte, junto com moda. E aí eu consegui juntar tudo no meu doutorado: museu, coleção de moda, todo esse ‘universo’ num pacotão só. (risos)
(01:06:43) P1 – A Museologia veio antes ou depois?
R1 – Fiz junto com o mestrado. Fiz especialização em Museologia, fui bolsista da Fundação Vitae, que era uma fundação que atuou no Brasil durante algum tempo, justamente no fomento ao desenvolvimento cultural, mas eles eram bem fortes na área de museu, então tem muitos museus no Brasil que existem por conta da Fundação Vitae. Ela que deu a ‘grana’, erigiu esse processo e eu fiz o curso de Museologia, que era pago, na época, gratuitamente, porque eles pagaram a bolsa. E também passei com dez. Eu sou ‘CDF’.
(01:07:25) P1 – (risos) E o doutorado?
R1 – Foi muito legal, porque eu prestei em História um ano, não passei, na área de Patrimônio, aí fiquei super frustrada, porque foi a primeira vez que eu repeti na minha vida, (risos) que eu não fui aceita, fiquei frustradíssima. Aí, no ano seguinte, abriu História da Arte, era um curso novo, na verdade, muitas vagas, inclusive. Naquela época, treze vagas eram muitas. Treze, quatorze vagas, mais ou menos, eram muitas. Aí peguei e falei: “Nossa! Será que eu presto, será que eu não presto?”. Aí fiz todo um projeto baseado em pinturas do século XIX e tudo mais, então o orientador do meu marido, que era o Luciano Migliaccio, que era amigo nosso, a gente estava na casa dele, tomando cerveja, vinho, conversando, nós estávamos jantando na casa dele, na verdade, aí ele virou e falou assim: “Mas Patrícia, tem certeza que você vai fazer sobre esse tema? Você dá conta, é óbvio” - ele já me conhecia como uma pessoa que já tinha feito disciplina com ele e tudo o mais – “Mas será que é isso? Por que você não faz sobre esse monte de coisa de moda que você sabe, que você conhece. Você conheceu a coleção Rhodia, não sei o quê”. Eu falei: “É, né?”. Aí eu cheguei em casa, escrevi outro projeto do zero. Só que não era do zero. Na verdade, eu já estudava isso há muitos anos. Aquela coleção, inclusive, foi uma que eu estudei no curso de Museologia, pro meu estudo de Museologia, pro processo museológico que eu estava avaliando. Aí eu falei assim: “Vou levar então isso pro doutorado, só que agora da perspectiva da História da Arte”. Eu fiz o meu projeto na madrugada, (risos) entreguei no dia seguinte de manhã, porque era o último dia de inscrição, aí troquei meu projeto totalmente. Eu já tinha ido pro Rio, feito pesquisa nas pinturas, larguei tudo e fui pra outra pesquisa, totalmente... totalmente diferente não, que eu dominava mais essa pesquisa do que a outra, a outra eu ia começar. Aí passei. Quando eu passei, quando fui fazer a defesa pra passar no processo seletivo, tem um momento que é banca, então estava Luiz Marques sentado na minha frente, Nelson Aguilar sentado de costas. A pessoa senta de costas, ela não queria falar comigo, entendeu? E eu achando que ele ia me orientar, que eu ‘estava bem na fita’. Ele estava de costas, literalmente. E aí, do outro lado aqui não era o Coli, era o Tognon que estava sentado aqui. O Coli não participou dessa banca. Aí eu lembro que eu entrei, sentei, o Luiz bateu com meu projeto, assim, falou assim: “Seu projeto está impecável, mas a gente não tem vaga pra você”. (risos) Aí eu falei assim: “Então, vou defender de qualquer maneira”. Ele falou: “Pode defender”. Aí eu comecei a falar, falar, falar, falar, falar. Aí teve um dado momento assim que ele falou assim: “É, realmente a moda é uma estética importante do cotidiano, Baudelaire, nãnãnã”, todos os argumentos que a gente já conhece. “Talvez vocês estão tendo preconceito, então, com a moda como objeto de estudo.” Aí o Nelson virou e falou assim: “Talvez a moda seja uma das manifestações estéticas mais importantes do século XX”. Aí eu falei: “Então, não sei porque não tem vaga pra mim”. (risos) Eles queriam isso, eles estavam forçando pra ver argumentação, contra-argumentação, essas coisas assim. Na época, você imagina: “Nossa, o que eu estou fazendo é ‘perfumaria’, ninguém liga”, mas não adianta, você está na História da Arte, já é ‘perfumaria’. (risos) Então, todo mundo já acha que não é tão assim. E, no entanto, é muito difícil os argumentos estéticos e tudo o mais e eu me saí muito bem e acabei conseguindo passar. Depois, anos depois, foi que eu descobri que, pra eles decidirem, eu entrei e saí da lista várias vezes, de aprovada. (risos) Eu e a menina que passou em primeiro lugar. (risos) Ela também entrou e saiu várias vezes, porque a gente não tinha um histórico com História da Arte. A gente não tinha feito mestrado, nem a graduação, a gente fez iniciação científica em História da Arte. Eu vim da Antropologia e ela veio da PUC inclusive e, no entanto, ela passou em primeiro lugar com Arte Contemporânea e foi orientanda do Nelson, e eu passei e fui orientada da Cláudia Valladão, que é uma pessoa muito querida, que inclusive fez eu gostar de novo de ter orientadora, (risos) uma orientadora querida. Também a Cristina Bruno, que foi minha orientadora na Museologia, também foi uma pessoa muito especial e o Omar no Cebrap, também. O pessoal do mestrado mesmo que foi meio ‘xarope’, (risos) que não deu muito certo. Foi muito certo na graduação, mas no mestrado a gente não conseguiu continuar o trabalho, não teve o mesmo tipo de link.
[Pausa]
R1 - ... no final do doutorado.
(01:12:33) P1 – Como você foi entrando pra esse ‘universo’?
R1 – A minha vizinha em Barão Geraldo, em Campinas, uma querida, que faleceu há dois meses, inclusive, infelizmente. Ela e a Paulinha trabalhavam no Ministério da Cultura com o Gil e eles estavam reordenando e repensando a questão do Ministério da Cultura, pra além de ser alguma coisa que promovia cinema, porque o audiovisual é o mais organizado, junto com a ‘galera’ da música, são as duas frentes mais bem organizadas, então sindicato e tudo o mais, e eu falei assim: “Mas tem mais coisa que é manifestação cultural” e aí ela pegou e bateu – lembro até hoje – no portão mesmo, porque a gente morava na Vila São João, que é um bairro dentro de Barão Geraldo. Barão Geraldo é o distrito onde fica a Unicamp e a gente morava na Vila São João, que é um bairrozinho de quatro, cinco ruas de terra, um lugar do lado de uma fazenda. Ela bateu na porta e falou: “Pat, você é a única pessoa que eu conheço e que confio pra fazer uma pesquisa sobre moda, mas moda como uma manifestação cultural. Como você tem formação em Antropologia, está fazendo doutorado em História da Arte, pesquisa moda em todas essas frentes acadêmicas que você atua, você não quer fazer um relatório pra gente ver se a moda é uma manifestação efetiva da cultura brasileira?”. Falei: “Tá, vou fazer, então. ‘Topo’ sim”, superfeliz. E naquela época eu lembro que, sei lá, acho que eu ganhei cinco mil reais e um bolsista ganhava tipo uns dois mil, (risos) então eu falei: “Nossa, só pra fazer um relatório! Putz, vou ficar rica, com certeza”. Aí eu peguei, fiz o relatório. É ‘muito louco’ porque eu fiz muito só pra provar essa importância da moda. Aí fiz todo um levantamento histórico, todo um trabalho sobre o que é a manifestação da aparência, como a aparência lida como moda dentro do universo do capitalismo, então fui mostrando todas essas camadas de significado de construção da aparência e falei: “Sim, o Brasil tem uma série de expressões que são dentro do universo da moda e que são importantes, relevantes pro mundo e internacionalmente, inclusive, como é o caso da moda praia, dos calçados, do jeans. A gente não só produz, a gente cria dentro dessas frentes e o pessoal vem pra cá pra saber”. O pessoal que eu quero dizer é [o] hemisfério norte, [que] vêm até aqui pra, justamente, entender como é que funciona esse processo criativo nosso, que é o melhor do mundo. O produto é muito bom, o acabamento é muito bom, então eles vêm pra cá mesmo. Então, Nike, Adidas, esse pessoal todo vem copiar o que as marcas brasileiras, por exemplo, de fitness fazem. A gente é muito bom, mesmo, nessas frentes. Então, eu mostrei isso e também a força da manualidade, da artesania brasileira, que não era reconhecida, dessa confusão entre arte popular e manualidades, manufaturados. É muito confuso, às vezes, pra quem está do lado de fora, entender como isso funciona e como a gente tinha linguagem própria pra renda, bordado, tecido, tanto na escala quanto no artesanal. Então tudo isso eu mostrei nesse relatório. Então, eu mandei esse relatório pra ela e ela falou: “Está impecável, está ótimo, a ‘galera’ adorou e Gil está chancelando: a moda é da cultura agora também. Não é só da indústria, é também da cultura, também é manifestação cultural”. Foi muito legal, eu falei: “Nossa, posso trabalhar com isso”. (risos) Nunca imaginei que a minha pesquisa pudesse legitimar coisas, ter uma ação no mundo, na sociedade, efetivamente, porque cientista social é treinado pra olhar o mundo e ter a visão crítica, o que é absolutamente necessário, que a gente precisa ter essas pessoas que ficam realmente olhando pro mundo com lupa, pra falar: “Olha, vocês estão indo pra um lugar muito errado” ou “A gente está acertando aqui”. Tem que ter essa visão distante. Mas eu gostei muito da sensação de fazer algo que mexia na sociedade, efetivamente e isso, nas Ciências Sociais da Unicamp, definitivamente, naquele momento não era... era só formar gente pra fazer mestrado, doutorado, prestar concurso e entrar na universidade pública e fazer esse caminho, ou ir pro exterior pra ser professor. Eram esses os caminhos que os meus colegas, a grande maioria, traçou, inclusive. E eu, depois, logo em seguida, fui indicada pra fazer um edital, pra ajudar no processo de edital do Itaú Cultural, o Rumos e a gente foi o primeiro e único Rumos de moda e design que eles fizeram. Aí participei, foi muito bom também. A gente foi levar economia criativa, que era uma questão que ainda estava muito no início, tinha pouca gente que ainda falava sobre isso, então a gente rodou o Brasil inteiro dando treinamento sobre o que era economia criativa, como que a moda e o design entravam nesse ‘universo’ da economia criativa. Foi muito legal, muito bacana mesmo. E a partir desses treinamentos, as pessoas puderam entregar e se inscrever com projetos novamente acadêmicos. No caso, ali, era isso, pra dar valor e mostrar quem já pesquisou esse universo. E aí a gente fez esse edital, aí ganhei uma fortuna pros meus padrões, na época. (risos) Eu lembro que eu falei: “Nossa, quero fazer isso, eu vou trabalhar com isso, é muito mais legal, quero fazer essa pesquisa, que mexe também com...” e nem imaginava que isso era pesquisa de mercado, era você usar um instrumental das Ciências Sociais... apesar de saber, desde o início, que Ciências Sociais é conhecer pra controlar, pra ter poder em cima. Foi uma ciência criada pra isso, a gente não pode esquecer que é uma ciência do colonizador. (risos) Então, principalmente Antropologia, a gente não pode ser ingênuo frente a isso, mas eu lembro que eu falei assim: “A gente pode estar no meio do capitalismo e mudá-lo de dentro pra fora. A gente pode fazer diferença lá dentro, com a empresa, fazer uma empresa diferente”. Aí eu comecei a pensar nisso, aí eu descobri que na Unicamp tinha uma incubadora de empresas. Nisso, eu tenho que dar a ‘mão à palmatória’, a Unicamp é muito aberta, assume alguns riscos de virar e falar: “Vamos fazer, então”. E aí eu montei um projeto pra uma empresa de pesquisa de tendências para e a partir do hemisfério sul. Então, naquela época ninguém falava ainda em sul orientado, decolonial, no mundo do mercado. No mundo acadêmico, a gente já tinha um ou outro autor que já estava começando a falar sobre isso, mas ali na Unicamp ninguém ainda falava disso. Ali era muito, ainda, ‘universo’... ali era difícil a gente colocar os Estados Unidos, quiçá falar de alguém que é um pensador africano, latino-americano. Eles eram vistos como iguais a gente. Acima da gente está o hemisfério norte. Então, isso foi muito bom. Eles assumiram isso. A gente foi aprovado, entrou, aí montamos a empresa e aí começa do zero, (risos) porque eu já tinha toda uma carreira de pesquisadora acadêmica super já elaborada, professora em faculdades de moda e tudo o mais, já dava aula em algumas faculdades de moda, então eu falei: “Nossa, o que eu estou começando do zero outra coisa?”. Comecei do zero outra coisa, porque ter negócio é completamente diferente de ser acadêmico. Então, aí comecei a aprender a como era fazer pesquisa pra mercado e não pesquisa de mercado, aquela pesquisa econômica de mercado, mas como eu poderia usar os instrumentais da Antropologia, da Sociologia, da Ciência Política pra fazer pesquisa pra esse ‘universo’ do mercado. E aí, aos poucos, a gente foi entrando no mercado e, por incrível que pareça, quem mais buscou a gente nesse início, por estar numa incubadora da Unicamp, as empresas que estão em Campinas, principalmente as multinacionais, vão até lá ‘bater na porta’, pra conhecer quais são as empresas que estão lá, as startups. Então, isso fez a gente conhecer a Samsung, que foi um dos nossos primeiros clientes, por exemplo. Então, a gente pensou que ia começar com moda, mas a gente começou com coreanos, eletrônicos. (risos) Outra frente, mas foi muito bom, um super desafio, um teste de produto que a gente fez pra eles. Hoje eu já posso falar. Geralmente as pesquisas que eu faço eu não posso falar, que são todas confidenciais durante cinco, dez, vinte anos. Essa eu já posso falar, porque foi bem lá no início da empresa. Isso faz doze anos, já. Então, a gente fez um teste de produto, que é você entender porquê aquele produto está sendo rejeitado. No caso, era rejeitado o produto porque isso estava acontecendo. E era um traço socioeconômico, na verdade, que estava acontecendo ali, uma maneira de lidar com o produto que, por mais que o brasileiro tenha ‘grana’ e até tenha uma cultura muito refinada, ele não ia gostar daquilo, aquilo não funcionava pro cotidiano brasileiro, muitas vezes por conta da violência da cidade. Então, era bem raro encontrar o produto sendo utilizado na rua, por exemplo, que era uma coisa que eles não conseguiam entender e eles tinham feito uma projeção, sei lá, gigantesca, de venda e não vendeu nada. Então, (risos) isso fez eles ficarem assustados, porque tinha errado e era um erro nesse sentido, de não entender sociologicamente, antropologicamente aquele país e entendê-lo só do ponto de vista econômico. Do ponto de vista econômico, a gente estava indo ‘muito bem, obrigada’, estava todo mundo... sabe aquele momento que estava todo mundo com sensação de ser rico no Brasil? Então, foi nesse momento. Falou assim: “Por que a gente não está vendendo, se está todo mundo rico no país, [se] todo mundo é classe média agora?”. Porque, na verdade, não fazia sentido nem socialmente, nem culturalmente pro brasileiro consumir o produto deles, aquele produto deles. Outros, sim, mas aquele não. Então, aí eles tiveram que dar um passo pra trás. Quem me contratou foi uma mulher e aí eu comecei a perceber também que mulheres contratam mulheres. (risos) Homens são mais difíceis de contratar mulheres. Foi uma das coisas que eu fui aprendendo com o ‘andar da carruagem’. Aí, a partir da incubação, a gente aprendeu sobre como fazer gestão, a lidar com dinheiro, que a gente não sabia. De repente você fecha negócios que são muito altos pro seu padrão, você não sabe administrar aquele dinheiro e quando você não sabe administrar dinheiro, não adianta você ter dinheiro, ele ‘vai embora’, acaba. A gente ‘tocou’ muito dinheiro no começo, a gente fechava negócios grandes: “Vamos pra Paris, então”, “Vamos! Estou rica agora, vamos pra Paris, (risos) vou pra não sei onde”. E, na verdade, não era bem isso. A ideia é como você planeja, como você usa esse dinheiro. Então, a Unicamp ensinou isso, nessa incubação. Isso foi muito bom, mesmo. Então, recomendo, inclusive. Se você é um pesquisador e tem uma ideia muito boa, um produto muito bom na mão, passa por uma incubação e ‘baixa a bola’, porque a gente não é treinado pra ter a ‘bola baixa’, pesquisador é treinado pra ser arrogante, principalmente cientista social. A gente é treinado pra ser bem arrogante, pra chegar quicando nas pessoas. E isso não dá muito certo, na verdade, quando você está falando em aprendizado, que você está começando do zero, uma outra área, um outro tipo de conhecimento, porque é um conhecimento e é um outro tipo, que é super necessário pra gente poder fazer o negócio funcionar efetivamente. Aí foi passando o tempo, eu trabalhei pra C&A muito tempo, foi quando eu conheci o Gustavo, que hoje é diretor do Instituto C&A. Depois eu trabalhei pra várias empresas, de várias frentes diferentes, algumas eu posso falar nome, outras eu não posso, mas dessa frente, por exemplo, ligada... eu gostei muito também de trabalhar com os institutos, isso foi uma coisa que eu sempre fui desenvolvendo. Então trabalhei com o Instituto Tomie Ohtake também, numa frente que trabalhou com moda, costura, expressão e mulheres em situação de vulnerabilidade, cis e trans. Foi bem bacana também esse trabalho. Saiu livro depois, teve uma publicação. E a gente fez esse trabalho durante a pandemia, foi um trabalho bem difícil de ser executado, mas a gente conseguiu executar e foi muito, muito legal. O Rubinho estava nesse projeto, ele é parceiro antigo, que eu conheci lá no Ccbb (Centro Cultural Banco do Brasil), quando eu era monitora. As pessoas sempre retornam na minha vida. É ‘muito louco’ isso. Estão em outro lugar e falam assim: “Patrícia, você faz tal coisa?”, “Faço”. Aí: “Onde você está, agora?”, “Estou no Tomie Ohtake, estava no Ccbb”. Então, isso sempre aconteceu na minha vida: as pessoas retornam e eu faço trabalho com as mesmas pessoas, em vários lugares diferentes, isso é normal. Foi o caso do Gustavo, também. O conheci na C&A, ele era PMO, gestão de projeto, e hoje ele é diretor do Instituto C&A e ele me chama de novo, pra trabalhar: “Vamos fazer um...” e o que eu gosto muito de fazer nos institutos é ajudar empresas de pessoas muito criativas, mas que não têm a menor noção de negócios, isso é muito comum. Então essas pessoas normalmente perdem muito dinheiro. Elas são muito criativas, acabam ficando também desestimuladas, porque elas não conseguem fazer esse ciclo dar certo, de pôr uma coleção de pé, entender o que é fazer uma coleção, que você precisa ter um pedacinho comercial e que isso não está sendo um grande problema, então você pode ser super criativo, ao mesmo tempo. Então, esse tipo de ajuda eu adoro fazer, esse tipo de consultoria é a que geralmente o Gustavo me chama pra fazer, a Raíssa me chama pra fazer agora, lá no Instituto Renner, que eu gosto muito mesmo de ajudar nesses processos e normalmente eles são muito ingênuos. São muito criativos, mas são muito ingênuos em termos de negócios, ou tem valores que você fala assim: “Mas você não está indo contra o seu valor”. É o jeito de pensar dinheiro, normalmente. Por conta de ter vindo de Ciências Sociais, eu também entendo porque eles pensam que dinheiro é uma coisa ‘suja’. É ‘sujo’ se você estiver roubando. Se você não estiver roubando, estiver trabalhando, não tem nada de errado aí. Pelo contrário: você está vivendo no capitalismo; você pode até ser crítico a ele, mas você está vivendo nele e o dinheiro dá liberdade, saúde, estabilidade, muita coisa boa. Ele proporciona qualidade de vida muito boa e aí fazê-los perderem um pouco esse preconceito é que é o mais difícil, mas uma vez que você consegue é impressionante, eles vão, que vão, deslancham, porque às vezes eles são, inclusive, bons comunicadores, pessoas que são super boas pra falar do seu próprio projeto e tudo o mais. Tem gente que a gente até fala: “Você é viciado em edital, um atrás do outro, mas um negócio de moda não sobrevive de editais, você precisa fazer... vai ter uma hora que a sua criação já não se encaixa mais nos editais, porque os editais também são movidos pela questão do momento. Então, hoje é essa questão e daqui a pouco, quando isso não for mais questão, será que você consegue ainda sobreviver, sem o edital?”. Então, é isso que a gente entra na modelagem, com o Instituto C&A, muito nesse caminho, de mostrar: “Você pode andar com as próprias pernas. A C&A, o instituto, está aqui só dando um ‘empurrão’, mas você não pode depender do Instituto C&A pro resto da vida, eles não vão conseguir te sustentar. A gente não sabe nem se eles vão existir pra sempre, porque um instituto é uma coisa que também pode ser efêmero, também fecha, também deixa de existir, então você não pode ficar dependente de” e é nesse papel que a gente entra, justamente pra poder fazer deslanchar.
(01:29:46) P1 – Se você quiser, não sei, talvez explicar um pouco mais esses campos de pesquisa e consultoria voltados pro mercado de moda.
R1 – Tá. Eu acho que é legal, sim. Aí eu montei essa empresa, a empresa chama Tendere, eu nem falei o nome, é uma empresa que começa com pesquisa de tendências, que é um grupo de instrumentais de pesquisa, de técnicas de pesquisa, pra gente fazer prospecção de futuro. Ou seja: você vai, como o nome está falando, prospectando. Você está ‘colhendo’, ‘pescando’ possibilidades de futuro, mas eles não são fechados, o futuro não é dado, é construído, então você vai dar caminhos possíveis. O futuro imediato normalmente é bastante previsível. O que vai acontecer daqui um, dois anos é bem previsível, não tem muito problema quanto a isso, por conta de elementos macros que já foram definidos, decididos. Então, por exemplo, fluxo de dinheiro no mundo sendo investido. O dinheiro, daqui um, dois anos já não tem endereço, não é uma coisa assim: “Olha, agora...”, não. Já está definido que vai ser isso, então isso são ‘cartas que são dadas’ por várias fontes muito confiáveis, então também não é uma fonte só, você vai ter que juntar várias fontes pra poder construir uma informação que seja minimamente válida, mas você constrói isso, essa pesquisa de tendência. E a gente viu que no Brasil tinha muita resistência contra pesquisa de tendência feita no e para o Brasil, feita no e para o hemisfério sul. Ninguém queria saber de comprar isso. Então, a gente montou seminário, que era o único jeito de vender. Aí as pessoas passaram a comprar. Que é um evento que a gente faz. Esse ano não vai ter, porque esse ano a gente está remodelando-o, pra ser justamente um outro formato, depois da pandemia o mundo virou outro. Durante a pandemia, a gente o fez digital. Ele sempre foi presencial, depois ele passou a ser digital. Esse ano a gente está remodelando-o pra ser, no ano que vem, provavelmente híbrido. Então, 2024 a gente volta e híbrido.
(01:32:23) P1 – Vocês que inventaram nesse...
R1 – Sim, porque era o único jeito das pessoas... porque aí fica acessível. Quando você faz um seminário, o valor é bem mais baixo, então fica mais fácil. É sob medida, aí as pessoas compram. E aí a gente percebeu que havia um ‘buraco’, na verdade, de pesquisa qualitativa no mercado, porque as ‘quantis’ a gente tem muita gente muito boa que já faz, mas as ‘qualis’ são poucas pessoas que fazem boas. Tem muita gente aventureira no ‘mundo quali’ também, que é competidor nosso e que no começo a gente ficava irritado, mas agora a gente não fica mais, não, porque gente ruim eles mesmos se ‘queimam’, então não tem muito problema. A gente sempre, a pessoa vai: “Eu fiz com ele, que é mais barato”, “Tá bom, vai”. Depois volta: “É uma porcaria”. Eu falo assim: “Então!”. A gente não é dos mais caros no mercado, mas a gente não é dos mais baratos. É caro também porque tem custo, pesquisa é caro pra gente fazer, porque o pesquisador qualificado é caro, não posso pagar pouco pra uma pessoa que gastou vinte, trinta anos da vida pra ter o repertório que tem. O ‘pulo do gato’ de uma pesquisa é justamente a interpretação que você está dando e isso quer dizer repertório, formação, domínio da técnica, uma série de áreas de conhecimento, então não dá pra ser uma coisa trivial. Você não pode pegar alguém... vejo o pessoal, dá até dó, que está se formando, está na graduação e fala: “Quero fazer estágio com você”. Falo: “Não tem condição, só se for pra ser secretária. Nada contra ser secretária, mas não é isso que você está querendo. Você está querendo entrar aqui pra ser pesquisadora, então faz mestrado e doutorado e a gente pode começar a conversar”, porque eu preciso desse rigor pra poder trabalhar com a gente, de fato. O rigor acadêmico, mesmo, que dentro o rigor é acadêmico, só que ele é feito no ‘toque’ de mercado, então a gente usa muitos instrumentais. Às vezes eu apresento pra um pesquisador acadêmico que não está acostumado, inclusive, a trabalhar tão rápido, a usar determinadas técnicas, então discutir metodologia é o que a gente faz absolutamente todos os dias na empresa e cientista social, designer adoram ficar falando de metodologia de pesquisa, ficam falando isso durante horas. Aí a gente pegou e, além dessa pesquisa de tendência, a gente começou a perceber que a qualitativa de vários tipos, desde teste de produto até entender o mercado, fazer mapeamento de mercado, ver se o que você está achando que é uma grande ideia é, realmente, uma grande ideia. Então a gente testa as ideias, qual o formato que as pessoas querem que aquilo seja entregue, de fato, e isso passa pelo ‘universo’ da moda muito forte, porque a moda meio que baliza muitos produtos. Dá impressão que não, mas muitos produtos são balizados pelo que acontece na moda. Então, por exemplo, quando a gente olha e vê um carro todo fosco, aí você fala assim: “Veio da...”, isso veio da moda, a coisa do fosco, do gosto pelo não brilho. Então, é uma educação que vem, uma sensibilização que vem do ‘universo’ da moda. Então, a moda é muito importante na sensibilização estética das pessoas. Também imagina que isso vai ‘cair’ no décor, no design de carros, design cotidiano, de coisas absolutamente cotidianas como, por exemplo, modelo de capa de caderno que seu filho vai querer. Tem o caderno que vai vir com Disney e tudo o mais, que são os que vendem mais mesmo, mas tem as outras coisas que seu filho, sua filha também quer e que de repente a gente que identifica isso e mostra, fala: “Essa sensibilização está vindo de tal coisa, de rede social X, Y. Quem é o seu público?”. Muitas vezes o cliente não sabe. Ele está há anos no mercado e ele fez uma pesquisa, só que ele já está há vinte anos no mercado, então aquele cliente dele não existe mais mesmo, porque já se passaram vinte anos, então você tem que atualizar às vezes e aí a gente faz esse tipo de pesquisa, muito pro ‘universo’ da moda também, porque as marcas precisam decidir se elas vão envelhecer com seus públicos, se elas vão mudar de público, de linguagem. Ninguém consegue permanecer inalterado. Na moda é impossível isso, basta você ver... mesmo quando você vê um estilo muito ‘pesado’, como é o caso da Chanel, da Dior, Chanel mais do que a Dior, inclusive, porque ela tem materiais que são característicos: você tem que usar gorgorão, tweed, uma série de materiais. Cores, tem que ter preto, camélia branca, tem que ter mesmo (risos) essas coisas, senão não é Chanel. Mesmo assim, você consegue ver a passagem dos estilistas. Cada estilista que passou ali, você fala: “Nossa, olha, esse daqui é Gianfranco Ferré, esse daqui é Karl Lagerfeld, esse daqui é Chanel Chanel, feito por ela". Então você está percebendo que realmente isso acontece e que muda o tempo também: essa daqui é Chanel antes da guerra, essa daqui é a Chanel depois da guerra, sabe? Você vai percebendo que isso vai efetivamente acontecendo, então é muito importante, senão sua marca não sobrevive. Então, se você já tem a minha idade, por exemplo, que são quase cinquenta anos, eu vi muita marca que não conseguiu sobreviver ou que ‘caiu no ostracismo’, no saudosismo, fala: “Lembra quando tal marca era incrível, né?”, “É”, “O que será que aconteceu com ela?”. Envelheceu e não conseguiu inovar o suficiente pra fazer parte da linguagem do mundo. Então, acaba acontecendo mesmo. Marcas muito, muito, muito importantes, muito, muito, muito famosas ‘caem’ e isso é por conta de não tomar conta dessa pesquisa prévia. Então tem a pesquisa de tendência, mas tem a pesquisa do comportamento do consumidor, quem é ele, como que ele usa, o que ele quer. Entender consumo de fato, porque o consumo é o uso. Às vezes a gente pensa que o consumo é a compra e não é, consumo é o uso. Então, comportamento de compra é outra pesquisa, inclusive. São outras técnicas que você utiliza para ver comportamento de compra, mas é o consumo que ‘puxa’. Se você entende o comportamento do consumidor e aquilo que sensibiliza, ou seja, pesquisa de tendência pro futuro, aí você tem a ‘faca e o queijo na mão’ pra fazer coleções de sucesso. E é isso que às vezes as pessoas economizam. (risos) E aí a empresa ou a marca acabam sendo esquecidas, ficando ultrapassadas, por conta disso, que aí a gente vive numa lógica que você tem que estar aqui, junto comigo, no meu tempo. Se você não está comigo aqui, no meu tempo, passa.
(01:39:46) P1 – Isso que chama tendência?
R1 – A tendência é essa sensibilização, que dá caminhos de futuros possíveis. O comportamento do consumidor é o comportamento de quem usa, como ele usa, o que ele quer usar. Se você junta essas duas coisas, aí você faz coleção de sucesso. Aí a gente ‘arruma container que chega errado’. O que quer dizer isso? Chega uma coleção da China que você olha, só que você pediu antes da pesquisa de tendência chegar ou da pesquisa, principalmente, de comportamento do consumidor chegar, aí quando ela chega você ‘bate o olho’ naquela coleção e fala assim: “Você não vai vender nada, nada aqui vai ser vendido, a gente precisa remodelar tudo, faz tal peça a mais, tal peça não sei o quê”, você reencaixa tudo. É um jogo de quebra-cabeça fazer uma coleção. Eu adoro fazer coleção, mas é uma coisa super quebra-cabeça: o que funciona pra qual público e como você vai apresentar isso pro seu público.
(01:40:38) P1 – E vocês ajudam, fazem a consultoria até montar a coleção?
R1 – Até montar a coleção. A gente monta a coleção pro cliente ter sucesso. O nosso negócio é fazer o cliente conseguir vender e manter os empregos. Quando um cliente... você vende uma informação errada, você pode fechar o cliente. É uma responsabilidade muito alta você vender informação. Você precisa saber exatamente o que você está fazendo. Você não pode falar assim: “Eu acho isso, não gosto do rosa Barbie”, mas vai vender, não tem como não vender, entendeu? As pessoas estão sendo sensibilizadas a quererem muito isso ou a odiar isso. Depende. Quem é o seu público? Você precisa saber o comportamento do seu consumidor: ele é da ‘galera’ que vai comprar Barbie ou da ‘galera’ que não vai comprar?
(01:41:30) P1 – E esse lugar mais criativo entra...
R1 - Ele entra em como usar tudo isso, porque não existe criatividade num papel branco, isso é uma lenda. Você fala: “Preciso de liberdade”. Se você está fazendo moda, design e aí toda economia criativa, inclusive audiovisual, cinema, streaming, se você não sabe pra quem você está criando, se você não tem limitações, vai ser um problema. Existe o design, a moda e até mesmo sobretudo o audiovisual, a arte? É lógico que existe. O que é esse adendo arte? Normalmente é alguma coisa que ‘puxa’ você pra uma outra situação, um outro lugar que consegue ter visão crítica. Agora, você não consegue fazer isso na escala, isso não é de gosto industrial, isso não consegue atender todas as pessoas. Então, se você está falando em algo que é na escala industrial, você tem que saber o que as pessoas vão gostar. Então, por exemplo, você vai fazer uma série... quando a gente pensa [em] produção de streaming, que a gente já fez esse tipo de pesquisa, se você demora dois anos pra fazer um filme, uma série, se você não sabe pra quem você está fazendo e como essas pessoas vão estar daqui a dois anos, você acaba perdendo não só dinheiro efetivamente, mas todo o trabalho das pessoas que estão envolvidas, você vai jogar no lixo isso. Então, é muita responsabilidade. Você tem que virar e saber pra quem você está criando. E a mesma coisa com uma coleção de moda. Ela parte do mesmo pressuposto. Quem inventou esse processo foi a moda, inclusive. Então, pra onde que eu vou criar? Quem eu vou criar? Qual o tema que eu vou trabalhar? E aí você para e faz todo o processo. Depois vem o pessoal - pensando historicamente, como professora de História da Moda, História do Design, História da Arte – do Marketing e dá nome de storytelling, nãnãnã, inventa outros nomes pra aquilo, geralmente em inglês, ‘ingliciza’ aquele processo, mas é um processo que era típico de processo criativo de quem vai trabalhar pra indústria, e aí estou pensando em indústria. Quando a gente coloca aquele adendo moda-arte, design-arte, cinema-arte, tudo que você coloca esse adendo arte significa que quem está fazendo já está correndo risco, porque quem faz arte não pensa no cliente. Ele não tem que pensar no cliente, porque ele está pensando na experiência estética que ele está propondo pro mundo, então ele está arriscando, propondo efetivamente uma coisa nova. Então, existe espaço criativo? Existe. Tanto faz se o espaço criativo é menor, ou maior. Quanto maior ele for, mais distante da indústria você está, mais risco você está assumindo. Quanto mais perto do universo industrial, da escala, mais você precisa saber muito bem, se munir de muita informação pra poder criar. E não é fácil, não. Parece ser simples criar uma blusa cinza, uma blusa mostarda, uma calça jeans, mas na verdade até a lavagem que você usa tem a ver com o período que você está vivendo. Você fala assim: “Essa lavagem é legal, eu quero usar. Essa lavagem não, agora está brega, ultrapassada, feia”, que é obsolescência programada, que é você justamente não gostar mais daquilo, porque ela visualmente não comunica mais aquilo que você quer. Sensivelmente, ela não passa mais aquilo que você quer. Então, a pesquisa que trabalha com economia criativa, seja qualquer uma das frentes de economia criativa, precisa ter certeza do que você está falando. Então, quando eu faço um relatório pra um cliente e entrego, não raro eu falo pra ele assim: “Estou dando o ‘coração’ do seu cliente pra você. Se você vai entrar nele, é só você querer”. Porque você também tem que gostar do seu cliente, tem que ‘abraçar’ seu cliente também, tem que falar: “Nossa, que legal!”. Eu já tive cliente que olhou pro relatório e falou: “Mas eu não queria trabalhar com essa pessoa”. Eu falo assim: “Então, vai vender pra outra”. Ou: “Quem que é que você quer vender?”, “X”, “Então tá, a gente faz uma pesquisa pra você saber como chegar em X. Agora quem está comprando, efetivamente, hoje, o seu trabalho, é essa pessoa aqui. Aí você que decide se você quer ou não trabalhar com ela”, porque isso é feito, também, as empresas mudam pra quem elas atendem e elas, às vezes, ‘viram as costas’ mesmo. Todo esse mundo de pessoas, elas viram pra trás e atendem só o outro lado. Mas todo meu conhecimento, tudo que eu falei hoje, de ter feito Ciências Sociais, standard, tudo, mas tudo isso eu uso: tudo, tudo, tudo. Não tem um tracinho de coisa que eu não utilizo no meu trabalho profissional com moda, hoje. E trabalho de ‘olhos fechados’ com moda. Faço coleção. Fiz técnico. Eu tinha esquecido de contar isso. Eu fiz técnico de vestuário no Senai, enquanto eu fazia o doutorado. Eu não gosto de fazer uma coisa só, então quando estou fazendo mestrado, eu faço especialização de Museologia e quando eu estou fazendo o doutorado, eu fiz o técnico no Senai; e aí eu sei costurar, sei modelar. Não faço mais isso, mas sei fazer muito bem, sei analisar também e avaliar se está bem-feito, se não está bem-feito, [se] o caimento está ruim, melhora a qualidade. (risos) Esse tipo de coisa também eu faço.
(01:47:03) P1 – E vocês pensam no e para o hemisfério sul?
R1 – Sim. É no e para. Isso, inclusive, é grifado “no e para o hemisfério sul”. A gente tem pesquisador no Brasil e em todo hemisfério sul, África Subsaariana e Oceania. Então, a gente consegue mapear. Geralmente são brasileiros que estão morando nesses outros lugares e são pesquisadores com mestrado, no mínimo, mas normalmente mestrado e doutorado e que estão nesses lugares por ‘N’ motivos e atuam no lugar, então é legal, porque têm essa sensibilidade, tanto pro local, quanto pro Brasil. Então, uma empresa brasileira que quer entrar na Austrália, por exemplo, a pesquisadora na Austrália é ótima, porque ela consegue dar conta desses dois ‘universos’. Ela mora lá, é casada com australiano, já viveu no norte do país, hoje ela vive no sul, então ela conhece o país como um todo que, como o Brasil, é um país muito grande. Apesar de ser meio vazio demográfico, mas quem mora no norte tem uma cultura muito diferente de quem mora no sul, então ela consegue mostrar isso, trazer isso e falar onde que seu produto vai se encaixar melhor no país, por exemplo, ou quais as adaptações que você precisa fazer pra que isso dê certo, a sua marca dê certo lá. Os australianos gostam de marcas brasileiras, por exemplo.
(01:48:29) P1 – Isso virou um valor pra vocês?
R1 – Sim, pra gente é.
(01:48:32) P1 – Por quê?
R1 - Porque pra gente é muito gratificante a gente poder utilizar esse conhecimento pra fazer as empresas crescerem e verem que não é loucura, sabe? Que eles não são... empresas brasileiras têm algo que é traço do brasileiro médio, que é ‘síndrome de vira-lata’, sempre achar que é inferior, que é pior e a gente faz muitos produtos com altíssimo gabarito e a gente acha que não. Eu dou um exemplo que é do audiovisual, que eu acho bem legal: chegou no Brasil, nos anos oitenta, uns vídeos de garotos que andavam de skate na Califórnia. É óbvio que isso é editado. É óbvio que você vai colocar só as melhores cenas, com as melhores... e aí os meninos no Brasil achavam que era daquele jeito que se andava de skate. Então, eles começaram a... aí o Brasil virou super de skate, muito por conta disso, porque quando eles foram ver, falaram assim: “Nossa, mas esses garotos andam assim mesmo?”. (risos) Falou assim: “Andam, porque eles pegaram como referência uma coisa que já estava editada, literalmente, (risos) como parâmetro” e aí levou o parâmetro do skate mundial pra outro nível. E era brasileiro. Aí você fala assim: “Nossa, mas é porque brasileiro tem mania de achar que não consegue fazer, que não vai fazer direito ou que faz pouco, que poderia...”. Não, sai desse lugar, porque o nosso quintal é gigantesco, é muito bom, muito florido, muito fértil, muito abundante e a gente não percebe muitas vezes. A gente fica o tempo inteiro se comparando a coisas que primeiro se compara de maneira equivocada, porque são outras culturas, com outros pressupostos e segundo porque se coloca num lugar: “Como assim? Você está fazendo melhor”. Então, eu vejo, às vezes, comprar calçado, falo: “Gente, esse calçado veio do Brasil. Você está comprando fora, mas ele foi feito aqui. Nós somos os melhores em calçados no mundo. A gente exporta pro mundo inteiro, tênis. Não é só calçado, sapato em couro, é tênis. Muita coisa que a gente compra, às vezes, vem daqui mesmo e compra fora, pra depois vir pra cá de novo”. Então, esse tipo de falta de visão, de conhecer, no caso da moda, a gente, o Brasil, produz no Brasil inteiro, literalmente. Tirando a região norte, que é um pouco menos industrializada em relação a moda, a gente tem APL, que são polos, Arranjos Produtivos Locais, no país inteiro, que produz vestuário, têxtil; calçados, couro calçadista; joias, folhados de bijuterias e cosméticos. Então, a gente tem tudo pra construir [a] aparência da pessoa em escala industrial, de ponta a ponta, no país. Isso não existe paralelo. Nem Estados Unidos consegue ter tanta (risos) produção interna quanto o Brasil e com tanta excelência quanto no Brasil. Então, não tem porquê a gente... aí a gente tem a ‘faca e o queijo na mão’. Você precisa ter técnica pra ser criativo, voltando a sua questão da criatividade. O Brasil tem técnica. O que basta pra ser criativo? Coragem. A gente é meio ‘bunda mole’, não tem muita coragem, não. A gente fica com medo, às vezes, e é uma tristeza. Isso que o Gustavo Narciso faz, do Instituto C&A, trazendo marcas indígenas, de pessoas pretas, de pessoas Lgbtqia+, trazendo novas propostas, de certa maneira, é tipo: “ ‘Galera’, vamos aí, para de ficar copiando”. Tem uma grande amiga minha, que foi, durante muito tempo, editora de moda de revista, trabalhou em Milão e tudo o mais e conseguiu tentar fazer uma entrevista com uma grande editora de Milão e ela falou: “Por que você não cobre o Brasil?”, “O que você vai fazer? Só cópia. Eu não vou atravessar o Atlântico inteiro” – que pra um europeu é uma distância. Pra gente não, mas pra eles é uma distância imensurável – “pra chegar do outro lado do mundo e ver um monte de cópia”. E ela tem razão, porque a gente não ‘sai do armário’, a gente fica com medo de ser quem a gente é. E a gente é muito criativo, muito bom. A gente faz peças incríveis, tecidos fabulosos. A gente faz um design de superfície que é do sul ao nordeste, ao norte do país, passando pelo centro-oeste, com muita qualidade, com muita criatividade e a gente fica se escondendo, com medo de sair pro mundo e não fazer aquilo que Paris fez, que Nova Iorque fez, que Milão fez e é uma bobagem, porque eles são um mercado pequeno. Inclusive isso: nosso mercado interno é muito maior. Por que ficar ‘pagando pau’ pra pessoa errada? (risos) É meio isso que a gente faz em moda, principalmente. A hora que o Brasil parar de querer fazer inverno e assumir que a gente é um lugar tropical, de verão, ninguém segura, essa que é a verdade. Fazer uma Semana de Moda de alto verão. É isso que a gente sabe fazer. Eu lembro até hoje, quando eu estava, uma vez, em Portugal, meu marido é português e aí uma menina passou assim - aconteceu duas vezes: em Portugal e em Santiago, no Chile – de shortinho, com uma camisa, biquini e chinelo, numa elegância, eu falei: “É brasileira”. Aí não deu outra: a menina virou pra falar, eu falei: “Está vendo? É brasileira”. E a mesma coisa uma asiática em Santiago: a menina passou assim e do jeito que ela passou, ela pegou na mão do namorado, saiu andando, eu falei: “Ela não é asiática da Ásia, ela é só uma descendente de asiático, mas ela é brasileira”. Não deu outra. Ela também estava de shortinho, camisetinha, toda sexy, bonita, ‘curtindo’ o verão e aí, quando ela virou e começou a falar, eu falei: “Está vendo? Brasileira”. Então, a gente tem uma elegância. Quando chega o verão, quando dá aula no curso de moda, os alunos vão ficando mais elegantes e eles não percebem, eles acham que não, que elegante é inverno, porque é chique inverno, colocar blazer, sobretudo. Chique pra quem, ‘cara pálida’? A gente passa um mês no inverno, pra onze [meses] de calor. (risos) Pra quem? É uma bobagem a gente virar as costas e não gostar: “Ai, não gosto de calor!”. Eu sempre fico pensando assim: “Por que será que a pessoa não gosta de calor? Ela mora no Brasil”. A coisa mais gostosa [é] você sair sem se preocupar e se chover, vai secar, porque é quente. Você não precisa se preocupar. Vai passar frio de doer o osso, pra você ver se é legal. Não é legal, não. Aquela chuva de raspadinha que dá em Paris, isso não é legal, não. Não sei de onde as pessoas acham: “É chique”. Não é chique, não, gente. Desculpa, mas não consigo concordar. Chique, pra mim, é você estar à vontade. E a gente fica à vontade no verão. A gente é muito elegante no verão. A gente consegue fazer muita coisa com muito pouco tecido. (risos) Coisinha pequena. Se você pensar no nosso beach wear, como é rico, como é bonito, como é bem-feito, como é bem-acabado, sabe? Você coloca no corpo de uma mulher gorda, de uma mulher pequena, magra, numa petit, numa alta e não tem nada repuxando. E é biquini barato, que ela comprou ali no Bom Retiro. Tudo bonito, bem caído. Aí você vai na ‘gringa’, a mulher está num ‘puta’ resort, você olha, maiô, fala: “Nossa, que coisa horrível!”. Tudo empapado, de qualquer jeito, tudo torto, num tecido que você fala: “Meu Deus, que coisa mais vagabunda do universo!”. E as pessoas compram. Por quê? Porque não conhecem, que quando conhecem nunca mais vai comprar outra coisa que não seja biquini, maiô brasileiro, fitness brasileiro, ou então tênis. Boa parte desses tênis que vocês estão usando são tênis que são criados aqui. É vendido lá, mas é criado aqui. É elaborado aqui, inclusive, mas é a coisa do ‘vira-lata’. Então, a gente tem que sair desse lugar de ‘vira-lata’, principalmente na moda. Parar de achar que vai fazer invernos incríveis e fazer uns verões poderosos, porque a gente sabe fazer isso com facilidade. Olha a Lenny Niemeyer aí! É incrível o que ela faz! Você está fora do país, você olha e fala: “Nossa, que mulher mais chique!”, está usando Lenny. Aí você olha, vai buscar no Google: Lenny Niemeyer. Por isso que ela está chique desse jeito. Quem está chique na praia? Gente, é só a gente que é chique na praia. Não tem lugar que as pessoas são chiques na praia. É só no Brasil que as pessoas conseguem ser chiques na praia. Isso é muito legal. E a gente não tem orgulho, nem fala disso. Então, a gente tem que largar um pouco esse ‘vira-lata’ aí, deixar de ser ‘vira-lata’, porque a gente não é ‘vira-lata’, não. A gente é mestiço, é diferente. (risos) É outra coisa. A gente é uma terceira, quarta coisa, não precisa se definir pelo que veio antes. Acho que é meio isso.
(01:58:27) P1 – Quais são as suas atuações, hoje? Que outros trabalhos.
R1 – Eu hoje coordeno as pesquisas, é a principal coisa que eu faço, tanto de tendência, quanto de comportamento do consumidor, quanto de teste de produto. Estou passando num momento da empresa agora onde eu estou passando a coordenação pra outras pessoas, então estou coordenando os coordenadores, que a empresa está entrando num terceiro momento dela, de crescimento. Esses coordenadores são locais, então é cada um numa região do país, inclusive e eu os coordeno agora. Então, eu estou nesse momento de restabelecimento, inclusive, de formato, de modelagem de negócios da própria empresa. E também ajudo... sou sócia, na verdade, na empresa do meu marido, que é de perícia e gestão de artes. A gente ajuda as pessoas a organizarem suas coleções. Basicamente é isso que a gente faz.
(01:59:30) P1 – Coleções de...
R1 – ...arte.
(01:59:35) P1 – E você dá aula, atualmente?
R1 – Atualmente eu dou aula na Santa Marcelina, de Cultura de Moda e de Negócios de Moda também, introdução a Negócios de Moda, mas na pós-graduação. Não dou mais aula na graduação.
(01:59:51) P1 - Pensando um pouco, desde o momento que você começou a trabalhar com moda e fazendo pesquisas, ainda alguns anos atrás, até hoje, o que você percebeu de grandes transformações nessa área?
(02:00:07) R1- Na área de moda? Acho que a moda se profissionalizou, a gente passou por um momento onde a gente teve faculdade de moda demais para o mercado que a gente tinha. Eu acho que tem hoje um momento que a gente está passando meio que de conscientização, tipo onde a gente está formando pessoas para trabalhar em que, em moda, efetivamente? Porque tem lugar que tem toda a cadeia, então você forma alguém que dá conta de trabalhar na indústria e tudo o mais. Tem lugar que não, que é mais varejo, mais lojas, basicamente, lugar que é atacado. Então, ter isso bem direcionado eu acho que principalmente os institutos federais fizeram isso no país, eles são muito direcionados para a produção local. Então, ter um instituto federal em Apucarana que ensina moda, mas que ensina sobretudo a fazer boné, sendo que eles são o maior produtor de boné do mundo, aí tem máquinas específicas para isso e tudo mais, você fala assim: “Nossa, mas não é muito especialista, não é muito exagerado?”. Não se você pensar que essa é a realidade deles. Então eles têm a formação em moda, mas dentro dessa formação em moda eles têm um dado de foco nessa parte de bonés, porque é o que a grande maioria dos alunos vão sair dali e vão trabalhar efetivamente. Quem continuar em Apucarana vai estar trabalhando efetivamente dessa maneira. E os outros institutos federais fazem a mesma coisa. Eu acho isso muito inteligente para um país como o Brasil, onde a gente precisa sim de bacharéis, mas a gente também precisa de técnicos e tecnólogos para executar com excelência os trabalhos que precisam ser feitos nas fábricas, nas indústrias, nos processos manufatureiros que a gente tem.
(02:01:50) P1 – Uhum. E o que que você sonha para o futuro dessa área?
R1- Da moda? Eu sonho a gente conseguir parar de ficar tentando imitar tanto o mundo de fora. Com essa facilidade de viajar, que é cada vez maior, então eu acho que também tem uma coisa de, tipo assim: “Olha, se alguém quiser ser dessa maneira, ela vai lá e compra”. É acessível hoje e fácil, você não precisa nem sair da sua casa para você comprar alguma coisa fora do país, a Amazon entrega, (risos) Mercado Livre entrega. Então, não tem porque você fazer todo esse processo de tentar imitar, acho que isso é uma perda de tempo, às vezes, enquanto você poderia estar desenvolvendo linguagens próprias de marcas aqui no país. Então, o meu sonho é o Brasil parar de ter essa ‘síndrome de vira-lata’ não só em moda, em moda sobretudo, mas em toda a área criativa. É você pensar: “Vamos fazer cinema, esse filme e a gente não precisa imitar ninguém ou não precisa estar fazendo Globo, imitando linguagens que são linguagens mais comuns no país”. A gente está fazendo designer de interiores: a gente não precisa imitar aquilo, sabe? Tudo tem que ser escandinavo, tudo tem que ser minimal. Minimal para quem, ‘cara pálida’? Eu sempre falo essa coisa do ‘cara pálida’ porque é o lugar que a gente tem que se colocar mesmo. A gente não é tão branco assim, por que você fica ‘pirando’ nessa de ser branco full? Às vezes você até pode ser branco, com a sua…. aqui em São Paulo tem essa fixação com a cidadania italiana, essa coisa que tem a sua cidadania italiana, não sei o que, mas você é italiano? Você fala italiano? Você fala italiano dentro de casa? É assim que você come? É assim que você respira? Quando você xinga, você xinga em que língua? Entendeu? (risos) Quando você sente, você sente em que língua? Quando a gente parar com essa coisa de deixar o estrangeirismo ditar para gente, talvez a gente consiga ser criativo plenamente, aí é que ‘mora’ a liberdade, não é no papel em branco. Na verdade, a gente se dá essa liberdade de conquistar essa liberdade.
(02:04:08) P1 - E seu marido?
R1 – (risos) O que tem o meu marido?
(02:04:11) P1 - Se você quiser comentar um pouco de como vocês se conheceram no MASP.
R1 - Não, a gente se conheceu na Mostra do Redescobrimento. Ele é formado em Artes, hoje é perito em artes, trabalha com perícia e com gestão de coleção, trabalhou muitos anos no MASP, isso ele trabalhou, fez graduação em Artes na FAAP, mestrado e doutorado, está fazendo doutorado agora na Unifesp, fez mestrado em História da Arte na Unicamp e a gente é apaixonado por arte, apaixonado um pelo outro, mas apaixonado por arte também, a gente viaja e a gente tem que, às vezes, falar assim: “A gente não vai em museu dessa vez, está bom?”. A gente tem que fazer umas viagens meio assim: “Vamos para a natureza”, senão a gente fica ‘enfurnado’ dentro de museu o tempo inteiro e a gente gosta muito disso assim. E o negócio dele é um negócio que não tem muita concorrência no Brasil, está prosperando bastante por conta disso e agora, por conta da ESG também, a parte de governança, nas empresas tem coleção de arte, às vezes não sabem o que fazer com a coleção de arte, ele vem e organiza, faz toda a catalogação, fala qual é o valor, que tipo de ativo que é aquele, porque é um ativo, obra de arte é valor também, no mercado, então ele diz quanto que vale aquilo, como aquilo pode ser acondicionado, como aquilo tem que ser guardado e tudo o mais e eu o ajudo nesse processo, por conta da Museologia, porque a gente fez Museologia junto e é um jeito de eu também estar trabalhando com arte, que eu gosto bastante. Então, eu estou sempre ali do lado, ajudando. Agora ele está fazendo uma pesquisa na bienal, (risos) diferente, para um cliente nosso, então é algo que essa parte a gente tem muitas coisas em comum e eu não consigo me ver nessa coisa de ‘papo’ de os extremos se atraem. Putz, eu acho a maior ‘furada’ do universo. O gostoso é ter um parceiro pra fazer um monte de coisa junto, legal. Não condeno quem vai para o outro caminho, mas pra mim não, tem que ser alguém que goste das mesmas coisas, que fica muito ao seu lado, fazendo as coisas. Então, a gente trabalha o dia inteiro junto, em casa, então a gente precisa ter muitas afinidades, porque senão poderia ser insuportável estar junto. Covid, por exemplo, para a gente, foi tranquilíssimo. Só não foi tranquilo porque a gente perdeu pessoas muito amadas por conta da doença, mas enquanto ficar em casa o tempo inteiro, para a gente não foi nem um pouco problemático, porque essa já era a nossa vida mesmo. Então a gente só ficou dois anos e meio sem viajar, (risos) ficou dentro de casa nesse sentido, mas fora isso, tudo ok. Foi bem… é gostoso trabalhar com ele, é fácil trabalhar com ele, ele é uma pessoa fácil também. Librianos são pessoas fáceis de lidar, são agradáveis.
(02:07:10) P1 - E vocês chegaram a se casar, festa?
R1 – Sim. Não, a gente morou três anos juntos primeiro, primeiro a gente morou junto. A gente morou três anos, a gente foi morar junto muito rápido, assim. A gente se conheceu, aí a gente já ficou junto, aí a gente já começou a namorar, muito sem frescura e eu lembro que na época eu pensava: “Nossa, como esses paulistanos são frescos!”. Era a única coisa que eu pensava dos paulistanos. E ele foi o simétrico oposto assim, então eu falei: “Ai, que bom, um sem frescura”. Então, aí a gente acabou ficando junto, se apaixonou e tudo mais. Aí fomos morar junto muito rápido, em questão de alguns meses, a gente já se deu super bem assim e aí moramos três anos. Um dia a gente estava no churrasco, assim, e antes eu tinha falado: “Olha...”. A gente estava vendo uma bolsa para morar fora do país, para mim, inclusive, aí eu falei assim: “Só que a gente tem que oficializar, para eu ganhar, para a gente ganhar o adendo da bolsa, para poder te levar, que aí fica mais tranquilo”. Aí ele falou: “Ah, então está bom, vamos então oficializar, legal”. E aí a gente estava em churrasco na casa dos meus pais, ele pegou, ele estava todo bêbado e feliz, aí ele virou e falou assim: “Um dia eu vou ‘pedir a mão’ da Patrícia em casamento”. Aí eu olhei assim, falei: “Que ‘mané’ ‘pedir a mão’ em casamento! Está louco?”. Aí ele foi lá e ‘pediu a mão’. A minha mãe: “Eu sabia que ele ia fazer isso, porque ele é um garoto bom, não sei o quê”. Eu fiquei olhando e falei assim: “Que loucura! Eu já moro com o ‘cara’ há três anos! O que está acontecendo?”. E aí ‘rolou’ toda essa bagunça. A gente já usava aliança, inclusive. Eu lembro da minha mãe falando para ele: “Vai falar com o padre hoje”. Eu falei: “Tá bom, mãe, vamos lá falar com o padre”, “Troca a aliança de dedo”. Eu falei: “Por quê?”. Ela falou assim: “O padre não sabe que vocês já moram juntos, pode trocar a aliança de dedo”. Aí a gente troca e fica aquela marcona de aliança, que a gente já usava há anos. Aí a gente foi, fez lá, casou na igreja, teve festão para a família e tudo mais, aquela coisa bem tradicional, que eu nunca imaginei, que eu não me imaginava casando, nunca tive isso como projeto (risos) de vida. Nem casar, nem ter filho, mas acabei casando. Não tive filho, pelo menos. (risos) Uma coisa eu consegui manter, do meu projeto original. (risos)
(02:09:43) P1 - E seus sonhos futuros?
R1 - Eu acho que não sou de fazer muitas coisas assim, para frente, eu tenho algumas metas, alguns objetivos: morar em alguns lugares, por exemplo, a gente tem isso, a gente muda com muita facilidade, eu e o Elder, então a gente vai passar um tempo no Rio de Janeiro, depois passar um tempo em Montreal, passar um tempo no interior da Itália, a gente já está com esses projetos assim, mas para a gente é projeto mesmo, a gente não vê muito como um sonho, não. Eu acho sonho uma coisa meio… assim: sonho nesse sentido de falar: “Ah, o meu sonho é…”. Durante muito tempo eu fui assim e eu não realizava nada. (risos) Quando eu aprendi que você coloca no papel aquilo e faz projeto e põe os passos, que você executa aquilo e aquilo se realiza, eu falei: “Nossa, que perda de tempo ficar nesses sonhos! A gente podia muito mais fazer muito mais metas e muito mais coisas realizadas”. Então, hoje eu vivo muito o hoje, aprendi principalmente com a covid. Eu não peguei, inclusive, sou uma das raras pessoas que não pegou o covid. Eu não peguei, mas a minha mãe faleceu de covid, o meu pai pegou covid e tem sequelas pesadíssimas até hoje por conta disso; e foi por isso que eu fui morar no Vale de novo, inclusive, [no Vale] do Paraíba. Mas assim: para mim é muito importante viver o hoje plenamente, bem. Então, é o hoje, o amanhã e depois, mas muito mais para a frente, eu não gosto de ficar muito… acho que só causa ansiedade, essa geração ansiosa acho que é muito por conta disso, eles ficam muito na função de um futuro que eles nem sabem se eles vão viver. Então, não. Pensar no futuro é uma coisa boa, é uma coisa saudável, mas você fazer a sua vida em função do futuro eu acho bastante problemático. Eu gosto de estar muito presente onde eu estou mesmo, o que eu estou fazendo, porque se uma coisa não dá certo, não tem problema também. Eu ia morar não sei onde, não deu certo, tudo bem também, não foi, apareceu outra coisa, a gente coloca outra e vamos lá. Então, eu gosto mais de deixar as coisas acontecerem, assim. Tem algumas metas e tudo mais, mas não é nada que não possa ser mudado. Não tenho muito isso assim. Acho que eu já vivo uma vida muito boa, isso para mim já é uma grande realização. Eu fiz o curso que eu queria, descobri as coisas que eu queria, vivo do jeito que eu quero. Cada dia que eu vivo é exatamente do jeito que eu quero, sou bastante realizada. (risos) Eu acho que muitos dos meus amigos ainda não chegaram nisso e eu já vivo bem, assim, então eu acho que isso, para mim, já é um sonho (risos) bastante realizado, então tudo que vem a mais é mais do que lucro.
(02:12:55) P1 - Você não pegou covid, mas pessoas próximas...
R1 – Sim, a minha mãe pegou e faleceu. Meu pai pegou.
(02:13:00) P1 - Como o covid impactou a sua vida?
R1 - Impactou muito nessa coisa de não ter contato com as pessoas. Eu tinha sorte de ter contato com o Elder o tempo inteiro do meu lado, mas a mãe dele ficou isolada sozinha, por exemplo, então eu nem imagino o que deve ter sido isso. Ela morreu em 2022, ainda isolada. Não morreu de covid, morreu de outra coisa, na verdade de uma depressão muito ‘pesada’, que ela acabou desenvolvendo e sabendo esconder muito bem, que isso acontece, as pessoas imaginam que depressão você coloca no outdoor. Não, geralmente as pessoas com depressão, se você não prestar muita atenção, você nem repara que elas estão com e foi o que aconteceu com a mãe dele. Mas assim: a gente tem muitas pessoas que a gente perdeu de covid, ou em decorrência de. Acho que não tem, no mundo, quem não perdeu alguém para a covid. Então, eu, no meu caso, perdi a minha mãe, que era uma pessoa muito da vida, uma pessoa que tinha os olhos que brilhavam, como se ela tivesse quinze anos de idade. Tipo, para ela, o mundo ainda estava pra vir, tem que fazer coisas ainda, sabe? Meu pai também pegou e desenvolveu demência depois que ele saiu da covid. Então, acelerou o processo. Ele já estava no início, mas acelerou muito o processo. E a gente tem que tomar bastante conta dele, por conta justamente dessa demência e da falta da minha mãe na vida dele, que são sessenta anos casados e felizes, então, um ‘buraco’ gigantesco que existe na vida dele, ele sente muito a falta dela, fala dela todos os dias, pergunta dela todos os dias, sabe que ela faleceu e na cabeça dele ela morreu já há dez anos. Então, a demência já fez ele perder a… esse é o tamanho do ‘buraco’, os dez anos, na verdade, mas a gente… eu reaprendi a trabalhar, o trabalho era muito em função de executar os projetos e eu passei a ganhar mais dinheiro, porque eu mudei a maneira de trabalhar, inclusive essa maneira de trabalhar foi muito em relação a com quem eu trabalho, tanto os meus parceiros, os meus pesquisadores, as pessoas que estão comigo, quanto para os clientes. Eu comecei a falar não para alguns clientes durante a pandemia, falar assim: “Ah, não, você é ‘louco’ demais, você dá muito trabalho, eu não vou ficar com você, não. Esse dinheiro seu está me levando para o hospital, não vale a pena assim”, sabe? E isso deu muito certo, por incrível que isso possa parecer, isso reverteu em muito mais dinheiro, porque foram aparecendo outros clientes muito melhores, muito mais bacanas e que entendiam melhor o que a gente fazia e o que a gente estava fazendo para eles inclusive e eu fui tomando mais consciência também do próprio negócio. Então, eu acho que isso ajudou bastante a melhorar e aí qualificando a empresa assim, muito. Acho que a pandemia, pra quem tem negócio, foi muito uma coisa assim, do tipo: ou vai ou racha. A gente teve que se reinventar, teve que entender qual era o nosso lugar no mundo, naquele momento, o que a sua empresa está fazendo aqui, ela é só mais uma que faz igual os outros? Será que vai sobreviver? E aí eu vi que a Tenere não era esse lugar qualquer, sabe? Que todos os clientes ou 99% dos clientes, pelo menos, se sentiam muito seguros, muito acolhidos, se sentiam bem com a gente e a gente tem clientes que são muito antigos, que estão há muitos anos com a gente. Na dúvida, é informação, vem com a gente para pegar informação, tipo: “Faz uma pesquisa pra mim sobre isso e isso”. E não importa o tamanho da pesquisa também, a gente dá o mesmo ‘gás’ se a empresa é pequena, se a empresa é grande. A qualidade do que a gente entrega é sempre muito... mas a gente tem que dar certo com o cliente também, a gente já descobriu. (risos) Tem cliente que... o processo de respeito é o principal elemento, sabe? Eu acho que as pessoas falam assim: “Dinheiro não paga tudo”. Não, não paga tudo realmente. Acho que a única coisa que o dinheiro não paga, de verdade, é dignidade, isso você tem que salvaguardar em todos os seus negócios. Se a dignidade está sendo abalada, você tem que entrar aí e trabalhar em cima, senão não tem jeito. A gente tem que realmente tomar conta da gente nesse processo e eu acho que a covid fez isso, deu um chacoalhão em todas as empresas para quais eu trabalhava, elas mudaram também a maneira de trabalhar, todo mundo mudou, todo mundo teve que reaprender de novo e saiu de outra maneira, do outro lado do portal desses dois anos e meio aí, todo mundo fez terapia e saiu de outro jeito (risos) do outro lado. E eu acho que a gente saiu muito melhor. A empresa é muito melhor hoje, ela saiu muito afiada, muito qualificada, a gente ficou muito bem no mercado mesmo, com esses dois anos e meio. Para a gente a covid não foi problema enquanto negócio, mas enquanto pessoal sem dúvida abalou bastante, assim. Eu tive que lidar com lutos muito grandes, tanto da minha sogra, quanto da minha mãe e do meu pai, porque a demência acaba sendo um luto que você vai vivendo aos poucos, porque você vai perdendo aquela pessoa ao vivo e a cores na sua frente, então isso é muito triste, todo dia um pedacinho dele vai embora e a gente tem que aprender a lidar com esse pedacinho que foi embora. Por isso que é um dia de cada vez. Aprendi ‘por A + B’ que é um dia de cada vez, cada dia a gente lida com um problema diferente e eu levei isso para a empresa e deu muito certo. Levei isso pra vida (risos) e a minha vida é mais leve por conta disso.
(02:19:10) P1 - Estamos encerrando e encaminhando para o fim, eu só queria te perguntar se você gostaria... você comentou do TDAH, você descobriu já adulta?
R1 - Bem mais velha.
(02:19:20) P1 - Eu não sei se é interessante falar.
R1 - Eu acho que não porque, na verdade, assim: não porque eu acho que eu ainda estou descobrindo como lidar com isso. A única coisa que eu posso falar é que deu um alívio ter o diagnóstico, é uma coisa muito boa, que você dá, fala assim: “Ah, então eu não sou burra, eu só penso de uma maneira diferente, meu cérebro funciona de uma maneira diferente”. E para fazer as mesmas coisas que as outras pessoas fazem, às vezes eu tenho que dar uma volta maior, enquanto que, às vezes, para aquelas pessoas é só fazer isso daqui e pra mim, às vezes, é isso daqui. Agora tem coisas que as pessoas precisam, todo mundo faz essa volta e eu não preciso fazer, faço rapidinho e isso é ‘muito louco’, que aí eu falo: “É aí que mora a minha vantagem em relação ao resto do mundo”, porque eu tenho vantagens também, você só vê como um problema se você acha que a tal da normalidade é o que reina e, na verdade, todo mundo tem algum tipo de desvio, seja pessoal, psicológico, psiquiátrico, doença crônica, aguda, problemas mil, que cada um vai ter no seu histórico de vida, cada um vai ter um tipo de problema diferente. Eu tive a sorte de vir de uma família que, independente da maneira como eu fosse, estavam sempre me apoiando, estavam sempre achando legal. Era um motivo de piada, porque o meu pai também é muito esquecido (risos) e então falava assim: “Ai, tal pai, tal filha”. Provavelmente meu pai tem TDAH, (risos) mas só que nunca diagnosticado e falam assim: “Tal pai, tal filha, esquecida para caramba”. Não adianta, eu nunca decorei telefone, até hoje eu pergunto qual é o dia de nascimento do meu marido, eu não sei o dia que ele nasceu, só sei que é 1966 o ano de nascimento, mas eu não sei a data exata, assim. É em outubro, que é libriano, mas para por aí. Eu tenho essa dificuldade. Antes eu achava isso horrível, eu me achava muito burra, muito abaixo e hoje não, hoje eu já percebi que é só um jeito diferente. Eu consigo ser uma historiadora, porque eu entendo os processos. Então, se eu entendo não tem problema, nunca mais vou esquecer. O meu problema com o esquecimento são coisas muito pontuais, assim, e [faz eu] me sentir pressionada, aí eu não consigo. Então, as pessoas falam que quem tem esse transtorno mal consegue terminar [o] colégio; isso é uma lenda. A única coisa é que você tem que dar liberdade pra pessoa conseguir criar seus próprios sistemas. Eu tenho vários sistemas, você vai criando sistemas para poder ir sobrevivendo e ir superando as dificuldades que você tem, mas que você consegue, você consegue. Você cria sistema até para a tabuada, (risos) que isso é um inferno na vida de uma pessoa, (risos) um transtorno. Tinha que decorar a tabuada. Hoje em dia eu nem sei mais se decora, mas na minha época tinha que decorar, então era terrível assim decorar data, nossa, era horrível e não é, é só você entender o processo e se sentir apaixonado pelo que você está estudando, aí você vai.
(02:22:51) P1 - E o que você gostaria de deixar como legado, para as próximas gerações?
R1 - Que elas tivessem coragem, só isso. Eu fiz tudo que eu fiz, porque não que eu não escutei quem me deu... porque eu sempre escutei muito as pessoas, mas eu selecionava quem eu estava escutando e porque eu estava escutando aquelas pessoas. Eu acho que isso é um exercício de escuta que as pessoas, às vezes, não fazem. Elas acham que exercício de escuta é, às vezes, escutar qualquer coisa. É óbvio que minha mãe sempre gostou muito de mim, que ela queria o meu melhor, mas ela pedia ‘por A + B’ pra eu largar a faculdade e voltar pra casa dela, porque ela não queria que eu fizesse faculdade fora. Eu era menina, mais nova e saí de casa. E eu falei: “Não, mas eu não quero. Será que vale a pena eu escutar minha mãe, nesse momento? Não, não vale a pena”. Pô, passei na Unicamp! Naquela época era uma coisa muito difícil, ainda é, mas pra mim era uma coisa fora do normal ter passado na Unicamp, então eu falei assim: “Não, vou fazer. (risos) Não vou largar, não”. Então, acho que isso é coragem. São pequenas decisões do seu dia-a-dia que requer você falar: “Olha, agora eu assumi que eu vou fazer isso”. Então, se é pra alguma coisa pras pessoas lembrarem de mim, é tipo assim: “Não tenha medo de ser corajoso, arriscar, se ouvir”. Bem brega: “Escutar seu coração”. Não é bem ‘escutar seu coração’, é muito mais você tentar assim: “O que é bom pra mim? O que eu tenho vontade de fazer? O que eu quero ser, na minha vida?”. Porque isso muda, realmente, mas se você não fizer essas decisões ao longo do percurso, você não vai chegar no lugar que você quer. Eu cheguei. Então, estou muito feliz. Tem mais coisa pra chegar por aí, ainda. (risos) Mas eu acho que coragem é a coisa mais importante.
(02:24:41) P1 – Você gostaria de contar alguma coisa que eu não tenha perguntado? Alguma história, algum momento, alguma...
R1 – Não. Eu acho que não, porque está todo mundo cansado, já, de eu falar, inclusive. (risos) Não, não, não, imagina! Não, eu acho que não, acho que a gente falou bastante coisa, acho que deu pra deixar alguma coisinha aí.
(02:25:05) P1 – E como foi você passar nesse ‘túnel do tempo’ e revisitar algumas histórias e dividir com a gente?
R1 – É quase terapêutico ficar falando, falando, falando, porque você fica reelaborando, né? A memória muda, também. Como boa historiadora, não tem como, sempre a gente está reelaborando e modificando a própria história, então coisas que normalmente eu conto com muito detalhe, hoje eu percebi que eu não contei e outras coisas, que eu raramente conto. Hoje eu contei, então daqui um ano [se] eu sentar aqui pra contar a história, vai ser outra. (risos) A gente rearranja de outra maneira. A memória é uma coisa plástica e é isso que é o bonito da memória. Inclusive, ela poder ser reavaliada, contada. Isso é que é bacana. Então, um museu como esse trabalha bastante com essa plasticidade. Eu acho legal, sim. Foi um exercício bacana.
(02:26:00) P1 – Que bom!
R1 – Cansativo, mas bacana. Eu vou agora encontrar com um cliente. (risos) Vou exausta pro cliente, mas estou exausta e feliz. Isso, sem dúvida.
(02:26:13) P1 – Querida, obrigada! Que gostoso te ouvir, com o olho brilhando, encantada. Muito gostoso.
R1 – (risos) Imagina! A gente tem que fazer as coisas com tesão, pelo amor de Deus! Bastou. Depois de covid, a gente não pode mais fazer as coisas de qualquer jeito.
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