P/1 - Eu vou começar a nossa entrevista perguntando uma coisa muito simples que é o seu nome, local e onde você nasceu.
R - Meu nome é José Domingos Teixeira Vasconcelos, nasci em Campinas, em 1950.
P/1 - E qual é o nome dos seus pais?
R- Luis Teixeira Vasconcelos e Marta Ricardo Teixeira Vasconcelos.
P/1 - E o que eles faziam?
R - O meu pai tinha uma máquina de arroz, então, ele trabalhava com cereais, comprava arroz em casca no interior de São Paulo, secava quando era preciso, em geral era preciso secar. Ele tinha máquinas e tudo, e essas máquinas tiram a casca do arroz e dão uma espécie de brilho usando glicose e um talco. E também trabalhava com arroz integral. Então, essa história de arroz integral faz parte da minha infância também. E a gente tinha um varejo nessa máquina e todos os filhos ajudavam no varejo a partir de uma certa idade.
P/1- E ele nasceu em Campinas?
R - Não, ele era de Artur Nogueira, que é um município ali perto de Campinas. Ele faleceu em 82.
P/1 - A gente tava falando do seu pai, que ele era de outra cidade do interior de São Paulo. Você sabe a origem da sua família?
R - Alguma coisa. Os meus avós paternos eram descendentes de portugueses e primos entre si (risos). E também do interior de São Paulo, região de Artur Nogueira. Naquela época a população rural predominava, então, eles tinham um convívio grande com essas coisas do campo. Apesar de não terem sido sitiantes, nem nada, mas eles trabalhavam com essa história mais ligada à produção agrícola. Agora, minha mãe sempre trabalhou em casa, ela é de Mogi Mirim, mas os meus avós, pelo menos a minha avó materna, tinha ascendência italiana, era filha de italianos. E meu avô, não, meu avô era brasileiro mesmo, acho que já tinha ficado mais pra trás... Não, ele também era descendente de italianos! Mas não tão recente. E eu nem conheci. Aliás, o nome dele era Domingos, daí que veio o meu nome, e eu não o conheci, ele morreu muito cedo....
Continuar leituraP/1 - Eu vou começar a nossa entrevista perguntando uma coisa muito simples que é o seu nome, local e onde você nasceu.
R - Meu nome é José Domingos Teixeira Vasconcelos, nasci em Campinas, em 1950.
P/1 - E qual é o nome dos seus pais?
R- Luis Teixeira Vasconcelos e Marta Ricardo Teixeira Vasconcelos.
P/1 - E o que eles faziam?
R - O meu pai tinha uma máquina de arroz, então, ele trabalhava com cereais, comprava arroz em casca no interior de São Paulo, secava quando era preciso, em geral era preciso secar. Ele tinha máquinas e tudo, e essas máquinas tiram a casca do arroz e dão uma espécie de brilho usando glicose e um talco. E também trabalhava com arroz integral. Então, essa história de arroz integral faz parte da minha infância também. E a gente tinha um varejo nessa máquina e todos os filhos ajudavam no varejo a partir de uma certa idade.
P/1- E ele nasceu em Campinas?
R - Não, ele era de Artur Nogueira, que é um município ali perto de Campinas. Ele faleceu em 82.
P/1 - A gente tava falando do seu pai, que ele era de outra cidade do interior de São Paulo. Você sabe a origem da sua família?
R - Alguma coisa. Os meus avós paternos eram descendentes de portugueses e primos entre si (risos). E também do interior de São Paulo, região de Artur Nogueira. Naquela época a população rural predominava, então, eles tinham um convívio grande com essas coisas do campo. Apesar de não terem sido sitiantes, nem nada, mas eles trabalhavam com essa história mais ligada à produção agrícola. Agora, minha mãe sempre trabalhou em casa, ela é de Mogi Mirim, mas os meus avós, pelo menos a minha avó materna, tinha ascendência italiana, era filha de italianos. E meu avô, não, meu avô era brasileiro mesmo, acho que já tinha ficado mais pra trás... Não, ele também era descendente de italianos! Mas não tão recente. E eu nem conheci. Aliás, o nome dele era Domingos, daí que veio o meu nome, e eu não o conheci, ele morreu muito cedo. Tem essa dupla influência, portugueses pelo lado de pai e italianos pelo lado da minha mãe.
P/1 - Como eles se conheceram? Você sabe?
R - Eles se conheceram em Mogi Mirim. Meu pai ia pra lá e mesmo nessa história de ver as meninas fazer o tal do footing, você já deve ter ouvido falar disso (risos). As meninas andando num sentido na praça e os rapazes andando no outro sentido, de repente se olham, tal, conversam. Foi assim que eles se conheceram. E quando se casaram meu pai já morava em Campinas, aí, minha mãe foi pra Campinas.
P/1 - E na sua casa? Tinha você, outros irmãos? Como era o ambiente.
R - Sim, uma família de oito filhos, eu sou o quinto de oito. Atualmente são sete porque um morreu, o imediatamente acima de mim morreu num acidente de moto aqui em São Paulo, em 82 também. Oitenta e dois foi um ano dramático porque morreu meu irmão em junho e meu pai em novembro, parecia que ia ser interminável. É uma família grande. Isso é uma experiência gostosa porque a minha infância e adolescência foi super gostosa. A diferença até o sexto é de dois anos, um pouquinho mais ou um pouquinho menos de dois anos. Então, chegava no fim de semana, se viesse um amigo de cada um até o quinto (risos) já dava uma festa. E vinha sempre mais do que um amigo de cada porque era gostoso, a gente ficava ali conversando, tal, ouvindo música. Então, tinha esse convívio com um monte de gente, até os 20 anos eu vivi com esse pessoal todo quase.
P/1 - E vocês moravam numa casa?
R - Uma casa.
P/1 - Grande?
R - Grande, tinha 11 pessoas porque além dos oito, meus pais e minha avó materna que sempre morou com a gente. Desde que a minha irmã mais velha, a primeira dos oito, nasceu a minha avó saiu de Mogi Mirim, foi pra Campinas e passou a ajudar minha mãe e ficou morando junto.
P/1 - Então, você tem quantas irmãs e quantos irmãos?
R - Tenho três irmãs, as duas mais velhas e a caçula são meninas e os cinco do meio são homens.
P/1 - E me conta um pouco como era essa casa? Quem mandava? Era o pai, a mãe, era uma casa mais masculina...
R - (risos) Os dois.
P/1 - Qual era o tom?
R - Era gostoso. A gente tinha uma... Claro que tinha aquela história de apanhar de vez em quando porque naquela época era mais fácil. E quem se incumbia disso era minha mãe. Mas era uma coisa que não acontecia muito, era muito na base da dura, tal, mas às vezes a gente entrava num courinho. Mas era gostoso. Não apanhar, é claro que não era gostoso apanhar, não quis dizer isso. Mas era um convívio bem interessante porque, pelo fato de ter muito menino, e a rua inteira estava presente também, a gente tinha um quintal enorme, comprido. Não era muito largo, tinha uns quatro metros de largura, mas era bem comprido, tinha uns 30 metros de comprimento. Então, o futebol rolava ali, tudo criançada pequena, até os 15, 16 anos e às vezes tinha 15 crianças ali dentro. E a gente brincava muito na rua também. Mas o convívio em casa era bem gostoso porque o meu pai tinha a coisa do provedor, né? E como tinha muita gente ele trazia sempre, era meio exagerado, coisa de português como as pessoas dizem. Então, quando ele trazia laranja ele trazia uma caixa de laranja, era tudo nessa base, meio de atacado. E era muito gostoso porque a gente pode viver a década de 60 que foi extremamente rica, culturalmente, e o fato de ter alguns... Eu tive um certo privilégio, o fato de ser o quinto nessa sequência, eu bebi de uma influência dos mais velhos ali. Então, toda a explosão, tanto do rock n' roll, Beatles, Rolling Stones, como a música brasileira que foi super efervescente ali na década de 60, vocês lembram disso. Eu fui vivendo essas influências e aprendendo essas coisas, né? E tinha uma vida cultural intensa também porque as minhas duas irmãs, a primeira e a segunda da série, elas se ligaram muito a teatro, uma era atriz do Teatro de Estudantes de Campinas e a outra diretora do Grupo de Teatro Infantil. Então, eu fiz teatro infantil durante dois anos e meio assim, dos 15 aos 17 anos, foi bem legal.
P/1 - Antes de pegar essas suas influências culturais, como era a parte de religião e o tipo de escola que você frequentava?
R - A gente tem uma formação católica. A minha mãe nunca foi muito enfática, o meu pai um pouco mais, mas eles tinham uma tranquilidade, nunca foram de ficar cobrando muito da gente. Todos foram batizados, crismados etc. Mas eu tive a liberdade de na adolescência escolher que não tinha mais nenhuma... Deixei de ter identidade com qualquer prática religiosa e entrei em outro canal. Mas tem uma formação em termos de valores e tudo, os valores eram católicos, cristãos, mas com essa abertura, não era nada rígido. O meu avô paterno era sacristão, ele foi desenganado muito cedo, ele tinha um coração enooormeee. A gente nunca soube se ele foi picado por algum bicho barbeiro e tal, porque isso é sintoma, né? Mas como meu pai também teve. A gente nunca soube na verdade porque eles viviam comprando cereais e tudo, muitas vezes dormiam no interior em condições meio precárias. Mas nunca foi diagnosticado. O fato é que tanto ele quanto meu pai tiveram doença de Chagas, ele foi desenganado muito cedo, o que fez com que meu pai fosse sacado da escola. Meu pai estudava no Liceu Salesiano em Campinas. Então, com 13 anos ele foi tirado da escola, o pessoal lamentou pra caramba, os padres, porque pros padres ele ia ser engenheiro. E de fato ele tinha uma habilidade com aquelas máquinas que eu contei, as máquinas de arroz, ele inventava outras formas de peneiras não sei o quê, de fazer passar não sei por onde, a ponto de que os fabricantes daquela máquina, pelo menos uma vez por ano, visitavam meu pai pra saber: "E aí, seu Luiz, como que é? O que você viu de novo aí?". Ele contava com a maior tranquilidade, passava um monte de informações pros caras e eles aproveitavam, evidente, sem qualquer tipo de (risos). Mas só pra dizer que ele foi tirado da escola cedo e meu avô era muito mais ligado a uma prática religiosa, sim, tinha um certo recurso, ajudou a construir a igreja do bairro, e era sacristão, então, ele tava todo dia na igreja, tal. Mas ele mesmo nunca foi também de pressionar os netos. A gente tinha uma família muito grande, morava mais ou menos no mesmo quarteirão tios e primos e todos lá. Então, nesse campo aí, a gente teve uma tranquilidade, eu digo tranquilidade porque pra mim foi muito bom não ter sido pressionado nesse aspecto, que eu acho o melhor canal.
P/1 - E na escola qual era...
R - Eu sempre fiz escola pública, né? Eu fiz o Grupo Escolar Municipal de Campinas Castorina Cavalheiro. Depois eu entrei no Colégio Estadual Culto à Ciência que é uma escola tradicional em Campinas, existe desde o século XIX. Depois eu entrei na USP sem fazer cursinho. Então, a única vez que meu pai teve que pagar escola pra mim foi naquele exame de admissão, que vocês devem se lembrar. Como as escolas públicas naquela época, estou falando então de 62, certo? Em 62 eu fiz o primeiro ano de ginásio na época. No ano de 61 eu fiz um cursinho de admissão, que era necessário pra se fazer um exame, uma espécie de vestibular, porque a escola pública era de boa qualidade naquela época e era muito procurada por todo mundo, inclusive pelas pessoas que tinham grana. Não era o caso, o meu pai não tinha super grana, mas eu convivi com gente que era da elite de Campinas, elite econômica. Mas sempre escola pública. As minhas irmãs, uma parte foi em escola religiosa, mas assim, até o ginásio, mas nada que fosse um princípio talvez, foi mais por uma questão de observar qual escola que tava melhor, nunca conversei sobre isso com meus pais, mas nunca teve nenhum tipo de... Não foi um princípio que determinou isso, foi mais uma coisa pragmática mesmo. E elas fizeram também Culto à Ciência, depois fizeram PUC porque fizeram faculdade ali em Campinas. Mas é isso. E uma coisa que eu acho bem legal, assim, comparando com o momento atual, com as dificuldades que a gente tem de educar os filhos, dificuldades financeiras mesmo. Eu tenho dois filhos, os dois fizeram faculdade, claro, um fez PUC, outro fez USP. Mas o meu pai, oito filhos fizeram faculdade, então era, tá bom, a maioria fez Unicamp ou USP, mas eles mostraram pra gente o caminho, como é que era e quais eram as prioridades em termos de formação, e isso eu acho uma coisa muito legal, uma vitória deles e também nossa, de certa forma.
P/1 - Isso que eu ia te perguntar porque você disse que ele foi arrancado da escola. A sua mãe fez faculdade?
R - Não, não, ela fez até o primário só.
P/1 - E como é que foi isso? Que todos os filhos acabaram se formando dentro de uma ______?
R - A gente vivia num outro momento no Brasil e no mundo. E eles valorizavam muito a Educação, né? Esse valor era uma coisa importante pra eles. Então, deram condições pra gente ler coisas legais, de ter boa música. Meu pai escutava ópera, escutava música clássica. Ele era muito ligado em tecnologia, assim que pintou a televisão no Brasil, acho que foi no ano de 1950, em 54 a gente tinha televisão em casa, ele tava muito ligado nessas coisas. E ele assinava a Folha da Manhã, que depois passou a ser a Folha de São Paulo, assinava Gazeta Esportiva, a revista O Cruzeiro, e um jornal de Campinas, Diário do Povo. Então, em casa, a gente tinha o hábito da leitura das coisas do dia a dia, todos todos todos liam a partir de uma certa idade, a ponto de, conferindo até com os meus irmãos, o sentimento era o mesmo, de se você não tivesse passado pelo menos uma hora e meia ou duas pelo jornal durante o dia, ou pelo menos um tempo durante a semana e no fim de semana umas duas horas lendo o jornal, parecia que o dia não tinha começado. Essa sincronia com o que acontecia no país, no mundo, era uma coisa presente pra gente, o meu pai trouxe isso. A minha avó materna foi professora, ela mostrava pra gente os diários de classe que ela tinha guardado, com uma letrinha super legal, isso em Mogi Mirim, inclusive na época da Revolução de 30 e tudo, ela contava as histórias. Então, o valor que se tinha ali pelo conhecimento, mesmo que não fosse em um discurso intelectualizado, porque não era mesmo. A gente tinha na prática ali através de incentivos, de livros, de leitura de coisas do dia a dia e muita conversa. E principalmente essa história do valor com relação aos estudos. E a solidariedade entre a gente, um ajudando o outro. Quando eu fui pra escola no grupo primário eu já sabia ler praticamente, de tanto que eu acompanhava os mais velhos fazendo lição de casa e tal.
P/1 - E você foi ficando adolescente na década de 60. Como foi a sua relação com a coisa política, como você foi?
R - (suspiro). Então. Em 68 eu tinha 18 anos e já fazia movimento estudantil secundarista porque as minhas irmãs participaram de movimento estudantil, não tão intensamente como o terceiro da série, que é o homem mais velho, que fez Unicamp e foi uma liderança estudantil em Campinas. Tinha as lideranças aqui de São Paulo que eram as pessoas que eu acompanhava um pouco pelos jornais e tinha meu irmão em Campinas que eu acompanhava em casa.
P/1 - Ele era uma liderança grande?
R - Ele era uma liderança importante lá em Campinas. A gente teve uma formação política... Bom, tem uma coisa que eu tenho que falar antes disso, porque eu fui de JEC, Juventude Estudantil Católica. Antes de fazer a opção por tirar o time de campo nessa área. Aliás, me ajudou muito a criticar e ver que esse caminho pra mim não era satisfatório. Mas a Juventude Estudantil Católica, não sei se vocês sabem, eu não vou saber contar a história inteira, mas eu sei que na década de 60, eu não sei se isso já veio da década de 50, mas na década de 60, uma ala mais progressista da igreja foi entrando num canal de criar essas possibilidades de atuação da juventude em todos os campos e das pessoas mais velhas também. Porque foram criadas a JAC, JEC, JIC, JOC, JUC, Juventude Agrária Católica, Estudantil Católica, Industriaria Católica, Operária e Universitária. E a JUC veio gerar a AP, Ação Popular, que no fim congregou um monte de lideranças importantes do movimento estudantil da década de 60 e depois também da década de 70, e que muitas dessas pessoas estão na política até hoje em vários campos, em geral PSDB e PT. Desde o Paulo Renato que morreu recentemente até o Serra, passando por outras pessoas que estão mais no PT agora, Maria Clara, que eu me lembro assim, muita gente das minhas relações que foram da AP e que deram contribuições importantes pra luta democrática no país. Então, essa passagem por JEC foi uma coisa importante porque me ajudou a pensar o mundo, a entender como se faz uma análise de conjuntura, como é que você olha, o que é importante saber pra você poder entender a realidade, entender quais são os protagonistas.
P/1 - Isso vocês faziam de que maneira? A partir de qual idade e de que maneira?
R - Eu passei a participar de JEC com 15 anos.
P/1 - Porque seus irmãos já...
R - Não, isso não teve nada a ver com eles.
P/1 - Como é que foi?
R - O termo que se usava era ‘você vai nuclear uma pessoa’, porque a JEC trabalhava com números. Aliás, os núcleos do PT originalmente surgem um pouco, a gente acha, nessa mesma esteira, de promover pequenos núcleos. É claro que tinha a célula do partido comunista, mas a terminologia, eu acho que é muito oriunda, ou pelo menos deve ter alguma influência de JEC. Então, você era nucleado pra JEC. Eu fui nucleado pelo José Graziano, que é da FAO atualmente. Que foi o cara que trabalhou no Fome Zero, no começo do Governo Lula que fez água, não deu certo, aqueles cartões e tudo, mas que acabou trabalhando muito no Bolsa Família e por conta desse trabalho ele foi um cara que se projetou, ganhou visibilidade e está hoje em dia presidindo a FAO, que é esse organismo da ONU que cuida das questões da fome no mundo, apenas isto. Então, esse cara que me nucleou, junto com outro amigo que era o Sérgio Carneiro que vive aqui em São Paulo, sociólogo, eles eram muito amigos e estudavam na mesma escola que eu. Os dois são dois anos mais velhos que eu, eu acho. Mas um deles era contemporâneo, ele tinha perdido alguns anos e tal, depois ele fez até Madureza e foi embora, fez Clássico, eu fui pro Científico. Eu terminava o primeiro ano de Científico, ele terminou o primeiro ano de Clássico, terminou o Clássico inteiro fazendo Madureza e foi embora pra Rio Claro fazer Sociologia. E agora está em São Paulo faz anos, chegamos a morar junto depois numa república. Mas enfim, não teve a ver exatamente... Existia uma efervescência e a gente tava nos lugares, não por coincidência, em que as coisas aconteciam. De certa forma eu era um protagonista já, no meu campo. Eu atuava no grêmio da escola, tinha um impulso a fazer algum trabalho coletivo. No fim, a Política passou a fazer parte da minha vida independentemente do meu irmão mais velho, ou dos meus dois irmãos, inclusive esse que morreu tinha uma atuação política grande. Mas foi muito, vamos dizer, foi tudo pro mesmo lado. E naquela época você tinha uma demanda, digamos, por uma Revolução Socialista, não só no Brasil. Eu vivi também esse sonho, essa coisa utópica, que foi muito importante ter vivido, mesmo que tenha sido uma coisa, até certo ponto romântica e mal dimensionada, foi muito importante como móvel mesmo, como um motor de atuações políticas nesse campo mais da solidariedade, do avanço das questões democráticas, da vida democrática no país e tudo. E isso leva, na nossa realidade aqui, a uma luta contra a ditadura.
P/1 - E você entrou na AP mais ou menos em...
R - Eu não entrei na AP, eu gravitei em torno da AP durante anos. Tanto é que tem gente da AP que até hoje acha que eu fui da AP (risos). Porque era o pessoal mais próximo politicamente. Eu participei de uma organização política que foi formada na Física e Matemática, logo que eu vim pra cá em 70, mas que não tinha vínculo com nenhuma organização das existentes na época. A gente tinha uma doutrina marxista e tal, mas era contra a luta armada, e contraditoriamente, pela ditadura do proletariado (risos). Você vê como as coisas eram. Mas era alguma coisa que tinha uma generosidade. O nosso campo principal dessa organização que durou dois anos e meio e depois todo mundo foi preso e a organização acabou, isso foi em 73. O grande foco de atuação foi na universidade, na Física e na Matemática, a gente ajudou de fato reerguer o movimento estudantil que tinha sido totalmente desbaratado por conta das prisões todas de 68, 69, que acabou fazendo com que muita gente desaparecesse e outros fossem exilados e tal. E tinha de fato, havia um vínculo muito grande de centros acadêmicos com algumas organizações, muitas vezes ali o centro acadêmico era a correia de transmissão, mesmo, para as organizações clandestinas que muitas vezes entravam para o campo da luta armada, tanto no campo urbano como no rural. Então, os caras sabiam o que estavam fazendo, corriam risco e tudo. Existia uma generosidade, mas existia uma ingenuidade grande também, enfim, de certa forma foram vítimas de uma arbitrariedade forte, mas eles estavam numa luta e muitos deles acabaram morrendo. Existia um caldeirão de efervescência cultural, política, demanda por participação que foi um fenômeno que não se verificou só no Brasil, eu não sei explicar isso, mas a década de 60 foi incrível no mundo inteiro, vocês viveram a década de 60. E eu tive esse privilégio de participar desse momento no Brasil. As entradas ali, num âmbito mais familiar, cada um foi por um cantinho, mas os cantos, o caldo de cultura era o mesmo, vamos dizer, a gente estava ali nos mesmos momentos, com contatos diferentes, pessoas de gerações levemente diferentes, e fizemos um monte de coisas parecidas, né? Tanto os irmãos mais velhos até eu porque depois o sexto da série já entrou em um outro canal, o sexto da série já foi fazer macrobiótica, foi levitar (risos), o Paulo, imediatamente mais novo. A gente brinca que ele levitava.
P/2 - E você ou seus irmãos chegaram a ser presos?
R - Sim. O meu irmão mais velho, o Vasco, que tá na Unicamp hoje, na Economia lá, ele foi preso duas vezes. Ele tava no congresso de Ibiúna, então, foi preso junto com todos os caras que estavam lá, e foi preso uma segunda vez depois, com polícia dentro de casa, tal, por conta de vínculos com a ALN, não sei se vocês lembram da ALN. Ele não era exatamente da ALN, mas tinha vínculos com pessoas que eram da ALN. E por conta disso, naquela época qualquer vinculação, amizade pessoal, mesmo que não fosse um comprometimento orgânico com qualquer organização assim, muitas coisas, até menores, eram motivo pra arbitrariedades. E por conta disso ele foi preso uma segunda vez. Eu fui preso uma vez.
P/1 - Como é que foi essa história da sua prisão?
R - Como eu tava dizendo, antes a gente tinha uma organização na Física e na Matemática, e tinha uma componente totalmente aberta, o trabalho de massa mesmo que era feito via o centro acadêmico, o Cefisma, que é o Centro de Estudos de Física e Matemática. Atualmente está separado, já faz anos que os centros separaram, mas naquela época os dois institutos tinham o mesmo centro de estudos. E a partir de 70, quando eu entrei, teve um outro buraquinho aí; eu entrei no começo de 69, logo que eu terminei o colegial, mas eu peguei Exército, eu fiz NPOR em Campinas que é o equivalente ao CPOR aqui, lá tem um núcleo só, cada núcleo é uma arma. Eu fiz, tive que parar de fazer movimento estudantil secundarista, fui fazer exército e entrei na Física. Eu tive que trancar e entrei efetivamente em 70. E eu já vim meio que determinado a ajudar a reconstruir o centro acadêmico, pra mim era uma missão, digamos, pessoal. E me liguei às pessoas que já estavam fazendo alguma coisa aqui, fui me aproximando do centro acadêmico, daí, tinha pessoas que tinham mais iniciativa, tinham um pouco mais de experiência, tinham uma proposta de fazer uma organização mais clandestina. E a gente então se organizou, tinha uma parcela dessa nossa atuação política que era clandestina, que era a preparação de tudo o que a gente fazia.
P/1 - Tipo?
R - Ahhh, tipo, desde as coisas práticas na linha política do centro acadêmico no campo cultural, de imprensa, no campo da discussão da Política Educacional do governo, da organização interna dos estudantes, esporte e tudo o mais, mas também da formação política das pessoas que chegavam. A gente tinha grupos de estudo de textos marxistas, de textos de sociólogos brasileiros, de pessoas que estavam pensando a sociedade do ponto de vista democrático e socialista, vamos dizer. Então, as pessoas que se aproximavam do centro acadêmico, também motivadas pelas mesmas questões que a gente tinha, muitas vezes a gente propunha e aumentava o nosso grupo. De fato foi muito legal, foi um trabalho super bem feito. Tão bem feito que a gente foi preso (risos). Porque só a gente que achava que ninguém sabia de nada. Na verdade não, essa ingenuidade a gente não tinha porque os dedos-duros da escola não faziam a menor questão de se esconder, a gente sabia quem eram os caras, eles se reuniam toda hora do almoço no estacionamento da escola e trocavam as idéias dele, todos sabiam quem eram. Andavam de coturno, apesar que todo mundo andava de coturno naquela época (risos), eu mesmo não comprei sapato um tempão, usei meus coturnos do Exército durante uns quatro, cinco anos, até acabar. Mas enfim, eles não tinham o menor problema em mostrar que estavam ali espionando mesmo. Tanto que quando a gente foi preso eles sabiam um monte de coisa, quer dizer, o Fleury que interrogou um dos caras que foi preso, que está na Universidade Federal da Bahia atualmente, o (Osama?). Já sabiam um monte de coisa. E daí, eu trabalhava na Abril nessa época. Eu sempre tive uma facilidade muito grande com a Língua Portuguesa, então, enquanto eu fazia Física, eu comecei fazendo revisão no Estadão, depois estando ali nesse campo eu fiquei sabendo de uma contratação que a Abril estava fazendo, no Estadão era só um serviço temporário, uma vez por semana. Na Abril eram oito horas por dia, trabalhei na Abril como revisor, aí era puxadíssimo. Então, digamos, o motivo que os caras de certa forma criaram como pretexto pra começar a prisão, que redundou na minha prisão e de todo o pessoal com quem eu me organizava, foi um Jornal Opinião, que eu trazia da banca interna da Abril. A Abril é que distribuía o Opinião naquela época, Opinião era aquele tablóide super legal, com ótimos jornalistas, muitas vezes censurado, mas que trazia um monte de discussão importante ali pra quem tava ligado na realidade brasileira e queria avançar na Democracia. E o Jornal Opinião vendido na banca interna da Abril vinha com um carimbo: "Venda Proibida em Banca", ou coisa parecida. Alguma coisa que denotava que aquilo não podia sair de lá de dentro, senão eu comprava um monte, era muito mais barato e podia vender fora. E eu comprava vários e o pessoal me dava dinheiro pra distribuir lá na Física. Eu namorava a mãe dos meus filhos na época, a Suzana.
P/1 - Ela era do movimento também?
R - Ela era, mas a gente tinha uma organização piramidal, ela não estava na ponta da pirâmide, ela tava na segunda faixa, aqui. E o grupo dela, a gente tinha um grupo que, digamos, organizava todas as coisas, e dentro da escala de clandestinidade que a gente tinha estava na escala máxima de clandestinidade. É claro que essa segunda faixa aqui, tinha bastante conhecimento do que acontecia, você sabia que as pessoas que estavam trabalhando ali, definindo algumas diretrizes, se reuniam. Mas eles também tinham um nível de clandestinidade. Então, ela tava indo pra uma reunião na casa dela com mais duas pessoas, e foi exatamente no dia da missa de sétimo dia do Alexandre Vannucchi, que foi assassinado e era ligado a uma organização de esquerda e era estudante de Geologia na USP.
P/1 - De?
R - De Geologia. E daí, no dia da missa de sétimo dia... Nesses momentos, pra evitar exatamente a movimentação na cidade, a polícia de certa forma fechava as pontes da Cidade Universitária, ali na Panamericana, na Avenida Rebouças e tal, pra evitar exatamente esse fluxo fácil mais facilitado que a gente teria pra ir até o culto ecumênico na Catedral da Sé. E exatamente nesse dia, a Suzana, indo pra casa, o pessoal nem ia pra missa, mas foram parados numa blitz e o jornalzinho que tava ali com o carimbo que não podia ser vendido em banca foi o pretexto do investigador que estava ali parando o carro falando: "Não, isso aqui não pode, vocês estão com um jornal proibido, não pode", e levou todo mundo pro Dops. E era a Suzana, uma outra menina, a (Jilena?), e o (Ossama?). O (Ossama?) participava dessa parte mais de orientação fundamental do grupo. Ele foi recebido lá, as meninas foram tratadas de uma maneira diferente, foram interrogados e ele foi torturado mesmo pelo Fleury. Isso era uma sexta-feira. Naquela época eu trabalhava das seis da manhã às duas da tarde, era o meu turno de trabalho, a revisão tem três turnos em qualquer lugar. E inclusive no sábado, que fechava a Veja, fechava tudo. E eu tinha uma reunião no meu apartamento que era na Maria Antônia naquela época, eu morava sozinho no apartamento, às três da tarde. Eu cheguei às duas e vinte, almocei ali por perto e fui pra casa. Quando eu cheguei no meu andar tinha já dois caras com, digamos, voz de prisão e com esse meu amigo (Ossama?), física. E ele me chamando pelo meu codinome, eu falei: "Po, esse cara pirou, meu. Como ele tá fazendo isso?". Ele tinha apanhado mesmo, tinha passado a noite apanhando e tudo. E aí, um deles desceu e foi buscar o comandante da operação ali, que era o Raul Careca, um delegado extremamente estúpido, uma estupidez tão grande que depois foi assassinado por um cabo do exército na Rua dos Pinheiros porque entraram numa discussão, o cabo tava armado e matou o cara. E o Raul Careca então apareceu lá, foi avisado em frente a uma lanchonete em frente ao meu prédio, e aí levaram tudo: livros, cartas de uma namorada que eu tinha tido em Campinas e dinheiro da taxa de bixo que tava na minha casa e eu ia depositar na segunda-feira, isso era um sábado. Porque eu tinha sido tesoureiro da gestão anterior e agora era o presidente do centro acadêmico, do Cefisma. TROCA DE FITA
P/1 - Só localizando, a gente estava na véspera de sua prisão na sua casa, num sábado às três horas da tarde.
R - Às três horas da tarde, exatamente. Não me esqueço porque eu fui pontual, cheguei exatamente no horário combinado e estavam as pessoas lá. E é claro que ninguém apareceu, alguns já estavam até presos, das pessoas que iriam fazer parte da reunião.
P/1 - Então, foi o (Ossama?) que apanhou e acabou...
R - Que apanhou e acabou contando, teve que contar, a gente não tinha, imagina... Tanta gente mais comprometida com uma perspectiva muito mais de luta mesmo, não uma luta digamos política, mas uma luta militarizada, tanta gente assim, não resistiu, né, e contou coisas de montão. Teve os caras que morreram heroicamente, mas um heroísmo, sei lá, controvertido. Mas são valorosos porque acabaram não entregando um monte de gente. A gente nunca recriminou, evidente, porque qualquer um que estivesse na situação dele ali, passando pelo que passou, a gente contaria. Mesmo porque a gente não tinha nada do que, digamos, ter medo. A gente tinha uma atuação clandestina no campo da luta política e da formação de pessoas dentro de uma teoria, digamos, sociológica, ou uma visão de mundo, uma perspectiva civilizatória que até hoje acho que tem muita validade. E eu acho que não tinha nada demais, a gente só estava exercendo os direitos de cidadania. Então, contava mesmo, claro, teve que contar. Daí, eu fui preso, depois de passar ali pelo meu apartamento, essa mesma C14, que era uma perua Chevrolet que a polícia usava, eles foram buscar ainda o Jonas que era um amigo nosso da Matemática, que morava ali no Sumaré. E depois o Sérgio, que era um outro cara da Física noturno, também como eu, que morava na Heitor Penteado, e foi passando e pegando as pessoas, tal, e prendendo. A gente ficou 26 dias presos no Dops, sendo que nos últimos dois dias e meio foi na Operação Bandeirantes na Rua Tutóia, que era Oban e foram os piores dois dias e meio, vamos dizer assim porque ali a gente passou pelas três equipes. Uma equipe trabalha 24 horas, descansa 48 horas, então, a gente passou pelas três equipes e ali eles tentaram de tudo, né? Ali o cara principal do nosso grupo, que era o Luciano, era amigo, e é até hoje, da Matemática também. Ali a gente viu ele tomar choque elétrico na nossa frente, um cara alto, 1 metro e 90 de altura, todo mundo ali reunido na frente do cara que comandava naquele momento a equipe. O cara conversando e botando fios na orelha dele, tal, não sei o quê, de repente virou a máquina, a tal do dínamo que eles usavam pra dar os choques. E você vê de repente um cara de 1 metro e 90, em menos de um segundo ele está no chão, você não sabe nem como ele caiu, tá no chão se debatendo, é uma coisa hor-ro-ro-sa, horrorosa. É uma tortura psicológica também pra gente ali.
P/1 - Você chegou a ser torturado?
R - Fisicamente o que eu sofri? Puxão de barba, tapa na cabeça. Eu usava um cabelo comprido, uma barba. No depoimento... Porque logo de cara os caras refizeram todas as perguntas um por um, que a gente já tinha respondido no Dops, e aí, eles chamavam a gente em duplas. No meu caso, eu fui chamado junto com o (Ossama?). Enquanto o (Ossama?) era interrogado e o cara datilografava, isso era 73, o depoimento dele, ele mandou eu ficar em cima de um corrimão de uma escada, atrás de mim era uma escada que descia e aqui um parapeito de tijolo, e aqui um, sei lá, acho que essa pedra de cima era um mármore, qualquer coisa. Ele me obrigava a ficar ali em cima, eu ficava com a cabeça praticamente quase colado, se eu ficasse um pouco mais alto eu colava a cabeça no teto, segurando duas folhas de papel sulfite, que não pesa nada, certo? Mas depois de 20, 25 minutos, aquilo pesa dez quilos cada uma. E foi o que aconteceu, eu fiquei ali. E eu sempre tive um problema de circulação, depois foi diminuindo, naquela época era comum. Esse braço começava a latejar depois de um tempo que eu ficasse numa posição só, e isso de certa forma me salvou. Me salvou (risos), claro que ele ia me tirar dali em algum momento e se eu não caísse de costas ali não ia acontecer nada também porque poderia ter caído. Mas o meu braço começou a ficar desse tamanho, as veias super saltadas depois de 25 minutos ele começou a olhar praquilo, perguntou o que era, eu expliquei que de vez em quando eu tinha esse problema, problema de circulação, ele me deixou mais uns três, quatro minutos, e me tirou. Mas enfim, isso pra mim é tortura. A tortura psicológica porque ali, gritos, gritos e gritos a noite inteira. Eu lembro muito bem que naquela época, naquele mesmo momento, o atualmente vereador, puxa, como é que eu esqueço o nome dele? Bom, um vereador que é do PT, que era da Geologia, ele tava preso também por ter ligações com o Alexandre Vannucchi, e ele era torturado todas as noites. Quer dizer, as duas noites que a gente passou ali eu ouvi gritos desse cara, e ele tava na cela ao lado, sozinho. Ele voltava um trapo, a gente via isso. Então, isso aí pra mim é tortura. Então, o fato de eu não ter tomado choque é mera questão de modalidade aí. De certa forma eu fui tratado de um outro jeito porque eu era oficial da reserva, certo? Porque quem faz NPOR, você sai aspirante a oficial, e depois, se você quiser, é uma coisa voluntária, você faz um estágio de dois meses e de aspirante você vira oficial. E era bem pago. Eu fiz esse estágio, no final do meu primeiro ano de Física eu fiz esse estágio nas férias, eles abriam exatamente nas férias pra possibilitar as pessoas que estavam fazendo universidade. Então, eu sou tenente da reserva. O fato de eu ser tenente da reserva me levou a ter um tratamento, de certa forma, um pouco mais, assim, digamos, condescendente. Eles procuraram me humilhar menos do que aos meus companheiros ali. Logo na chegada, só pra dar um exemplo, logo na chegada na Oban, eu to falando mais da Oban porque a Oban foi barra. O Dops foi muito difícil também, foi muito difícil porque teve situações de interrogatório intermináveis e que a promessa era te pegar à noite pra continuar o interrogatório, e a gente sabia. Isso muitas vezes não aconteceu, né? O próprio Raul Careca me ameaçou várias vezes: "Então, tá bom, você não tá falando, à noite eu vou te buscar lá e você vai ver se não vai falar". E você não dormia à noite, cada vez que abriam a carceragem por alguma razão, você fala: "Putz, agora o cara veio me buscar". Eram seis celas.
P/1 - O Dops ali na...
R - Ali onde agora é...
P/1 - A Sala São Paulo.
R - A Sala São Paulo e tem o...
P/1 - As celas ficavam embaixo?
R - Na verdade não é bem onde era a Sala São Paulo, um pouco mais à direita, olhando ali na Praça General Osório.
P/1 - Onde hoje é o Arquivo?
R - Atrás tem a Praça da Paz onde tem um estacionamento, onde tem o arquivo. Ficava em um dos porões, você entra atualmente nas celas, uma delas, o lugar em que é a recepção, você entra por trás, né? O lugar em que é a recepção era a carceragem, a entrada do corredor e aí tinha seis celas. A gente estava distribuído nessas seis celas com mais gente, na época o PC do B teve muitas prisões na região ali do Bico do Papagaio ali no cantinho esquerdo do estado de São Paulo, o José Genoíno tava na cela ao lado, tinha caras do PC do B na minha cela. Um cara que era gráfico, outro cara que era bancário, dois professores, e eles estavam já na saída naquela época, já tinham passado pela Oban e estavam no Dops. Eles já estavam sorrindo de alegria porque seriam soltos, já tinham passado pelo pior, muuuito pior do que a gente. E nós fizemos o caminho inverso. Eles levaram a gente pra Oban pra ver se saíam coisas que talvez o Dops não tivesse conseguido extrair, e não tinha o que extrair mais. Mas enfim, eu tava falando sobre de certa forma eu ter sido meio que preservado, né? Porque logo na chegada na Oban, eles fizeram todos, menos eu, tirarem a roupa, sapato, peladão mesmo, todos, e me obrigaram a dar uma (aula de Unida?). Eu de roupa, só eu de roupa. Aula de Unida é aquela história de direita volver, apresentar armas, não sei mais o quê. O cara subiu numa mesa e mandava eu fazer as coisas, né? "Agora manda eles descerem a escada", e descia escada. Uma escada longa, até o pátio, onde ficavam as celas. E agora sobe a escada. Pô, os caras não aguentavam mais nessa altura, e subia e descia, subia e descia. E daí, quando a gente foi pegar as roupas, tudo com nó, e tinha que ser rápido. Sabe aquela pressão pra te humilhar, pra te deixar numa situação de fragilidade, né? Então, só esse detalhe pra dizer que a humilhação, pelo menos na visão deles, talvez pra mim tenha sido um pouco menor do que para os outros (risos). Eu atribuo a isso o fato de ali na frente eles julgarem que como eu era oficial da reserva, eles também do exército, eles tinham que me preservar um pouquinho de alguma maneira, sei lá. Mas eles têm esse valor. Enfim, daí a gente foi solto, e foi terrível porque é uma experiência traumatizante. A partir dali, eu tive muita dificuldade de falar em público durante um tempo. Mas eu não queria parar, eu só parei de fazer o movimento estudantil mesmo, ligado ao centro acadêmico. Mesmo porque já tinha toda uma geração nova que tinha se formado nessas discussões que a gente fazia, que tava assumindo aquilo com uma super competência.
P/1 - Nós estamos falando de...
R - Setenta e três. E daí, já começava a ter um pouco mais de atuação por mais centros acadêmicos. Porque quando eu entrei em 70, você tinha o Cefisma e o centro as Ciências Sociais. O Silvio Caccia Bava, eu conheci naquela época, o Silvio que é do Instituto Pólis e do Le Monde Diplomatique, grande amigo. Eu conheci naquela época porque a gente fazia reuniões de vez em quando, em centro acadêmico, e era uma coisa clandestina, você tinha que fazer uma coisa totalmente descaracterizada, né? Era o centro das Ciências Sociais e o Cefisma, que atuavam. Em 73 já existia a História e a Geografia, o Geraldinho já tava super atuante, a Maria Clara, pessoas do FIC que talvez vocês conheçam, que tiveram atuação importante no movimento estudantil. E outras pessoas mais novas que estavam chegando ali. E eu comecei a me preocupar mais com o movimento de pós-graduação, me preocupar mais com as questões da política interna da Física, do ponto de vista educacional e tal. Eu passei a dar aula em 73, eu voltei pra Abril, eu fui preso bem nas minhas férias. Dia 31 de março de 73 era o último dia, segunda-feira eu entrava em férias (risos). E eu tinha 20 dias de férias. Fiquei 26 dias preso. Nesses seis dias extras aí teve um fim de semana, tal. E eu assinava ponto, tinha que bater ponto, então, os caras bateram ponto pra mim. Era tudo gente da USP que trabalhava na revisão, em geral da Letras, eu que tava destoando, que era da Física e tinha um cara da Psicologia, o Ferreira, que infelizmente já morreu, um super batuqueiro. Mas era gente da Letras, o coordenador desse setor era um cara super legal, discreto pra caramba. Eles sabiam o que tinha acontecido, mas não sabiam quando eu ia voltar, então, começaram a riscar. Minhas férias acabaram e eles começaram a assinar, bater ponto pra mim. Cheguei de volta, isso era final de abril, eu fiquei até agosto. Eu queria dar aula, aí, em agosto uma pessoa de lá mesmo, um cara que já dava aula de Português nas horas vagas, mas trabalhava na revisão, me falou de uma escola em Santo Amaro que estava precisando de professor de Matemática, fui lá e comecei. Escolhi. Essa era a minha escolha profissional, sempre fui professor. De 73 até 2007 eu dei aula na vida.
P/1 - Em escola?
R - Principalmente no Ensino Médio, mas também em algumas faculdades, em ciclo básico de faculdades, na Fesp, Faculdade de Engenharia São Paulo, na Fatec, que é da Unesp. E teve um buraco aí no meio, de oito anos, mais ou menos, que eu cansei de ouvir minha voz, não quis mais dar aula. Parei, trabalhava só. Eu sempre tive atuações paralelas, ou em alguma editora, ou em ONG, trabalhei no Cedi, que nem existe mais, você deve ter conhecido. Centro Ecumênico de Documentação e Informação.
P/1 - Não existe mais?
R - Não existe mais. Gerou o ISA e a Ação Educativa, né? O Cedi tinha programas, foi crescendo tanto que as financiadoras falaram: "Olha, o administrativo tá caro, a idéia é que cada programa tente batalhar pelo seu caminho, a transformação em uma ONG autônoma". E a ação educativa e o setor dos antropólogos lá, o programa dos povos indígenas, com o Beto Ricardo, conseguiram. E estão aí. Eu trabalhava no programa do Movimento Operário, que eu levei pra lá um projeto de estudo da indústria armamentista brasileira, levei pro Cedi, criei meu emprego lá. E trabalhei por dois, três anos lá. Só pra dizer o seguinte, por conta de estar vinculado ao Cedi parei de dar aula, tive um contrato por tempo integral durante um tempo, porque eu trabalhava em tempo parcial, mas logo em seguida fui convidado pra trabalhar na Prefeitura de São Bernardo do Campo, em 89, na mesma época que a Erundina foi prefeita em São Paulo, o PT conseguiu eleger o prefeito em São Bernardo, e aí, eu fui dirigir o Departamento de Estatística da Secretaria de Planejamento. Então, eu fiquei três anos e meio trabalhando lá, depois acabou, o PT não fez o sucessor, eu fui pro Instituto de Energia, levei um projeto de Planejamento Energético Local. Eu aproveitei umas preocupações que eu tinha com relação à questão energética, e como professor eu tinha trabalhado muito com os alunos de Ensino Médio onde eu trabalhasse, eu dava aula sempre em duas ou três escolas. Trabalhei bastante com a questão energética, mas aí, com a experiência de administração pública, eu consegui casar essas problemáticas todas e montei um projeto de desenvolver uma metodologia pra Planejamento Energético Local, levei pro Instituto de Energia aqui da USP, que é um instituto ligado à Poli, e aí, tive uma bolsa do CNPq durante um tempo pra desenvolver um projeto profissional na verdade porque o CNPq tem uma rubrica de verbas que é de formação de recursos humanos em assuntos estratégicos e aí eu fui contemplado com uma bolsa e fiquei então mais um tempo trabalhando precariamente, porque no fim apesar dessa bolsa ser boa, comparado com bolsa de mestrado, era uma coisa difícil porque nessa altura eu já tinha dois filhos. E daí, de novo eu voltei pra escola no Vera Cruz, que era a escola que meus filhos estudavam, se propôs a fazer o Ensino Médio. Então, eu joguei meu currículo lá e fui contratado pra montar o Ensino Médio do Vera Cruz e fiquei 12 anos lá, foi bem legal. Foi uma experiência muito legal. E aí, eu fechei minha carreira como professor em 2007.
P/1 - Por qual motivo?
R - Porque eu achei que tinha que entrar molecada na história. Eu ensino Física. Então, eu achei que eu com 57 anos, naquela época, eu tenho 61 agora, já tava na hora de pessoas mais jovens trabalharem com os adolescentes. Claro, foi uma opção pessoal. Eu já tava dando aula pra pessoas que eram filhos de ex-alunos meus (risos). Eu falei: "Pô, daqui a pouco vai chegar neto aí e eu vou ficar com vergonha" (risos). Então, eu dei aula pro Cao Hamburger no Equipe na década de 70, depois dei aula pro filho e pra filha dele no Vera (risos), dei aula pra Isa Greenspoon, no Equipe. Depois dei aula pros dois filhos dela, como o Marcelo Ferraz, no Vera. E assim sucessivamente. Eu dei aula pra Gláucia, que é filha do Almino Afonso, que já morreu, no Equipe, depois ela deu aula pra minha filha, e depois eu dei aula pro filho dela (risos). Aí falei: "Pô meu", já tinha vários assim. Filhos de ex-alunos. P/2 - Você foi pai jovem? R - Nem tanto, nem tanto. Eu tenho 61, o meu filho tem 28. Eu tive o meu primeiro filho com 33 anos. E a segunda, é uma menina, com 37. Uma diferença de quatro anos. Marcos e Joana. Queridos.
P/1 - Você casou depois que se formou?
R - Não. Eu demorei pra me formar. Porque eu fiz política estudantil até 73, eu fazia uma matéria por semestre, não é nenhum mérito isso, mas foi a minha opção. E depois que teve essa prisão em 73, tanto por mim mesmo, como também por uma certa pressão do Professor José Goldemberg que era diretor na época, diretor na Física, um cara que teve uma atuação super legal na época, viu? Porque ele pode ser criticável em um monte de coisa, do ponto de vista político, das opções políticas dele, mas é um democrata. O pessoal foi preso, no dia seguinte ele tava lá no Dopa: "Cadê meus estudantes? Onde é que eles estão?". E ele, o Ernesto Hamburger, pessoas queridíssimas. Porque naquela época não era fácil, e eles usaram o fato de serem pessoas respeitáveis e terem uma visibilidade e uma função importante na universidade, usaram da maneira responsável que essas pessoas teriam que agir. Foram pessoas que não se intimidaram. Mas o Goldemberg falou o seguinte: "Olha, eu vou aplicar o 477 aqui dentro" (risos). A lei da jubilação.
P/1 - Tem que terminar.
R - Máximo sete anos. Eu fiz as minhas continhas, bom, termina o primeiro ano em 73 e faço o meu curso. Foi como se eu tivesse entrado em 73. Aí, me dediquei só à Física e fiz o curso como se tivesse entrado só em 73. E já dando aula, fazendo o que eu queria, a minha opção foi essa. Eu não caí no Magistério, eu optei pelo Magistério. Eu te digo isso pelo seguinte: na Física, o pessoal que optou por ensino de Física caiu no ensino. É assim que o pessoal vê. E outra vez o Ernesto Hamburger tem um papel importantíssimo porque ele criou a pós-graduação em Ensino na Física, em parceria com a Faculdade de Educação. Foi a primeira pós-graduação em ensino que teve na USP. E talvez a primeira que tenha tido na universidade brasileira. E isso possibilitou que muita gente pudesse exercer essa opção profissional, faz licenciatura, eventualmente faz licenciatura e bacharelado, mas vai lá fazer Ensino. E aí, gerou um monte de dissertações de Mestrado, tal. Mas daí, eu fiz pós-graduação em ensino, tal, fiquei lá até 81, 82 na Física fazendo monitoria, enfim. Terminei o meu curso em 76: três, quatro, cinco, setenta e seis. E dando aula de Física. Comecei dando aula de Matemática, dei aula meio ano de 73 em Matemática, mas em 74 já me pediram pra dar Física e Matemática. Então, eu saía como professor de Matemática de uma sala e entrava como professor de Física na outra.
P/1 - E já nesse período estudando Física você já tinha uma vida, vamos chamar estável, você já tinha casado...
R - Ah é. Eu me casei em 76.
P/1 - Você se formou e casou.
R - É. A Suzana, com quem eu me casei, era da Física, ela fez um curso assim, fiuuu, como manda o figurino (risos). Essa que eu falei que foi parada numa blitz e tal e depois gerou toda a história da prisão. Ela se formou em 73, entrou em 70. Aliás, uma geração brilhante na Física, vários astrofísicos, vários físicos que foram até meio que privilegiados por uma última leva de contratação que teve assim, na Física, talvez na USP como um todo, mas que pessoas assim, uma geração bem interessante na Física. E ela tá lá até hoje, ela é professora. P/1 - Da Física?
R - É. E daí nós tivemos nossos filhos. Ela meio que privilegiou um pouco a carreira, eu fui me adaptando a isso, e ela fez depois doutorado e tal, mas doutorado ela já fez grávida do Marcos. E a gente teve dois filhos.
P/1 - E vocês estão casados até hoje?
R - Não, não. A gente se separou em 89, somos amigos hoje, faz muito tempo que a gente é amigo. Mas aí, a gente se separou, as coisas foram bem até quando deixaram de ir bem (risos). É assim que é o casamento, certo? (risos). Enfim, mas a gente se dá super bem, tal. Teve uma época que não se deu bem mesmo, e daí durante um tempo a coisa fica muito difícil, né? Mas foi uma coisa inevitável, foi uma coisa boa pros dois eu tenho impressão, mesmo que tenha sido dolorido, mas era melhor, até pros filhos também deve ter sido bem bom porque a gente poupou-os de um monte de coisa que poderia ter sido chato. Enfim, mas fizemos direitinho essa passagem, estabelecemos novas rotinas com as crianças e cumprimos as rotinas, eles são super equilibrados, foi super bem nesse aspecto.
P/1 - E aí, entrando um pouco no tema da sua doença, como é que foi? Quando surgiu isso? Quando você descobriu, o que aconteceu?
R - Bom, isso já em 2006. Eu to com a Ísis atualmente, desde 96.
P/1 - A Ísis Palma?
R - A Ísis Palma, minha companheira, a gente já está há 15 anos juntos. E em 2006. Bom, eu tive um episódio de internação por questões cardíacas em 2001, eu tive alguns episódios de espasmos, tal, que é uma coisa muito... Digamos que é um pré-infarto. Fui internado no Incor, fiz um monte de coisas e tal, passei a ter um acompanhamento, remédio pra pressão etc. Passei a fazer um acompanhamento anual, e por conta disso, em 2006, em um exame de rotina, essas coisas de análise de PSA, que é um antígeno específico da próstata, aliás, isso é a sigla em inglês, antígeno específico da próstata, quando o PSA tá muito alto eles sugerem um exame de toque pra ver se vai precisar de uma biópsia, e foi o meu caso. Em 2006 um exame em julho, comecinho de agosto, eu soube, se não em engano em quatro de agosto, teve um diagnóstico de câncer na próstata, bem no começo, por conta do acompanhamento. Então, acompanhamento é fundamental. A partir de uma certa idade, independente de ter tido qualquer tipo de problema cardíaco ou não cardíaco é importante fazer check-up. Enfim, o diagnóstico foi esse, no final de agosto mesmo, eu tava no Vera nessa época, a gente organizou tudo, uma licença de um mês, eles foram super... O médico falou que não precisava mais do que 15 dias, mas a própria coordenadora da escola falou: "Não, você vai ficar mais 15 dias". Então, foi feita uma cirurgia de estirpar totalmente a próstata. O cara falou que na minha idade não era aconselhável fazer radioterapia ou quimioterapia. Ele falou: "Se você tivesse perto dos 80, ou mais de 80, eu faria. O que vai acontecer é que se eu fizer agora você provavelmente vai ter uma reincidência e daí vai ser complicado porque não vai dar pra fazer nem radioterapia, nem quimioterapia, e talvez até a própria cirurgia já não resolva grandes coisas ao aparecer de novo". Os casos médicos são esses, eles têm os históricos, então, eu fiquei sem a próstata, que é um problema, porque é uma coisa que você tem que ser acompanhado de certa forma.
P/1 - Por que?
R - Porque nos casos mais greves você fica sem possibilidade de ereção.
P/1 - Pela falta da próstata?
R - Não por causa da próstata, mas pelo seguinte: a próstata é uma glândula que fica na base da bexiga e envolve a uretra. E os nervos todos, os feixes nervosos que são responsáveis pela ereção, eles envolvem a próstata. Bom, nos 12 setores de biópsia que eles fizeram, um setor só deu câncer. Mas quando tem em um setor tem que tirar tudo porque não dá pra tirar um pedacinho só. Então, o cara foi super cuidadoso e comprometeu uma partezinha só dos feixes de um lado e do outro lado totalmente ileso. Mas de qualquer forma você perde uma parte da sensibilidade. E tem todo um tempo de convívio e reeducação até você entrar numa normalidade de novo, né? Então, você tem que ter um... Isso é uma questão. Bom, começa daí, discutindo a coisa da próstata, os exames. Isso tem diminuído, mas é comum ainda nos homens uma dificuldade em fazer o tal do exame de toque por conta do machismo, de uma série de preconceitos e tal, que os homens, não só no Brasil, mas acho que a gente conhece a realidade e a cultura brasileira, aqui tem essa história, mas vem diminuindo. Acho que vem diminuindo até por conta da divulgação de casos como o meu, e eu soube de outros anteriores, evidente. Agora, o fato é que tem gente que não faz exame, não faz exame, aí, quando o câncer é detectado na próstata já não tem o que fazer, o cara morre, certo? O cara morre e pronto. E cada vez mais, ultimamente, a gente vê casos que a pessoa vai lá e faz os exames e quando eventualmente dá algum problema se submete a uma cirurgia, ou tratamento, dependendo do diagnóstico ou do que o médico decide. Eu tenho um amigo, por exemplo, dois anos mais velho que eu, o médico dele optou por uma radioterapia, e ele tá fazendo. Eu não sei como vai ser o resultado disso, né? Enfim.
P/1 - Mas no seu caso na verdade você tirou toda a próstata e o que você teve que fazer depois? Como é desde então?
R - O cara limpou a área, quer dizer, a próstata tem essa particularidade, o câncer é localizado, eu não tinha metástase, foi tudo no começo, então, tava super confinado. Tirando a glândula e gânglios correlatos e tal, o acompanhamento eu ainda faço, faço exames de PSA pelo menos uma vez por ano e tem dado traço praticamente, quer dizer que esse antígeno não existindo eu não tenho mais nada. Não tenho nem células da próstata mais, e muito menos, então, alguma coisa que comprometa. Mas não parou por aí, esse que foi o problema, eu tive outro episódio de câncer. Em 2009 eu tive um câncer de cólon do intestino grosso, bem perto aqui do fígado, mas também super no começo. Outra vez, exame de rotina. O meu cardiologista que é o cara que me acompanha desde 2001, ele me passou um exame no final de 2008 e falou: "Olha, vou te passar uma colonoscopia e uma endoscopia, mas é... bota na gaveta, lá por maior faz o exame, quando você for fazer exame de sangue pra voltar aqui, faz o exame e traz o resultado". Aí, por uma razão, por total coincidência eu tive um sangramento em janeiro, ao ir no banheiro e tal, e eu fiquei muito preocupado e liguei pra ele. Falei: "Olha, teve um sangramento fora do normal". Porque no fim eu tenho um pouco de hemorróidas e às vezes tenho um pouco de sangramento, mas aquele lá foi fora do normal. Ele falou: "Então, faz o exame que eu te pedi". Eu fiz o exame e deu um câncer, pequeno também, no intestino grosso. E o tal do sangramento foi só hemorróidas mesmo, foi uma coisa que na verdade foi uma sorte, né? Esse alarme falso me fez pegar isso antes. Porque no fim, alguns meses pode fazer diferença, se eu deixasse de janeiro pra maio, como ele tinha me sugerido. Porque no fim o que o cirurgião que me atendeu falou: "Provavelmente esse câncer iniciou em agosto do ano passado, e depois que ele se forma ele pode ter outra velocidade de crescimento, então, em maio poderia ser um pouco mais complicado". O fato é que, enfim, o cara me deu maior segurança e disse: "Laparoscopia"
P/1 - A gente tava, depois que você teve a do intestino, e o que aconteceu com essa do intestino?
R - Eu tava contando então sobre o cirurgião que me atendeu. Sempre indicação desse meu cardiologista. Ele me tranquilizou porque esse cirurgião é especialista em Laparoscopia. Ele, digamos, é de uma segunda geração de oncologistas, eu vou dizer, tem uma senhora que é uma médica super famosa, eu não vou me lembrar dos nomes agora, que foi professora dele. E ele é um cara que é livre-docente na USP, e tem essa técnica da laparoscopia, então, ele me tranquilizou porque era uma coisa pequena, localizadíssima, eu teria uns furinhos de lado pra entrar os equipamentos e a câmera, não sei o que mais e tal. De fato, a primeira cirurgia foi tranquila, ele tirou uns 30 centímetros de intestino, limpou tudo, não precisei fazer, nunca, quimioterapia, por conta dos resultados dos exames, de tudo que ele tinha tirado. Só que aí eu tive um monte de intercorrências, entendeu? Por particularidades minhas. Depois ele acabou contando um dia que ele nunca tinha pego um caso tão complicado. Porque o que aconteceu? Eu fiz a primeira cirurgia dia 16 de março de 2009, só que depois que ele fechou todas as coisinhas tal, teve aderência do intestino nos órgãos internos e com o próprio intestino, e teve um bloqueio. Então, dia 20 eu tive que fazer uma outra cirurgia, e aí, não era mais laparoscopia, ele teve que abrir. E desfez as aderências, fechou, teve torção de alça de intestino delgado, então, dia 26, senão me engano, uma terceira cirurgia. E nessa eu perdi três metros e meio de intestino porque o que aconteceu foi que o que tava torcido não pôde ser recuperado e o restante tava inflamado porque tava tudo preso. Bom, eu tava em total regime, eu tava recebendo soro simplesmente, emagreci pra caramba porque não recebia nem alimentação parenteral, nem enteral, porque não ia ter escoamento, tava tudo travado, então, recebia soro. Emagrecendo, emagrecendo. Dia 26 teve essa cirurgia, eu perdi três metros e meio de intestino, já tinha perdido 30 centímetros, então, na verdade, eu to com metade do meu intestino. E eu saí com uma bolsa lateral aqui porque o restante do intestino precisava se recuperar. Eu fiquei com um metro e dez só de intestino funcionando, a parte diretamente ligada ao estômago, e uma bolsa lateral. E fiquei no hospital durante um tempo, eles tentando me dar alta só com alimentação via oral mesmo, mas eu esvaziava aquela bolsa cerca de 11, 12 ou 13 vezes por dia, e era nada. Aquilo era coisa que já não era mais comida, mas não era fezes ainda, era uma coisa meio de processo. Às vezes eu chorava: "Pô meu, olha só o que tá acontecendo". Mas muito mais por estar vendo que aquilo era uma coisa que eu não estava absorvendo nada daquilo. O fato é que eu não consegui sair do hospital só com alimentação oral porque eu não absorvia. Tive uma primeira alta em abril, mas voltei dois dias depois com uma desidratação absurda, fiquei no hospital, agora com alimentação parenteral e comecei a me recuperar. Fiquei até maio no hospital. Fui pra casa com a bolsa. P/2 - 2010?
R - 2009. Sempre 2009. Em maio fui de volta pra casa e fiquei até setembro com essa bolsa e com alimentação parenteral. Cuidado em casa por uma empresa especializada nesse tipo de alimentação e com cuidadores. Depois de um mês sem cuidadores, eu mesmo fazendo a mudança diária da bolsa de alimentação parenteral. Então, a gente vai aprendendo um monte de coisas. Primeiro na relação com os cuidadores e os técnicos de enfermagem, com os enfermeiros do hospital. Eu nunca tinha imaginado a importância dessas pessoas, e a generosidade que elas têm, é incrível. É uma coisa que eu fiz questão de comentar com muitos deles, porque eu passei pelo Hospital Oswaldo Cruz, passei pelo Hospital Nove de Julho, e raras foram as vezes que eu tive cuidado de alguém que foi meia-boca. Todos super cuidadosos, e em casa também, pessoas super legais. E daí aprendi a fazer a troca, assepsia total, tudo, sempre alguém de casa me acompanhando, sabendo também. Nunca tinham feito, mas viram fazer muitas vezes, se precisassem ajudar em algum momento, saberia fazer a assepsia também, ou botar luvar, já sabiam como colocar. E foi um aprendizado, fiquei até setembro. Dia sete de setembro eu fui internado de novo pra fazer a reconstituição do trânsito, como eles chamam. Fiz uma quarta cirurgia de reconstituição, outro bloqueio. Tive que fazer uma quinta cirurgia, e daí o cara falou que fez um by-pass, ele nem tentou desbloquear, ele fez uma via alternativa.
P/1 - E tirou aquela?
R - Não, tá lá. Tem um lugar que tem dois caminhos, exatamente pra evitar uma outra tentativa e tal. Ele nem mexeu. Estava super localizado onde tava o bloqueio, a obstrução, e ele fez um by-pass. E daí, finalmente, o intestino se resolveu. Lentamente, porque não tava funcionando até o fim desde março, e muito devagar, um desconforto terrível. Eu comia duas garfadas de alguma coisa no hospital, parecia que tinha comido um bonde. E andava, andava, andava, andava, até ficar de novo razoável, comer mais alguma coisinha, achava que não ia resolver aquilo. Bom, inexplicavelmente, 14 dias depois que eu tinha ficado na UTI, 14 dias também por acaso, eu tive uma hemorragia no abdômen, tive que voltar pra UTI, os caras botaram drenos. Em um dos lados, aqui, foi drenado tudo, do outro lado, a drenagem foi muito pequena, essa parte coagulou e foi abaixo do diafragma, mas empurrava o diafragma e comprimia o pulmão esquerdo. Então, o pulmão esquerdo ficou super comprometido durante um bom tempo, mesmo com as fisioterapias as coisas não se resolviam porque tinha uma quantidade de coisas ali que estava coagulando. A ponto de no final eu voltar pra casa com aquilo e numa madrugada de domingo pra segunda, isso final de novembro, ter que voltar correndo pro hospital porque eu não conseguia respirar.
P/1 - Isso tudo é 2009, né?
R - Sempre 2009. Voltei pro hospital, eu tava com alimentação parenteral, e vai, com bolsa de alimentação e não sei o quê e pápápá, fui pro Incor direto porque era uma questão ali que eu tinha que ser atendido imediatamente pelo meu cardiologista. Ele foi, eu tive uma bacteremia, que é o seguinte: a alimentação parenteral entra direto na artéria, então, você tem uma região aqui que apesar de ser totalmente protegida, ela é vulnerável, e eu tive a segunda bacteremia, eu tinha tido a primeira no hospital. A bacteremia é uma infecção imediata na ponta do cateter que te dá uma febre que de repente faz assim, jiiuuu, 40 graus. E você treme, é uma coisa involuntária que você não para, você balança tudo, vai falar, o seu queixo treme e é tudo involuntário. E um frio terrível. Mas tanto a primeira vez como a segunda, localizada a bacteremia, isso no Incor, o cara faz o procedimento, tudo, que é uma mini-cirurgia, você retirar o cateter da alimentação parenteral, você retira aquilo, faz tchommmm, na mesma hora, a febre regride assim, em poucos minutos você tá no paraíso. Aí, do Incor eu fui levado pro Nove de Julho outra vez, e lá eu fui submetido a uma cirurgia lateral, aqui, pra extrair esses coágulos todos, que é uma gelatina que eu nem vi, o cara que me descrevia. E que a maior sequela que eu tenho, além dos cortes todos aqui, além do intestino pequeno que eu passei a ficar e que é uma coisa que eu tenho que me adaptar na alimentação e nos cuidados e tudo, mas o que mais me incomoda fisicamente o tempo todo é esse corte que teve aqui que cortou um monte de nervos e que eu fiquei com uma falta de sensibilidade lateral aqui que me incomoda um pouco. Eu sempre lembro que tenho essa coisa aqui (risos), sempre preso como se eu estivesse amarrado por um elástico. Bom, isso tudo é a coisa objetiva. Agora, como é que eu recebi essa coisa do câncer? Desde a primeira vez? Eu até escrevi algumas coisas sobre isso, eu estava comentando aqui, de vez em quando eu me meto a escrever algumas coisas. A primeira sensação que eu tive, desde a coisa da próstata lá atrás, é que eu tava sendo traído. Porque a minha percepção da coisa é assim, quando você tem uma doença por bactéria ou por vírus, alguma coisa que você adquiriu, a gente sempre tem a idéia de que a doença vem de fora, então, você é invadido por um alienígena. Agora no câncer, você desenvolve um câncer, certo? É um desentendimento interno. E aí, você fala: "Pô, olha só o que eu fiz", de certa forma, é um pouco isso. Como eu tenho uma certa compreensão nisso, eu não fiquei culpando ninguém, ou me vitimizando, falar: "Puxa, aconteceu comigo, onde já se viu e tal. Por que foi acontecer justo comigo?". Eu não tive essa postura, eu não tive que fazer força pra isso, eu simplesmente não tive essa entrada, mas eu me senti traído pelo próprio corpo. Porque é alguma coisa que vem de dentro e fala: "Pô, o que é?". De alguma maneira eu acabei desenvolvendo isso, o que eu fiz ou deixei de fazer pra isso é algo que eu tenho que ver e me a ver, comigo mesmo. Mas outro aspecto da coisa, a minha postura frente a essa história toda. Desde o primeiro momento, desde a primeira lá atrás, e muito mais nessa maratona toda de 2009, eu vivenciei uma postura frente à vida que é a coisa boa que eu tive de me ver nessa situação, que eu não tive que fazer força pra ter força pra viver. Isso aí veio, eu tinha, e não era retórica. Então, esse papo de 'tem que fazer pensamento positivo', isso é balela se for retórica, você falar: "Não, eu fico sempre assim, com uma energia". Isso é bobagem pura, se você não tem uma coisa que venha dentro de você, que você seja aquilo, né? Que você não seja uma coisa fake daquilo lá, ou senão: "Agora vou vestir a minha máscara de pensamento positivo". E aí, meu caro, não adianta reza, não adianta espiritismo, candomblé, zen-budismo, não adianta meditação. Eu recebi tudo de todos que me mandaram (risos). Falei: "Pô, você acredita? Você reza? Tá a fim de rezar? Ótimo, manda bala". Eu tenho uma irmã que é super religiosa, lá em Campinas, participa de grupo de orações e tal. E sempre, ou por telefone, ou mandava recado por um irmão, ou pela Ísis: "Tamo rezando lá" "Ana, manda vê, continua". Amigos que chegaram juntos, uma roda de amigos imensa, desde essa época que eu contei lá de trás da Física e tal, a gente sempre se encontra, muitos de nós ainda convive. Nossa, os caras deram um flash em cima de mim uruááá. Não sabia que eu era tão querido. E isso também, claro, você recebe essas manifestações e você se fortalece. Outra coisa que também, eu tive um momento muito claro, uma das voltas de exame, eu fiz 500 radiografias, um monte de ressonância, um monte de tomografias, porque as coisas não se resolviam só pela radiografia, porque é tudo parte mole, então não pega. Na época do pulmão, tudo bem, alguma coisa de radiografia pegava. Mas enquanto era só abdômen era muita tomografia. Numa das voltas assim, eu de cadeira de rodas no hospital, sempre, me veio uma coisa: "Pô, caramba, o que tá me acontecendo?", me deu uma baixa, mas em seguida eu pensei o seguinte, que é uma coisa que eu sempre tive pra mim, desde sempre, desde menino, adolescente vai, desde que me entendi como adulto: desde que eu pedia pra alguém que eu acreditava, depois deixei de, não me faz falta, não tem nenhuma importância atualmente alguma entidade superior, seja por bem, seja por mal, não me incomoda mais. Mas de quando eu acreditava e pedia pra alguém, e depois que eu parei, é uma coisa interna minha, é assim: "Pô, se tiver que acontecer alguma coisa muito ruim, que aconteça comigo. Que não aconteça com meu pai, minha mãe, meu irmão, com meus filhos". Sempre uma coisa assim, em momentos de interiorização, né? E aí, veio essa sensação ruim, tal, digamos que foi um dos poucos momentos que eu tive de quase baquear. Mas eu voltando assim, falei: "Pô, mas tá acontecendo comigo. Era isso que eu queria, não era? Então, meu caro, é comigo o negócio". Já levantei a cabeça de novo e falei: "Vamos sair dessa. Não é com meu filho, não é com minha mulher, com minha mãe, não é com meu irmão, não é com ninguém que eu gosto muito. Se é comigo é isso mesmo que eu queria que acontecesse e eu vou sair dessa". E mandei bala. Isso é uma coisa que eu tenho impressão, as pessoas que estão ao redor têm um grande papel, um enorme papel nisso, mas você também tem um papel imenso. Depoimentos do médico que me atendeu. A gente acabou, ele conviveu tanto com a gente ali, com notícias ruins na maior parte do tempo, a ponto às vezes de desabafar. Ele mesmo falou o seguinte: "Eu fico impressionado com a sua família, seus filhos, porque eles têm perguntas boas, eles chegam no ponto, querem saber como é que é, como eles vão ajudar. E perguntas técnicas, sempre querendo entender o que rola. E você, uma capacidade de compreensão desse seu momento, de tomar decisões e energia em cima, sempre. Eu já vi pessoas com problemas muito menores do que o que você teve e está tendo baquearem e levar a família junto, porque se o cara baqueia, muitas vezes a família vai junto e não tem mais quem ajuda. A família então tem que ir buscar lá no fundo do poço alguma coisa que, se é que consegue, pra poder ajudar o cara que é o foco da preocupação toda". Então, eu to pensando em auto-estima. Nesse processo todo, de certa forma isso foi um motivo de orgulho pra mim, certo, eu ter tido essa postura. Eu não sei se eu teria sempre se as situações se repetissem, mas o fato é que nesse episódio eu tive, achei muito legal. E as pessoas com depoimentos, depois que a coisa passou e a gente no rescaldo e já conversando sobre tudo. Meu filho falando: "Mas você, naquele momento tal, x, depois de seis horas de cirurgia a gente chorando na sala de espera e você, na sua volta, a primeira coisa que você pergunta é como é que as pessoas estão e como estou, o que a gente vai fazer, o que eu tenho que fazer agora, e todo mundo levantando de novo". São coisas que pra mim era a parte aparente. Porque eu via sempre os caras compostos naquilo que eles podiam e também no que não podiam, mas tinham que se apresentar na minha frente. E aí, a Ísis... A Ísis é impressionante, meu, a capacidade que ela tem de cercar, de cuidar e de fazer, a vitalidade física que ela teve, a capacidade afetiva e emocional. Meus dois filhos, meus amigos mais próximos, meus irmãos. Pô, foi uma experiência de vida que eu acho incrível.
P/2- E a relação com a morte, a possibilidade da morte que passava pela cabeça. O que passa pela cabeça? Mudou alguma coisa quando você acorda de manhã?
R- Ah, mudou. Mudou porque é uma experiência limite, uma experiência radical. Eu já tinha tido alguma coisa assim radical no plano emocional por conta de separação, de perda. Aquela coisa que você diz: "Puxa vida, estou no fundo do poço". Mas é diferente. Porque você acaba tendo a força física, certo? E você tem pessoas que podem te ajudar e te escutam, mesmo que você passe por uma depressão por um tempo, você sai melhor do que entrou. E eu tive experiências assim. Nesse caso foi uma experiência limite no sentido mesmo de realmente poder acabar toda essa experiência incrível que a gente vive aqui. Mas eu to traçando um paralelo porque tanto em um caso como no outro, você começa a valorizar coisas que normalmente a gente banaliza. As coisas mínimas, as relações do dia a dia com as pessoas, os quereres das outras pessoas. As pequenas coisas que as pessoas querem fazer. Tomar um café na padaria, certo (risos). Fazer uma caminhada no Ibirapuera, sei lá, ir visitar alguém, coisas assim, do dia a dia, banais. Banais porque a gente as torna banais. Mas essas coisas passaram a ter um valor tão grande, cada coisinha assim da vida era valorizada. Depois, infelizmente você acaba banalizando de novo um pouco, e as coisas entram numa normalidade. Mas é claro que nunca mais pro mesmo ponto. Nessas minhas experiências radicais, tanto de perdas, perda do meu pai, perda do meu irmão, perda de pessoas, como nessa experiência que eu tava descrevendo, eu voltei pra outro ponto. Então, é uma forma difícil de talvez requalificar relações, né? Requalificar coisas simples da vida, não é digamos a forma aconselhável pras pessoas requalificarem, mas é a visão da possibilidade, então, é um alerta pra gente que tem a felicidade de não sofrer um problema como esse ao longo da vida, mas também cuidar. Cuidar das pequenas coisas dos relacionamentos pra que não se banalize. E se precisar de ajuda externa tem que buscar ajuda externa, você tá vendo que está entendiado demais com a vida (risos), ou senão, com muito depoimento de quem convive com você: "Puxa, outra vez você ficou violento depois de ter bebido, meu? Pô, que coisa, não faz isso. Busca ajuda. Tá difícil não beber? Vai buscar ajuda". Ou mesmo sem bebida, sem nada que modifique o estado de consciência, tá com uma relação viciada, tem jeito de fazer de outra maneira. Porque essa experiência que a gente vive aqui eu acho incrível, essa vida é uma coisa muito misteriosa, e acho que é só essa mesmo, se for outra vai ser a maior surpresa, e vou gostar pra caramba. E não vou pedir desculpa nenhuma porque é assim que eu vivo. Vou gostar muito se tiver coisas a mais, mas é essa que a gente vive, e é inexplicável. E eu quero entender cada vez mais como é que é isso, afinal. Quero entender cada vez mais e quero dar o valor devido pra ela o tempo todo. Muitas vezes a gente não consegue, sem querer mistificar, sem querer romantizar, mas dando a real dimensão, não se deixando amesquinhar. Quer dizer, buscando a humanização naquilo que a humanização tem de valores interessantes, porque a humanização tem todos os valores. Os desinteressantes também, e os agressivos também, de todos os lados. Se a gente conseguisse limpar a área, cada vez mais, das coisas que atrapalham o convívio, atrapalham a expressão da solidariedade, da generosidade, se a gente conseguisse se livrar dessas coisas, cada vez mais, e expressar isso na forma de organização social, na forma de organizar o sistema econômico, de produzir a vida na sua materialidade, se a gente conseguisse fazer isso o mais rápido possível, e isso implica em Educação e em um monte de coisas, mas implica também numa postura pessoal, que de certa forma eu fui adquirindo um pouco com essas vivências radicais, se a gente conseguisse isso seria muito melhor pra humanidade como um todo. É uma perspectiva, vai, que eu tenho, digamos, que eu aposto mais do que ficar fazendo auto-ironia ou sendo cínico, e achando que é assim mesmo. Tem muita gente que entra por aí, né? Enfim. Mas é o que dá pra extrair isso tudo do ponto de vista prático, prevenção, cuidados mesmo e enfrentar essas adversidades com dignidade. Quer dizer, não se vitimizar, não procurar esse subterfúgio porque isso não serve pra nada, mesmo sem adversidade nenhuma, tem muita gente que se apóia na vitimização. Então, acho que continua sendo um ponto de vista prático também, não é nada... E sei lá, essas questões psicológicas, filosóficas e tudo o que aparece, rever mesmo o que é uma postura frente à vida, né? E procurar também entender isso. Uma coisa interessante, eu li muito sobre a integração corpo-mente, no hospital grande parte do tempo eu tinha força pra ler, não tava prostrado e não tava com dor, e quando tinha muita dor a morfina ajudava, certo? Mas eu fui ler Deepak Chopra, não sei se vocês conhecem, um cara que é um médico indiano que teve a formação dele nos Estados Unidos, a formação médica ocidental, mas não se desfez das raízes, voltou pra lá, foi lá atrás do conhecimento, da sabedoria Ayuvérdica, e foi atrás dos recônditos na Índia, ele falou que foi difícil reencontrar lugares que ainda tinha gente com esses conhecimentos, essa sabedoria das ervas e das coisas mais simples e tal, e começou a escrever. Atualmente ele é mais um escritor do que um médico, eu acho, porque ele tem um monte de livros. E eu peguei o primeiro livro dele e fui ler coisas assim. E essa integração corpo e mente, eu to preocupado com a educação científica no plano fundamental, popularizar essa coisa. Pra mim foi muito importante ter tido o contato com esse conhecimento que ele desenvolveu. Ele e muitas outras pessoas, mas vi um pouco por ele. E ele, como médico, um monte de depoimentos tanto de médicos como de pacientes, de como essa coisa da mente não poder se separar do corpo. É claro que pra muita gente isso aí é chover no molhado, mas se você for pegar a postura da medicina convencional, ela é totalmente cartesiana. Ele não só quebra o ser material em pedaços, um cara é especialista em rim, outro em joelho, outro é especialista no olho esquerdo, como também quebra o corpo da mente, certo? Então, uma coisa é tratar do ser físico, da figurinha, essas outras coisas não, não sei, é psicológico. "Ah, se você reza, reza. Mal não vai fazer". Numa certa altura lá a gente entrou por um canal de tratamento num tipo de terapia que não sei se vocês conhecem que chama body talking. Então tá. Entramos por aí também. A Ísis conheceu uma figura aqui em Pinheiros, uma mulher que desenvolveu todo um conhecimento, ela aprendeu esse tipo de terapia desenvolvida por um australiano. O cara era quiroprático, fisioterapeuta, um monte de especialidades assim, que ele foi juntando tudo e criou essa terapia. Eu fui lá, mesmo quando eu tava em casa, e daí também, numa certa altura a gente pediu pra ela ir no hospital, e entramos por aí. Acupuntura, entramos por aí. A postura do médico. Agora é o seguinte: "O cirurgião que tá cuidando de você tem que autorizar pro hospital autorizar a entrada". A postura do médico: "Manda ver, mal não vai fazer". Então, uma postura, e essa é a postura menos preconceituosa porque permite, porque ele tem também a autoridade de falar não, não vai entrar. Então, entrei pelo caminho também da ortobiomolecular, que é meio exagerada, caríssima, que entope de drágeas e drágeas e drágeas e são alimentos. De fato são nutrientes, mas uma linha muito mercantilista. Eu fui indo por todos esses canais. Atualmente o que eu faço? Prevenção. A prevenção, eu acho importante as pessoas também, depois que tiveram, eu já tive dois, nada garante que eu não vá ter o terceiro episódio de câncer, certo? Não é uma coisa que tá presente na minha família, a minha mãe teve câncer de mama com 80 e tantos anos, vai fazer 90 agora dia 11, já faz vários anos que vai fazer o exame de retorno e não dá nada, mas além dela não tem caso na família. Então, eu to inaugurando, é uma particularidade minha, tenho que fazer prevenção. Eu faço prevenção com radiestesista, que é (lazai-lazai?), né? (risos). Radiestesista eu olho bem e falo: "Pô". O cara vem com uns ferrinhos, tal, e vem. Mas ele é um cara que é engenheiro elétrico, japonês (risos), interessantíssimo. Recomendo. E trabalha também com nutrientes, com alimentação e com nutrientes. E com um tratamento por meio de ondas de áudio e eletromagnéticas. Ele tem toda uma explicação que pra mim, num certo sentido, se satisfaz, na minha compreensão da tecnologia que ele usa, e na junção da tecnologia com o tratamento, a intervenção com as bactérias e parasitas e pápápá nocivas pro corpo. Ele acopla a isso os conhecimentos orientais e tal e produz lá uma terapia. Se eu não tiver nunca mais câncer eu nunca vou saber se foi por causa da prevenção, mas se eu não fizer a prevenção e tiver um terceiro episódio de câncer, eu vou ter que dar um presta atenção em mim mesmo, certo? Falar: "Pô meu, cara, você não fez nada". É uma coisa de falar: "Pô, eu tenho que fazer prevenção". Então, eu vou voltar a fazer acupuntura que eu parei durante uns meses, faço toda quarta-feira, eu ia lá na Liberdade num cara, tal, e de fato é uma coisa legal que eu me sinto melhor e tudo. E esse acompanhamento com esse radiestesista. E alimentação. Quer dizer, a alimentação eu tenho que cuidar mesmo, eu vivo, se eu tenho metade do intestino normal, eu vivo a beira de uma diarréia o tempo todo. É como uma criança pequenininha que tem o intestino em formação ainda. Talvez não nos primeiros meses, mas ali. E é grave, qualquer coisa que pra uma pessoa normal não é nenhum exagero, pra mim já é uma coisa que desencadeia um desconforto tremendo, então, eu tenho que tomar cuidado. Eu tenho baixa absorção, então, eu tomo um suplemento alimentar, que é uma espécie de um leite, da Nestlé mesmo, tomo um complexo vitamínico, tomo um comprimido de ferro por dia pra evitar anemia. Mas eu já estou com uma estrutura mais adaptada do que no final de 2009, dia três de dezembro, quando eu saí do hospital a última vez. Eu tinha uma aparência muito mais, bom, vocês devem imaginar, se eu to magrinho assim (risos), eu tinha 12 quilos a mais quando eu comecei essa história toda. Eu não era exatamente um obeso, mas eu estava um pouquinho acima do peso. Mas tinha muito mais musculatura. O médico disse que eu era também um falso magro. Quando ele revirou minhas entranhas ali, ele falou que o que ele tirou de gordura, até pra mexer com as coisas, né? Tinha um monte de gordura assim, ali no meio das entranhas e tal. Coisa que provavelmente um exercício convencional, mesmo que sistemático, bonitinho, não ia resolver. Então, eu brinco que eu fiz também uma, não foi bem uma lipo, mas uma limpeza por um método não aconselhável. Um monte de corte aqui, cicatrizes e tal, que esteticamente dane-se, não quero nem saber, e limitações. Limitações porque eu tenho que ter bastante carboidrato permanentemente pra poder me abastecer de energia, já que eu tenho pouca absorção. Então, a resistência física, eu sempre pratiquei exercício, que eu tinha, que era muito boa, atualmente, desde esse negócio passou a ser precária, tem que tomar cuidados.
P/2 - Você tem neto, já?
R - Não, ainda não, to torcendo (risos). Já estou preparadíssimo pra ser avô.
P/2 - Eu imagino! Eu também (risos).
P/1 - Pensando em pra frente, você tem um grande sonho?
R - Ah bom, tenho vários. Quero viajar muito ainda, quero viajar bastante. Eu e a Ísis temos plano de mudar pra Paraty, morar lá. Pra isso eu tenho que adquirir uma certa autonomia ainda pra poder trabalhar pelo menos 15 dias fora de São Paulo, à distância. O contrato que eu tenho atualmente ainda não permite isso, mas eu tenho que planejar direito pra ver se eu consigo voltar a uma atividade que eu tenha autonomia. Mas parar de trabalhar não dá. Eu sou aposentado como professor, mas não consigo parar de trabalhar, não tenho reservas, digamos. Mas a gente tem esses planos, a gente tem esses planos aí. O que mais? Viajar, quero viajar bastante. Quero ter netinhos também (risos). E quero viver até quando der.
P/1 - E voltando na sua vida, se você hoje, olhando ela assim essa trajetória (não pegou toda a pergunta). TROCA DE FITA
R - Eu fiz duas tentativas de dissertação de Mestrado que ficaram na beira da finalização, e por uma razão ou por outra eu não completei. A segunda então, em energia, foi assim, fiz inclusive a qualificação, tive três A, o único senão era diminuir um pouco porque eu tava expandindo demais, que eu focasse um pouco mais porque já tava pronto. Então, e daí, por razões de relacionamento eu parei. E atribuo a isso também. Isso eu tenho uma certa frustração, talvez eu mudasse duas coisas: eu cobraria um pouco mais de mim mesmo e um pouco mais dos meus orientadores também, certo? Que eu acho que eles fraquejarem, ou porque eu dei margem que eles não precisavam cuidar tanto de mim quanto eu precisava. Talvez eu tenha manifestado uma autoconfiança acima daquilo que de fato eu tinha. Então, isso é uma frustração. Eu acho que eu não mudaria outras coisas. É claro, eu teria evitado algumas mancadas que eu dei com pessoas e tal, por puro descuido, mas coisas pontuais. Coisas estruturais, acho que é nessa área. Eu teria talvez sido um pouco mais ousado e mais cara de pau (risos) pra não ter fechado algumas portas do ponto de vista profissional. Talvez um pouco por timidez, um pouco por perfeccionismo, por uma coisa que circunstancialmente eu julguei que fosse um mérito e na verdade era uma fraqueza, se revelou uma fraqueza, certo? Mas ao mesmo tempo, isso pelo lado da formação e do perfil profissional, do aprofundamento profissional. Por outro lado, essa mesma característica me trouxe coisas tão legais, me trouxe coisas muito legais, um certo ecletismo, uma capacidade de ver conjuntos grandes de coisas, de ter uma visão de processo, de olhar os vários lados de uma mesma situação, de abrir mão de posições, por conta de posições dos outros e valorizar o convívio e a sequência dos acontecimentos, tanto no plano pessoal quanto no plano político. Então, ao mesmo tempo que foi uma coisa que de um ponto de vista não me agradou, por outro lado também, acho que a mesma raiz de formação, de estrutura, de personalidade, de caráter, também me trouxe coisas muito legais, então, eu não fico batendo no peito, não, mea culpa, mea culpa, só acho que como a vida é uma só, sem ceder a competição, a vamos correr pra fazer tudo e ser eficientes o máximo possível, sem ser por esse caminho, mas pelo lado da ousadia, mesmo, de enfrentar, de conhecer mais, de assumir mais responsabilidade. Assumir a responsabilidade do tamanho daquilo que você sabe, e não ter medo de bater com a cara na parede de vez em quando. Bati muito com a cara na parede, mas eu devia ter batido mais, acho que devia ter batido mais. Talvez eu tenha por um lado preservado conjuntos de coisas, mas às vezes também me preservado, numa medida que talvez eu não devesse tanto. É isso, acho que eu teria mudado, de resto, acho que não tenho nenhum arrependimento. As junções e as separações, enfim, as escolhas profissionais. Poderia ter escolhido mais e mais coisas, aquilo que eu escolhi não deixaria de lado nenhuma delas. E ainda tenho muita coisa pra fazer, tenho certeza disso (risos).
P/1 - Ótimo, obrigada querido.
R - Obrigado vocês.
P/2 - Muito bom.
Recolher