Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Sergio Gomes da Silva
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 29/08/19
PCSH_HV799
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Boa tarde, Sergio. Obrigado por ter aceitado nosso convite. ...Continuar leitura
Projeto Instituto Vladimir Herzog
Depoimento de Sergio Gomes da Silva
Entrevistado por Luiz Egypto e Luis Ludmer
São Paulo, 29/08/19
PCSH_HV799
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisado por Luiz Egypto
P/1 - Boa tarde, Sergio. Obrigado por ter aceitado nosso convite. Gostaria que você começasse dizendo o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Sergio Gomes da Silva, 15 de setembro de 1949, eu nasci no hospital que não existe mais, que era aquele Hospital Matarazzo, ali [região da avenida] Paulista, e fui para casa onde eu morava, que era na Alameda Cleveland, quase esquina com [rua] Helvétia, ali em frente à [estação da] Sorocabana, onde hoje é a Cracolândia.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - José Maria da Silva e Adelaide da Conceição Gomes Bidarra.
P/1 - Gomes?
R - Bidarra. É um sobrenome basco. Tudo que vocês encontrarem de impulsivo em mim vem daí.
P/1 - E o que fazia seu pai?
R - Meu pai era agricultor em Portugal, veio para cá com 23 anos de idade, no meio da Segunda Guerra Mundial, em 1942, 1943. Veio trabalhar, primeiro, ajudando a descarregar o próprio navio, depois trabalhando como entregador de gelo, aquelas pedras de gelo, porque os bares não tinham ainda geladeira; depois foi trabalhar em posto de gasolina, vigilante de estacionamento, foi cobrador de bonde, depois trabalhou como empregado num bar, depois veio para São Paulo, trabalhou, o patrão dele virou sócio, ele manteve um bar na Rua da Glória, do lado da delegacia de polícia, num terreno que não existe mais, que é onde passa ali a Radial Leste, então não é que a casa desapareceu, o terreno desapareceu. E ele trabalhou sete anos direto, sem folga, nem sábado nem domingo, nem férias nem nada, para juntar dinheiro e voltar para Portugal para se casar com a minha mãe. Aí casaram-se no dia 15 de dezembro de 1948 e nove meses depois eu nasci, portanto eu fui feito no furor da primeira noite. E aqui, depois, ele volta, trabalha ainda com bar, e resolve fazer parte de sociedade e ter um hotel. Então, basicamente, ele era uma pessoa do ramo da hotelaria, pequenos hotéis populares. Ele até ganhou uma medalha como mais longevo dos hoteleiros de São Paulo, esse Andrea Matarazzo lhe deu a medalha.
P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe é Adelaide da Conceição Gomes Bidarra, nascida na mesma região, que é a Beira Alta lá de Portugal, perto da Serra da Estrela, também filha de uma grande família, uma família numerosa que trabalhava no campo, que eram trabalhadores rurais sem-terra, aquelas terras são de famílias, tantos dos que trabalhavam quanto dos que eram proprietários. E trabalhou no campo com a ajuda da família, atividades domésticas, casou-se com meu pai, veio para cá e a vida dela foi ser rainha do lar. Ela ainda está viva, tem 97 anos.
P/1 - Você conheceu os seus avós?
R - Conheci os meus avós do lado paterno, Dona Maria José, que não tinha sobrenome, casada com o senhor Teodósio. Conheci a mãe da minha mãe, a minha avó materna. Com sete anos nós voltamos para Portugal, eu passei um ano lá, mas o meu avô materno, o Alexandre, eu não conheci. Com seis para sete anos nós fomos para Portugal, passamos um ano e eu me alfabetizei lá. Era uma coisa que... o tal do ano sabático: trabalhar sem parar e depois tirar um ano para não fazer nada.
P/1 - E os seus pais contavam histórias dos avós, você sabe da origem deles, o que faziam?
R - Sim e não. São coisas muito vagas, uma parte era de analfabetos, então as coisas eram contadas de boca em boca, não tinha lá grandes histórias para contar a não ser aquela vida rame-rame de aldeão, de morar em aldeias, no caso nem eram aldeias, eles moravam numas quintas, afastadas da própria aldeia, num vale chamado Vale da Amezendinha, então a família da minha mãe ficava mais ao norte, a 3 ou 4 quilômetros. O Amezendinha era um rio, e Aldeia do Bispo. E a família do meu pai tinha nascido perto de Belmonte, onde nasceu [Pedro Álvares] Cabral, numa aldeia chamada Seixo Amarelo, que depois se deslocaram para Velas e tinha lá uma quinta, chamada Quinta da Teixeira. E esse vale era muito fértil desde sempre, até vieram lá os ingleses, meteram lá uma draga e fizeram a dragagem desse vale inteiro para retirar estanho, para as coisas da industrialização inglesa, que todos sabem. Portugal ficou submisso durante tanto tempo, fez um acordo de não se industrializar, essa [história] que todo mundo já sabe. Então essa draga vinha revolvendo, o que fez com que esse vale todo que era muito fértil deixasse de sê-lo. Na retirada do estanho não retiravam tudo, sobravam lá uns cascalhos, e os trabalhadores rurais mais jovens, como era o caso do meu pai, no fim de semana iam lá catar como se fossem catar latinha de alumínio, para juntar, para fazer dinheiro, para um dia vir para o Brasil. Então meu pai catou latinha, depois conseguiu o apoio lá de um agiota, que antecipou o dinheiro da passagem, e veio para cá. No caso da história do lado do meu pai, a história para em algum ponto, a ponto de que a minha avó não tinha nem sobrenome, isso era comum quando a pessoa era filha de alguém que não tinha se casado, não sei, gerado nos desvãos dos lupanares. No caso da minha mãe, um lado era Gomes e outro lado era Bidarra. E esses Bidarra vieram da região basca, que era um pessoal bem diferente da família do meu pai. Enquanto a família do meu pai era uma família de gente muito melancólica, pessimista, trabalhadores, mas nunca faziam festa. Meu pai dizia que não adiantava fazer festa por causa de uma vitória porque se deu certo é porque vai dar errado. As festas eram só de aniversário, Natal, essa coisa. Enquanto o lado da minha mãe não, o lado da minha mãe era um pessoal muito interessante. Eu me identifico, evidente, mais com o lado da minha mãe.
P/2 - Você tem irmãos?
R - Tenho um irmão, Fernando, que é um ano mais novo do que eu. Fez engenharia.
P/1 - Depois desse período em Portugal, voltaram para o Brasil? Você pode descrever o local onde vocês foram morar?
R - Sim. Primeiro tinha então a Alameda Cleveland, Barão de Piracicaba, era uma casa, onde depois foi construída a sede da Pirelli, onde é o teatro Porto Seguro hoje. Depois mudamos dali, ali era hospedaria, sei que era 1954 porque foi ali que eu soube da notícia do suicídio do Getúlio Vargas, pelo rádio. Depois mudamos para General Couto de Magalhães, no hotel chamado Hotel Monteneve, que existe até hoje, que já existia há muitos anos, então trabalhava-se e morava-se no mesmo lugar. Aí meu pai conseguiu comprar uma casinha, numa rua que ainda era de terra, aqui no Brooklin, na Rua Georgia, 444, uma casa muito parecida com aquelas casas de monções, que eram dois quartinhos, uma salinha, cozinha, banheiro e alpendre na frente, com desenho assim meio parecido com um coração. Então viemos para cá, depois não sei exatamente se a gente mudou ou se depois foi para Portugal. Ficamos lá um ano, entramos na escola lá novamente, eu me alfabetizei lá, o meu irmão teve que pagar uma multa porque ele ainda não tinha sete anos e o governo do Salazar admitia matrícula no curso primário de alguém tivesse menos sete, desde que pagasse uma multa. Pagava-se a multa, essas escolas rurais em que você tem gente primeiro, segundo, terceiro e quarto ano, tudo junto, foi experiência interessante. Depois viemos para cá, mas como não havia nenhum acordo entre Brasil e Portugal de equivalência, eu tive que fazer o primeiro ano de novo. Então aí eu e meu irmão fizemos o primeiro, segundo, terceiro e quarto ano primário juntos, nas Escolas Agrupadas da Vila Olímpia. É a escola que fica do lado da [universidade] Anhembi Morumbi.
P/1 - Como foi sair de um de um movimento, de uma região praticamente central da cidade, para ir morar num ermo, no Brooklin daquele tempo?
R - Ah, não era tão ermo. Aliás, você tinha várias casas, a maior parte de casas térreas, muito terreno baldio esperando ainda construção, e a minha rua, rua Georgia, tinha em frente uma família, Moretti Guedes, que eram 16 filhos, em frente morava o Mário, depois tinha uma outra casa, que era do José Flávio, do Dito, eram 10 filhos, cinco mulheres e cinco homens, tinha na esquina o Paulinho, ali o Sérgio, na travessa ali da [rua] Nova York tinha mais três irmãos, o Cícero, o Fábio e o Eduardo, eles eram gêmeos, tinha o Garutti e o irmão do Garutti, então nós tínhamos uma turma, turma da rua, jogar bola e tal. Com ajuda de um grandão, do Moretti Guedes, a gente construiu um campinho de futebol, ali do lado da minha casa. E era o nosso time, time da Georgia, então jogo entre nós e jogo contra o time das outras ruas, a Kansas, a Texas, a Nova York, Luisiania e tal. Vida de molecada na rua.
P/1 - Futebol era a principal diversão?
R - Era a principal diversão. No meu caso, a principal diversão era fazer os campinhos de futebol, quer dizer, eu nunca fui um bom jogador, eu era meio grosso. E isso acabou porque a gente usou esse campinho acho que um ano, um ano e pouco, mas aí construiu lá umas casas, e a gente teve que arrumar um outro terreno baldio, trabalhar, preparar o campo e tal. Aí mais um ano, um ano e pouco, construíram uma casa no lugar, fomos para o terceiro. Fizemos uns quatro campinhos. E eu fui me dar conta, muito recentemente, que uma parte da minha vida sempre foi isso: eu nunca disputei nada com ninguém, eu sempre fui para o campo, para terreno baldio, que ninguém dá nada por ele, e aí trabalhar e o meu prazer não era bem jogar, era ver jogar. Ver os outros jogarem. Tinha a escola, que a gente ia a pé, para Avenida Santo Amaro, Escolas Agrupadas da Vila Olímpia.
P/1 - Algum professor ou professora que tenha te marcado nesse momento?
R - Sim, sim. Sobretudo pelo negativo. Tinha uma professora chamada Neide, que ela tinha "os peixinhos da Neide". A Neide fez questão de ter a mesma turma primeiro, segundo, terceiro e quarto ano, enquanto que os outros tinham a dona Joana, foi do primeiro ano, a Dona Miriam foi do outro etc. E à altura do terceiro ano, a nossa professora ficou grávida e então veio uma chamada professora substituta. E as professoras substitutas não tinham nenhuma autoridade sobre os alunos. Substituta era substituta mesmo. O fato era que nós fizemos uma bagunça, jogamos papel... O fato é que essa professora substituta da turma do terceiro ano ficou muito nervosa e foi pedir ajuda para professora do lado, que era a tal da Neide, e que a gente, a nossa classe, era toda assim porque a Neide só acompanhava os alunos dela. E essa Neide se mete a besta, vem, dá uma bronca na gente, suspende todo mundo, manda para a diretoria, pegamos três dias de suspensão por causa dessa bagunça. E o meu irmão e eu lideramos um movimento de rasgar o tal dos memorandos, que ninguém devia aceitar essa punição porra nenhuma, e que a gente queria assistir a aula no dia seguinte. E meu pai levava a gente de manhã, num Citröen, e lá na porta os pais, os outros e tal, "Mas o que é isso aqui?” “Não,, não deve ser nada não, pode seguir para a cidade". E conseguimos não ser suspenso. Mas essa classe era uma classe meio esquisita porque... não sou capaz agora de dar todos os detalhes, eu não lembro de todo mundo. O fato é que essa insubordinação levou a que o Cantídio Sampaio, que era secretário da Segurança Pública, e que morava ali perto, foi chamado pela diretora da escola, Dulce Borges Barreiro, para vir dar uma bronca na nossa classe. O secretário de Segurança dizendo que "vocês são insubordinados, subversivos”, o caralho. Porra, nós não sabíamos o que era tudo isso. Essa Dulce Borges Barreiro, diretora da escola, mulher perversa, chegou a ser vereadora pela Arena, apoiando a ditadura. E ela era dona de um cinema que ficava ali naquela rua Joaquim Floriano. Não tinha ali um cineminha, que depois fechou, que era um cineminha legal? Antes de cinema ser o que era, era de propriedade da família dessa diretora. E essa mulher um dia chega na sala de aula e na primeira carteira estava deitado dormindo o único negro da nossa classe, chamado de Sapinho, ele morava na favela ali, naqueles baixos ali na Vila Olímpia. Tinha muitas chacrinhas etc, e essa região era uma região de gente pobre, e muito pobre. Então ele era um favelado. Estudava lá e não sei por que ele estava dormindo. Essa diretora entra na sala, pede a todo mundo que faça silêncio e acorda esse menino com tapa na orelha. O único negro da classe. E eu fui tomado uma indignação tão grande que eu saí lá do fundão e vim para frente, eu chamava ela de filha da puta, dava soco, e sobretudo dava chute na perna dela. E, portanto, acabei sendo evidentemente suspenso de novo. Então eu e meu irmão, e a gente tinha lá uma turminha de escola. Eu não tinha dificuldades porque, para escrever, eu tirava sempre bem, porque como eu tinha sido alfabetizado em Portugal, eu descobri que bastava eu escrever com sotaque que saia a concordância verbal tudo direitinho, era só "escrever como se fosse". Inclusive as mesóclises e etc, que espantava, mas eu não contava o segredo, era só pensar com sotaque que saía um texto todo metido. E aí o meu irmão e eu, embora fossemos considerados bons alunos, a gente passava, tirava notas boas e tudo, mas a síndrome do que eles chamavam de "bicho carpinteiro". Ai meu pai e minha mãe foram chamados em setembro e comunicaram [a eles] que a gente não precisava mais ir, que a gente já tinha passado, que o diploma do primário [estava garantido e] não precisava ir nem setembro, outubro, novembro, dezembro. Estava liberado, que eles queriam ficar longe da gente, com a garantia de que a gente tinha passado. “Eles já passaram.” Porque havia uma coisa muito esquisita: os professores tinham os livros e diziam que a gente só podia ler um capítulo do livro para aquela aula, que estava proibido [ler o resto]. E nós, eu e meu irmão, chegávamos ao fim e acabava, evidente, enchendo o saco porque a gente sabia [o final]. É spoiler que chama, não é?
P/1 - Spoiler. O que esse garoto queria ser quando crescesse?
R - O Sapinho?
P/1 - Você.
R - Ali nessa época? Eu queria ser arquiteto. Porque meu pai um dia me levou, acho que foi São Caetano, para visitar um amigo que tinha uma loja de brinquedos e eu me interessei por uma ambulância. E esse cara me deu um livro de um engenheiro chamado José Trigo, e esse livro era uma espécie de um caderno com espiral, aqueles cadernos de desenho. Do lado direito você tinha o croqui, a fachada da casa, e do lado esquerdo você tinha a planta baixa com a relação de todo o material que era necessário comprar para fazer essa casa. Então tinha casas de vários tipos. E nessa época o meu pai resolveu fazer uma reforma nessa casinha que a gente tinha comprado e eu disse que eu era capaz de fazer o desenho. E fiz o desenho copiando dali, fiz a planta.
P/2 - Esse livro você ganhou da loja?
R - É, eu ganhei do dono da loja. Ele me deu e eu achei legal.
P/2 - E quantos anos você tinha nessa reforma da casa?
R - Eu devia ter uns 10 ou 11. Aí eu achei que legal era ser arquiteto, porque eu vi que eu gostava de fazer planta, de ficar fazendo essas contas de quantos tijolos precisava, desenhar a fachada, ver que tinha várias fachadas e tal. E satisfeito porque um dos meus projetos tinha se realizado. Não exatamente do jeito que eu queria, porque o meu pai meteu lá umas pedras brancas, umas pedras mineiras, não era do meu gosto, mas enfim, o fato é que houve a reforma da casa. É meio parecido com a casa onde eu moro hoje, embora anos depois tenha passado por uma outra reforma de ampliação, mas aí é uma outra história. Então era isso, eu queria ser arquiteto. Quando eu entro no Alberto Conte... então teve aqui o primário nas Escolas Agrupadas da Vila Olímpia, fiz o quinto ano no Meninópolis, que era um colégio particular de uma ordem religiosa de padres italianos, que era chamado de quinto ano, que era para se preparar para o exame de admissão, havia um vestibular para entrar na escola pública.
P/1 - Admissão ao ginásio?
R - É. E eu passei e o meu irmão não, meu irmão continuou no Meninópolis e eu fui para o Alberto Conte. E o Alberto Conte era uma escola muito interessante porque ela era, do ponto de vista arquitetônico, uma Escola Parque do Anísio Teixeira. Eram poucas salas, oito ou dez, tinha sala de cinema, tinha laboratório, sala de desenho, tinha piscina, quadra, tinha um belíssimo anfiteatro, era uma escola muito legal. E lá acabei ficando amigo da Rosinha Artigas, filha do [arquiteto João Batista] Vilanova Artigas, e também estudava lá o filho dele, o Júlio. Depois, a minha primeira namorada, quando eu estava na terceira série do ginásio, era a Neusa, que era melhor amiga da Rosinha, o que me fez frequentar a casa dos Artigas desde cedo. Eu tinha uma casa que não tinha livros, não havia nada disso, os únicos dois livros que tinha em casa, um deles era escondido embaixo do colchão do meu pai que, era o “Kama Sutra”, e o outro era um livro sobre alimentação saudável, vegetariana. Eram os dois livros que tinha em casa. Nem Bíblia tinha, era tipo de catolicismo que não estudava a Bíblia. Não tinha vitrola, não se ia a cinema, não se tirava férias, era só trabalhar e fazer de tudo para que as crianças pudessem ter escola nessa ideia de que os filhos venham a ter o que os pais não tiveram. E aí, na altura da primeira série do ginásio, 1963, no Alberto Conte, tinha um jornal, o jornal do grêmio, chamava-se “O-boré”, e quem estava à frente do “O-boré” é o que hoje é o presidente do conselho, do soviete supremo da fundação Anchieta, o Paeco [Antonio Prado Junior]. O Paeco não é o presidente do conselho?
P/2 - Da Fundação Padre Anchieta?
R - Fundação Padre Anchieta.
P/2 - O Paeco.
R - Como que é o nome... Em russo, conselho quer dizer o quê?
P/1 - Soviet.
R – Soviet, República Socialista Soviética dos Conselhos e tal. Então o Paeco é o presidente do soviet supremo do conselho curador. Bom, aí ele me chamou, o Paeco era do ginásio... não, eu era do ginásio, primeira série, ele do colegial. Perguntou se eu topava fazer uma reportagem fotográfica para o jornal da escola, uma corrida de bicicletas dos Jogos Pan-Americanos, que aconteceu aqui em São Paulo, em 1963, é a época que se constrói o CRUSP – o Centro Residencial da da USP foi que foi construído para abrigar os atletas e depois, como legado, como residência estudantil. Putz, você imagina. Eu nem dormia. Poxa, os grandões do colegial virem me convidar para participar do jornal da minha escola, do “O-boré”, do grêmio, puta merda. Bom, eu disse que sim, peguei uma máquina emprestada com meu pai, que era uma máquina dessas de fole, aquelas antigas, e eu fui lá para o Ibirapuera para fazer a reportagem fotográfica daquelas corridas contra o relógio.
P/1 - Velódromo?
R - É. Eu fiz as fotos e tal. Voltei, levei para o japonês, que tinha um laboratório, uma loja dessa de vender máquina, filme, era também laboratório, no Brooklin. Eu deixei lá o rolinho e tal, e demorava nessa época, às vezes, uma semana. Aí eu voltei lá para pegar as fotos para levar para o jornal, ele me entregou um envelope, perguntei quanto que era e ele disse que não era nada. Falei: "Como?". E ele: "Não, porque não saiu foto nenhuma".
P/1 - Foi um fracasso essa primeira pauta.
R - Porque a máquina era muito lenta, só tinha uns fantasmas, uns miasmas. Puta, que decepção. Puta que pariu. Aí, como eu fracassei logo na primeira, eu fiz uma carta de renúncia dizendo que não estava à altura da confiança que tinham depositado em mim, que portanto não tinha nenhuma condição de fazer parte da equipe do jornal da minha escola, etc. e tal, mas que eu ia me preparar para um dia estar à altura. Aí a decisão de abandonar a arquitetura. Aí depois, com os meus amigos, a gente fundou o jornalzinho chamado “Lola”.
P/2 - "Lola"?
R - É, que era "Rola" no nosso [jargão]. E um outro jornalzinho de classe chamado "Upandabun", que ao contrário é "pau na bunda", porque que na nossa escola todo mundo falava essa língua contrário, que se fala muito de Piracicaba, se não "lafar ao oriotracon"; “lafar” falar, “ao” ao, “oriotracon” contrário. Então você conseguiria conversar como se fosse uma outra língua, que os professores não entendiam, e era ótimo para negócio de cola. E a gente dizia que essa era uma língua muito específica, que era uma língua de Djibuti, na Somália Francesa. Então nasceu o jornalzinho, que era “Upandabun”.
P/2 - E esse era da sua classe?
R - Era da classe.
P/2 - Não era do Paeco, da turma mais velha?
R - Não, aí o Paeco já tinha se formado, o jornal ficou fechado, sem atividade, durante dois anos, de 1965 até 67. Aí um grupo de estudantes, eu, o Eduardo Ricardo Gradilone Neto, o Dudu, que hoje é embaixador do Brasil na Turquia, o Luiz Antônio Machado César, o Dr. Lu, que dirige o Incor, mais um outro, que esse não sei por onde anda, chamado Fausto Macedo, ele era protestante, deve ter virado pastor protestante. Depois veio meu irmão, o filho Sabato Magaldi, juntamos uma turma grande, e a gente refunda o jornal que estava parado há dois anos. Nós fomos na casa dos que tinham [o “O-boré”], nos entregaram as pastas com os recortes, quais eram as gráficas, e a gente reestrutura o jornal desde o começo, vai arrumar anúncio no comércio de Santo Amaro, identifica a gráfica, levanta o dinheiro, e aí começamos a fazer o jornal e retomamos o jornal em novembro de 67.
P/2 - Com o nome de Oboré?
R - Oboré, sim. Esse jornal ele tinha sido fundado em 1959 por dois irmãos judeus chamados irmãos Ratner. São irmãos de uma médica importante, que é líder nessa área do parto humanizado, chama [Daphne] Ratner, conhece quem é? E esse jornal tinha se fundado em 1959, ele existiu, atravessou o golpe em 64, na minha escola vários professores foram cassados quando houve o golpe. Um deles era o Maurício Tragtenberg. Foi nosso professor de História na primeira série do ginásio, primeira para segunda. E ele fazia assim: ele mandava que a gente comprasse a “Última Hora” e o “Estadão”, ele queria mostrar que história era uma coisa que estava acontecendo na hora, não é uma coisa só antiga dos vultos e tal. Tinha um mural na classe e a gente então devia ler os dois jornais, pegar o mesmo fato e comparar. Então eu me lembro que no dia 13 de março [de 1964] teve um comício em frente à Central do Brasil [no Rio], onde o João Goulart anunciou as chamadas reformas de base e, no dia 14, enquanto a “Última Hora” publicava foto grande da manifestação toda dizendo "verdadeira lição de democracia" e blablablá, o “Estadão” publicava uma foto recortada, só sobre um trecho com um cara segurando um cartaz chamado "legalidade para o PCB", dizendo que era manifestação subversiva e tal. E aí discussão é: se o fato é o mesmo, como é que tem duas versões do fato? Essa era a polêmica. E ele nesse dia falou: "Olha, é o seguinte, vai haver um golpe, portanto quem quiser continuar comprando o jornal, compra, mas a atividade aqui do Jornal Mural não segue, termina hoje, porque vem por aí um golpe". Que veio. Esse golpe veio, vários professores foram demitidos, cassados etc. Mas alguma coisa se passou na escola, que o contato com esses professores progressistas não tinha sido suficiente, nós éramos uma molecada muito nova, para se dar conta de tudo que tinha acontecido. Tanto é que eu mesmo fui embalado, pedi a minha mãe, que a minha família era toda a favor do golpe – meu pai dizia: "Temos que ter aqui uma ditadura católica, acabar com essas greves", que os parentes vinham de navio e chegavam em Santos não dava nem para descarregar o navio porque os trabalhadores fazendo greve. Então... Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma coisa chata que ele implantou lá em casa que era "família que reza unida, permanece unida", porra, a gente com uma fome fodida de adolescente, ainda tinha que ficar na hora da janta rezando... Mas eu me lembro que uma das coisas que eu fiz, eu acho que mais pelo prazer de tomar o ônibus sozinho, de ir até o centro, mas eu consegui dois brincos com a minha mãe, fui lá na Rua 7 de Abril, na sede dos Diários Associados, trocar esses dois brincos, eu entrei duas vezes na fila para ganhar uma aliança de lata, chamada "Doei ouro para o bem do Brasil". Eu doei ouro para o bem do Brasil, apoiando golpe, para você ter uma ideia. Mas houve um acaso muito interessante no Alberto Conte, que nós tínhamos um professor de Geografia chamado professor Gaudio e ele era católico mesmo, católico daqueles carolas, de ir na missa todo dia de manhã e tudo. Mas esse cara, esse professor de geografia, que era muito interessante, disse: "Vem cá, todas as escolas fazem festa de São João. Faz parte da tradição brasileira festa de São João na escola. Eu queria propor o seguinte: ao invés da gente fazer festa São João, vamos fazer a Festa dos Estados, onde cada classe escolhe um estado, monta uma barraca como se fosse um estande e vocês estudam a cultura, economia, a paisagem, o turismo etc. de cada estado". Então em três anos eu fiz parte das classes que trataram do Rio Grande do Norte, Pará e Paraná. O fato que esse cara, com essa iniciativa da Festa dos Estados, ele estimulou que muita gente ficasse curioso de saber o que era o Brasil, entender – tinha rio, ir atrás de comida como pato no tucupi, e não sei mais o que... No caso do Rio Grande do Norte, o Dudu, que hoje é o embaixador do Brasil na Turquia, ele botou um negócio do caralho: ele pegou uma carroça dessas de catador de papel, pintou de verde e amarelo e fez um foguetão de papelão sobre essa carroça com as cores americanas, porque no Rio Grande do Norte que tinha a Barreira do Inferno. Tinha também nessa Festa dos Estados o Miss Brasil, cada classe tinha suas meninas bonitas, e nessa do Rio Grande do Norte, a mulher mais linda da escola era da nossa turma, a Malena, mas a Malena então fez uma maquiagem como se fosse uma camponesa, florida, segurando uma boneca como se fosse uma criança. O nosso estande era uma barraca, um casebre no Rio Grande do Norte de coisa batida, até tenho, localizei umas fotos outro dia desse troço. E ganhamos, o Anti-Miss. Paulo Planet Buarque era do júri. O nosso anfiteatro era um anfiteatro muito interessante, as coisas iniciais do Chico Buarque, Taiguara, essa coisa toda, aconteciam lá. As escolas tinham teatros, 200 e 300 pessoas, com palco, camarim, tudo, o nosso tinha isso. Então a Festa dos Estados, depois a tomada do jornal, o grêmio, as festas, as bandas que se criavam... E aí, em 67, a gente refunda o jornal, e a turma do jornal resolve atravessar as férias reorganizando a biblioteca; lá não havia bibliotecário, então nós passamos as férias todas trabalhando nisso. Fizemos uma política de assinatura do jornal: então, na época da matrícula, porque para você matricular uma criança na escola pública, na época, você tinha que ter atestado médico com firma reconhecida, tinha uma papelada, uma burocracia enorme. E a gente sabe dessa dificuldade e, então, a turma do jornalzinho, do “O-boré”, do grêmio, nós montamos uma banca nas férias para ajudar as mães antes que elas fossem para fila e perder tempo. Nós tínhamos ali uma espécie de despachante. "Boa tarde, boa tarde. Oh, parabéns, seu filho agora está no Alberto Conte. Vai matricular? Deixa eu ver se os papéis estão todos em ordem? Opa, está faltando um. Então, para senhora não perder tempo, aqui em frente tem o Centro de Saúde, é só ir lá, mas olha, tem que registrar no cartório com estampilha". Então... Aí agradeciam a gente, porque a gente tinha funcionado. Na volta: "Não quer fazer assinatura do jornal?". Então nós levantamos o dinheiro nas férias para pagar gráfica, fizemos também uma carteirinha de repórter, uma credencial, dizendo que “a todos que virem essa carteirinha solicitamos um maior apoio para o exercício da nossa atividade jornalística" e tal.
P/1 - Válido em todo o território nacional.
R - Montamos uma caixa amarela para quem quisesse fazer qualquer contribuição para o jornal de artigos, ou sugestões etc.; e ficava no pátio, porque a escola trabalhava de manhã, de tarde e de noite e a gente não estava lá o tempo todo. Então tinha essa espécie de site, para colher sugestões. Bom, o fato é que começaram as passeatas, e numa delas o Dudu, eu, não sei mais quem, nós fomos acompanhar uma passeata que foi no centro da cidade, violentamente reprimida, isso em 1968. E essa passeata se reagrupou no que hoje se chama Largo da Batata e ela segue pela Teodoro Sampaio até a altura da Benedito Calixto, e nós não estamos lá com militantes, nós estamos lá como repórteres estudantis. Quando chega ali na esquina do cruzamento da Benedito Calixto, da praça com Teodoro Sampaio, a polícia tinha aplicado o método que tem sido muito usado hoje, que chama envelopamento, que é proibido por lei, mas você tem uma manifestação pacífica e vem a tropa de choque atrás, não reprime ninguém, mas impede que você recue, vai acompanhando. Até que você chega num lugar em que a polícia cercou o resto, aí você fechou, e aí você joga bomba sem deixar rota de fuga. Isso é proibido em qualquer parte do mundo, mas Israel faz isso com, sobretudo, os palestinos. E quando agora abasteceu aqui o governo do estado com novos equipamentos, “Brucutus” etc., etc., junto com esses equipamentos comprados de Israel veio também a capacitação para a tropa da PM. Isso tem sido feito aqui. Sistematicamente. Bom, estamos lá e de repente tinha uma placa, estavam construindo daquela agência do Bradesco, que fica na esquina da Teodoro com a Benedito Calixto. E eu olhei para placa e vi bomba, eu olho para placa e a placa tremia e apareciam umas manchas, e eu ainda não tinha me dado conta que era a polícia do lado de lá atirando; isso eram balas, possivelmente balas de borracha talvez, sei lá. O fato é que uma delas pega na cabeça do Dudu, exatamente aqui no risco do cabelo, sangra tudo. Pega o Dudu, leva ele lá para o pronto-socorro do Hospital das Clínicas, e eu ainda fico por ali, e vem de lá um tubo, uma bomba de efeito moral que fez um barulhão, bem em frente àquela padaria que fica ao lado de um teatro que foi importante para a música nova aqui em São Paulo, o Lira Paulistana. Ainda não existia o Lira, mas foi exatamente ali, naquele ponto. E veio esse tubo, ele explodiu, saiu uma fumaça rosa-choque, depois vim saber que quem inalasse aquilo ficava com caganeira durante dois ou três dias, era uma espécie de laxante, acho que por isso que chamava bomba de efeito moral, para desmoralizar o cara, ficar cagando em casa. Veio aquele troço, ele rolou, e eu resolvi pegar esse tubo e atirar de volta contra polícia – a cena clássica de gente desarmada devolvendo o troco de uma munição já gasta. Mas o fato é que aquilo estava quente e eu queimei a mão. E aí eu vi esse tubo rolando, até que ele para, e eu vejo no rótulo desse tubo, dessa bomba, o símbolo da Aliança Para o Progresso, aquele logotipo, que foi uma coisa que veio depois o golpe de 64 e que estava associado sobretudo à área de educação e alimentação, saúde, negócio de remédio, merenda... Teve um acordo entre o governo brasileiro, depois do golpe, e os Estados Unidos chamado Aliança Para o Progresso. Mas eu não sabia, eu sabia mal, mais ou menos que isso existia, mas eu não sabia que estava financiando [a repressão].
P/1 - Inclusive bombas, né?
R - Então ali naquela hora, foi aí, não foi no outro lado, não foi ninguém falando comigo, nem lendo, nem assistindo filme, isso foi ali, que essa relação de ditadura a serviço do imperialismo estava ali, ninguém precisa me explicar mais nada. Alguém dava ordens para mão que apertava o gatilho que pegava na cabeça do Dudu. Essa coisa ficou redonda para mim nesse dia e nunca mais saiu. É isso mesmo, tá certo? A ditadura não é ditadura em si mesmo, ela está sempre a serviço. Se você tem um modelo econômico que ele é inaceitável, ele não é palatável, você só consegue impô-lo à custa de acabar com a democracia, dar porrada e obrigar as pessoas. É assim.
P/1 - Foi o seu batismo político.
R - Não sei, não sei. Talvez um autobatismo, sei lá, porque ainda aconteceu uma outra coisa, porque, é evidente, não terminou aí, essa repressão continuou, cachorros etc. E um grupo de estudantes, o Zé Dirceu tinha subido em cima de um ônibus que ficou atravessado na Teodoro, fazendo comício. Salvo engano, essa passeata era para comemorar o aniversário de morte do Che Guevara. Eu não tenho a menor ideia. Estava lá, nem sabia que era isso. Bom, e a repressão continuou, e num dos sobradinhos ali da Benedito Calixto, que hoje também não existem mais, agora virou prédio, a molecada entrou num desses sobradinhos, a mulher abriu lá a porta, não sei como que foi, e nós entramos, acho que uns 15, 20, nos refugiando da pauleira que estava tendo lá fora. E aí pela janela, através das cortinas, a gente via bomba, cachorro, gente sendo presa, levando porrada, e nós ficamos ali. Nessa casa tinha uma mulher grávida que ficou muito inquieta com tudo isso e não tinha como sair e ela acabou dando à luz ali, nessa sala. Trouxeram lá uma bacia e eu fui para o quintal porque não queria ver, não sabia nem o que fazer. O fato é que essa criança nasceu ali. Nós esperamos ficar de noite e eu saí pelo quintal dessa casa, por cima de uns telhados, até dar na Henrique Schaumann, que não era essa avenidona de hoje, era uma rua estreitinha. Eu tinha um Jeep, eu tinha ido para o centro de Jeep, fui até lá para Praça da Bandeira, deixei lá estacionado, mas resolvi não pegar o Jeep, resolvi voltar a pé até o Brooklyn. Eu. E pensando sobre o que tinha sido esse dia. Nesse dia eu tinha descoberto tudo isso. Então, desde esse dia, a primeira coisa que eu penso de manhã, quando eu me dou conta, é como é que eu posso sacanear com essa gente. E a última coisa que eu penso antes de dormir, é como é que eu posso sacanear com essa gente. Mas não sacanear com eles, individualmente. Tem um depoimento que eu dei para o Comissão Nacional da Verdade em que eu disse que, diferentemente dos outros que ficaram atrás de descobrir quem foi quem, nome, sobrenome do torturador que fez isso, etc., essas descrições todas detalhadas, que para mim está no nível de quase uma coisa escatológica, uma coisa esquisita, descubro mesmo que há pessoas que têm prazer em contar as coisas. Então, isso tudo me incomoda, faz parte da briga, mas esse martirológico do sujeito descrever-se acho uma coisa meio... Não sei qual é a opinião de vocês, mas eu me sinto mal. Acho um exibicionismo.
P/2 - Desde esse dia...
R - Por que eu falei isso?
P/2 - Desde esse dia então você acorda...
R - Eu digo lá: eu não fui atrás, tão logo eu pude, de ficar descobrindo quem foi que me torturou, para fixar nisso. Porque eu sei que é uma questão de cadeia de comando. Se o Dudu tivesse sido morto por aquele tiro, a responsabilidade não era só desse soldado que apertou o gatilho: alguém deu ordens para a mão dele apertar o gatilho contra a manifestação, que por sua vez, esse que deu ordens, estava obedecendo a uma ordem maior, que estava expressa lá no tubo. Então, portanto, me interessa a cadeia de comando, me interessa a democracia, me interessa ter um regime político que impeça essas barbaridades que estão acontecendo.
P/1 - Como se deu esse processo? Porque aí nos 18 anos, indo para 19 anos, o ambiente político de radicalizando e a ditadura se fechando no ano seguinte.
R - Mas eu não tinha noção. Como eu disse, o meu prazer era fazer o jornal da escola, organizar os bailes, festas dos Estados, viver a vida com a molecada.
P/1 - Mas toda essa situação não se despertou nada?
R - Claro, despertou tudo. Porra, aí você tem todo o ano de 68 e a gente tocando... Ao final de 68, vem o AI-5. Nesse meio tempo, a nossa escola, o Alberto Conte, tinha se transformado numa escola muito ativa e portanto muito procurada pelos recrutadores para os grupos de luta armada, mas também muito procurada pelos Cabo Anselmo, por gente que se fazia passar como ativistas, militantes, etc., mas que na verdade, como era o caso de um cara chamado Brasil, um outro que depois Massafumi, que depois vai se enforcar, ele era um frequentador da nossa escola. A turma do Alberto Conte, por conta dessa atividade toda, que não tinha apenas a dimensão política, tinha também a dimensão social, cultural etc., tem uma época na USP, a partir de 70 que você não tinha nenhum centro acadêmico, nenhum atlética que não tivesse pelo menos um cara do Alberto Conte. O Alberto Conte foi essa sementeira. Durante o ano de 68, nós fazemos uma greve, que foi liderada pelo Marcelo Bairão, de 13 dias, com ocupação da escola, onde, alunos e professores, nós elaboramos um programa completo de como é que a escola deveria ser. Quando eu vejo recentemente essas ocupações de escolas, eu sei que está acontecendo aqui, por caminhos dos mais diversos, essa fermentação lenta de gente, e isso muda a vida das pessoas. Mas não é o agito de um grupo que substitui as massas, é fazer junto. A gente nem sabia de Anísio Teixeira, não se falava de Darcy Ribeiro. Como que era o nome do cara? Enfim, a coisa de ocupar a escola e cuidar dela, a gente chegou a fazer um plano em que todas as plantas dos jardins da escola deveriam corresponder às plantas que estavam no livro de Botânica, que a gente não queria ver só o desenho no livro, a gente queria ter. Se fez um pequeno zoológico, tinha coelho, galinha, tartaruga.
P/1 - O conceito de Escola Parque era uma coisa muito inovadora pra época, né?
R - Sim, mas que já não estava valendo porque tinha acontecido o golpe. Mas o prédio era da concepção Escola Parque, mas a escola já não tinha mais isso, embora os professores fossem alguns muito bons e que, dentro do possível, desenvolvessem a ideia de que o ensino, o aprendizado, não é meramente livresco. O próprio professor de Geografia é a prova disso. Mas era tudo muito contraditório. Por exemplo, na altura da terceira série do ginásio eu acabei liderando um movimento, com os meus colegas, de que a gente não tinha que fazer nada de baile de formatura. Porque as meninas ficavam se preparando durante um ano, um ano e meio, para fazer vestido, salão e orquestra, e não sei mais o que, e começaram a aparecer umas empresas lá para oferecer esse serviço. Quando nós fomos ver o preço, era uma carestia. Falei: “Porra, mas peraí, com esse dinheiro...” Como eu tinha ido a Portugal de navio, falei: "Vamos fazer uma coisa? Eu vou numa agência e vou descobrir qual é o navio que sai daqui e vai até Buenos Aires, e nós vamos fazer, em vez de baile de formatura, vamos fazer uma viagem de formatura. A gente vai de navio e o navio fica parado lá durante uma semana", que era um navio argentino. “E a gente fica hospedado no próprio navio. E vamos conhecer. Alguém já viajou para o exterior?" "Não." Então a gente juntou dinheiro durante um ano e meio, festa, rifa etc., para a tal da viagem para Argentina. Quando chegou na última hora, a empresa disse que não ia ter [viagem]. Alguma coisa se passou que o navio não ia passar [no porto de Santos]. Putz, mas a gente queria, vamos viajar para o exterior. Aí alugamos um ônibus e fomos para Assunção, no Paraguai. E aí lá fomos nós pelo alto do Paraná, atolou, foi um... E aí quem a gente elegeu como paraninfo da nossa turma? Um pulha do nosso professor de Educação Física chamado Tedesco, olha o nome do cara. Careca, foi o cara que introduziu o handebol aqui em São Paulo. E esse cara era brutal, era um professor de Educação Física filho da puta: o sujeito que não fizesse o número de barras ou que não soubesse fazer flexão, ele chamava de ameba. Pegava a classe toda, fazia o chamado corredor polonês e o tal do ameba passava nesse corredor polonês levando tapa na coxa dos seus colegas. Você pode imaginar? Como método? E o auxiliar desse era o Santo Baldacin, que veio a ser depois o preparador técnico do Palmeiras.
P/1 - Só faltava a palmatória.
R - Pois é. Palmatória eu tinha visto em Portugal, quando a gente estava lá. [A professora se] chamava Dona Ana. A gente saiu dessa escolinha rural, junto das quintas, e aí veio para Velas. E na Velas tem uma escola melhor. E tinha a Dona Ana. E tinha tabuada, um vezes um, um vezes dois... E quem não soubesse a tabuada levava palmatória, que era como se fosse uma colher de pau plana, com uns buraquinhos. E o troço era "dá a mão a aqui". Vapt! E você ficava com a marca, como se fosse uma ventosa. E aí os nossos colegas e volta e meia erravam e eu combinava com Fernando: "Como que é esse negócio de palmatória? Vamos errar?" Aí a errava [a tabuada] de sacanagem só para ir lá sentir [a palmatória]. A gente não sabia nem o que era. A mão vinha que não fechava...
P/1 - Voltemos a 68. Então a coisa estava tomando proporções que vocês, jovens, já estavam começando a perceber alguma coisa em torno.
R - Sim, pois é. Tanto é que a gente se mete. O Marcelo, eu e o Bolara, chegamos à conclusão de que a gente queria mais, que tudo que a gente podia fazer já tinha feito. Grêmio, jornalzinho, passeata. E a gente via a situação política cada vez mais fechada, mais truculenta, e a gente queria se organizar, nós queremos mais. E lá fomos nós atrás dos professores. Tinha um professor de física chamado Ustache, que nos apresentou, através do Marcelo, o grupo da Dilma, VAR-Palmares, ou VPR, não sei, uma dessas duas, não sei se é VAR-Palmares ou VPR. Enquanto eu tentava na casa do Artigas, através da Dona Virgínia, mulher dele, se ela abria a possibilidade do Partidão. Mas ela evidente que não, porque ela estava sentindo na pele e a gente não tinha ideia do que estava acontecendo com essa família, de cerco, dificuldades, e ela tinha receio evidente, nós éramos uma garotada. Tentamos, sempre Marcelo sendo quem ia na frente, porque ele era a liderança na escola. Marcelo Bairão. Ele tenta um contato com o PCdoB, o pessoal do PCdoB pediu para que ele levasse para eles uma lista, quais os livros que a gente já tinha lido, para saber qual era o nível de informação etc. A gente achou aquilo um academicismo. Porra, que livro o caralho. Depois... Durante o cursinho...
P/1 - Esse grupo então resolveu militar?
R - Não, nós estávamos atrás, a gente queria mais, a gente sabia que as coisas estão cada vez piorando e não era possível isso. Comandos nas avenidas, bloqueios, perseguição, desaparecimento, tudo isso já era insuportável e a gente queria mais. No cursinho, eu tive um professor de Literatura, de português, chamado Jaime Leite. Ficamos muito amigos. Ele tinha sido frei dominicano. Quando ele se deu conta, acho que com 15 para 16 anos, ele percebeu que estava com câncer e ele resolveu que ia ler tudo que pudesse, ia ser o cara mais bem informado que pudesse antes de morrer, só que ele não morreu. Então ele ficou um cara muito culto. E ele lia pra caralho, era o professor Jaime Leite. Que se apaixonou e foi casar com a Ana, que era uma aluna do cursinho Objetivo, que foi onde eu fiz. Nós éramos tão amigos que eu tinha um Jeep, um Jeep Willys, e ele tinha comprado um carro chamado Triumph Roadster, 1949. Só tinham existido três exemplares no Brasil e foram os milionários franceses, depois eles ficaram e tal, e sobrou um. E ele comprou esse carro, um carro que era um conversível, dois lugares, dourado, uma puta frente.
P/1 - Um carro inglês, não é?
R - Um carro inglês, Triumph Roadster, vale um dinheirão hoje. Ele comprou esse carro, mas como resolveu se casar com a Ana, precisava mobiliar o apartamento e não tinha grana, e a TV Cultura devia um dinheiro para ele e não pagava. Ele propôs se eu não comprava o carro dele. Temporariamente. E eu fiz isso: vendi o meu Jeep para ficar com o carro dele. Bom, fiquei com o carro dele durante quase dois anos, um ano e meio talvez. O apartamento dele, novo e tal, e ele estava, por via dos dominicanos, ligado à ALN. Opa, interessante. Aí estamos lá no apartamento e ele diz assim: "Aqui nesta mesa, nesta mesa de escritório, semana passada, o Marighella esteve aqui e planejou quatro ou cinco ações", não sei que ações. Falei: "Puta que pariu, caralho, como que o cara vai contar [um fato desses] para um aluno do cursinho. Puta merda, se é possível isso? Para a ALN não, não dá". A tal da VAR-Palmares, que o Marcelo tinha ido lá, depois que a gente tinha batido em várias portas, esqueci, mas nós tínhamos que ter 40 mil [cruzeiros novos], que era para pagar as custas do processo, a passagem, hospedagem, as balas, sei lá, e nós íamos treinar guerrilha no Mato Grosso com um fulano que não era um político, era um técnico. Mas nós não conseguimos arrumar essa grana, tentamos de todo jeito, mas faltou... como é que chama isso? Taxa de comprometimento. Era para eu, Bolara e o Marcelo. Tudo acertado, então nós vamos lá. ALN não, o PCdoB queria saber se a gente tinha lido, o Partidão com a Dona Virgínia todo emoliente. Bom, mas a gente frequentava a casa da Virgínia. E aí nós vamos lá despedir da Dona Virgínia, eu e o Marcelo. "Então, Dona Virginia, viemos aqui nos despedir da senhora porque nós estamos indo pra luta". "Ah, é? E quando?". "Não, já." "Mas por quê?" "Porque a gente já não aguenta mais." "Mas como não aguenta mais?" "Não, é ditadura, nós vamos derrubar a ditadura." "Mas dá tempo para um café?" Aí nós consultamos o horário: "Não, para um café dá". Ela vai lá, prepara o café. Mas ela não ficou contra, e isso é uma coisa que grande parte do pessoal que lida com a juventude, em geral, não sabe fazer. Quer dizer, acha que é uma ideia estapafúrdia, e às vezes é, mas em vez de deixar que o cara conclua por sua conta, já quer [impor sua opinião]. "Mas, então, vamos lá, conta como que é o projeto", "Ah, o projeto é esse, nós vamos para a luta derrubar a ditadura". "Mas só?". "Não, democracia". "Mas só a democracia?" "Não, claro", na nossa ideia, democracia e socialismo iam junto, fazia parte do combo. Lutar contra a ditadura significa que junto vem democracia e socialismo. Aí ela falou assim: "Mas vocês estão dizendo que não aguentam mais, será que vocês não têm que perguntar para o povo se o povo aguenta mais?" "E o que tem o povo com isso?" Ela falou: "Mas a história é fruto de movimentos profundos, é a massa de milhões que faz a história acontecer, não é um pequeno grupo que substitui. Não há possibilidade de socialismo sem o povo, nem contra ele. Enquanto o povo não quiser, não vai existir". Bom, aí saímos eu e Marcelo com o nosso Jeep, isso era antes do Jaime Leite. Fomos lá para o alto do Morumbi, que tinha um lugar chamado “Beijódromo”, sabe onde é? Perto ali daquela igreja. Então havia um pacto: os carros podiam estacionar ali, os casais podiam namorar e tal, ninguém assaltava nem tinha polícia. Não tinha drive-in, não tinha motel, então era ali que as coisas aconteciam. No caso meu e do Marcelo, a gente ia lá para olhar a cidade de cima, que a gente imaginava fazer uns blackouts, botar umas bombas ali na Usina da Traição, onde o [governador João] Doria agora quer fazer um novo Porto Madero. Falei para o Marcelo: "E agora? Sem o povo disse que não dá". Aí nós entramos em crise. Nesse meio tempo, o tal do grupo que nos tinha convidado, vem o cara com uma mala cheia de armas para o Marcelo guardar na casa dele, disse que tinha caído um aparelho etc. Falei: "Marcelo, porra, nós estamos entrando numa roubada. Que porra de organização revolucionária é essa em que a gente ainda nem entrou e os caras já estão botando uma mala de arma para guardar. Caralho, porra, vai se foder, não vamos entrar nessa não". Já não tínhamos arrumado o dinheiro, e depois fomos descobrir que o cara que treinava a guerrilha no Mato Grosso não era um técnico, ele era da polícia, era do serviço de inteligência. Gravavam as pessoas com filme super 8, ainda não havia essas maquininhas, e muitos jovens foram abatidos aqui antes de entrar em ação. Isso se fez. Então, nós fomos salvos por um triz. Nessa época eu distribuía, vendia um jornal lá na escola chamado “Resistência”, vocês conhecem isso? Era um jornal que impresso em papel de arroz. Mas com todo esse negócio de imprensa, de recuperar etc., esse jornal não apareceu. O fato é que uma... ela é professora hoje da Fundação Getúlio Vargas, Silvia Ingrid Lang. Então ela tinha contato com um cara chamado José Montenegro de Lima, o Magrão, que depois veio a ser preso e morto na mesma época de prenderam e mataram o Vlado, naquela quinzena, é um dos desaparecidos. E através do Magrão ela recebia uma quantidade de jornal e eu vendia. Não sei se era só para mim, não era só para mim que ela distribuía, mas o fato é que na primeira remessa eu vendi uns 30, na outra vendi 50, na outra vendi 100, lá no Alberto Conte. E eu não sabia que eu era o cara que mais vendia esse jornal, tinha alguém controlando, está certo? Aí ela recebeu a tarefa de me recrutar para o Partidão, ela, Silvia. Mas eu disse que não, que prefiro ser franco-atirador, o Partidão é reformista. Mas eu continuava. Depois desse fiasco, de a gente não ter conseguido ir lá para fazer o treinamento no Mato Grosso, através da Silvia a gente encontrou Magrão, eu e o Marcelo, e aí a gente entra no Partidão, final de 69.
P/1 - Aos 20 anos?
R - É. Eu entrei no dia em que mataram Marighella. Aqui na Alameda Casa Branca.
P/1 - O que era entrar, qual era a iniciação?
R - Pois é, eu pensei que era entrar no Partidão, pô, estou no Partidão! Primeiro eles disseram assim: "Não, vocês vão entrar na Juventude", "Juventude é o caralho, nós queremos ou é o Partido ou não é nada." "Bom, então tá, é o Partido." "E qual é a tarefa?" "Passar no vestibular." Falei: "O que que é? Só isso?". "Não, a coisa mais importante é vocês estudarem e passar no vestibular.” Mas aí a gente reclamou, porque a gente queria pelo menos uma ação e tal, aí fizemos um boletim chamado "Funil dos Vestibulares".
P/1 - Funil?
R - É, porque tinha um negócio dos excedentes. E isso foi impresso lá em casa, no quartinho que está lá, no mimeógrafo. E lá na avenida tinha uma prostituta, que fazia ponto na esquina da Georgia com a Santo Amaro, e eu nunca fui de frequentar puteiro, nada disso, nunca, a vida inteira, sou bem iniciado da época da pílula, da possibilidade de transar com as namoradas e etc. Mas essa moça era muito interessante, ela tinha assunto, eu gostava de conversar com ela quando eu estava na Alberto Conte, e ela tinha uma tabela: ela fazia meia para estudante, estudante pagava meia. Bom, e por coincidência nesse dia era o aniversário dela e eu resolvi levar um presente para ela, não era cliente dela, nada disso, mas é porque ela era... Enquanto eu fui até avenida levar o presente para ela, não sei o que era, talvez um vidro de perfume, o meu pai acorda, vem até o quartinho e encontra o Marcelo e o Trota, irmão do Trota, o Trota era um grandão, que era o homem mais bem informado da nossa turma porque ele ouvia a rádio Pequim e a rádio Moscou em ondas curtas, que tinham programas em português. Só que isso era de madrugada e isso foi fazendo com que ele fosse um notívago até o ponto de ele virar antissocial, porque ele ficava acordado enquanto os outros dormiam e ele dormia [enquanto os outros estavam acordados]. Bom, mas ele sabia tudo, todas as informações, o que acontecia no mundo e tal. E ele era muito alto. E ele tinha uma coisa assim: toda vez que se referia a coisa antes do golpe de 64, ele faz assim: "Antes de 64". E estão lá o Marcelo e o Trota imprimindo o tal do folheto que a gente ia distribuir nos cursinhos. Era a nossa primeira tarefa. E meu pai acorda e fala: "Onde é que está o Sérgio?" "O Sérgio acho que foi na farmácia ou comprar cigarro." "Mas ele fuma?". "E vocês, o que é que estão fazendo aí?", e eles lá imprimindo. "É alguma coisa, algum material subversivo?", meu pai pergunta. Aí o Trota diz assim: "Mais ou menos". Quando eu volto: "Olha, o seu pai esteve aqui." "O que ele fez?", "Não, que estava imprimindo", o que era isso mesmo, era só um folheto mais ou menos subversivo. Bom, passamos no vestibular, eu entro na ECA [Escola de Comunicações e Artes da USP] e meu irmão entra na Poli [Escola Politécnica da USP]. Aí o seu Zé Maria falou: "Então, quanto é que eu vou ter que pagar?" "Não vai ter que pagar nada." "Como não vai ter que pagar nada?" "Não, ué, a universidade é pública.” “E não tinha muita gente querendo”. “Tinha, uns 40 para 1.” "E como é que vocês passaram?", porque ele nunca foi a uma antes. "Vamos fazer o seguinte, a partir de hoje eu não compreendo mais vocês, vocês é que tem que me compreender. Vamos fazer o seguinte, eu dou um carro para cada um, um Fusca, e o dinheiro da gasolina. E se vocês quiserem, continuam morando aqui em casa. Tem casa, roupa lavada, comida etc e tal, não precisa trabalhar, podem estudar à vontade". E nós tínhamos acabado de entrar no Partidão, você imagina o meu Fusca zerinho: andei 200 mil km nos primeiros quatro anos, isso dava o que? 50 mil por ano... Não, 300 mil eu andei em quatro anos, dava 75 mil por ano, dividido por dois, isso dá quase 200 km por dia. Numa época que não tinha [pouco] telefone, tudo era muito difícil, então meu carro ajudou, eu e meu irmão. Ambos entramos na USP, a gente se encontrava à noite para conversar o que tinha acontecido, mas o tal do Partidão não era Partidão, tinha [apenas] um cara na USP. O grosso do pessoal que era do Partidão tinha saído no racha de 67 para a ALN. Do Partidão, na USP, tinha um cara na Economia, que seis meses depois desistiu. Então, eu que à estava procura de participar de uma coisa em que eu fosse ajudar, colaborar com uma organização, no momento seguinte eu era dirigente. Nunca ninguém me mandou fazer nada, eu só fui ler as resoluções do 6º Congresso do PCB acho que uns dois anos depois. A política que a gente desenvolveu na universidade foi absolutamente por nossa conta, não teve nada que alguém mandasse fazer ou deixar de fazer.
P/1 - E como é que era o clima da época, da ECA nesse momento?
R - Muita droga, LSD. Tinha o pessoal do álcool e o pessoal do fumo. E tinha o pessoal barra pesada, LSD. Uma escola não sabia direito para onde é que ia, ela era uma recente, nem tinha se constituído a primeira turma.
P/2 - Isso no jornalismo?
R - Não, tudo. Porque o primeiro vestibular da ECA, foi em julho de 66. Então, quem entrou na ECA foram os salvados do incêndio da FAU, da Letras, da Psicologia, da Ciências Sociais, os caras que não tinham passado. E era uma escola que ainda tinha dois anos de curso básico até você fazer a tal da especialização, que seria jornalismo, cinema, rádio e tv, biblioteconomia – são 13 cursos. Então, atraiu o tipo de gente que gostava de protelar. Então a ECA era... a ECA. Não tinha nenhuma tradição. E uma das coisas que nos ajudou muito foi exatamente a casa da Dona Virgínia, a Dona Virgínia. Porque ela dizia assim: "Vocês, jovens, não podem ser monotemáticos. Que se metem em política e só falam em política. Vocês ficam pessoas chatas que nem esses crentes aí na Praça da Sé: falam e ninguém quer ouvir. Gente de um assunto só. Vocês são jovens, vocês têm que se interessar por cinema, teatro, se divertir, baile, ir à luta, se qualificar profissionalmente, tudo isso. Não tem nada que ter a mão da política comprida e a outra curtinha, isso faz de vocês pessoas aleijadas. Vocês têm que abrir, é a época de experimentar todas as possibilidades". Ela disse isso. Então portanto, uma parte grande, vamos chamar assim, da linha política que o Partidão desenvolveu no meio universitário por conta desse pessoal – 1970, 71, 72, 73 (missa do Alexandre Vannucchi), 74 (eleições), 75 (aí vem a morte do Vlado) – essa política, que era a que estava dando certo, era uma política que era praticável, compreensível e praticável pelas pessoas comuns. Aquela lição de que os pequenos grupos não conseguem substituir, por mais aguerridos que sejam, a gente tinha aprendido e isso se traduzia num tipo de política que era assim: “Quer saber? Vamos viver como se a ditadura não existisse”. A gente inventou: a ditadura não existe. A gente podia se encontrar? Se encontrava? Fundar jornal, fundava o jornal. Fundar a revista, revista. O grupo de teatro, cineclube e o caralho, tudo que a gente puder fazer, nós vamos fazendo, de tal maneira que nós vamos vendo na própria atividade da vida qual é o limite do precipício.
P/1 - Estava testando os seus limites.
R - Não tinha o tal do aqui pode, aqui não pode: tudo pode ou tudo não pode: depende, você tem que estar ligado. Uma das coisas que ficava claro, isso depois se confirma, é que para você desenvolver um trabalho de verdade, em que cada um dê o melhor de si, tem que existir amizade. É a afeição, é o amor por poder dizer, é exatamente isso, as pessoas se gostarem, esse ambiente amoroso, de respeito, de amizade genuína, é que cria as condições para o debate de ideias. Porque quando estivermos discutindo não é nunca uma discussão pessoal, eu não estou querendo te derrotar e nem você a mim, nós estamos tentando ver como é que é, descobrir o que for mais possível próximo da verdade, de repente você tem uma ideia que eu nunca tive ou vice-versa. Se tem um ambiente envenenado, em que todo mundo já está de caso, não adianta nem entrar na reunião. Você bate o olho e fala: "Quatro a três, pronto, fodeu". Você já sabe que vai dar esse resultado. Agora, se você tem um ambiente... Por isso eu sou tão a favor de festa, entendeu? Festa, reunião, coisa que não tem nenhum propósito prático, que é para as pessoas se testarem e verificar se realmente o cara é teu amigo ou não. Nos pequenos gestos. Ninguém é amigo nos grandes gestos, é as vezes afastar a cadeira para caber mais um, depois você vai ficando... À medida que você vai vivendo, vai percebendo quando é que o cara é autocentrado, está cagando para os outros, ainda que o discurso seja de que está falando para todo mundo, mas na verdade ele não está, ele não se dá conta. Então essa dimensão do detalhe ela só pode vir pela arte. Não há outra possibilidade: é pela música, pelas artes plásticas, pela poesia, que você vê que o detalhe tem tanta importância quanto o que é estrutural. Na hora que o cara começa a ter possibilidades de ver que no caso da música tem harmonia dos arranjos, essa delicadeza, ele percebe que isso tem a ver com a natureza, que por sua vez tem a ver com as relações políticas, é tudo por um triz. Você gosta ou desgosta de uma pessoa por detalhes, ou não? Não tem a música do Roberto Carlos?
P/2 - Sergio, mas você fez agora um discurso elaborado, mas ali naquele momento você devia ter bastante atuante, não?
R - Lá?
P/2 - Na época.
R - É claro, e eu gosto disso. Dizem assim: "Não, o Sergio é generoso". Sou nada. Eu faço porque eu gosto. Gosto de ver os outros darem certo, tenho prazer em ver os outros terem prazer, de ver os outros darem certo. Não me agradaria nem um pouco eu com tudo aqui e três famintos olhando. Porra, vai se foder. O sujeito precisa ser muito louco.
P/2 - E as atividades suas de imprensa ali, na época? Subjaz toda a faculdade?
R – Sim. Aí já estou falando de quatro anos de ECA. Mas eu fui responsável pelo departamento de imprensa do centro acadêmico dois anos e departamento cultural, mais um ano. Eu entrei no vestibular de 69, então 1970, 71, 72 e 73, foram os quatro anos que passei lá, eu saí no final de 1973. Não tinha nada, a imprensa universitária, estudantil, tinha acabado. Grande parte dos centros acadêmicos estava à matroca, uma parte boa dos professores importantes tinham sido cassados e muita gente que tinha ficado estava acoelhado. Essas coisas da atividade cultural, artística, música, cinema etc., praticamente tinham acabado. Então, depois dos calores todos de 68 veio pega para capar de 69, que é esse ano que eu estou no cursinho, de fazer o terceiro colegial, o terceiro clássico, e cursinho. Eu não peguei a universidade em 1969, mas 69 é quando matam todo mundo, fecham, é o ano em que se cria o DOI-Codi, é o ano barra. Eu não peguei esse ano. Quer dizer, quando a gente entra já era a paz dos cemitérios. Tudo calado. Me lembro que logo no começo, acho que março ou abril de 70, estava tendo aula e tal, eu fui ao banheiro e vi lá fora uma [perua] C14, que era do DOI-Codi, saindo de lá uns três ou quatro caras enormes e trazem um fulano todo machucado, fodido. Eles entram por aqui, sobem até o primeiro andar, vão com ele até lá perto de uma sala, vão pelo outro, sobem, descem e saem. Tipo um recado: “Olha, não se metam porque você vê, é isso que vai acontecer”. Depois eu acabei encontrando a pessoa que testemunhou isso também, o Luis Milanesi... Não sei onde é que vai dar isso aqui, eu estou percebendo que isso aqui é o grande começo de uma "confiter", não é assim, uma confissão? Mas algumas coisas era preciso, e é preciso, que sejam checadas antes que eu morra ou que os caras de quem eu estou falando morram, porque em alguns casos parece mesmo que eu inventei esse passado, coisas que só eu vi. Por exemplo isso, eu estava sozinho, vi os caras do DOI-Codi trazendo [o preso], o cara estava fodido. Quando chegou no debate recente que teve na ECA, sobre os 50 anos do golpe, o Luis Milanesi, que era secretário do Centro Acadêmico, ele confirma: "Sim, entraram os caras". E eu sei que para que uma coisa seja considerada um fato histórico na base de história oral, de depoimentos, você tem que ter pelo menos três depoimentos que [o confirmem]; que haja uma área de consistência de três pessoas que não combinaram entre si, e aí você diz assim: "Isso realmente aconteceu". Às vezes errou o dia, o mês, mas o fato aconteceu. Então uma parte grande dessa história recente não foi contada. Porque eu participei ativamente de uma organização que não existe mais. Entendeu? E grande parte dos que participavam dessa organização aderiram e ficaram com uma lembrança meio caricata da sua juventude, meio tirando sarro do que era. Eu, não. Eu continuei. Uma parte das bobagens que foram feitas e que levaram à desgraça, eu cantei essa bola porque eu tinha tido ajuda de gente que sabia mais e estava ligado. Ou seja, para fazer política você tem que ter razão. Você tem que ter força, representatividade, e você tem que ter astúcia. Você tem que fazer com que o inimigo venha jogar no terreno que te seja mais favorável, não se você cair na dele. No caso da luta armada, é evidente: se você vai para a luta armada, esse exército todo, esse aparato, e qualquer grupo que se metesse a besta a correlação de forças seria desfavorável, absolutamente. "Ah, mas como é que você sabia disso?" Então vamos, pega lá. Pega aqui o urso e o jacaré. Vamos lá, brigar os dois, quem ganha essa briga? Quem ganha?
P/1 - Depende, se for na terra ou se for na água.
R - Exatamente. Então não é apenas você ter razão e ter força. Ter razão e ter força e a nossa proposta é que essa luta viesse a se dar no plano da política, no plano da cultura, no plano da relação civilizada, sem preconceito com ninguém, inclusive com os militares. Venham. Ou com a igreja. A igreja não ajudou dar o golpe lá em 64? Ia ficar estigmatizada para sempre? Não, venha para cá e aprenda com a vida. E se de repente você ver que está com a visão estreita, também se aprende com outro. Não é verdade que você só aprende com os aliados, você também aprende com os adversários. Então vai para luta armada? Nós teríamos morrido. Eu não estava aqui. De alguma maneira, uma parte da minha vida se resolveu porque não acreditava que eu ia viver tanto. Sinceramente, 70 anos, ter filhos, netos, isso nunca... eu achava eu ia morrer logo. Essa disponibilidade de mim mesmo, tão logo eu pude ter, me fez talvez um cara sem nenhum tipo de melindre. Se nós três estamos discutindo uma coisa, eu tive uma ideia, vocês estão de acordo, mas quem tem condição de implantar essa ideia é ele, não sou eu, porra, qual é o problema? Se você trabalhar com a ideia de que a vida tem fim, toda a vida tem começo, meio e fim, mas poderia a vida não ter fim. Que cada um de nós durante a sua vida, durante o temporário da sua vida, contribuísse para que a vida continuasse. Eu acho essa uma dimensão legal da vida. Quando o cara faz um poema, ou bate uma foto, ou organiza uma instituição, uma coisa que fica, ele está de alguma maneira estendendo a sua vida. Está fazendo com que ela não morra com ele. Ele fica, de alguma maneira. Não apenas na memória dos filhos, mas também nas obras que ele deixa no mundo. E essas obras, grande parte delas, não serão reconhecidas. É preciso que as pessoas saibam que não é verdade que o mais importante é você ir e meter a assinatura embaixo, isso não tem importância. Esses caras que fazem questão disso, muitas vezes deixam de fazer porque não seria com a porra da autoria dele, o que é um erro.
P/2 - Sergio, seu filho e seu casamento, seu primeiro filho, é da faculdade ainda, logo após a faculdade?
R - Quando que eu casei?
P/2 - É.
R - Não.
P/2 - Não sei se eu estou pulando um tempo... o Paulinho tem quantos anos?
R - 85... 34, talvez.
P/2 - Ah, então vamos esperar que ainda estamos...
R - Eu posso dizer que eu fui casado quatro vezes, quer dizer, eu namorei a Neuza Fiorda da terceira série do ginásio até o terceiro ano da faculdade. Só tive uma namorada. Depois, foi a época que eu ia deixar tudo para ir para a militância política em tempo integral, sobretudo por conta da experiência do Chile, depois eu conto isso, o negócio do golpe no Chile. Bom, aí a mãe da Lígia e do Paulinho, a Lúcia, ficamos casados durante quase dez anos. E agora, com a Ana Luíza, vinte e tantos. Então é assim. Na verdade você tocou em uma coisa que eu...
P/2 - Desculpa.
R - Mas eu não sei mais o que.
P/1 - Quando você ouviu pela primeira vez o nome de Vladimir Herzog? Ele foi seu professor na época?
R - Não. Foi através do Miguel Urbano Rodrigues. Porque existia aqui a redação dos sonhos. Então tinha Miguel Urbano, Rodolfo Konder, Luiz Weis, o Marco Antônio Rocha, o Anthony de Christo, o Fernando Morais etc. Existia uma redação que eram os professores que a gente gostaria de ter.
P/1 - Você se refere à revista “Visão”?
R - Revista “Visão”. Eu vou contar. Vamos ver se eu consigo contar isso, porque eu nunca contei. Vamos ver se eu consigo explicar isso direitinho. Quando a gente passa no vestibular e entra na ECA, em 1970, tem lá essa turma grande: um quer fazer cinema, teatro, essa turma todo mundo sabia o que queria. O Centro Acadêmico não existe. Abandonado à própria sorte, o presidente chamava-se Ciro Marcondes, que fala alemão. Ele se jacta [disso]. Deve ser uma coisa muito importante falar alemão, porque todo mundo quando fala de Ciro Marcondes, [diz que] "ele fala alemão; fala, lê e escreve". E ele era o presidente do Centro Acadêmico. E aí, quando terminou o primeiro semestre, a gente tinha tido uma experiência muito esquisita porque grande parte dos professores não dava aula. Eles tinham uma postura democrática que era eleger os temas e propor aos alunos que fizessem seminários para dar em classe. E aquilo que parecia uma coisa participativa, democrática, na verdade era um desencargo de consciência, porque grande parte desses professores não tinha qualificação ainda para dar as aulas, aguentar [o rojão]. Então, uma forma era devolver para os alunos. Acontece que nós éramos uma sala de 100 no primeiro ano, 100 no segundo ano, e depois ela se dividiria pelas artes. E esses caras sabiam perfeitamente o que queriam, não eram mais os salvados do incêndio: "Ah, não tem nada para fazer, vai para a ECA". Então, não: agora a gente sabe. Uns querem fazer jornalismo, outros querem fazer teatro, cinema, música e tal. Bom. E aí aconteceu que um professor disse assim: "São 100, então são 10 grupos de 10", para dar os seminários. Tá. Então a gente se escolhia. Aí vinha o outro professor e dizia assim: "Eu quero seminários com grupos de sete". Aí vinha o outro professor e queria grupos de cinco. O que nos atrapalhava, está certo? Nós falamos: "Porra nenhuma, é tudo dez". A gente se organiza e aí sábado e domingo a gente estudava. Teve uma professora que resolveu nos sacanear e logo na primeira semana nos entregou um papel em mimeografado com relação de 80 livros. E elas disse assim: "A minha bibliografia básica é esta. Vocês passaram no vestibular de 40 para um, não tem nenhuma imbecil a bordo, portanto eu dou de barato que esses livros todos vocês já leram. Então o meu curso é daqui para frente". Quando a gente foi ver aquele troço, ninguém tinha lido nada. Bom, fomos às bibliotecas descobrir os livros e tal. Como éramos grupo de dez, então cada um de nós leria um livro, nos fins de semana fazia resenha, grupo de estudo, que era uma coisa que existia, e portanto em 15 dias a sala tinha pelo menos um de nós que tinha lido o livro inteiro e pelo menos 9 que sabia o livro de orelha, pois tinha sido feito o relato. O que criou grande dificuldade para essa professora porque ela não tinha lido. Putz, se fodeu. Aí a gente sentia falta de atividade prática: não tinha jornal laboratório, não havia agência universitária de notícias, não tinha o jornalzinho de Centro Acadêmico, então era uma Escola de Comunicações sem meios. E a gente resolve fazer: avisamos a todos os professores, a nossa turma do primeiro ano, que não tirassem férias na primeira semana de julho porque nós iriamos organizar um fórum de avaliação e planejamento. Todo mundo junto. Queremos saber qual era o plano que o senhor tinha, professor, e se esse plano se realizou ou não, se deu tempo ou não deu tempo, o que faltou, como é que deve ser. Alguns professores ficaram com muito cagaço disso, de serem submetidos a essa sabatina dos alunos, e eles não estavam acostumados com isso, com aluno que queria mais, estavam acostumados com aluno que não queria. Então você tinha uma, vamos dizer, inércia, sei lá, em que o cara que era revolucionário, "anti-establishment", ele ia para Itatiaia, ia puxar fumo, ele era um vagabundo; ele manifestava essa contrariedade com o sistema se colocando à margem. E a gente achava que não, a gente achava que a gente tinha que se qualificar profissionalmente porque o peso político da palavra do [Oscar] Niemeyer, [por exemplo], não é pelo que ele diz, é porque ele é o Niemeyer. O peso político do que o Adib Jatene fala é porque ele é o Adib Jatene. Era. Então, de alguma maneira, a depender da qualificação profissional do cara, ele influi mais ou menos politicamente, mas depende muito do que ele faz na sua profissão. E, portanto, lembra [do filme] “A Classe Operária Vai ao Paraíso”? Os caras que acham que repetindo três ou quatro slogans e engrossar a veia do pescoço que isso já [o que basta]. Porra nenhuma: você pode gritar o que quiser e as pessoas não te ouvem. Então, como é que a gente se qualifica? Quando a gente chega nesse seminário, fala assim: "Porra, é evidente que está ausente aqui o pessoal que realiza, não tem nenhum professor aqui que faz". Quando foi em setembro/outubro nós montamos uma chapa e ganhamos o Centro Acadêmico, a turma do primeiro ano. Não era uma chapa do Partidão, era uma chapa do primeiro ano. A política do Partidão era não partidarizar. Isso fica complicado para as pessoas entenderem se é possível isso: uma política partidária de não partidarização. Até hoje ainda é uma coisa muito sofisticada, as pessoas têm dificuldade de achar que possa ser isso mesmo. Tem que ser representativo de todo mundo. Bom, com o negócio do tal dos seminários... Porque os professores falavam semestre, é o primeiro semestre e o segundo semestre. Mas, porra, não é um semestre, é um quadrimestre. É março, abril, maio, junho. Ou agosto, setembro, outubro, novembro. Se essa aula é uma vez por semana, quantas semanas tem quatro meses? No máximo 17. Aí tem uma ou outra ponte, 17 vira 16 ou 15. Você tem uma aula ou duas que você perde no início, que é negócio de recepção ao calouro etc., sobram 12. Aí esse professor consegue ter fôlego para dar as três primeiras, sobram nove. Quando chegar na hora dos seminários, não tinha tempo desses seminários serem apresentado em classe. E aí vinham os professores e diziam assim: "Não, faz assim, faz por escrito, me entrega que eu dou nota". O caralho. Nós fizemos [seminários] para dar para os nossos colegas assistirem, assistimos ao seminário dos outros, nós também queremos dar. Vamos fazer o seguinte, a senhora vem sábado. Só tem aula das 8 às 10, então das 10 ao meio-dia... "Ah, mas eu não ganho para vir sábado". "Vem, a senhora vem; se a senhora não vier é seu problema, nós vamos dar o seminário". Mas, por que tinha duas aulas sábado e não quatro? Se na quarta-feira tinha duas e não quatro? Que porra de estrutura é essa dessa escola toda troncha? "Ah, porque existe uma lei que para escola poder ser reconhecida pelo MEC tem que ter um número mínimo de dias letivos, isso significa ter aula sábado, seis dias por semana.” “Eu sei, mas então por que não tem quatro aulas na quarta e quatro no sábado?” “Não, porque existe uma outra lei que é carga horária máxima, e a carga horária máxima não pode passar de tanto, que distribuindo significava dois dentes quebrados, um na quarta e outro no sábado.” “Mas não dava para pegar essas duas aulas de sábado e pôr aqui na quarta?” “E aí, não.” Bom, tanto fizeram, aí teve a eleição dos alunos para o Conselho Departamental, e o fato é que nós combinamos o seguinte: das 10 ao meio-dia, seminários e debates. O Centro Acadêmico conquistou depois, por lei, que o sábado era nosso. Essa é a pré-história do Repórter do Futuro, cursos e atividades, que podia passar um filme, podia ser uma mesa redonda, podia ser um chá com bolachas e de 78 rotações, como a gente fez. Teve uma exposição no sábado, de fotos, de álbuns familiares, isso que vocês estão pedindo aqui, que todo mundo fosse lá e tal, fizeram uma grande exposição. Coisas que eram possíveis na ECA, que não eram possíveis na Poli, nem no Direito, que eram todas cheias de tradição, mas no caso da ECA não tinha tradição nenhuma, nós faríamos as tradições. Então, o que a gente inventou? Se nós tivéssemos uma revista semanal, qual era a matéria de capa dessa semana? Então, como isso não é tratado no curso, um curso, embora de jornalismo, em grande parte, mas que não consegue ter ligação com a atualidade, porque já tem todas as aulas programadas, e se a gente... O que seria essa semana? Para vocês dois, o que seria o assunto?
P/1 - Bolsonaro e Macron.
P/2 - Moratória da Argentina.
R - Moratória da Argentina, podia ser.
P/1 - Amazônia.
R - Amazônia, talvez. Enfim, então a gente inventou que sábado era o dia da gente tratar, em seminários de debates, essas coisas da atualidade, e chamar pessoas para virem falar no sábado. É aí que eu conheço o Vlado. Porque a gente foi chamar, nós íamos buscar onde? Altamente qualificados e garantia de que eram politicamente referenciados, que aquela era a base do Partidão, certo? A gente nunca conversou sobre Partidão. Então iam para lá, para a redação, para convidar pessoas: Rodolfo Konder veio falar, Miguel Urbano Rodrigues veio falar; mas a gente também ia lá para aprender e para sugerir pautas. Porque às vezes tinha isso: tinha um assunto que a gente estava ligado com ele, que precisava ser relatado, explicado etc., mas que nós mesmos não tínhamos competência de pôr isso no papel. A não ser que você fizesse os panfletos de praxe, só com os bordões e as obviedades de praxe. O que está acontecendo na universidade, que crise é essa que está acompanhando a universidade? Ou Renato, que estava na “Veja”, ou o pessoal da “Visão” faziam esse trabalho de grande reportagem, e ao publicar eles estavam criando esse documento que nós não éramos capazes de fazer.
P/1 - E qual foi a primeira impressão que você teve dele?
R - Hein?
P/1 - A primeira impressão que você teve do Vlado, quando o conheceu?
R - É o que todo mundo falava: sempre muito discreto, sempre debruçado sobre o que ler, um cara genuinamente preocupado com a obra que ele estava fazendo, não se dispersava não.
P/1 - E a ponta da sua convivência com ele se deu a partir desse processo de convite das pessoas para falar na ECA, é isso?
R - É, porque o que a gente estava fazendo, na verdade, era uma outra forma de fazer política, que foi derrotada durante um ano e meio no Conselho dos Centros Acadêmicos da USP. Eu era o representante do meu Centro Acadêmico e durante um ano e meio fui derrotado por 16 a 1. Então o nosso grêmio levantava que a gente devia procurar o Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo recém-empossado, para imaginar atividades conjuntas de solidariedade à família dos presos, perseguidos etc. Precisava fazer alguma coisa junto. O que se dizia ali? Que não, que o Dom Paulo era um pequeno burguês, centrista, minifundista, catarinense. Que aliança com a igreja sim, mas com a igreja da libertação, da revolução, que é o Dom Helder [Câmara], lá em Olinda, ou [Dom Pedro] Casaldáliga, em São Félix [do Araguaia]. O que eu dizia? Nós não temos nada contra o Dom Hélder nem contra o Casaldáliga, porra, o caralho, mas é longe. A gente pega o ônibus aqui em Higienópolis, 890, batemos lá na porta e vamos conversar com o cara. Vamos ver o que sai. "Não." Aí nós fomos; a ECA foi. É por isso que a ECA, os alunos da ECA, são a interlocução principal para organizar a missa do Alexandre Vannucchi, em março de 1973. Aquilo não foi como é contado hoje aí, que teve um show do Gilberto Gil, que não sei o quê, e 12 alunos foram até o Perseu Abramo, na “Folha [de S.Paulo]”: "Ah, Perseu, e tal". "Ah, procurem Dom Paulo." Aí o Dom Paulo foi e fez a missa. Porra, essa cascata desarma as pessoas, entendeu? Por que eu estou interessado em dar depoimentos? Não é por uma questão saudosista, não é negócio de numismata, colecionador, é porque as coisas aconteceram de um determinado jeito e quando nós estamos falando de protagonismo das pessoas comuns, como é o meu caso, eu sou filho do senhor Zé Maria, da Dona Adelaide, está certo? Não tem grana atrás, não tem prestígio, não tem porra nenhuma. Nunca tive nenhum cargo. Se eu consegui fazer, é prova de que todo mundo pode.
P/1 - Detalha um pouco desse episódio do Alexandre Vannucchi?
R - No caso, o que prevaleceu na época dos pequenos grupos que tinham restado, ALN, o pessoal da AP, da AP-ML etc., o fato é que entrava uma turma nova que estava em sintonia com as possibilidades e o que os jovens queriam, que era fazer as coisas, a vida, como a vida deveria ser. E no ambiente universitário você tinha mais possibilidade do que fazer na periferia. Então não é verdade que estava tudo proibido. Nós podíamos fazer coisas que eles não conseguiam proibir, se a gente fizesse bem feito, de tal maneira que o cara não conseguisse vir nos atrapalhar. Passar um filme, está proibido? Ué, se você for fazer no Belas Artes, óbvio que está, mas aqui, não. Você imprimia o jornal, o que dizia o grupo? Nós criamos o jornal “A Prensa”, depois “A Prensinha”, depois a revista “Balão”. Sei que os grupos aparentemente revolucionários, que eu chamo daqueles da veia grossa no pescoço, ranhetas, zangados, sem humor – uma parte das dificuldades nossas da esquerda é que a esquerda parece que não tem amor à vida. Então, caralho, vai se foder. Gente ranheta, zangada, encrenqueira. Como diz o Laerte: "O cenho franzido era um logotipo do revolucionário". Então quando chega o Marcão, Marcos Faerman etc., é uma grande dificuldade de lidar com essas pessoas de bom humor, de tirar o sarro. Eu sempre gostei disso. Bom, então imprensa própria não podia, porque era imprensa legal, e se era legal ela coonestava com a ditadura. Só a imprensa clandestina que era revolucionária. Dom Paulo não, por quê? Porque ele era um burguês, simplesmente. Aliança com os professores, para melhorar a qualidade de ensino, não, [pois] que os professores bons foram cassados e os que ficaram coonestam com a ditadura. Ocupar os espaços da representação era também se comprometer com a estrutura, então não participava de eleição de representante no Departamento, nem na Congregação, nem no Conselho Universitário. Mas foi essa política de não deixar nenhum buraco sem ação, considerar que toda instituição tem porosidade, ela não é absolutamente impermeável, foi que nos permitiu eleger o [Orlando Marques de] Paiva como reitor na época em que houve a repressão de 1975, porque o cara que ia ganhar as eleições para reitor era o candidato de Ribeirão Preto, [aliado] do [Paulo] Maluf. Este cara propôs tudo que fosse para a bancada de estudantes: eram seis, o meu irmão era do Conselho. Se ele entrasse como “cagagéssimo”, o terceiro da lista tríplice, ele seria indicado pelo Maluf. Se não tem o Paiva naquela hora para fazer a defesa, porque prenderam o filho do [José] Goldemberg, o Clovis; prenderam o filho do diretor da Odontologia, o Davi Rummel. Prenderam judeus, tá? E o nosso projeto é o seguinte: nós queremos recrutar os judeus, nós queremos o que há de melhor, nós não queremos o rebotalho, estamos cagando pra esse pessoal do pebolim, vai se foder. O pessoal que está com o Rui Facó, de achar que o PCC ou Lampião são manifestações pré-políticas e que isso revela um ânimo etc. e tal, quem se iludir com isso, vai passar merda. Nós queremos gente qualificada, nós queremos ter no futuro os melhores artistas, os melhores economistas, os melhores jornalistas. Foi essa a tradição brasileira. Sem nenhum plano. Quem são os grandes artistas plásticos brasileiros? De esquerda ou de direita? Os grandes literatos? Os grandes poetas? Os grandes arquitetos? Os grandes físicos? O povo brasileiro teve da Segunda Guerra para cá, de graça, ganhou na loteria sem ter comprado bilhete, o melhor. E essa tradição se rompeu de 20, 20 e poucos anos para cá. As melhores cabeças foram querer trabalhar para esses bancos que estão aí. Ser “yuppie”. E a esquerda fica com o rebotalho, segundo e terceiro time ficaram aqui. Eu não devia estar falando isso aqui, que é politicamente incorreto hoje, não é isso? Tá falado. Então nós queríamos o que houvesse de melhor porque, na nossa ideia, a nossa contribuição política para o país não se dava apenas durante o tempo de estudante, movimento estudantil. Era movimento universitário, que chamasse também os professores e os profissionais da área para que a gente se qualificasse e, aí sim, para ao longo da vida, dar uma contribuição para o nosso país. Como arquiteto, como sociólogo, como economista, como historiador, como médico etc. Ou seja, que é isso que vem resultar no chamado associativismo aqui em São Paulo. Não é por outro caminho que é aqui que se cria o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, o Movimento de Renovação Médica, que vai dar na 8ª Conferência e a plataforma que é incorporada na Constituição de 1988, do Sistema Único de Saúde. Quem é que sabe disso? Mas onde que nasceu isso, tem algum livro, tem algum documento que diz? Não, essas coisas vão ter que ser levantadas por essa história para provar que uma boa ideia não tem dono, uma ideia tem futuro. Temos aqui o Parque Villa-Lobos, segundo parque mais visitado de São Paulo, não é isso? Ibirapuera e depois é esse. Pega aí na história, vai lá no Google, Parque Villa-Lobos, quem foi que criou o Parque Villa-Lobos? Vai aparecer Fábio Feldmann. Não aparece em nenhum plano diretor. Quem criou isso foi Fred Bussinger, que era presidente da Associação das Ligas Atléticas da USP, fez Poli, fez Economia, o cara que mais entende de trânsito e transporte hoje, e seus colegas da juventude MDB, aqui do diretório do MDB no qual eu me incluía. Descobrimos que a ONU, num determinado ano, era Ano Internacional da Criança, e que esse terrenão era do J.J. Abdala, “o mau patrão”. E que o terreno estava contaminado e que ele estava numa negociata de ganhar muito dinheiro com essa porra. Nós falamos: "Vai, o caralho. Isso aqui vai ser o Parque da Criança". Pegamos no Dia da Criança, fizemos uma festa, metemos lá uma pedra, fizemos uma fogueira e a partir daí, depois, o Parque da Criança vai virar o Parque Villa-Lobos. Posso pegar várias coisas aqui. Essa do Dom Paulo: não teria o ato ecumênico com Dom Paulo, [o rabino] Henry Sobel [e o pastor Jaime Wright], em 1975, sem a experiência concreta de 30 de março de 1973, com Alexandre Vannucchi. A missa por Alexandre Vannuchi só foi possível porque foi construída uma relação de confiança genuína entre o pessoal da igreja, que estava chegando, e do movimento de universitário, movimento estudantil, que éramos nós. Essas coisas, grande parte das coisas, acontecem ou não acontecem se as pessoas se guiam de alguma maneira pelos padrões da cultura caipira: o que é vale a palavra. Na cultura caipira, como todo mundo é analfabeto, ou a palavra vale... Nada pior do que um caipira dizer: "Oh, esquece, esse não honra a palavra". Um caipira que cai na boca dos outros como não tendo palavra, se fodeu.
P/1 - Para o resto da vida.
R - Ora, no nosso meio, essas coisas da luta contra a opressão, contra o caralho, você acha que vai ter contrato, direitinho? É tudo na palavra. Então quando nós estamos falando do ambiente de solidariedade real, de confiança real, é isso que permite a imaginação, é isso que permite a criatividade, e do cara falar: "Oh, meu, não vai dar. Nós vamos chegar até aqui”. Você acha que a exposição a essa altura, no [Instituto Cultural] Itaú era só isso? Mas era isso que tinha que ser feito. Era exatamente isto. Não era de novo reabrir a chaga, era mostrar que este profissional, quando foi abatido e deu esse rebu todo, é porque ele era esse cara e tinha esse círculo todo. Não era um banana. “Não, era um passivo, era um banana.” Banana?
P/2 - Você lembra de aulas do Vlado? Como se organizava essa?
R - Não, eu nunca tive aula com ele.
P/2 - Não, mas não "aula" aula, essa frequentação deles a ECA.
R - Não, eu não sou da época da ECA, eu já tinha saído da ECA. Lembra que eu saio em 1973, e ele só vai para lá pela mão Diléa [Frate] depois.
P/1 - Diléa Frate?
R - Diléa Frate. Foi a Diléa que levou ele para lá, que ela também queria fazer carreira acadêmica; e ele ficou alguns meses na condição de professor auxiliar, que era um negócio que tinha na USP, que era trabalhar dois ou três anos de graça, aí sim é que você poderia pleitear o concurso.
P/2 - Então, é que eu achei que estava nessa turma que você falou, dessa redação.
R - Não, isso era...
P/1 - Nos seminários de sábado.
R - É, o seminário de sábado que criava um ambiente, porque nós éramos gente que não estava só interessada no movimentismo.
P/2 - Mas o Vlado estava nessa turma das pessoas que frequentavam a convite.
R - Por exemplo, eu tinha carro, isso era um diferencial fodido: ter um carro com dinheiro para gasolina, poder andar, como era o meu caso, me fazia uma pessoa muito útil. Então se você estava precisando imediatamente tirar o passaporte para cair fora do país e isso era no Rio de Janeiro, essa noite mesmo eu vou até o Rio de carro e voltaremos dia seguinte, e essa coisa está resolvida. Para você montar uma reunião aqui, só 6% das casas de São Paulo tinham telefone, evidente que não tinha celular nem nada. Montar uma reunião com 10, 12 pessoas, isto é uma mão de obra que eu sei o tempo que dá: você fica em um, com outro, quando é que é, a que horas que é, depois pegar cada um etc. Então a micropolítica, que a maior parte das pessoas hoje deixa para lá, bota uma garrafa qualquer aí com um bilhete dentro, joga no mar, publiquei na internet, eu publiquei no meu post, como se isso desse... porra nenhuma: você tem que ligar. Não é assim? Você ligou de novo, está valendo quinta-feira etc. A gente é da velha guarda; sabe que o cara não vai desonrar o compromisso, mas de repente o cara esquece, está certo? Você tem que dar ponto e nó. Então, no caso, essa redação a gente também queria engravidá-la com pautas, não era só ir lá puxar o saco. Nós tínhamos coisas que a gente sabia e que eles não sabiam, nós éramos uma espécie de repórteres, ou seja, isso para quem está numa redação de uma revista semanal, que tem grandes articulistas, mas poucos repórteres, que era o caso da “Visão”, ora, eu posso avaliar o que era de interessante para eles um cara que nem eu. Um sujeito que está em mil coisas, que não está de sacanagem, que não está querendo nada, então como é que é? E eu conto. E quando precisei ser ajudado, também podia. O que aconteceu. Teve o golpe no Chile: 11 de setembro de 1973. Os primeiros 15 ou 20 dias depois o golpe, a gente imaginava que haveria um racha no exército, que o general [Carlos] Prats seria capaz de ficar com uma parte, [pois] que a tradição do exército chileno não era golpista, era secularmente legalista. Durante umas duas semanas, o mundo todo acompanhou, depois da morte do Allende, que havia a possibilidade de haver uma guerra civil em um padrão semelhante à da Guerra Civil Espanhola, que o país se dividiria. E do mesmo jeito que houve na Guerra Civil Espanhola, começaram a se organizar no mundo todo as Brigadas Internacionais, de ir para o Chile e tal. E, portanto, a essa altura eu sou do comitê universitário do Partidão, e uma das coisas que nós começamos a fazer foi exatamente isso: quem está a fim de ir para o Chile para gente enfrentar essa barra? Porque a gente sabia que com os comandantes, com a ITT, com o [Henry] Kissinger, isso não era um “golpinho”. Na verdade, era um laboratório bastante antecipado das principais teorias neoliberais, economia, privatização, e dá no que deu. E aí foi se dar alguns meses depois, em Buenos Aires, eu não tenho essa data certinho, mas eu recupero, um grande encontro da União Internacional dos Estudantes. E ele [Jaime Leite] demorou mais de um ano para voltar, um ano, um ano e meio. Quando ele volta, eu pego o carro, fio de bigode, a palavra, vou lá devolver o carro para ele. "Não, mais agora não dá, sabe, é que eu estou voltando debaixo de um acordo." "Como assim?", "Não, é porque com o Segundo [Nacional] Plano de Desenvolvimento, implementado no período do [governo do general Ernesto] Geisel, chegaram à conclusão de que não é possível desenvolver o país sem reforçar a massa crítica, e que foram exilados muitos quadros qualificados, então haverá um esforço de retorno desse intelectuais." É assim que se forma a Unicamp, o [reitor] Zeferino Vaz trazendo todo mundo do Chile e de outros [países]. Então havia uma estratégia do governo do Geisel, do Golbery [do Couto e Silva], de reintegração de uma parte da intelectualidade brasileira, que estava fora, sobretudo nas áreas sensíveis para o desenvolvimento. E que essas pessoas voltavam debaixo de um acordo de não se meterem em política, e que foi o caso dele [Jaime Leite]. Como ele tinha feito Direito, ele foi designado delegado de polícia na Zona Leste [de São Paulo]. O cara que disse "nesta mesa Marighella...", um ano e meio depois [diz]: "Olha, infelizmente não vou poder ficar com o carro, agora você faz o que você quiser com ele, porque agora eu estou voltando debaixo dessa condição”. Delegado de polícia! E nós: “Opa!” Nunca mais contato, vendo o carro, com ele se dá entrada no Fusca, que vai ser depois com o que eu vou andar 300 mil quilômetros. Um dia chegamos nós num sábado, então sábado semanal. Qual é o tema do sábado, dia nosso, que a gente foi conquistando? Coincidia com o aniversário do lançando a bomba de Hiroshima. Então chamamos Rodolfo Konder para falar. Aí vai aparecer uma mulher chamada H. D. – um dia a gente conversa sobre ela, secretamente. E a outra, que tinha surgido um programa patrocinado pela Xerox, só tinha anúncio no começo e no fim, na TV Cultura, chamado “Vila Sésamo”. Com Sônia Braga, Gianfrancesco Guarnieri, e aí tinha uns filminhos, matemática etc. Falei: "Que programa é esse?" Um programa voltado para as crianças, pré-escola, para crianças de três, quatro anos, na televisão, patrocinado pela Xerox? A Xerox não vende nada para criança. Então vamos fazer o seguinte: esse programa vai ser lançado, vamos transformar esse assunto num dos assuntos do sábado. E quem era o cara coordenador disso era um cara chamado [Claudio] Petraglia, que trabalhava na TV Bandeirantes. Aí vou até à Bandeirantes, em nome do centro acadêmico convidar ele, se não vinha sábado e tal, para pegar o copião do “Vila Sésamo”, e ele diz assim: "Agradeço, vamos sim, o copião está aqui, mas eu não tenho possibilidade e quem vai será o cara que está à frente do projeto, que é o meu braço direito”. Quem é? Jaime Leite. Jaime Leite, professor do cursinho, ALN, preso do DOI-Codi, vai embora, volta um ano e meio [depois]. E o Jaime Leite, por delegação do Petraglia, será o nosso convidado. Eu pego o Jaime e falo: "Bom, Jaime, vamos lá". E teve a coisa toda: assistiu, passou, copiamos, ele era realmente o braço direito. “Agora vem cá, eu conheço você o suficiente, vice e versa. Você vai me contar que porra é essa. Como você está metido nisso?” Aí ele diz assim: "É o seguinte: só oito países têm os direitos de Vila Sésamo, então tem uma coisa cenográfica, uma coisa teatral, que é uma vila que tudo se resolve no mutirão. Não existe Estado, não tem posto, não tem polícia, nada, é uma vila, tudo se resolve harmoniosamente ali no meio daquele conflito. E depois na outra parte do programa são exercícios matemáticos, de pensamento abstrato, que é muito interessante aqueles bichinhos e tudo”. Então assim: foi feito uma projeção pelo Departamento de Estado americano de qual é a curva daqui até o ano 2000 e caralhada dos interesses americanos no mundo. E, portanto, terá que ter à frente desses negócios dos interesses americanos no mundo gente que seja ao mesmo tempo identificado com programa da pátria americana, mas gente intelectualmente qualificada. Portanto, há a exigência de no mínimo 160 de QI. Então, temos que ter a combinação: gente altamente inteligente identificada com os valores americanos. Acontece que de 0 a 5 anos você consegue agregar 5 pontos de QI, a depender do tipo de estimulação cerebral que se faça. Então de 0 a 5, dá 25, de 5 a 18, a depender mais 1. Então de 5 a 18 dá 13, tá certo? 13 com 25 dá quanto?
P/1 - 38.
R - 38. Então se você conseguir desenvolver um programa educacional nos Estados Unidos de pré-escola, que não tem, a gente consegue esta massa de agregar até 38 [pontos]. A partir dos 18 [anos], é do jeito que você é: aí pode saber mais, pode saber menos, aí você é você. Em termos de QI, você só agrega a depender disso aqui. Portanto, quando se fez o cálculo de quanto deveria ter de instalações, professores, funcionários etc. para você conseguir da pré-escola à massa de crianças americanas para poder produzir lá na frente esse diferencial, se chegou à conclusão de que isso era caro demais. Então, isso vai ser feito pela televisão e, num tipo de Lei Rouanet, a Xerox é que vai bancar isso tudo. Ela banca com o imposto que ela não deixa de pagar e tal. E são oito países que são os países estratégicos para o interesse americano, Brasil é um para você poder fazer o “Vila Sésamo” customizado e tal. “Então é isso que eu estou fazendo. É isso. Eu estou aqui metido no meio porque, além da questão ideológica de que tudo pode ser resolvido harmonicamente pela vida em sociedade, de grupo, a vila, você tem a questão dos exercícios de matemática que você puxa para cima. E você vê criança que é capaz de fazer coisas hoje inimagináveis.” Então era isso, e fazia parte então desse acordo, de ele vir para o Brasil, trabalhar nesse projeto estratégico. Então nesse dia a gente descobriu que o “Vila Sésamo” não era um programa. Ele era um elemento muito sofisticado de uma estratégia não de dominação militar.
P/2 - Um soft power.
R - Não é? Jaime Leite.
P/1 - Pois é.
R - Então uma coisa vai dando na outra, vai dando na outra, vai descobrindo, quando você vê... Então a questão da qualificação profissional, quer dizer, "Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão", isso tem importância pra caralho. "Roda de conversa com os ganhadores do Prêmio Vladimir Herzog, votado pelos estudantes, para eles descobrirem como é que se faz", isso tem importância pra caralho. Mas quem é que aposta nisso? Você tem o pessoal que quer o trabalho da educação meio comportamentalizado e, se possível, nas periferias. A ideia de educação como uma espécie de política de compensação pra quem não teve. E eu estou dizendo “não, isso toca de qualquer jeito; eu estou falando aqui, estou falando dessa parte altamente qualificada”. Era preciso que os grandes cientistas, técnicos, estivessem do lado do povo. A tradição brasileira é essa.
P/1 - Isso era tema das suas conversas com o Vlado, nesses encontros aí periódicos?
R - Era, era.
P/1 - Qual era a posição que ele tinha sobre isso?
R - Como não se tratava de nada prático, quer dizer, na verdade nós estamos pegando pela primeira vez algumas coisas, por exemplo, isso que eu estou te falando. Eu contei para ele sobre o “Vila Sésamo”. Não sei o que ele fez com isso depois, porque eu não era leitor assíduo da revista. O certo é que essa revista não circulava no nosso meio.
P/1 - Era uma revista elitista, na verdade. Sofisticada.
R - Como é que ela circulava no nosso meio? Porque a gente tinha uma política, e eu me orgulho de ter sido um dos empenhados nisso, de fazer boas relações com os gráficos, seja a gráfica da Reitoria [da USP], seja a gráfica do IPT. Então, quando ficavam pronta essas matérias importantes da revista “Visão”, eu já pegava um exemplar, levava para o IPT, fazia "plastic plate", imprimindo com foto e tudo mais, em geral a gente fazia com papel sulfite colorido, para ficar claro, e imprimia, grampeava, e depois vendia como se fosse um separata dessa matéria. Fizemos isso com várias matérias da “Visão”. Eu ainda vou descobrir algumas dessas edições complementares.
P/1 - Chupadas.
R - Aí a “Visão” tinha produzido uma análise sobre a crise política e cultural que nós não seríamos capazes de fazer. Não tinha nenhum comitê central, comitê estadual, comitê universitário capaz de produzir. Esse intelectual coletivo não era capaz de produzir um documento como era possível de ser produzido na “Visão” com o Vlado podendo mover não sei quantos repórteres. Ele juntava tudo isso. "Ah, mas isso aí ninguém vê, porque a ‘Visão’ é vista só pela elite econômica.” Tudo bem, mas nós vamos reimprimir e distribuir para nós. E aí o tal dos grupos de estudo, que aconteceu de fim de semana, eles funcionavam como uma sementeira: então teve muita gente que aprendeu com a “Visão” sem ter nunca comprado um exemplar, que aprendeu com o Vlado sem saber que era ele, porque ele não assinava, ele era o editor.
P/1 - O que ele achava dessa ideia, o que ele dizia a você sobre esse tipo de iniciativa?
R - Ah, ele gostava, evidente. Evidente que ele gostava. Mas nós não estávamos fazendo ali em troca de nada, não era depois pedir favor para ele dar a carta de cobertura. Fazia parte. O princípio da solidariedade concreta não é só negócio de falar, é a visita, é passar na porta do cara para saber se está tudo bem, é o fulano de repente estar desempregado e arrumar um jeito de, sem humilhar o cara, arrumar um emprego para o fulano. Também tem isso. Aí aparece um convite, de onde veio o convite? Opa. Um falou bem para o outro, que falou para outro... Sobretudo nessa área do jornalismo, raramente aparece anúncio. A “Folha [de S.Paulo”] faz isso para fazer de conta que está fazendo uma consulta pública. Na verdade, não é assim. Na verdade você monta uma redação com caras de absoluta confiança, você tem que ter gente que seja capaz... Você está aqui há quanto tempo, meu xará?
P/3 - Ano passado.
R - Então você [o cinegrafista] ainda não está no ponto, mas vai chegar numa hora que não vai ser tudo tão domesticado, dois perguntadores, o fulano imobilizado aqui e você aí. Você pode estar noutra. Vai chegar uma hora que às vezes você vai ter que estar documentando o fulano na casa dele. E que de repente tem um bule, e vocês vão precisar se falar de olho. Enquanto não tiver essa capacidade de combinado de olho... Aqui havia talvez o maior repórter... como é que é o nome do cara que terminou na Gazeta? Que era o “Comando da Madrugada”.
P/2 - Goulart de Andrade.
R - Ele tinha o câmera dele chamado Capeta. Nunca houve uma dupla tão boa quanto essa. Eles se entendiam. Ele às vezes entrava num lugar proibido, ele na frente e o câmera atrás, e o que era importante eram a janelas do presídio que estavam aqui. E ele andando. Então você ia filmar as janelas, mas ele não podia parar na frente dos carcereiros [e pedir]: “Sérgio, filma as janelas”. acabou de se foder. Você precisa dar um toque, [e ele] entendia. Até chegar nesse ponto de intelectual coletivo, de quando você não é um bando, quando você é uma equipe, então tem muita coisa vivida, conversada, e aí a vida fica do caralho. Às vezes você não precisava... você dá o toque e o sujeito já entendeu. Isso não vira conversa. Negócio de depoimento: a Oboré foi fundada em 1978, a gente não falou nada dela.
P/2 - Eu ia perguntar.
R - Aí começou a luta pela anistia. Alguns, sobretudo velhos dirigentes operários etc., foram saindo dos buracos. Mas [sobre] o negócio de dar depoimento sobre o que eles fizeram na vida, eles eram muito receosos. Porque grande parte desses caras importantes do Comitê Central, dirigentes importantes, eles tinham dado depoimentos para o [Francisco] Weffort, que fez um livro. E o cara que articulou isso foi o... como é que é nome dele? Macedo era o codinome dele. Bom, o fato é que esses caras, a pedido do Comitê Central, deram depoimento para o Weffort, que gravou e tudo. O Weffort pegou esses depoimentos e fez o livro que ele quis, e publica. E usou esses caras. E eles se sentiram roubados porque o seu ponto de vista não foi levado em conta, ele usou para encaixar na tese dele. E estavam muito putos com o que Weffort tinha feito. E havia o receio de que quando a gente criou o movimento pela criação do Centro de Memória Sindical, basicamente com história oral, que a gente viesse fazer a mesma coisa. Além do que eles não tinham nenhuma garantia de que não voltasse a ditadura novamente. Então cara estava dando depoimento aqui e facilitando a vida da repressão futura, porque você já está falando tudo aqui, você já está dando depoimento para os caras te condenarem depois. Por que eu vou falar? Vou facilitar a vida da repressão. Aí um cara importante era o Marcos Andreotti, que foi fundador do Sindicato dos Metalúrgicos da Borda do Campo, dos metalúrgicos de Santo André, ainda não existia São Bernardo. Então ele é anterior ao [governo] Juscelino [Kubitscheck], anterior às montadoras. Então lembrar que os Metalúrgicos São Bernardo é desdobramento dos metalúrgicos da Borda do Campo, portanto, Santo André. O Marcos Andreotti tinha ficado na clandestinidade esse tempo todo, e aí sábado sim, sábado não, a gente fazia uma roda de coleta de depoimento lá no Oboré, do movimento pela criação do Centro de Memória Sindical. Eu tinha conversado com ele, tinha a Carmen Lúcia, dois ou três estudantes da PUC, era uma roda de uns cinco, seis, e ele aí. Chegou na hora de falar, não saiu nada. Travou. Não saiu nada. Bom, suspende a coisa toda, bota ele no carro, lá vou eu levar ele para Mauá, ele morava em Mauá. Aí conversando de outros assuntos até chegar lá perto, falei: "Andreotti, o que houve que de repente travou". "Sabe o que é, Sérgio? É o seguinte. Eu não conhecia ninguém. Eu estava me sentindo completamente fora. Eu sou fumante. Lá, tudo bem que eu podia fumar, mas é diferente. O lugar mesmo que eu gosto de pensar é na minha cozinha. Tem lá a cozinha, tem uma cadeira, e eu tenho uma caneca de ágata e uma garrafa, que é um bule, que eu esquento lá. Quando eu encosto aqui essa parte de trás no azulejo da cozinha, eu sinto aquele geladinho assim, gostoso, e aí com essa caneca beiçuda eu ponho o café, misturo com bastante açúcar, e é nessa hora que eu penso bem. Aí vêm as ideias." E isso existe.
P/1 - Certamente. Bom, o fato de a gente estar gravando aqui foi apenas por conta de um problema logístico, mas a galera circula muito e grava muita coisa fora, no habitat, no ambiente, no cenário onde as pessoas se sentem mais à vontade.
R - E você sabe disso. Que o tipo de memória nessa cozinha, com a caneca, é completamente diferente do sujeito ter que mostrar serviço.
P/2 - E o Oboré existe até hoje, não é, Sergio?
R - Há 41 anos. Existe.
P/1 - Me diga uma coisa, eu queria explorar um pouco mais essa sua relação íntima, digamos assim, com o Vlado no sentido de quase que um confessionário, quer dizer, ele elegeu você como um ombro amigo, é isso?
R - Não, eu era um moleque. Isso aí, olha que legal. Então vem o confessionário.
[pausa]
P/1 - Voltamos à pauta de Hiroshima e à análise do Rodolfo Konder, nos seminários de sábado na ECA, a respeito da necessidade política de controlar a mão do disparador de botão.
R - Exatamente. A gente considerava no Centro Acadêmico, sobretudo o pessoal da base do Partidão, que eram já uns 10 ou 15 a essa altura, que a redação da revista “Visão” tinha gente altamente qualificada e ao mesmo tempo sintonizada politicamente com os grandes temas, os novos tempo, portanto ali era uma espécie de estoque, de sementeira, uma espécie de banco de professores auxiliares que a gente tinha, para serem chamados para essa atividade de complementação que o Centro Acadêmico desenvolvia, que era ocupar o sábado com palestras, debates. E a gente conseguiu depois, que a própria regulamentação da escola considerasse que o sábado era dia de aula, com lista de presença e tal. E quem organizava era o Centro Acadêmico. Foi a primeira vez que uma faculdade teve um dia por semana sobre responsabilidade dos próprios alunos. Depois disso, mais tarde vêm umas diretorias mais à esquerda, mais à frente, e acaba com o sábado. Mas isso é uma história que eu não sei contar porque não acompanhei de perto, é só porque eu tinha sido preso, já estava noutra. Enfim. E dentro da nossa ideia de qual era o tema da semana, a gente se dá conta que aquela semana coincidia de ser o aniversário da bomba sobre Hiroshima e Nagasaki, a bomba atômica jogada pelos Estados Unidos, que de alguma maneira fecha o ciclo da Segunda Guerra Mundial e cria o ambiente da Guerra Fria, que vem em seguida. E eu fui até à redação da “Visão” conversar com o Vlado, conversar com o Marco Antônio [Rocha], com o Rodolfo, e a pessoa da redação que melhor tinha condições de fazer uma palestra era o Rodolfo Konder, irmão do Leandro Konder. E lá veio ele no sábado. E ele vem acompanhado de uma pessoa, uma aluna da FAAP, onde havia sido criado um curso de jornalismo e grande parte dos professores eram exatamente os jornalistas da revista “Visão”, incluindo o Rodolfo, o Vlado, Marco Antônio Rocha e outros. Enfim. E ele, Rodolfo, faz a sua exposição, a história toda, de como é que se chegou até a bomba de Hiroshima e Nagasaki, e ele dá conta de uma ideia que, para mim, pessoalmente, ficou definitiva, porque ele dizia o seguinte: que o futuro da humanidade vivente nesse planeta durante toda a história, durante todo o tempo, dependeu basicamente do acaso. Forças impossíveis de serem controladas pelos humanos poderiam determinar se isso aqui para ou continua, desde colisão com asteroide, uma trombada com outro planeta, sei lá, enfim, alguma coisa numa escala que nenhum humano tinha como ir lá jogar umas bombas, dar uns tiros.
P/1 - Prever ou controlar.
R - Há um filme feito algum tempo atrás chamado "Melancolia", que explica bem o que é esse sentimento de você ver que o mundo vai acabar, e vai acabar, e você não tem o que fazer. Mas o que o Rodolfo dizia é que isto tinha deixado de ser assim a partir do momento em que a bomba de Hiroshima e Nagasaki, as duas, porque a partir de então o futuro da humanidade dependia de impedir que a guerra atômica acontecesse, da importância da luta pela paz, de que se articulassem todos os tipos de convênios, protocolos, acordos etc. para impedir que alguém apertasse o botão. De parte a parte. Então, portanto, o futuro da humanidade dependia da ação política consciente da massa de milhões e milhões e milhões. Isso aconteceu em alguns momentos importantes nos Estados Unidos, na luta contra a Guerra do Vietnã, em que você parecia mesmo que a sociedade toda tinha se dado conta do que era aquela tragédia. De alguma maneira, antes da guerra do Iraque, recentemente, a guerra ainda não tinha começado, e você teve milhões, mais de 700 cidades no mundo se manifestaram. Então, portanto, a questão da ação política ia para lá de simplesmente tomar medidas e melhorar o ensino, a qualidade, lutar contra a ditadura eventualmente. Nós estamos falando agora de uma dimensão da atividade política ainda maior. Que mais à frente essa necessária luta pela paz vai se cruzar com uma nova consciência sobre o meio ambiente, de que tão frágil quanto às relações humanas são as relações naturais. E que era preciso não apenas ter consciência do verde, que isso também aconteceu, enquanto você tem os ambientalistas preocupados o tempo todo com a natureza, mas desconectados da sociedade, e os que estavam conectados com a sociedade, cagando e andando para natureza, até dando suporte, uma parte, a essas maluquices que o Bolsonaro tem falado agora, que ou defesa da natureza ou desenvolvimento. Bom, essa foi a palestra do Rodolfo. Agora aqui, eu queria pedir então, formalmente, que esse depoimento se encerrasse aqui e a gente conta um, dois, três e continua gravando, mas a parte que eu vou falar daqui até que eu diga de novo, essa não quero que seja revelada para ninguém, a não ser para vocês que estão aqui, incluindo o Luis Ludmer, até que algumas coisas se esclareçam, sobretudo onde está essa pessoa, essa mulher quem eu vou falar agora. Tudo bem assim?
[corte]
P/1 - Eu queria voltar, Sérgio. Não nos interessa falar novamente sobre o caso, sobre o assassinato, mas dos dobramentos, sim, quer dizer, pelo fato de ser uma pessoa conhecida. Vou contar um episódio, já que você está sendo tão franco, eu serei franco com você também. Eu não conhecia o Vlado. A primeira referência que eu tive do Vlado foi como estudante em Juiz de Fora, quando vejo uma capa do [jornal] “EX”, número 16, na banca: "Vladimir Herzog: liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós". Eu tomei um susto. Se isso está acontecendo, se está pendurado na banca, é que alguma coisa vai mudar. Aí que eu fui saber quem era o Vlado, fui entender, li a matéria do Hamilton Almeida Filho e tudo mais, depois quando eu fui trabalhar no “Versus” conheci a casa onde ele morava, porque o Marcão [Faerman] morava na casa dele. Em certa medida eu me pegava, às vezes, na parte de cima da casa: "Pô, ele passou por aqui". Alguma coisa mudou depois da tragédia, do assassinato. O que mudou? E, nesse sentido, eu queria engatar com uma questão mais focada, digamos assim. Por que Instituto Vladimir Herzog?
R - Então vamos lá nas duas coisas; uma, do ponto de vista pessoal. Na semana que antecedeu a morte do Vlado – eu fui preso dia 5 de outubro, eu fui sequestrado, eu e o Waldir Quadros, no Rio de Janeiro. Essa história está contada no depoimento que eu dei para a Comissão da Verdade. Bom, aí fui preso pela Polícia do Exército, depois transportado para São Paulo, com um simulacro de fuzilamento na Baixada Fluminense, ao final ele chega aqui, passa no DOPS, trocam a chapa e vou para o DOI-Codi. E eu chego no DOI-Codi dia 5 de outubro, 20 dias portanto antes [da morte de Vlado]. Esses 20 dias são os 20 dias em que mataram o [José] Montenegro [de Lima], o Magrão, mataram o tenente Almeida, mataram um jornalista chamado Bonfim, e outros teriam sido mortos. Em algum momento, eles tinham uma lista dos que não mereciam sair daí. E eu sabia, por conta do AVAD, Ação Violenta com Alvo Definido, pelas coisas que eu fiz, como é que eu fiz etc., que eu estava nessa lista. Eles, se pudessem, não me devolviam, não teria julgamento, eu seria eliminado. A forma de eliminar era essa de auto de resistência: tentou fugir, não conseguiu, com eles tentaram com Alexandre Vannucchi, que tentou fuga e foi atropelado por um caminhão – enfim, aquelas farsas de praxe, que eu sabia como funcionavam. E aí a minha principal preocupação se dava pelo fato, já disse isso, dei lá no depoimento, quando passaram a me torturar sem capuz, em que eu podia ver as pessoas que estavam me torturando, uns cinco ou seis. Isso era uma merda porque eu poderia ser eliminado em seguida por liquidar com arquivo. E eu ainda falava que não estava vendo direito nada, porque eu tenho quase dez graus de hipermetropia. Portanto, sem óculos, eu seria incapaz de alguém que me dissesse assim: "Mas me descreve o seu xará, que estava lá atrás da câmera". Eu, desse jeito, não sou capaz. Não consigo ler, enfim. Mas eu não sei quanto de gente de fora é capaz de saber quanto de deficiência visual a pessoa possa ter. Adicionava isso o fato de que eles passaram a não ter qualquer preocupação de colocar um feltro, porque nos dois sistemas que eles têm lá, os mais comuns é o tal do “pau de arara” e o outro “cadeira do dragão”, em que você fica amarrado e levando choque, acorda, vai rasgando a tua carne, tanto nos tornozelos quanto nos pulsos. E eles, para não deixarem marca, eles passam feltro e o dão choque. E você não tem uma "marca". No meu caso, eles passaram sem ter mais preocupação de botar essa porra, e eu estava todo sangrado. Falei: “Porra, vão me foder”. Aí, a certa altura, coisas surrealistas, tipo uma noite inteira, quando descobriram que eu era amigo do Dom Paulo, que a gente tinha feito [a missa pelo] Alexandre Vannucchi, o ódio que eles tinham do Dom Paulo era uma coisa impressionante. Ódio, ódio profundo. Chamava de veado, que eles tinham fotos desse veado com garotos de programa, eles chegaram a fazer isso na época, umas fotomontagens, você chegou a ver isso? Eu nunca vi, ouvi falar, mas nunca vi.
P/1 - Também já ouvi falar.
R - E teve uma noite inteira que foi uma cena parecida com no Abu Ghraib, que é você, de capuz, ficar de braço aberto o tempo todo; se o braço cai, eles dão porrada. E ninguém aguenta ficar muito tempo de braços abertos, é uma tortura. Puta merda. Sem sono, essa coisa. Boca cheia de sal, não dá água, tortura é uma merda. Além do que eu vinha do Rio de Janeiro porque no pau de arara lá eles tinham me quebrado essas cinco costelas com caibro, aliás está doendo essa, é porque vai chover. É exatamente aqui. A sensação que eu tinha é que eu ia ser eliminado. E tem uma hora que eles me trazem, eu sem óculos, um papel, que está escrito aparentemente com a minha letra uma declaração de que eu vou receber um caminhão de armas dos Tupamaros, às três da manhã, em frente ao portão número 2 do Estádio do Morumbi. Olha, não tinha nada de contato com tupamaro, montonero, porra nenhuma. Mas você imagina o que é três da manhã, portão número 2 do Morumbi, tentou a fuga aí... e pronto. E que eu assinasse. Falei: “Porra, isso é uma... caralho, eu estou ficando doido? Caralho”. Porque você vai ficando alucinado, sem beber, com boca cheia de sal, os caras te botam asfixia com amoníaco, leva choque, o caralho, e depois uma parte do humor desse torturador, ele é completamente irracional, é surrealista, eles dizem coisas, você vai ficando sozinho. Falei: “Porra, mas por que caralho, se essa letra é a minha, por que os caras... Opa: eles me prenderam com a carteira de identidade de quando eu tinha 16 anos. E a minha assinatura mudou, é isso. E eles estão precisando... Então, quem inventou a minha letra desse jeito inventa também a minha assinatura, não vou assinar porra nenhuma”. Depois vim a saber que eles foram à ECA, foram à seção de alunos e pegaram o Edival, que era o secretário responsável pela seção de alunos, que depois foi muito tempo secretário da Ana Mae [Barbosa], do Museu de Arte Contemporânea, e graças a esse cara eu também estou vivo, porque ele, quando percebeu que tinham me prendido, e prendido o Morais, o [Paulo] Markun, Diléa etc., que eram vários alunos da ECA, aí ele pegou todas as fichas que ele tinha, tirou de lá e levou para o carro dele. Quando foi lá o pessoal do DOI-Codi pedir as fichas, ele disse que só dava se tivesse uma autorização do reitor, que era o [Orlando Marques de] Paiva, que tinha sido eleito com o apoio nosso, dos estudantes. Aí os caras: "Que Paiva é o caralho". Entraram lá, vasculharam e não tinha, tanto é levaram o Edival lá para baixo, bateram nele e ele não contou onde estavam as fichas, porque eles iam atrás das fichas com a assinatura atualizada. Depois ele morreu, foi um dos primeiros caras que morreu de AIDS que eu conheci. Ele gostava muito de um chocolate da Kopenhagen, desse que tem licor dentro, caro para caralho, quase 20 paus cada um. Mas eu levei uma caixona para ele no hospital. “Vem cá, por que vocês não vão perguntar para a Maria [nome fictício, usado a pedido do depoente]? Pronto. Foi minha namorada, é do serviço secreto de inteligência de vocês. Pergunta para a Maria [idem] quem é que eu sou, o que eu faço, vocês estão inventando coisas a respeito e... vai lá.” Opa. Pararam um dia, não sei o que foram [fazer], voltaram novamente. O fato é que eu já estava na linha de eles torturarem sem capuz, sem preocupação de deixar marca, arrumando pretexto para que eu pudesse ser eliminado, dizendo que foi fruto de fuga. Quando eu estou numa cela forte e ouço alguém sendo torturado, e o cara que torturava, que interrogava, fala: "Quem são os jornalistas? Quem são os jornalistas?" Era o Vlado. Mas eu não sabia que era o Vlado que estava sendo torturado. Falei: “Porra, as prisões começaram no último dia de setembro, nós já devíamos estar em quanto, no final de outubro? Vai fazer um mês”. Aí então, no dia 25, eu ouço isso. Eu estou numa situação muito complicada. Se eu fosse dois ou três centímetros menor eu não sei o que tinha acontecido, porque eu estava alucinado de sede. Os caras me deixaram um tempão, vários dias sem tomar água e com sal na boca. Tinham me levado ao dentista lá do quartel do Segundo Exército, ali não mais no DOI-Codi, na delegacia; lá, me levaram para lá. A boca toda fodida, o porra do dentista meteu uma broca em um dente vivo aqui, de sacanagem, tinha dor que você não tem ideia. É alucinante. Bom, então a minha sensação é de que... Aí, de repente, para tudo. Remanejam as pessoas de um lugar para o outro e, no caminho, cruzo com o Davi Romeu, filho do diretor da Odontologia da USP, ele é médico hoje. E o Davi Romeu, que era da comunidade judaica, falou: "Apagaram o Vlado". Aí que eu soube que era o Vladimir Herzog que estava sendo torturado. E nessa hora, por conta de todas as sinapses, ou seja, de tudo que a gente ia fazer, eu falei: "Bom, estou livre. Estou salvo. Salvo. Eles não têm ideia do tamanho da encrenca que eles arrumaram matando o Vlado”. Isso tudo, claramente [me vinha à cabeça], dentro do DOI-Codi, na hora. Porque não teria ninguém pior para eles matarem. Se tivessem assassinado Rodolfo Konder, ou o Duque Estrada, ou a mim, nada disso teria acontecido. Eles tiveram o azar de pegar exatamente a pessoa mais importante entre nós naquele momento, que era esse diretor de jornalismo da TV Cultura. Recém-empossado. Depois de uma trajetória em que ele, como editor de cultura da revista “Visão”, ele tinha feito contatos com todo mundo da cultura, da ciência – ele não cobria só a área de cultura, mas também a área da educação. Nós estávamos falando de um cara que tinha estado em Londres, que tinha relacionamentos. O cara tinha uma vida que vem lá da Iugoslávia. Quer dizer, ainda que grande parte dos judeus aqui de São Paulo tivessem ido para direita, e agora mais ainda, o fato é que existe uma solidariedade de grupo dos judeus que é incontornável, ela teria que se manifestar.
P/1 - Mal comparando, ele salvou a sua vida.
R - Por isso meu telefone é 9****-1975, eu nasci de novo aí. Então eu tomei uma decisão: tudo o que estiver ao meu alcance, e que tenha a ver com o Vlado, eu farei. Não precisa ter Instituto. E isso não é em troca de nada. Se o Vlado não morre, eu não estava vivo. E não teria feito o que pude fazer. Como eu sempre pensei que ia morrer cedo, então eu me sinto no lucro o tempo todo. Então se eu morrer agora, aqui, está bem. O que me faz uma pessoa, para alguns, perigosa, porque eu não terei nenhum pudor de mandar para puta que pariu. Pode ser o representante do Fidel. Mas se vem cagar no meu país... Pode ser o general do caralho. Não há nenhuma razão para eu fazer média nenhuma; eu já vivi, o jogo já está jogado. Não vou ofender ninguém, não tenho nenhum prazer de humilhar ninguém, nunca fiz isso. As coisas são o que são.
P/1 - Está certo. O que você achou de ter dado esse depoimento?
R - Bom, eu acho que ele ainda ficou muito autorreferente sobre toda essa...
P/1 - Mas é uma história de vida. É natural.
R - Eu sei, mas a parte que interessa da minha vida é a parte que pode ser interessante para os outros. Então o que eu gostaria de relembrar é: como que a revista “Balão”, criada em 1972 pelo Laerte, Luiz Gê, o Fausto e a Lúcia Villar Guanaes, quando ela se cruza com essa revista chamada “La Firme”, que eu tive a pachorra de ir atrás para conseguir Xerox uma época. Essas aqui são as histórias em quadrinhos do programa da Unidade Popular. Então é aí, com essa experiência chilena, que a gente vai descobrir que é possível fazer desenho de humor, de qualidade, para fazer o trabalho de educação política. E das experiências que a gente fazia para testar se realmente estávamos acertando ou não, fazendo uns folhetos e distribuindo na saída do estádio do Pacaembu, com o povo todo andando em direção à São João, e a gente distribuindo folhetos no contrafluxo, para ver se o pessoal jogava no chão ou ficava com ele, para a gente acertar as coisas. Isso na campanha eleitoral de 1974.
P/1 - Certo.
R – Então, a questão das eleições. Hoje está se falando dos partidos políticos, da ausência deles e tudo, como é que esse buraco. Mas vai ao Memorial da Resistência, lá na praça General Osório, lá tem a linha do tempo, não tem? Lá está a data do Alexandre Vannucchi, morte do Vlado, morte do Marighella, tem tudo lá, não tem? Não tem eleição do MDB em 1974, nem de 78, nem eleição do [Franco] Montoro em 1982, todo o processo eleitoral que envolveu a participação de milhões de pessoas, na linha do tempo e na luta contra a ditadura pela democracia, do ponto de vista de quem organizou aquele troço, isso não existe. Então portanto só existe os atos espetaculares. Então me interessava dar um depoimento da minha indignação contra esse jeito de contar história, que não atribui papel às massas, aos milhões, ao anônimo. Ao nosso povo, como a Dona Virgínia me disse. Se massa de milhões não quiser, não tem. Enquanto milhões não se levantarem contra esse cara, esse cara estará no poder, ele teve 57 milhões de votos. Não é um golpe, é um golpe sofisticadíssimo, algo com apoio eleitoral.
P/1 - Legitimado.
R - Depois de tanta barbaridade, o cara ainda tem um terço das pessoas que são capazes de assinar embaixo? É porque tem alguma coisa muito esquisita, doente, com essa sociedade. Democratização da comunicação, o trabalho todo que foi feito, os trabalhadores rurais, as rádios comunitárias, coisas que são possíveis, Sistema Único de Saúde... Eu queria falar de coisas que... No final eu vou fazer isso, de alguma maneira esse depoimento ajuda. Quais são as coisas que eu tenho que prestar contas antes de terminar, antes de morrer? Tenho algumas dívidas comigo mesmo. Algumas delas é contar certas histórias como elas foram realmente, sem grandiloquência. Eu quero, sobretudo, contribuir de algum jeito, e eu vou conseguir fazer isso – se alguém me ajudar a mais eu consigo fazer isso – contar para o jovem de hoje, que tem vontade – o jovem curioso, está certo?, o jovem pasmado não me interessa, não interessa para ninguém – o cara que está a fim, dele descobrir que, sobretudo agora, com a facilidade dos meios de comunicação, um mais um não é dois. Um mais um pode ser um milhão. Depende de quem é o João Bosco e o Aldir Blanc. Depende. Depende de quem são as duplas que se formam. Não acredito em nada nessa área – jornalismo, cinema, teatro etc. – sem pelo menos dois. Por isso a tragédia de quando morre um, o outro que fica um é um viúvo, até redescobrir quem é o seu parceiro... Ninguém consegue raciocinar direito sozinho. Você precisa ter um “sparring”. A maior parte das pessoas tem dificuldade, com razão, porque o cérebro só se faz perguntas que ele já sabe responder. Por isso a terapia é tão necessária, porque não é que ele vai te dizer o que você tem; ele te pergunta: "E isso?", "e aquilo?", "e aquilo outro?", "como que você explica?", e ele bota a tua cabeça para funcionar. Então me interessava, sim, coisas que eu vi, coisas que eu participei, e que têm sentido, e que precisam ser contadas não por bazófia pessoal, mas contadas porque pode ser que seja uma coisa útil para quem está a fim. O Walter Benjamin tem uma sacada que eu gosto muito sobre essa coisa da importância da história. Ele diz: "Não se trata de preservar o passado, e sim de realizar suas esperanças". Essa é a importância da história.
P/1 - Sergio, essa história é inesgotável.
R - Isso aqui é o responsável por a gente ter montado uma rede, sem internet, antes, pelo correio, enviando fita cassete. Nós da Oboré conseguimos, prestando serviço para Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, montar uma rede de 700 emissoras, que durante 11 anos transmitiram um programa de rádio chamado "A Voz da Contag". E esse programa é o responsável, desde a época do Fernando Henrique, de se criar o chamado Pronaf, Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar. Quando esse trabalho começou, a verba que era de 250 milhões, chegou a 18 bi de apoio à agricultura familiar, na época do Lula. Isso é a âncora verde que permitiu você não ter inflação durante o período. Então, uma parte do trabalho do Lula é porque houve investimento na agricultura familiar. Isso não aconteceu sem mais, isso aconteceu porque os trabalhadores rurais sabiam como procurar e preencher as coisas corretas. "Ah, mas você está falando naquela época." Não estou falando disso, eu estou falando que dos 500 milhões que tinha num determinado ano, só foi entregue cento e poucos porque o formulário que se pedia para o trabalhador preencher a mão, o fodido, era uma letra tão fininha que o controle motor fino do cara não conseguia preencher e, portanto, o que você tinha na frente da agência do Banco do Brasil, com crédito lá dentro, era que o cara batia à máquina, como se fosse um despachante, e ele cobrava "dez real". Mas o trabalhador não tinha os "dez real"; portanto, se não tinha "dez real", não preenchia o papel, não entrava com o pedido, não tinha o financiamento para a semente, para a enxada, e portanto esse dinheiro estornava e ele ficava na merda. Então falaram: "Como é que se resolve isso?". Aumentando o tamanho da letra. E divulgando para os trabalhadores como é que está o prazo, de quando a quando que o cara pode ir, isso se faz de boca. Bom, mas como é que a gente monta uma rede sem satélite? Ainda não temos internet. Aí, olha o que acontece: um dia eu estou aqui com esse livrinho da Marisa Lajolo, e esta mulher publica... está aqui: “O lançamento do ‘Urupês’ foi um sucesso, o Monteiro Lobato sempre teve excelente aceitação, esgotou num ano milhares de volumes etc. e tal, muitos anos mais tarde constituiu o espaço, e com seus pés encaminharam a industrial editorial brasileira nos rumos na modernidade. Lobato evoca, em prefácio de entrevista, o seu ‘ovo de Colombo’". Porque você não conseguia ter uma editora publicando porque não tinha ponto de venda, não tinha livraria. Ovo de Colombo. Monteiro Lobato. "Impossível negócio desse jeito assim, privado de varejo. Mercadoria que só dispõe de 40 pontos de venda está condenada a nunca ter peso no comércio de uma nação. Temos de mudar, fazendo uma experiência em grande escala, tentando a venda do livro no país inteiro, em qualquer balcão e não apenas em livraria. Mandamos uma circular a todos os agentes de correio pedindo a indicação de uma casa, de uma papelaria, de um jornalzinho, de uma farmácia, de um bazar, de uma venda, de um açougue, de qualquer banca em suma, em que também pudesse ser vendida uma mercadoria denominada livro. Os agentes assustaram-se e responderam. Completando a consulta feita com outras a prefeitos e o diabo, conseguimos 1.200 nomes de casas comerciais recomendadas como relativamente sérias. Redigi então a circular que iria constituir a pedra básica da Indústria Editora Brasileira. Mas não pense que me gabo disso. Eu estava a mil léguas de imaginar o que iria sair daquilo. Não pensei em pátria, não pensei em coisa alguma, a não ser em alargar o campo de vendas das ediçõezinhas que andávamos fazendo. E lá foi a circular. Foi e era sugestiva". Lá vai a circular agora. "Vossa senhoria tem seu negócio montado, o quanto mais coisas vender, maior será o seu lucro. Quer vender também uma coisa chamada livro? É um artigo comercial como outro qualquer, batata, querosene ou bacalhau. E como vossa senhoria receberá esse artigo em consignação, não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais livros, terá uma comissão de 30%, se não vendê-lo, no-los devolverá pelo correio, com o porte por nossa conta. Responde se topa ou não.' Todos toparam e nós passamos de 40 vendedores, que eram as livrarias, para 1.200 pontos de venda, fosse livraria ou açougue".
P/1 - Muito bom.
R – Falei: “É isso!” A Oboré vai mandar para cada sindicato de trabalhadores que tem programa de rádio próprio. Quer dizer, nós temos uma mercadoria que era fita cassete com um programinha de oito minutos. Você não vai precisar fazer nada, você vai receber e ele está fazendo uma cobertura nacional. Você topa? E aí criamos uma coisa chamada TPC, Termo de Parceria e Cooperação, que é uma forma de você ter o contrato típico da economia ilegal.
P/1 - Mas legal.
R - A economia ilegal é o que mais cresce no mundo. Tráfico de gente, droga e arma, não é isso? E por que ela cresce? Porque você está no ambiente em que está tudo informatizado, os bancos são esses, é uma transferência, então portanto você pode vender o que você quiser e vale o combinado, tá certo? Você sabe se tem algum contrato do Estado Islâmico com Estados Unidos para eles terem aquelas armas? Ou fabrica lá, aquelas armas? Como é que chega lá? Portanto, o crime organizado trabalha com pactos de lealdade. Para você entrar na máfia italiana, antes tinha que fazer aquele negócio de misturar o sangue, você tem sempre um ritual. Para você entrar no PCC, você tem que matar um cara; o comando diz "vai lá e mata aquele cara", aí você mata, significa que você está obedecendo. Aí se estabelece esse pacto de lealdade, a partir daí não precisa mais papel nenhum, vale a palavra. Como montar a anti-máfia? Nós só podemos enfrentar isso se tiver do nosso lado, ao contrário da destruição, muita gente combinando. Sem papel. Então sem isso aqui, eu não teria conseguido imaginar. Nós pusemos de pé uma rede de 700 emissoras que durante 11 anos transmitiram o programa voltado para os trabalhadores rurais, que foi decisivo para influir, desde o Fernando Henrique, sobre o investimento na área da agricultura familiar. Isso é verdade, então tem que atribuir ao Monteiro Lobato a sacada, que passou batida para todo mundo, mas não passou batida para mim, que podia fazer alguma coisa com isso. Então saber que as coisas podem estar o ovo galado, pode estar em qualquer lugar. Os gregos diziam que é do espanto que vem a curiosidade, e da curiosidade que vem o conhecimento. Se o cara não espanta com porra nenhuma, se está tudo bem, é normal, não vai descobrir picas. Não era para ser assim, não precisava ser assim. O [Antonio] Gramsci diz lá atrás: “Ou vem socialismo ou virá a barbárie”. E é isto que está vindo. Não veio socialismo, virá a barbárie. O que vai acontecer no futuro, aumenta ou diminui a esperança de vida das pessoas? Aumenta. Diminui ou aumenta a natalidade? Diminui. A maior parte dos trabalhos vai precisar de gente para carregar tijolo etc. ou dá para substituir isso por máquina, robô etc.? Então é só você olhar, não precisa ser especialista em nada: cada vez mais menos pessoas têm que ser responsáveis pela alimentação, vestuário, de todas. Ora, se não existir uma sociedade de solidariedade, se você diz que só vai receber quem for capaz de produzir, quem não foi produtivo – então síndrome de Down, ficou velho, está aleijado... dois milhões e meio de motoqueiros ficaram aleijados para sempre em São Paulo. Duzentos mil mortos para entregar coisa rapidinho. Quanto significa dois milhões e meio em termos de aposentadoria e pensão, quanto é que significa de gasto na área da saúde? Então você vai verificar que se não existir solidariedade, se não existir socialismo, se não existir comunhão, comunidade, comunismo, que é a mesma coisa, não há possibilidades dessa sociedade dar certo. O individualismo é o contrário da individualidade. Você só desenvolve individualidade no âmbito da solidariedade, da possibilidade. O homem é o homem em suas circunstâncias, se não tiver circunstância ele vai ser o quê? Os mais inteligentes, os mais ativos, vão parar no narcotráfico. Pode ter certeza. A juventude batuta vai morrer cedo. Então, onde é que se discute isso? O Instituto Vladimir Herzog foi criado para dar conta do futuro, mas não é um devaneio. Ele foi criado para levantar a memória do Vlado e dos seus contemporâneos; portanto, é preciso conhecer essas pessoas. Só agora se começa a conhecer quem é o Vlado jornalista, só agora. Tantos anos depois, não da morte dele, tantos anos depois da existência do Instituto, que nasceu para isso. Se ele é modelo? Eu acho que é, eu acho, acho mesmo. O Vlado tinha um humor muito cáustico, não era propriamente uma pessoa engraçada. [Gostava de] ficar tirando sarro.
P/1 - Sergio, vamos encaminhar para o fechamento, senão a gente não para nunca. Malgrado toda a sua percepção da realidade, que é uma coisa muito acurada, muito cirúrgica, quais são seus sonhos?
R - É não deixar morrer o que foi criado. Também não estou inventando nada. O futuro é engravidado pelo presente, não é isso? Uma coisa que quase morreu, mas não morreu, existe. Uma coisa que quase nasceu, mas não nasceu, não existe. Então eu tenho fugido como o diabo da cruz do devaneio. Eu quero ir para a criatividade real, ou seja, significa identificar com o máximo de precisão possível quais são as coisas reais que estão aí para que uma se apoie na outra, o tal do apoiar o que existe apoiando-se no que existe. Eu tive nesses anos a possibilidade de acompanhar os últimos anos de alguns amigos queridos, no caso o Audálio [Dantas], o outro Vicente Dianezi, o Ricardo Alves, um pouco; não tão de perto, mas um pouco, o Fernando Pacheco Jordão. E agora vejo outros, que estão nessa faixa dos 75, um pouquinho mais velhos do que eu, portanto eu já me vejo aí. Então tem muita grandiloquência, tal cara é do caralho, Audálio do cacete etc., e quando chega na hora do vamos ver, ninguém ajuda. Morreu cheio de dívidas, convênio médico não cobriu os remédios, que a Vanira vai precisar pagar. Os caras meteram o protesto nela, já está suja no Serasa, porque não pôde pagar os remédios que o [hospital] Samaritano deu lá. Aí eu fico pensando: o que vai acontecer de mim? "Serjão, porra, se mete nisso, tal e tal, faz tudo pelos outros, não pede nada"... Tudo verdade, e eu me sinto bem assim. Ninguém me deve nada pelo fato de eu ter sido assim, é fato. Mas toda vez que a situação aperta efetivamente, o que eu vejo é que as pessoas escapam para um tipo de declaração mais geral, e mesmo coisas que sejam o trabalho mesmo, porque eu vivo do meu trabalho – como eu disse aqui, não tive nada, não tive cargos, não tive poder, não vim de família rica, nada disso. Foi sempre uma vida muito modesta, eu sou um cara barato, eu me divirto comigo mesmo, não precisa de muita coisa. Então meu sonho seria: como é que nesse quadro tão adverso criar algumas condições para que a Ana Luiza fique bem, que o meu filho tenha algum tipo de apoio, e eu não gostaria de morrer tipo objeto da caridade, solidariedade dos outros, eu acho isso indigno. Eu queria morrer de tiro, cair um avião, trombada de automóvel. Eu não queria uma longa terminalidade, acho isso indigno. Eu sempre fui saudável. Então quais são os sonhos que eu tenho: eu queria que algumas coisas que começaram terminassem. Eu tenho um sonho, sim, que o auditório [do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo], Espaço Vladimir Herzog, vá se constituir num centro de imprensa, num “coworking”, para reunir ali todas as entidades que têm a ver com os jornalistas e os jovens.
P/1 - Sindicato dos Jornalistas.
R – É. Eu acho um absurdo que um lugar central, patrimônio dos jornalistas desde antes do Audálio, a esquerda nunca botou um azulejo ali, aquele prédio, aquele andar, é conquista do Freitas Nobre, Tuma, é a turma lá de trás. Tem um auditório plano com mais de 95% do tempo ocioso, perto do metrô, perto da [avenida] Paulista, um lugar cheio de história, não botar ali um wi-fi, umas mesas, para que aquilo fosse um lugar de apoio para os jovens que estão em começo de carreira, ou os coletivos que não têm hoje grana para poder bancar o aluguel, que é caro. Aluguel aqui em São Paulo, quem é cabeça de sardinha como eu, que sempre banquei os meus projetos, nunca teve dinheiro anabolizante nenhum, tem o pessoal que fez coisas como rabo de baleia, dirigir grandes instituições e tal, aí eu digo, até eu, eu saberia. Mas eu sei que tem que ter a receita para pagar a despesa. Tenho uma aposentadoria de 1461 reais, não tem o negócio de anistia – a sentença a respeito disse que eu só fui perseguido durante três anos, e, portanto, não merecia mais do que acho que 20 salários mínimos, uma coisa assim; pagaram, que foi mais ou menos o tanto que eu gastei com advogado. As coisas em que eu me meti hoje estão fora de moda. Democracia, direitos humanos, grande parte das empresas considera isso como uma... não querem se associar a essa marca, dizem que isso pega mal, sabia disso? Tinha um cara que o Ivo [Herzog] contratou, ele visitou acho que quase mil empresas apresentando os projetos do Instituto, não conseguiu um único. Zero. As empresas disseram que "não, não, esse negócio de direitos humanos não pega bem". Então democracia, diretos humanos, solidariedade, mas o que vai dar, não sei. Eu tenho que pensar nisso. Eu queria pagar as minhas contas, pagar as minhas dívidas com as pessoas, queria concluir alguns projetos, um deles é esse do Espaço Vladimir Herzog, o outro é dar sustentabilidade ao projeto Repórter do Futuro, que se mostrou efetivo para ajudar a formar pessoas. Cruzar esse projeto com o Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão. Somar essas coisas, fazer esse trabalho. Manter a minha feijoada lá das quartas-feiras, que tem sido uma alegria ver as pessoas se encontrando, se reencontrando. Esse remanso na cidade, eu acho que ajuda. Não resolve, mas ajuda.
P/1 - Sem dúvida.
R - E eu acho que vou pegar essas coisas e aproveitar o embalo aqui do que vocês me fizeram hoje e talvez publicar alguma coisa. Antes que eu me esqueça, ou antes que me esqueçam. Agora a sensação chata é essa, de ver que... o mundo pode acabar antes dos meus netos morrerem, entendeu?
P/1 - Quantos netos você tem?
R - Eu tenho a Gabi e a Carol, filhas da Lígia.
P/1 - Eu tenho dois também.
R - Paulinho agora está na Polônia, tem uma namorada polonesa. Se vier um neto de lá, vem bonito porque a polonesa é linda, é uma mulher magnífica.
P/1 - Sergio, eu não preciso dizer que isso não foi um depoimento, foi uma história de vida muito densa, muito relevante, sobretudo muito verdadeira. Excetuando-se o Vlado, pensando só no que você diz, faz tanto sentido que eu só posso te agradecer o fato de ter ouvido isso de forma tão articulada, tão sentida e tão importante. Eu aprendi muito com isso. Quer dizer, tenho aprendido sempre, mas talvez hoje eu tenha recebido um uma dose cavalar de clarividência da sua parte como há muito tempo eu não tinha, porque talvez a gente não tenha tido oportunidade, em nossas vidas, de ficar tanto tempo junto ou pelo menos num ambiente como esse, só nós dois. Muito obrigado.
[pausa]
P/1 - Há o que ser feito ainda, e as coisas que você fez elas não vão morrer não, você pode até ir, não vai fazer muita diferença nesse sentido, mas as coisas que você fez, o quanto que você animou, o quanto que você introjetou de alma nas pessoas, no trabalho das pessoas, na galerinha nova, isso é imortal, cara. Isso não acaba nunca.
R - É, eu espero. Uma vez eu recebi uma mensagem pelo whatsapp do [Antonio] Carrasqueira, o grande flautista. Ele disse que não se lembra de ter mandado para mim, mas ele mandou, uma coisa atribuída a Santo Agostinho, dizendo que a esperança tinha duas filhas lindas, a indignação e a coragem. Que a indignação nos faz ver o que está errado, o que precisa ser consertado; e a coragem a realizar, fazer. Aí eu estava em contato com o Leonardo Boff, e o Leonardo Boff é um especialista em Santo Agostinho. E eu falei isso para ele, falei de Santo Agostinho, a esperança tem duas filhas lindas. Ele foi atrás e confirma: "Realmente, eu não lembrava, mas realmente é isso mesmo, é do Santo Agostinho", que esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação ajuda a ver o que está errado e a coragem, a mudar. E aí, sobretudo olhando lá para a minha avó, que achava que ia dar tudo errado, o meu pai que nunca comemorava nada, porque se deu certo é porque vai dar errado... Então eu venho de uma cultura que é essa cultura nostálgica, da ibérica, que é a dos presságios. De vai dar merda. Eu olho para o futuro e não tenho esperança, eu olho para o futuro e só tenho presságios. Aí eu resolvi fazer uma brincadeira com um contraponto para o Santo Agostinho, que diz que os presságios têm dois filhos horrorosos, a resignação e o imobilismo. A resignação deixa tudo como está, e o imobilismo impede que a pessoa tenha uma história de vida. Então todos os sinais mais evidentes não são de esperança, de que as coisas vão mudar para melhor. Todos os sinais são de presságios de que as coisas vão ficar piores. Então essa condição pode levar muita gente a uma espécie de consciência infeliz, que quanto mais o cara sabe, mais ele se sente incapaz, mais ele se sente impotente, porque são problemas de tal dimensão, de tal complexidade, que quem sou eu para encarar tudo isso? A Amazônia, degelo, aquecimento global. Então em oposição a isso, para não ficar com blablablá, o que eu posso ajudar? É mostrar que na dimensão de gente que chama Gomes da Silva, filho do José Maria, da Dona Adelaide, sem dinheiro, que só fez escola pública, que nunca teve poder, mas é capaz de, um mais um, fazer coisas que resultam no Sistema Único de Saúde, ou no Parque Villa-Lobos, ou no Instituto Vladimir Herzog. Você sabe como é que o Instituto começou? Você sabe?
P/1 - Conta.
R - Você conheceu um italiano chamado de Giancarlo Summa?
P/1 - Sim, eu ouvi falar. Não conheci pessoalmente, era da ONU, não é?
R - Ele veio para o Brasil como repórter da Reuters, da RAI, porque era um jornalista italiano cobrindo no Brasil. Acabou ficando por aqui e além de correspondente dessas coisas italianas, ele acabou trabalhando em várias... Foi ser assessor do Lula para o relacionamento com a imprensa estrangeira nas campanhas eleitorais, foi o responsável pela assessoria de imprensa do Fórum Social Mundial. E quando foi em 2007, ele faz um concurso e é aprovado para ser o responsável pela comunicação do Centro de Informações das Nações Unidas aqui no Brasil, cargo esse que estava ocupado, durante uns sete ou oito anos, por um fulano, um africano qualquer, que não tinha feito picas. Aliás fez: ele tinha uma boutique, a filha dele, no país de origem, e ele se valia do cargo aqui, de cargo diplomático, para fazer muamba. O fato é que o Giancarlo é aprovado no concurso para ser o responsável pela comunicação da ONU no Brasil, o que significa coordenar todas as assessorias de comunicação da FAO, da Unesco, da OIT, não sei quantas agências existem. E ele é amigo meu. Quando foi em fevereiro de 2008, ele me chama para ir ao Rio de Janeiro e eu vou junto com o Rodrigo Savazoni, que foi um dos criadores do Intervozes, porque ele queria conversar a respeito dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos; que o Lula tinha encontrado com Kofi Annan e o Lula prometeu ao Kofi Annan, na época secretário-geral da ONU, que aqui no Brasil se comemoraria, em 2008, os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, se comemoraria em grande; que ele colocaria todos os ministérios, autarquias, empresas etc. para fazer com que o povo brasileiro soubesse que existe a declaração, quais são seus 30 artigos, ainda mais que esses 30 artigos foram todos incorporados à Constituição de 1988. Temos a Constituição, tem tudo lá dentro. Esse compromisso com o Kofi Annan se confirmava, e aí ele atribuiu ao Paulo Vannucchi, que pelo lado do governo coordenava a Secretaria Especial de Direitos Humanos, e lado da ONU, o Centro de Informação. E aí o Giancarlo Summa dizendo que queria ideias para comemorar os 60 anos. Além de um curso sobre o Repórter do Futuro, um programa de rádio, mas o que ele mais queria era colocar de pé um prêmio de imprensa que reconhecesse quais os jornalistas brasileiros que mais tinham se destacado em defesa dos direitos humanos. Falei: "Olha, no caso brasileiro esse prêmio já existe, chama Vladimir Herzog. Não sei como é que vocês vão fazer na Argentina, na França, mas aqui são mais de 700 que já ganharam. Até porque vocês têm um milhão, um milhão e meio de dólares, que é quanto custa para você botar um prêmio de imprensa no Brasil? Parrudo? É um ano e meio de trabalho, um milhão de dólares, é quanto custa para fazer tudo. Se você não tem esse dinheiro, não tem esse tempo, então o que eu proponho é que a gente crie um troféu especial, troféu ‘ONU 60 anos’, e que a gente faça um levantamento de todos os jornalistas que ganharam o prêmio Vladimir Herzog até agora – 30 anos, naquela época – se cria um espaço, um ambiente na internet, para que todos esses aí sejam eleitores e eles podem votar e escolher os cinco, os cinco mais. E, portanto, eles serão eleitos por seus pares. Os prêmios que têm realmente mais importância são desse tipo, quando os próprios pares reconhecem. Então isso para puxação de saco do jornalista, certo? Isso é fácil. A outra, é pegar o acervo, as matérias que foram produzidas por esses mesmos jornalistas ao longo desses 30 anos, digitalizar isso e colocar à disposição dos estudantes, ou dos estudiosos. E aí inaugurar esse site com tudo isso no dia 10 de dezembro. Então o troféu pode ser entregue dia 25 de outubro e 10 de dezembro, que é o aniversário." [A data de nascimento de Vladimir Herzog é 27 de junho de 1937.] Bom, para que isso pudesse ser viável, acertamos de o Giancarlo Summa vir a São Paulo, fomos à Clarice Herzog para saber se ela estava de acordo com o prêmio especial Vladimir Herzog. A Clarice recebe a gente e diz: "Olha... não sei. Eu ando muito desacorçoada com isso, até pensei que o prêmio tinha acabado. O prêmio andou abandonado, sendo instrumentalizado, e para mim é sempre muito difícil esse negócio, porque todo ano prisão, tortura, morte, porque o Vlado etc., e não se consegue enterrar esse cara. É foda." "Mas o que você acha disso?". Ela falou: "Esse projeto tem sentido, eu vou conversar com meus filhos e depois dar uma resposta". Aí ela conversa com o André e com o Ivo e a resposta é a criação do Instituto. Porque tinha pelo menos uns 10 anos que ela não ia mais, nem à entrega. Não só porque era uma coisa pessoalmente dolorosa, mas porque o prêmio realmente foi manipulado. Teve ano em que o cara que ganhou, o júri nem leu a matéria; à medida que o tempo foi andando, a OAB virou uma coisa corporativa; a Comissão de Justiça e Paz deixou de existir porque a igreja se desinteressou pelos humanos; a ABI foi fechada aqui em São Paulo porque o tesoureiro roubou um dinheirinho e o Barbosa Lima Sobrinho fechou durante dez anos. A Fenaj lá em Brasília não apita picas, a OAB daqui de São Paulo, já falei. De repente, o prêmio era tocado só pelo sindicato [dos jornalistas]. Numa época em que os jornalistas passaram a ser anti-sindicais, para ficar de acordo com a orientação dos seus patrões. Então se o prêmio é concedido pelas entidades da sociedade, não tem jeito do jornalista não levar em conta, agora um prêmio que é só o sindicato? Aí foi, foi, foi, chegou ao ponto de que o prêmio tinha 135 inscrições apenas, não tinha júri. Aí disseram: "Qual é a matéria?" "Apura e vê aí, porque o nosso amigo aqui está para ser demitido e, se ele ganhar o prêmio, aí vai ficar mais difícil". E, pumba: o cara ganhou o prêmio porque podia ser demitido. Ou seja, a ponto – e isso é uma outra história que eu quero contar tudinho, eu não morro sem contar isso direito – que eu fui conversar com o pessoal do sindicato e falei: "Olha, vamos fazer uma coisa. Tudo bem, o sindicato está carregando o andor sozinho, os outros não estão ajudando em nada, mas o santo é nosso. Se é para especular, dar para qualquer um, não ter júri nem porra nenhuma, vocês inventam outro cara, inventa o [prêmio Luiz Eduardo] Merlino, qualquer outra pessoa, mas tira o Vlado. Vocês não vão levar o Vlado para a desmoralização. O que é isso? Não tem sessão aberta, não tem júri nem porra nenhuma. Bom, e dessa situação o prêmio quase acabou. Mas não acabou quando a família resolve voltar ao prêmio, mas na condição de um Instituto, Instituto este que vai buscar aliados em todas as linhas para realizar coisas que têm sobretudo que ver com o futuro, e não com o passado; e quando olhar para o passado, é esse passado que impulsiona para o futuro. É essa coisa do Walter Benjamin: "Não se trata de preservar o passado, mas de realizar a sua esperança". Se nos depoimentos daqui, ou o que for, não tiver nada de recado para quem vem, [então] isso é inútil.
P/1 - Um convescote.
R - Isso é uma bobagem. Eu sei que toda a vida vale a pena, que qualquer vida tem um ensinamento, acho mesmo que a gente perdeu o tempo na época do [mandato de Fernando] Haddad, não se encaminhou; eu vim aqui, numa ocasião, falar com alguém aqui, para ver se a gente montava, com a ajuda de estudantes de jornalismo, uns plantões de fim de semana nos cemitérios. Que era para aquelas famílias que forem lá visitar, pegar o bicho ali na hora e falar: "Ah, e quem vocês vieram ver aqui?". Ninguém foi lá ver ossada, as pessoas vão lá para lembrar da vida. Então, portanto, os cemitérios seriam centros de vida. "Viemos ver meu pai." "Ah, é? O que ele era?" "Marceneiro." "Ah, marceneiro. Fez muita coisa?" "Aliás, você sabe que ele fez uns bonecos, que tem até hoje ali na paróquia. Tem ali um grupo de teatro, de mamulengo, para as crianças, muito interessante, e foi ele que fez os bonecos de madeira para essas crianças que estão ali". Peraí, esse cara que era marceneiro... a contribuição [que ele deu]... isso a gente pega onde? Aqui? Chamar o cara para vir aqui, sentar direitinho? Não, a gente tem que pegar é nos lugares em que as pessoas vão prantear os seus vivos, a vida dos seus mortos. Não precisa muita coisa, não precisa ter essa supermáquina, vamos com isso aqui [mostra o aparelho celular]. Então tem algumas coisas que eu queria ver se eu não morria sem deixar a limpo.
P/1 - Está certo.
R - E eu vou fazer essa relação.
P/1 - Está muito bom.
R - E eu te agradeço muito, Egypto. E eu queria uma coisa: o que aconteceu com as nossas vidas que a gente nunca fez nada junto? Gozado isso. Tirando os momentos intersecção, muito no comecinho do Oboré.
P/1 – “Jornal dos Publicitários”. E eu com Jaime Prades.
R - Pois é. Mas eu não participei do jornal, eram vocês que faziam. Estou dizendo, como que... Tanta coisa que... Mas eu te agradeço muito.
P/1 – Mas, olha, eu posso dizer que eu acho que ainda temos tempo. Por exemplo, eu ainda preciso ir à feijoada, eu apareço lá qualquer hora dessas.
R - Quer ver como que termina tudo rapidinho? Meus amigos...
P/1 - Não, não vai não.
R - Toda quarta-feira, meio-dia, feijoada dos amigos. Aliás, feijoada dos amigos dos amigos.
P/1 - Isso aí.
R - Pronto.
P/1 - Sergio, muitíssimo obrigado, cara. Foi muito importante para mim.Recolher