O cantor e a tecelã 9/5/2007 - 10:29:22 | Helcias Bernardo de Pádua
# De longe eu o avistava lá no alto de um andaime todo de madeira. Sempre cantando, treinando, ensaiando. Rotineiramente assentando tijolos. Rapidamente levantando as paredes das primeiras melhores casas e sobrados do Itaim...Continuar leitura
O cantor e a tecelã
9/5/2007 - 10:29:22 | Helcias Bernardo de Pádua
# De longe eu o avistava lá no alto de um andaime todo de madeira. Sempre cantando, treinando, ensaiando. Rotineiramente assentando tijolos. Rapidamente levantando as paredes das primeiras melhores casas e sobrados do Itaim Bibi.
Eu o chamava de tio Milton. Voz forte, grave, marcante. Profissional de programas de calouro. Pedreiro.
Aos sábados ou aos domingos, vespertinamente ou em certas noites, ouvia-se no rádio o nosso aparente. Era, por assim dizer, um primo do meu pai Orestes, ramo da família sorocabana.
A mais forte torcida era da tia Gula, a Urgulina, irmã do meu pai, encostando bem o ouvido no radio com móvel de madeira. Torcia pelo parente. Queria que seu primo levasse o maior prêmio daquele programa de calouro.
Quando o Milton ganhava, ela soltava uma boa gargalhada e mostrando os amarelados dentes de um canto a outro da boca, saia em passos rápidos da nossa térrea casa, na época com quintal de terra, algumas pequenas árvores e a casinha de madeira do Peri, cachorro de pelo branco encardido e companheiro da pretinha galinha de angola. Os dois animais dormiam no mesmo local, amigavelmente.
Depois,
quase que correndo descia a pequena inclinação da travessa do Porto, atual rua Luís Dias, indo além da travessa da Ponte, atual Macurapé. Gritando e saudando a todos, entrava em uma das três casinhas de aluguel, local aonde residia outra parte dos nossos mais chegados parentes. Era a casa do Milton, do nosso cantor, do profissional da colher de pedreiro e forte espiritualista.
As casinhas germinadas não tinham (ainda estão lá) mais que três ou 5 metros de frente cada uma e a do meio com a menor metragem frontal. Eram de uma sala, um ou dois quartos e a cozinha. O banheiro logo na saída para o terreno. Tudo de metragem restrita. O quintal era de terra e de razoável tamanho permitindo ter-se em uma delas um outro quartinho nos fundos.
Essas casas pertenciam e ainda pertencem à família da Dona Conchetta, resistindo
bravamente as especulações das incorporadoras, agora por estarem bem próximas à av. Pres. Juscelino Kubitschek, uma das duas grandes avenidas que atravessam o bairro do Itaim Bibi.
Escrevendo o texto parece-me ouvir ao longe a voz firme do cantor, o tio Milton. Ao mesmo tempo sinto um cheiro de pó de tijolo, do cimento, da cal virgem, da massa corrida. Ou seria reboco?
Na seqüência me vêm à mente a figura baixa e o som daquela gostosa gargalhada da tia Gula. Sempre mascando fumo de corda e de quando em quando dando uma boa e enorme cusparada. Excelente tecelã da fábrica de tecidos Calfat, lá da avenida Brigadeiro Luiz Antônio.
Que saudades desses meus parentes, os verdadeiros construtores, tecendo essa grande São Paulo. Dignos representantes da negritude itahyense.Recolher