Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Ana Paula Alves Ramos Duraes
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 15/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC _ HV08_ Ana Paula Alves Ramos Duraes
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisão / Ediç...Continuar leitura
Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Ana Paula Alves Ramos Duraes
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio de Janeiro, 15/03/2018
Realização Museu da Pessoa
HTC _ HV08_ Ana Paula Alves Ramos Duraes
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisão / Edição Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições
P/1 – Ana Paula, a gente vai começar a nossa conversa. Fale o seu nome completo, onde você nasceu, e quando.
R – Meu nome é Ana Paula Alves Ramos Duraes. Eu nasci em Montes Claros, em 17 de fevereiro de 1984.
P/1 – Em Minas Gerais.
R – Minas Gerais.
P/1 – Ana Paula, a gente vai começar a nossa conversa desde quando você era criança. Quais as primeiras memórias, as lembranças que você tem de criança?
R – Assim... Eu guardo na minha memória o relacionamento que eu tive com meus avós, porque eu morava numa cidade muito pequena, no interior de Minas Gerais, e o contato que eu tinha com a cidade maior, que no caso era Montes Claros, vinha através deles, não é? Porque eles me buscavam, me levavam para a cidade naquela época. E fizeram parte da minha criação mesmo. Eu amo meus pais, eles fizeram parte da minha criação, mas meus avós também a ligação foi muito forte, desde pequenininha, com eles.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Arleide e Arnildo. Parece que foi combinado, não é? (risos).
P/1 – Muito bom. Fala o nome deles completo, por favor.
R – Meu pai, Arnildo Ramos Reis e minha mãe, Arleide Alves Ramos.
P/1 – E esses seus avós eram por parte de pai ou de mãe?
R – Por parte de pai.
P/1 – E o nome deles também.
R – João Batista dos Reis e Raimunda Pereira Ramos.
P/1 – Conta um pouco o que eles faziam com você quando eles iam lhe buscar. Como era, o que vocês faziam.
R – Eles tinham uma fazenda. Apesar de morar na cidade, eles tinham uma fazenda. E eu sempre fui muito serelepe, gostei sempre de brincar, de subir em árvore, de mexer com animais da roça, lá, fazer biscoito. E mesmo pequenininha eu adorava ficar manuseando com eles esse trabalho. E, como se diz, eles eram meus puxa-sacos (risos). Todo mundo falava: “Tudo o que a Ana Paula quer, eles fazem”. Mas era questão mesmo de adular bastante, sabe, de ter um amor muito grande, muito... O relacionamento nosso era muito bacana, porque eram meus primos e eu na casa. E assim... Sempre falavam: “Ana, se ela quer, acontece”. Então, ficavam todos atrás de mim para eu conseguir as coisas com eles (risos). Mas era uma grande afetividade.
P/1 – E você lembra de uma situação na fazenda que foi marcante?
R – Lembro (risos). É até cômico. Lembro. Minha avó sempre colocava a gente para tomar banho mais cedo, não é? E lá, por uma luz de um poste que ficava acesa lá fora, tinha o horário de apagar. Eram mais ou menos umas oito e meia ela apagava para ninguém ficar mexendo lá fora, porque tinha a frente lá da fazenda, era um campo bem gramado e a gente adorava brincar. E meu avô esperava minha avó dormir, a gente ia lá e pedia a ele para acender a luz do poste para a gente poder ficar brincando lá fora (risos). E nisso, a gente amanhecia o dia às vezes, ficava até uma, duas horas da manhã, quando ela descobria. Pensa nos netos voltando todos sujos, todo mundo cheio de grama, mas assim... Bem feliz da vida. Subia em árvores, brincava com gado mesmo, sabe? Era aquela coisa bem da natureza mesmo, eu sempre gostei disso. E é um fato que eu não esqueço, a fazenda deles sempre vai ficar na minha memória. Hoje, nenhum dos dois se acha mais vivo, mas é uma coisa que me ligou muito a eles e eu tenho essa memória.
P/1 – E seus pais trabalhavam?
R – Trabalhavam. Meu pai sempre trabalhou com essa questão também de fazenda, trabalhava com tratores, com roça. Ou trabalhou em loja de esporte. Minha mãe também sempre trabalhou em lojas. Mas, voltados ao campo mesmo, eram mais o meu avô e a minha avó.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho uma irmã, Letícia. Irmã caçula (risos).
P/1 – Caçula? E assim, com ela, assim, na sua casa, como era a convivência?
R – Sempre foi muito tranquilo. Eu sou seis anos mais velha do que ela, então acaba que a mais velha olha um pouco a mais nova, não é? E, graças a Deus, o meu relacionamento com ela sempre foi muito bacana, a gente nunca teve aquela desavença. Até hoje a gente é muito ligada.
P/1 – E na cidade, no lugar onde você morava, você tinha amigos, brincava? Tinha brincadeiras?
R – Eu sempre fui muito extrovertida, era muito grande o grupo de amizade. Eram as meninas da escola e, depois da escola, a gente sempre se encontrava para brincar, ia uma para a casa da outra. Bem bacana mesmo. Meu grupo de amizade era extenso.
P/1 – Vocês brincavam de quê?
R – Nossa! A gente brincava de pega, a gente brincava de caçar bichos, porque em roça sempre tem aqueles insetos. A gente pegava, procurava brincando com isso. Brincando de pega, subir em árvore, andar a cavalo. Nossa, era bem bacana mesmo. Meu tio sempre teve cavalos, que ele mexe com uns torneios de vaquejada e sempre teve cavalo de corrida, e a gente admirava aqueles cavalos grandes. Então, sempre que tinha oportunidade, pegava os cavalos para poder estar brincando e passeando, e achando que estava (risos).
P/1 – E você bem pequena já montava?
R – Já. É coisa de menina assim mesmo, sempre gostei de montar a cavalo, de subir em árvore, sabe? Coisas assim, eu acho que eu sentia uma certa liberdade com isso. E lá, por o município ser pequeno na época em que a gente morava lá, era aquela vizinhança acolhedora, a gente sentava um na casa do outro. Foi uma infância bem agradável.
P/1 – E quando você montava a cavalo era no campo, assim?
R – É, porque lá tinha várias roças, não é? Então a gente saía lá desse municipiozinho e ia procurar locais mais abertos para poder correr, para poder disputar (risos).
P/1 – Cavalgava mesmo?
R – Cavalgava mesmo.
P/1 – Que delícia.
R – E até hoje eu acho muito bacana. Sempre que eu tenho tempo, nas férias escolares ou em algum feriado, a gente acaba indo lá na casa desse meu tio, porque ele continua com a fazenda e tem os cavalos. E hoje quem gosta é o meu filho, (risos) que apaixonou, vive dentro da cidade, não tem tanto contato, mas sempre que tem, gosta bastante.
P/1 – Muito bom. Você lembra de algum cavalo especial?
R –
Nossa, tem dois cavalos, que eram Deboche e Dignaide. São dois cavalos que corriam vaquejada e eles eram premiados. Um cavalo, um maior do que o outro. Na minha cabeça, um era louro e o outro era moreno (risos). Um castanho e o outro meio amarelinho. E assim... A gente sentia aquela sensação de: “Nossa, o cavalo premiado” (risos). Era bem bacana.
P/1 – Montar um cavalo desse.
R – Montar um cavalo desse! E a gente atentava bastante a pessoa que morava lá, que cuidava dos cavalos, porque sempre que a gente queria, ele não tinha nem paciência com a gente mais: “Ai, vem vocês de novo. Nãoooo”. “Vá lá, sele os cavalos para a gente brincar”. Naquela inocência de querer e, às vezes, ele trabalhando. Mas foi muito bacana.
P/1 – Muito bom. E daí você falou que tinha também amigos de escola. Conta a primeira lembrança de escola que você tem.
R – Nossa. A gente... Tem uma tia minha - eu falo tia porque é desde pequenininha, não é? Tia Clarita. Ela faleceu, ela até escreveu um livro muito bacana, professora. E ela ensinava
a gente sempre cantando, com aquela alegria, sabe? E eu lembro sempre a gente apresentando as peças lá, porque ela fazia os musicais. E assim... Era muito bacana a vontade que ela tinha da gente se envolver com o estudo de uma forma diferente, de uma forma mais alegre, não é? Não era aquela coisa assim, tudo muito certinho. A gente apresentava, era bem bacana.
P/1 – Isso ainda quando você era criança?
R – Ainda quando eu era criança. E ainda quando eu morava nesse município. Eu vim de lá, eu tinha acho que mais ou menos dez anos. Eu fui para Montes Claros. Porque eu nasci em Montes Claros, aí eu fui para lá pequena, mais ou menos com seis anos. Eu morei lá mais ou menos uns quatro e retornei, já com uns dez anos.
P/1 – E você disse que essa professora fazia assim, ensinava assim. E os outros, você lembra?
R – Interessante, não é? A gente sempre tem uma referência de um professor, quando pergunta se lembra de professor. E me vem à mente ela. Eu lembro, vagamente, dos outros professores; não que não tenha tido, mas em especial dela. Minha tia, que é irmã do meu pai, tia Vilma, ela mesma foi minha professora, ela sempre foi voltada para a educação também. E a gente lembra que ela era muito brava, colocava a gente de castigo e ia trabalhar na escola. Aí a minha avó esperava o horário, a hora que ela saía: “Liberado, todo mundo liberado, pode brincar”. Aí, quando chegava a hora dela retornar, ela: “Está quase na hora dela chegar, todo mundo sentadinho”. Aí, imagina, todo mundo com as carinhas de anjo esperando ela assim (risos). E foi professora minha também. E hoje é uma pessoa também que está sempre comigo, a gente sempre... Tanto pessoal quanto na vida profissional mesmo a gente conversa muito.
P/1 – E você, depois, na juventude, já estava em Montes Claros mesmo - na adolescência, juventude. O que foi mudando nesse momento, dessa vida tão alegre?
R – Assim... A minha vida é muito alegre, eu procuro essa alegria dentro de mim. Eu tive vários problemas também nessa infância, nesse mesmo lugar que eu te conto das minhas alegrias, eu também tive tristezas, sabe? E eu acho que é por isso que eu guardo muito esses dois lugares - tanto a roça, quanto esse município. Quando eu era muito pequena, eu tinha seis para sete anos, um dos caseiros da roça desse meu tio tentou me estuprar e eu era muito pequenininha e não sabia. Acho que eu tinha de seis para sete anos, sabe? E minha mãe descobriu. E, naquela época, era tudo muito assim, tinha um tabu quanto a isso, não é? Ninguém queria nem falar, nem... Tinha que colocar um ponto final naquilo e tentar resolver. Graças a Deus, ele não chegou a conseguir, eu era muito pequena, mas um dos fatores também que acabaram fazendo a gente voltar para a cidade, não é? Que é uma coisa que me acompanha mas que não me machuca. Eu me sinto super à vontade de falar sobre isso, até porque eu acho isso importante, eu procuro prevenir meus filhos disso hoje. E não foi uma vez só. Quando eu vim para a cidade, eu já estava com dez para onze anos de idade, esse fato tornou a se repetir com um amigo do meu pai, vivia dentro da minha casa, jogando bola e tudo. E, nessa época, eu fiquei muito triste porque como eu era menina e ele era parente também, assim, de uma tia minha: “Ah, você inventou isso, isso é coisa da sua cabeça”. Mas, graças a Deus, minha mãe, meus pais, todo mundo acreditou naquele momento, tomou as providências cabíveis na época, não me deixou desamparada, procurou atendimento até com psicólogo. Porque foi muito assim, acho que foi uma crueldade, até porque eu já tinha aquele sentimento de pequena, não é? Aí você começa a esquecer, começa a viver a vida e acontece isso. E daí começou a adolescência. Eu me lembro que eu comecei a desenvolver rápido demais o meu corpo. Eu era uma menina de onze, doze anos, com corpo de dezessete anos. Eu sempre fui muito grandona e aí fui criando corpo e tudo. E vem aquela meio que revolta da adolescência, de passar por várias coisas. Meu avô morreu e eles não me falaram, eles foram me contar depois que já havia enterrado ele. Eu guardo isso, sabe? E eu era bem pequena. Aí a minha avó teve um câncer de mama e faleceu, eu tinha doze anos. Então assim... Juntou muitas coisas (emocionada). Desculpa.
P/1 – Não, não precisa pedir desculpas.
R – E eu falo que tenho uma referência muito grande (emocionada) deles. Meu avô falava: “Você vale o que você tem”. E não tem nada, tem coragem e força de vontade. E ele falava que se você tem estudo é uma coisa que ninguém consegue tirar de você. Então, por isso que eu guardo profundamente eles comigo, me inspiraram bastante. Eu sou um poço de alegria. Eu tenho minhas reservas, que quando eu começo a cair, eu volto lá (emocionada).
P/1 – E emoção faz parte, não é?
R – Muito.
P/1 – São presenças tão fortes para você, e acontecendo tudo de uma vez, não é?
R – E eu comecei a namorar muito cedo, estudava, e engravidei do meu namorado.
P/1 – Você era novinha.
R – Novinha. Com dezessete anos eu engravidei, não tinha me formado ainda, estava no terceiro ano do ensino médio. E aí eu falei:
“Bom, e agora?” Meu pai não estava aqui, não estava em Minas, não estava presente na época, ele tinha ido... A gente teve uma fase meio difícil, ele foi embora, ele teve que morar no Maranhão por algum tempo - um ano e pouco. Quando ele voltou, ele já conheceu minha filha nascida (emocionada). Uma gracinha, uma menina que não me dá trabalho em relação a estudo, a nada, um doce de pessoa.
P/1 – Como ela se chama?
R – Maria Eduarda.
PAUSA
P/1 – Ana Paula, vamos voltar então para retomar. Você disse que viu que estava grávida. Mas aí, conte um pouquinho dos seus pais, que você já pulou para quando ela nasceu.
R – É.
P/1 – Conte um pouco sobre isso.
R – Foi uma situação bem, bem difícil. Até porque eu namorava e eles não sabiam que eu namorava com aquele rapaz. Namorava escondido naquela época, que hoje é meu marido (risos).
P/1 – Como ele se chama?
R – Ele se chama Márcio. E, na época, minha mãe não queria que eu namorasse, ela queria que eu estudasse. Eles sempre tiveram isso em mim: “Não, Ana, você é muito danada, você tem que estudar. Eu vou lhe mandar lá para São Paulo, para você morar na casa da sua tia para você estudar, você ter a sua faculdade”. Sempre foi muito voltado para isso, não é? E aí assim... Foi meio que uma decepção muito grande na época, até porque a gente já estava passando por esse problema, meu pai estava fora, num estado bem distante do nosso e tudo. E foi uma situação bem difícil porque era da pessoa que eles não esperavam (risos) que acontecesse. E aí... Mas minha mãe me apoiou o tempo inteiro. Vou chorar de novo (risos).
P/1 – Não se preocupe, chore à vontade!
R – E é um porto seguro que eu tenho até hoje, meus pais (emocionada). Diferente do que eu passei, eles sempre me deram força e me dão até hoje (chora). É o amor da minha vida, meus pais. O povo fala: “Você é boba demais, você casou, tem família, tem filho”. Mas meu pai e minha mãe são minha fortaleza. E assim... Passei a gravidez toda e a minha mãe me ajudou muito. Quando Maria Eduarda nasceu, eu falei: “Mãe, eu quero estudar”. Ela: “Não, pode estudar, eu vou lhe ajudar. Eu olho ela para você trabalhar e para estudar; para festa eu não olho” (risos). Eu falei: “Não, eu vou fazer isso”. E eu tinha aquilo muito convicto dentro de mim, eu falei: “Nossa, eu errei, eu precipitei as coisas”. Mas aí eu tinha uma filha, tinha dezoito anos, tinha acabado de entrar na maioridade, e a responsabilidade. Está bom, o que eu vou fazer? Eu quero trabalhar, mas quero estudar. Comecei a fazer algumas promoções de venda em supermercado e estudava à noite. E o incrível é que hoje eu leciono na escola em que eu estudei, em que eu me formei (risos). Cheguei para o diretor na época e falei com ele assim: “Olha, eu fiquei de recuperação em algumas matérias”. Porque a gente podia fazer só as matérias para recuperar: “Só que, como eu fiquei parada um tempo, eu queria fazer o ano todo de novo, eu queria fazer o terceiro ano para eu tentar fazer um cursinho e uma faculdade”. E ele: “Mas é tão mais prático você fazer só as matérias”. Eu falei: “Não, eu quero estudar, eu quero relembrar o que eu perdi”. E eu estava muito decidida: “Não, eu tenho que estudar, eu tenho que fazer a diferença”. E aí eu trabalhava de manhã e à tarde; à noite eu ia para a escola e me formei no ensino médio. E antes de me formar, lá na minha cidade tinha uns cursinhos que você fazia uma prova e, se você passasse, tinha o cursinho gratuito. Fiz essa prova, passei no cursinho. Eu acho que eu não assisti nem um mês desse cursinho e eu tinha tentado o vestibular. E eu consegui
passar, na época, para Fisioterapia, Pedagogia, e passei também em Direito. E fiquei assim: “Meu Deus, o que é que eu vou fazer? Qual a minha escolha nessa hora?” Aí eu fui estudar a minha situação. O que eu queria para aquele momento? Eu queria uma coisa que me desse um retorno breve e que eu conseguisse fazer bem feito. Fui fazer Pedagogia. Eu falei: “Vou ser professora”. Na época, eu sofri muito preconceito por isso: “Como que você vai largar um cargo de Direito, uma Fisioterapia para ser professora? Você vê o tanto que professor sofre”. Eu falei: “Não, mas eu quero”.
P/1 – O que lhe movia assim para você ser professora?
R – Não sei, eu acho que na família já tinha professores. Eu sou muito ligada a criança, eu acho que também sou muito espontânea, gosto de ensinar. E antes de conseguir passar, eu dava particular para outras meninas mais novas que eu, que estavam de primeira à quarta série na época, e eu sempre gostei. E falei: “Não, vou fazer. E vou fazer bem feito”. E fui. E meu curso era presencial, todos os dias, comecei era normal superior, depois transferi o curso para Pedagogia, e indo...
P/1 – Lá mesmo.
R – Lá mesmo em Montes Claros. Eu trabalhava e fazia minha faculdade. E nisso eu mudei de casa, fui morar com o meu marido. Na época, a gente não era casado ainda mas eu fui morar com meu marido e engravidei do meu segundo filho, de João Pedro, durante a faculdade. Mas também não me impediu, porque eu fui e me formei. E eu lembro que, na época, a gente tinha que... Eu falo que comigo sempre foi a ferro e fogo. Apareceu um emprego muito bom para mim quando eu tinha que fazer a matrícula do meu curso superior. E eu falei: “Não, eu vou estudar”.
P/1 – Emprego do quê?
R – Era trabalhar numa loja, mas na época era bacana para quem estava desempregado e era um emprego de carteira assinada. E a dona da loja gostava muito de mim. E lembro que fui na casa da minha cunhada, eu a busquei: “Vamos embora ali comigo que você está na mesma situação que eu”. Aí eu cheguei para a dona da loja: “Você está vendo essa pessoa aqui? Considere ela como se fosse eu. Eu não vou trabalhar para a senhora, mas ela vai fazer o mesmo trabalho que eu”. Porque eu também conheço o perfil da minha cunhada e
sabia que ela era uma pessoa muito bacana e ela ia conseguir. E o que acontece? Fui estudar. Fui estudar. E Nossa, passei por altos e baixos, tive uma gravidez difícil de meu segundo filho, João Pedro. Mas mesmo assim não deixava de estudar. Eu falei: “Não, eu vou estudar”. Eu sempre tive muita facilidade com textos, interpretar e fazer esses trabalhos. Eu lembro que tinha umas colegas que ficavam até chateadas: “Mas você não participou, a gente foi fazer”. Às vezes eu não ia porque estava trabalhando. “A gente foi fazer trabalho”. Aí, quando eu chegava, o conteúdo que eles me davam ali eu dava uma lida meio que rápida, apresentava lá na frente e tirava a mesma nota que as outras. “Mas não pode, não dá!” (risos). E eu: “Gente, é assim, o meu momento é esse”. E ganhei João Pedro, eu estava na minha casa já. E comecei. Logo que eu me formei, João Pedro estava com dois anos, mais ou menos.
P/1 – Fale um pouquinho deles, você com eles.
R – (risos) Eu com eles. Eles ‘ciúmam’ de mim: “Mãe, você é a melhor professora para os alunos; com a gente você não é, dentro de casa”. Eles sempre brincam comigo porque eu tenho um relacionamento muito bom com meus alunos, tanto do projeto de Elevação, que é, no caso, o Telecurso, quanto os do ensino fundamental I. Então eles ficam assim: “Mãe,
você parece ser a professora ideal, chega aqui em casa você é mãe” (risos). “Sou mãe”. Mas a gente tem um relacionamento muito bacana. Eu cobro muito deles isso, eu já fui professora de João Pedro, no terceiro ano, e ele fala com todo mundo: “Mãe cobrava de mim mais do que todo mundo, isso não é justo!” (risos). “Você tem que dar o exemplo”. E aí, assim... Eu continuei nessa procura, eu vou me formar. E, na época, meu pai já estava me ajudando bastante, eu estava morando com o meu atual esposo hoje e falei: “Vou me formar e dar uma guinada na minha vida”. E eu tive uma sorte muito grande, por isso que eu falo que amo a Educação e acho que ela me cerca. Há uma prima nossa, que trabalhava nesse mesmo município do qual eu saí quando era pequena - eles trabalhavam lá na época - ela era Secretária de Educação. E ela falou comigo: “Ana, vai ter uma vaga para a supervisão e eu quero que você venha assumir aqui”. E aí você imagina, eu me formei em dezembro, em janeiro eu ia assumir a supervisão da escola da sede e da região. Meu Deus. E ela virava para mim e falava assim: “Eu acredito no seu potencial, você vai arrasar, pode ir”. E eu falei: “Meu Deus, será que eu vou dar conta?” Porque eu nunca tinha... Além dos estágios, eu nunca tinha passado. “Vou”. Cheguei, aquela reunião e mais um ferro e fogo. As professoras, que foram minhas professoras quando eu era pequena, o pessoal de lá da comunidade, do município, todos olhando para mim como se eu fosse um ET (risos). Eu cheguei, falei abertamente com eles que eu estava ali para somar, que eu queria fazer um trabalho com eles e, como eu era iniciante na profissão, eu precisava deles e que eu estaria disponível. E fiquei trabalhando ali por dois anos. Ali eu comecei a trabalhar, ali eu iniciei a minha carreira como profissional da educação, no caso, eu estava na supervisão. Tive problemas seríssimos na escola, na época, porque a direção não aceitava. Eu cheguei com uma visão diferenciada do que era aquele ensino regular, aquela metodologia ultrapassada e comecei a mudar, elaborar projetos. E aquilo ali incomodou, tudo o que é novo aí vai acabar causando um preconceito. E eu sofri muito com isso, fui muito perseguida nesse sentido.
P/1 – E os professores, Ana Paula? Que a direção é resistente.
R – Resistiu.
P/1 – Você encontrou algum parceiro ali, professor, nesse momento?
R – No final das contas todos viraram meus parceiros e começaram a acreditar naquele trabalho que estava sendo feito. E foi dando certo, sabe? Aí eu voltei para Montes Claros novamente, cheguei a Montes Claros fui trabalhar numa vice-direção de uma EMEI, os pequenininhos, mas uma responsabilidade. Eu comecei de cima, no sentido da hierarquia,
de pegar direção, supervisão, e nunca tinha trabalhado. Mas, graças a Deus, a minha bagagem foi só crescendo, aumentando. E isso foi me dando força. Cheguei, fui trabalhar, trabalhei por um ano e aí teve concurso do estado de Minas Gerais, eu fui classificada e comecei a trabalhar na rede estadual. Primeiro ano eu trabalhei com projeto de tempo integral (risos).
P/1 – Você aí era professora?
R – Professora. Aí foi a primeira vez que eu assumi uma sala. Uma sala que eram vinte e poucos alunos e com uma outra professora que era super competente, ajudava na questão, porque a comunidade onde eu comecei a trabalhar era meio difícil, meio complicada. Aí eu ficava com quarenta alunos e era muito gostoso aquele desafio de conseguir trabalhar daquela forma, sair dessa escola.
P/1 – Mas agora, vamos falar um pouquinho desse momento. A primeira vez que você ia ser professora.
R – Aham.
P/1 – Teve alguma situação que, realmente, você não esquece?
R – Não esqueço. Assim... Teve ‘n’ situações, porque lá é um local de risco, traficantes entravam na escola, derrubavam muro. As crianças estavam no horário de lanche, eles entravam, tiravam as crianças, sabe? Era uma situação de risco mesmo, na época. E eu lembro que falei: “Não, nós vamos fazer a diferença”. Hoje, quando eu embarquei, eu estava no aeroporto lá, lembrei que levei quarenta e três crianças. Sozinha, eu e o motorista de ônibus (risos) para conhecer o aeroporto. E eles ficaram tão maravilhados com aquilo, sabe, que tinha saído da realidade deles, que era uma multidão. E eu olhava assim meio como a galinha com os pintinhos, eu não podia perder nenhum. Eram duas salas comigo. Mas foi muuuuito bacana. A minha gratidão foi ver o sorriso deles assim, com aquela ilusão de que tudo pode acontecer, não é? Porque você olhar para uma criança que... Cabeça baixa, autoestima lá embaixo, e: “Nunca vou conseguir ser isso, nunca vou conseguir”. Aí eu: “Olha para mim. Não, você vai conseguir. Eu consigo, você também vai”. E assim, meu primeiro trabalho foi com essas crianças, e foi só aumentando a minha curiosidade de fazer a diferença. Sabe por quê? Porque é muito cômodo, se você achar uma sala de aula excelente, você simplesmente chega e trabalha, muito bom. Mas aí, como você vai fazer a diferença? Muito difícil. Como você vai ensinar? Eu quero ensinar para quem não sabe. Eu quero ajudar quem precisa de ajuda. E eu comecei justamente com essas crianças que já estavam ali, ó, em defasagem de aprendizado, do ano de escolaridade, não é? Então, eu já comecei por aí.
P/1 – Já começou fazendo diferente.
R – Nessa diferença. No segundo ano em que eu fui trabalhar pelo estado, o que eu fiz? Fui nas designações e o que apareceu para mim? Uns presídios. Eu falei: “Nossa, será que eu dou conta? Mas vamos, estou precisando”.
P/1 – Você fez a escolha?
R – É, na designação você vai procurar um cargo para trabalhar. Eu falei: “Vou” (risos). Topei. Se for para acontecer, vai dar certo. E cheguei. Nossa, eu me transformei muito enquanto pessoa nesses dois anos em que eu trabalhei nos presídios lá de Montes Claros.
P/1 – Conte um pouco, Ana Paula. Do começo. Você chegando lá. Como foi? Descreve.
R – Assim, os momentos...
P/1 – Desde o início.
R – Desde o início. Você chegar... Você tem o costume de chegar numa escola em que você entra, tem sua sala, tem sua liberdade, você tem os alunos todos sentados nas cadeiras, não é? Ensino regular. Aí você entra num presídio, onde você passa por toda uma revista, você tem que trabalhar de jaleco, tudo, bem comportada, de coque, não pode usar relógio, anel, batom, perfume, nada. Aí você entra num local... Porque para a gente que já tem aquele preconceito... “É um presídio, eu vou encontrar bandidos, assassinos e tudo”. E eu lembro que eu cheguei, fui conversar com a pedagoga da escola e ela falou assim comigo... Hoje ela é minha amiga também, faz parte do meu círculo de amizade: “E aí, Ana, você quer os Jack ou você quer os assassinos?” Eu falei com ela: “Defina”. Ela falou: “Aqui, Jack são conhecidos como os estupradores, são uma classe separada. E os assassinos, por vários outros crimes”. Eu falei: “Olha, eu estou começando agora, eu vou optar pelos assassinos (risos). Porque eles tiveram algum motivo para poder ter cometido esse crime assim e eu não vou estar provocando”. E eu já passei por essa situação lá atrás, que foi uma situação muito constrangedora, então eu preferi não... Até para eu não entrar com aquele preconceito em relação àqueles alunos. E aí, eu fui trabalhar. No primeiro mês, eu achei que ia ter uma úlcera de tanto medo que eu sentia. Porque é uma cela adaptada, não é? Tem as carteiras, o quadro e tudo. Aí, quinze alunos, que você imagina que sabe que vão chegar quinze assassinos, todos sentados, vestidos de uniforme vermelho, todos com cara fechada. Você não pode ter contato físico, nada. E eu entrei. E assim... Eu não esqueço do barulho de quando fechava a porta, porque fecha por fora, tranca o cadeado e faz aquele barulho, porque está trancando um cadeado enorme. E aí é você e seus alunos. Os agentes ficam para o lado de fora. Então eu entrei e falei: “O que eu vou fazer? Vou ser eu mesma”. E comecei a fazer esse trabalho de conhecê-los, de olhar no olho deles e tratá-los como alunos. A princípio, eu não conseguia escrever no quadro porque eu ficava com receio das minhas costas. E os agentes sempre avisavam a gente: “Cuidado, porque eles podem... Qualquer coisa eles podem pegar o professor como refém”. Eu entrei e falei: “Nossa, eu vou ter que mudar essa situação”. E imagina só, caras fechadas, e à cabeça vem: “Será que o que aquele fez... O que aquele fez?” E eu tinha acesso a saber tudo o que eles tinham feito, só que eu não quis. Eu falei: “Eu não quero saber porque eu vou ficar martirizando na minha cabeça e não vai dar certo”. E comecei a trabalhar com eles, comecei a tratá-los como pessoas normais, e aquilo ali começou a dar certo. Aquelas caras fechadas começaram a olhar para mim como professora e eu comecei a olhar para eles como alunos. E o fato é que eu tinha trabalhado com EJA lá no município onde eu fui supervisora - ali eu estava como professora - eu fui conhecer. E o presídio tem a situação de que o aluno pode estar lá hoje e amanhã ele pode ser solto a qualquer momento, não é? Ou ele pode ter alguma punição e não poder participar mais. E ali eu sei que, para eles, o fato de contribuir com diminuição de pena, eles começavam a gostar daquilo. Ele gostavam de ler livros. Eu tenho um fato que eu sempre conto, que isso eu vou levar para a vida. Eu cheguei - esse aluno era bem grandão, bem grandão, e magro - e ele tinha dois dentes na boca, na frente. E pensa num semblante fechado, de ódio, rancor, o cabelo bem grande e aquela cara fechada, aquele jeito que nem olhava para mim. E eu lembro que um dos agentes falou: “Ele é perigoso, ele já matou e tal”. Eu falei: “Está bom, mas eu não fiz nada com ele, eu vou ter que ganhar”. E aí eu fui chegando, fui buscando, fui tentando. Eu sempre gosto de contar histórias, ou que seja da vida real, ou literatura, não é? E aí eu fui chegando perto dele e fui descobrir que ele não conhecia nenhuma letra. A rejeição dele à escola é porque ele não conhecia nada, então como eu vou participar de uma coisa que eu não conheço? Então é preferível, ó, manter distância. E lá, tinha que manter distância no sentido físico mesmo. Eu, como professora, não podia pegar na mão de aluno nenhum, não podia ter contato físico. E, em resumo, quando eu já estava conseguindo... Eu consegui entrar num processo de alfabetização com ele, que ele já estava fazendo frases. E no dia em que ele fez a primeira frase comigo, eu estava na mesa, ele sentou e eu pedi a ele para ler a frase. E ele leu algo tipo: “A bola é bela”, alguma coisa do tipo. Ele leu. Eu nunca vi, na minha vida, um brilho tão maravilhoso nos olhos de uma pessoa, como o que eu vi. O sorriso dele para mim foi o mais bonito, até hoje. Ele tem dois dentes. Tinha, eu não sei como ele está agora. Mas foi assim, emocionante, que na hora em que aconteceu isso, nós dois pegamos um na mão do outro assim, deu aquele: “Nossa, conseguimos!”. E ele deu um sorriso tão assim, ai, tão bonito que os dentes dele não fizeram falta naquela hora. E ele se sentiu como pessoa. Nossa, isso me emociona tanto, tanto que ele estava fazendo frases quando eu saí, que ele se formou. Para quem não conhecia... Ele não conhecia as vogais, ele não conhecia nada. Então assim... E esse desafio que foi me motivando. Está bom.
P/1 – Agora, eu é que, daqui a pouco, vou precisar de um lenço (risos).
R – Eu tenho muita coisa para contar nesse sentido.
PAUSA
P/2 – Foi até o sorriso, até ali, até no toque de mão.
P/1 – É. Você estava dizendo do tempo que era só... Pode falar o que você estava falando, tinha três meses.
R – É. Três meses que ele começou a frequentar as aulas, porque ele faltava muito e eu pedia para buscá-lo. E ele não queria, não tinha interesse, falava que: “Ah, professora, hoje eu não tenho uniforme”. “Eu não tenho isso”. “Eu não quero”. E havia um poeta na minha sala, ele escrevia cada coisa maravilhosa! Sérgio, poeta. Hoje, ele vive nos sinais lá de Montes Claros. Ele viveu muito tempo preso. Eles estavam com medo até de soltá-lo e ele não conseguir sobreviver na rua. Mas qualquer palavra para ele, ele começava a fazer. Nossa, a gente chamava ele de poeta. E também fez muita diferença na minha sala, sabe? Eu lembro que, quando o guarda saía da porta - da porta que era uma grade - eles falavam assim: “Ah, professora, quem olha a senhora é nós, deixa esse povo ir tomar café pra lá, vem ensinar pra gente”. Isso era tão gratificante que aí eu já não tinha medo de escrever de costas, de pegar na mão deles, de escutar o que eles tinham para me falar naquele dia. O dia em que eu fui assaltada, eu cheguei lá com a tromba desse tamanho: “Estou nervosa, fui assaltada”. “Mas a senhora é boba demais, a senhora tinha que ter pedido dicas para a gente” (risos). Sabe? E assim... As pessoas falavam assim comigo: “Como é que você dá conta de trabalhar com essas pessoas se você descobriu o que eles fizeram?” Foi onde eu comecei a trabalhar a minha questão pessoal, sabe? Eu fui conhecer a vida de cada um daqueles alunos. E não vêm de coisas boas, gente, não tinha como eles terem feito bem antes, eles não tiveram oportunidade. E era isso que eu pregava para eles: “Ó, vocês estão tendo a oportunidade, aproveita!”. Eu falo sempre isso. Eu já até conversei isso hoje, contei, falei para ela. Porque professor é referência, todo ser humano tem referência de alguém. Eu falo que eu tenho referência dos meus avós, eu tenho referência de professor. De quem eles tiveram referência? Você dá o que você recebe, você doa o que você tem. Você vale o que você tem, não é? Então assim... A gente começou a conversar. Eu lembro de um caso de um: “Eu estou doido para sair, professora, porque eu vou ‘rapar’ a cabeça da minha esposa”. “Por quê?” “Porque ela não me esperou lá fora. Mas eu falei com ela para ela me esperar”. Aí a gente começava a entrar nessa situação e aí entrava, porque professor é psicólogo, é pedagogo, é médico, é dentista, é tudo nessa hora. Até que eu tirei da cabeça dele. Um dia ele conversou comigo, ele: “A senhora tem razão, professora. Eu já estou aqui nessa situação terrível para que eu vou piorar ainda mais a minha situação? Se ela não me esperou lá fora é porque não tinha que ser. Eu vou procurar outra coisa”. E a gente sempre escrevia tudo o que machucava a gente, tudo o que magoava a gente, o que eles tinham intenção de fazer lá fora, sabe? E era meio que um diário que a gente fazia, era um memorial (risos), praticamente falando o que a gente fazia ali. E isso os ajudava de forma muito grande, porque eles não tinham acesso, muitas vezes, à água gelada, a um suco, a alguma coisa que a gente, como professor, a gente podia proporcionar a eles nas datas comemorativas. E assim... Enfim, eu lembro que foi convidada uma deputada para ser madrinha da turma, porque ela sempre ajudava lá na época. E ela falou, falou, aí um aluno pediu licença e falou assim: “Eu gostaria de pedir licença e pedir o microfone porque eu gostaria de ler uma carta”. E aí, ele foi ler essa carta. Eu achei que era para a pessoa que estava lá falando: “Querida professora”. Aí eu desmanchei, não é? Eles me agradeciam, na carta, por tratá-los como pessoas. Apesar de não terem liberdade. Porque eu os libertei de tanta coisa lá dentro que os momentos que a gente estava lá junto era como se eles estivessem lá fora. Que eu trazia para eles a liberdade, o que acontecia lá fora. E eu chorei muito, foi muito emocionante porque eu fui lá e os abracei mesmo, sabe? A gente teve esse contato físico, porque o ser humano não é só palavra, a gente tem que ter um contato. E eles aprenderam a pegar na minha mão: “Professora, você pode me ajudar nisso, naquilo?”. Assim... É criança, do mesmo jeito, é como se fosse. Todo mundo tem suas limitações, tem seus problemas. Se eu fosse levar para a sala de aula tudo o que eu passei, ou levar em consideração tudo o que eles passaram, o que seria daquela sala de aula? Aí, mais uma etapa passou. Estava tendo muitas rebeliões, aí suspendeu algumas aulas e eu falei: “Vou voltar para o ensino regular”. Peguei minhas outras escolas e, um belo dia, eu estava em casa, falei: “Ah, eu vejo essas professoras trabalhando dois cargos, acho que vou tentar, vou aproveitar enquanto eu estou com esse pique”.
P/1 – Você estava no regular.
R – É, no regular. Aí surgiu o Telecurso. Ai, meu Deus, como será isso? (risos). Eu não sei. Aí falaram comigo assim: “Ah, se você enfrentou o presídio, você enfrenta qualquer coisa”. Eles sempre tinham isso. E aí fui participar das designações. Cheguei lá, um monte de pessoas. Eu falei: “Ah, não vou conseguir nunca, esse negócio deve ser muito bom porque esse tanto de gente... Mas vou participar, se tiver de ser meu...”. E não tinha ninguém - acho que de mais ou menos quarenta pessoas - que tinha a classificação melhor do que a minha. Eu falei: “É meu” (risos). Peguei a telessala. E assim... A escola, que é a Eloy Pereira, que eu falo bastante dela, me recebeu de braços abertos: “Ana, o que você precisar a gente vai te ajudar”. A direção da escola, o setor pedagógico todo empenhado no projeto.
P/1 – Em que ano foi, Ana?
R – No ano de 2016. E aí, eu meio que: “Nossa, o que eu vou fazer com isso aqui? Tudo muito novo, vou ter que assistir vídeo, o que eu vou fazer?” Aí vieram as formações, não é? E eu participei da primeira formação, o que abriu mais ainda aquele leque de oportunidades, de ideias, porque a metodologia era totalmente diferenciada de tudo aquilo que a gente estava acostumado a trabalhar. E eu voltei atrás, porque dentro da metodologia do Telecurso existem os memoriais, por exemplo. Tem aquelas questões que eu já vinha trabalhando um pouco de cada, do meu jeito, sem estar dentro da metodologia, que é a metodologia regular.
P/1 – Você tinha trabalhado onde?
R – No caso do presídio a gente escrevia os memoriais dos alunos, a gente trabalhava. Eu gosto muito de trabalhar com o lado de Arte - vamos construir aquilo ali, vamos aprender de forma construtiva, não vamos pegar o conhecimento pronto e adquiri-lo, não. Vamos ver o que a gente pode fazer a diferença. E aí eu fui participar dessa primeira formação. Foi assim maravilhoso, uma coisa nova. Um monte de professores olhando para uma coisa que fala: “Será que dá certo isso? Como é que nós vamos trabalhar? Já trabalho há anos da minha forma, eu faço meus planos e aula todo dia desse jeito. Vamos lá”.
P/1 – O que foi que fez você ter essa reação? O que te causou essa reação?
R – Justamente o olhar diferenciado para com o aluno. Sabe por quê? O resgate do aluno. Ali estava resgatando meninos com anos de aprendizagem em defasagem. Sim, isso é fato. Nós temos no país várias situações como essa, mas o como fazer era diferente. E assim... na formação, é justamente o processo que a gente faz com o aluno, então nós passamos por aquele processo para depois aplicá-lo. Nós fomos descobrir o ‘quem sou eu, onde estou, para onde vou’. E ali a gente pôde observar que dava para fazer. O processo, o período de integração, eu falo que é muito bacana. Eu sempre afirmo isso porque foi assim, é onde você vai conhecer onde você vai pisar, onde você vai trabalhar. O olhar de cada aluno, o que você vai ter que fazer para poder trazer aquele aluno para perto de você.
P/1 – Conta um pouco desse período de integração. O que é isso? Em que período é? Como acontece? E aí, se puder contar de alguns alunos...
R – Nossa... Minha sala, período de integração, eu estava com vinte e cinco anos e vim com a cabeça cheia de coisas bacanas para fazer com eles - dinâmicas, trabalhos que os trouxessem para perto de mim, para que eu pudesse estar realizando aquilo. E aí, como eu te falei, na escola, eles me prepararam uma sala com todo o recurso. O que eu precisasse ali eu tinha, todo recurso. Então assim... Eles chegaram meio que desconfiados daquilo. E outro fato: eles eram os vinte e cinco mais. Vinte e cinco mais o quê? Mais esquecidos, mais... Como eu posso dizer? Eles eram os alunos que estavam à margem da escola. E eram os considerados piores em disciplina, em aprendizagem. Então: “Nossa, coitada da professora, vai pegar os vinte e cinco mais”. Lá, onde eu trabalhei com eles, a vida de muitos não era fácil. Essa questão de droga, de prostituição, essa questão de não ter aquele cunho familiar mesmo era muito bagunçado, eles não tinham essa referência de família, de comunidade, de sociedade. Era: “Eu faço do jeito que eu quero, do jeito que eu posso, eu não quero estudar, e ponto. Estudo não vai me trazer nada”. Na mentalidade deles era isso que acontecia. E quando eu comecei, eu lembro que levei a dinâmica, uma dinâmica da árvore. Fui criar uma árvore com eles, e os alunos... Justamente um deles, que
tinha esse fator de estar envolvido e tudo, ele: “Essa professora acha que a gente é criança. Como é que nós vamos fazer isso? Isso a gente fazia no pré-escolar, professora! Não vou passar de ano nunca, desse jeito” (risos). E aí assim... Eu comecei a entrar na deles e conversar. “Você acha? Então vamos fazer. Você acha que vai fazer a diferença se você fizer, ou não?” Aí eles começavam a fazer, começavam a colorir. Num certo momento, estava todo mundo participando daquele grupo ali: “Ah, deixa eu te ajudar, deixa eu fazer dessa forma”. A divisão dos grupos, no caso das equipes, então eles...
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco da sua reação quando eles falaram: “Ah, isso aí, desse jeito eu não vou passar de ano”. Como é que você respondeu para ele?
R – Eu respondi para ele, nessa situação, o seguinte. Ele falou: “Ah, professora, isso é coisa de criança, nós não vamos passar de ano”. E eu falei com eles depois: “Pois é, eu estou aqui para resgatar a criança que há dentro de vocês”. O que eu deixei explícito para eles, no início, foi justamente isso: “Vocês estão aqui tendo uma oportunidade. Vocês vão resgatar o que vocês perderam. Então, vocês estão com a idade avançada e perderam aqueles momentos ali. Eu estou aqui para isso, para poder a gente voltar lá atrás, ‘onde eu parei, onde eu não fiz’, e começar a seguir”. Então eles ficavam meio desconfiados, mas acabavam fazendo, sabe? E é bonito vê-los trabalhar com cor, com Arte, com formas diferentes. Eles começam a introduzir no mundo em que eles vivem, porque não é preto e branco, não é só aquilo que eles vivem lá fora. E aí eles começam a se sentir alunos. A princípio, eles tinham vergonha: “Não, professora, eu não falo que sou aluno do Telecurso, é uma vergonha”. “Mas por que é uma vergonha? Você vai passar, você vai conseguir, você vai estar no ensino médio no próximo ano, e você ter vergonha de recuperar o que você perdeu?” “É, não é, professora? Vamos tentar”. E quando chegou no meio do ano mais ou menos, eles já estavam assim: “Nós somos da telessala, nós somos do Telecurso. Porque nós temos a metodologia diferenciada, nós assistimos aulas na televisão, nós temos vídeo, a professora traz pen drive, a gente escuta umas músicas, conhece cantores que nunca viu na vida, músicas diferentes”. Eu sempre gostei de trabalhar com eles assim. Então eles acabaram se empolgando. Foi um salto muito grande, eu me lembro de que a direção da escola falava comigo assim, os pais iam lá e falavam: “O que está acontecendo? Meu filho está dentro de casa, ele está lavando louça, ele está me ajudando, ele está se aproximando de mim, ele está estudando. Tem alguma coisa errada?” (risos) Eu já recebi vários pais na porta da minha sala. Vários. “Eu vim saber se ele está vindo à escola mesmo, eu vim saber se está. Mas por que ele não vai fazer aquele trabalho lá em casa?” “Porque ele trabalha é comigo aqui, nós construímos juntos”. E aí entrava... Aquela sala bem dinâmica, cheia de cartazes, cheia de informações criadas por eles. Então, era um ambiente bonito, agradável, e que eles tinham a certeza de que foram eles que construíram aquilo, sabe? Então assim... Os alunos indisciplinados, que só faltavam enlouquecer os professores do ensino regular, estavam com a pompa toda. “Eu vou, eu sou do Telecurso e, ano que vem, eu estarei no ensino médio, me aguardem”. Então, é trabalhar a autoestima deles mesmo, é resgatar de onde eles pararam, o que eles não tiveram. Eu acho que se você for para dentro de uma sala de aula para você passar o conteúdo, não vai funcionar, não funciona. É justamente a diferença da metodologia do Telecurso, não é?
P/1 – Como assim?
R – A diferença é essa, é buscar reconstruir, trazer o aluno de forma diferente, mas de forma que ele aprenda. Com o quê? Com o concreto. É muito bacana você assistir uma teleaula que tem um modelo concreto daquilo ali, e você guardar. Você vai gravar, você vai aprender, você não vai decorar. Não é aquela metodologia que eu tenho que aprender isso esta semana porque eu vou fazer uma prova na próxima. Não, eu vou aprender aquilo ali, não é? Eles chegavam: “Hoje tem Lineu, professora? Hoje tem não sei quem?”
P/1 – O que é Lineu?
R – Lineu é um dos personagens da teleaula. Então assim... Eles já faziam assim, das aulas. “Ah, aquele ator ali, hoje ele está fazendo a de Português”. Eles já gravavam, porque eles observavam as cenas. E a gente trabalhava muito isso, porque as primeiras aulas: “De que ano era aquilo? Quando aconteceu aquilo?” “Ó, professora, as roupas eram assim, os cortes de cabelo”. E quando não entendia: “Passa de novo, professora, para a gente entender”. Então era bacana porque era como se eles estivessem assistindo a um cinema. E, ao mesmo tempo em que eles estavam brincando, criando, eles estavam aprendendo.
P/1 – Eles percebiam isso? Que eles estavam aprendendo?
R – Sim! Tem um fato interessante, de um professor de Ciências, que um aluno chegou lá na sala dele, ele estava explicando uma matéria - eu não lembro a matéria, no momento - mas que ele chegou, ele era aluno desse professor, saiu da sala regular e foi para o Telecurso. E ele chegou: “Ah professor, é isso e isso que acontece”. Durante o intervalo, o professor falou assim comigo: “O seu aluno foi lá na sala e falou isso, isso e isso, estava tudo certinho. Você pode me emprestar o livro?” Eu contribuí para o ensino regular com o livro do Telecurso. Então, são essas coisas que a gente vem observando que dá certo, se você fizer direito, se você tentar passar para aquele aluno que ele vai conseguir e que ele vai aprender. Aprende. Aprende. Eu acredito muito nisso, muito mesmo.
P/1 – Ana Paula, você falou que, na formação, tinha uma forma de trabalhar que era o ‘quem sou eu’. Você, depois, fez isso com os seus alunos também?
R – Eu, praticamente... Como posso falar? Eu fiz tudo o que aprendi na capacitação. Busquei reproduzir aquilo ali de forma que eu atingisse os meus alunos, mas foi trabalhado, desde o início, ‘quem sou eu, onde estou, para onde vou’, com direito a todos os cartazes, setas, lugares, estados, como foi na capacitação mesmo.
P/1 – E teve alguma história, nesse processo que você viveu com eles, também marcante, que você poderia contar? No ‘quem sou eu, para onde eu vou’?
R – Nossa, tem uma história. Essa questão de família, que eu tinha colocado antes, era assim: tinha uma aluna minha, que a mãe era casada com o pai do outro aluno, e era uma grande família, acho que eram, mais ou menos, uns dez irmãos misturados. E eles iam para a sala de aula e começaram... A gente foi trabalhar as árvores genealógicas e tudo, e eles começaram a discutir como era aquilo - eles dentro da sociedade, que bagunça era aquela. “Como meu pai foi casar com a sua mãe e hoje nós estamos aqui? Nós não somos nem irmãos, estamos na mesma sala e na mesma situação (risos)”. Coisas assim que pareciam que nunca iam acontecer, aconteciam lá dentro da sala. Eu tive problema com aluno que ele era super violento, violento mesmo, ele não obedecia ninguém, era ele quem fazia as normas da sala. E esse menino foi o que mais me ajudou.
P/1 – Conta.
R – Porque ele, como eu te falei, também era envolvido nessa questão de drogas, essas coisas. Eu descobri que, se ele falasse, todo mundo acatava. Aí, o que eu falei? “Não, eu tenho que conquistar esse menino, ele tem que me ajudar”. E aí, quando eu precisava fazer algo que demandava organização, ou mesmo que fosse para eu sair da sala, eu chegava para ele - o nome dele é Vitor - e falava... Ele falou comigo, quando ele chegou: “Eu te conheço, viu professora?” Era como se fosse uma forma de: “Ó, fica no seu lugar que eu estou no meu”. E aí eu saía e falava: “Ó, eu te conheço, então você toma conta da minha sala”. Aí ele chegava: “A professora me conhece e ela deixou eu tomar conta de tudo aqui”. Então eu podia confiar nele, no trabalho que ele estava fazendo ali com os meninos, porque ele me ajudava a organizar, de certa forma, sabe? Ele era meu problema maior, porém ele se tornou um aliado na minha construção do conhecimento, da organização da sala. Porque o que ele falava não era mais de forma agressiva, nem nada. “Vamos fazer, gente, vamos! Eu estou aqui, ó”. Aí, eu acho que meio que acabou virando uma familhona assim, bem grande, sabe? E ele era mais velho. Eu não sei se era pelo fato da imposição de ser um menino que já tinha problemas, mas só que ele não passou a ser um problema, ele passou a ser uma solução, porque ele ajudava. E o fato é que ele acabou ganhando um curso, no final do ano de 2016, como o melhor aluno – e era aluno-problema com a polícia – e o curso que ele ganhou foi, justamente, da Polícia Militar. Então, foi bem bacana. Ele: “Não, professora, não vou subir lá para receber esse curso, eu não vou”. Ele ganhou um certificado de honra de melhor aluno, sabe? E ele: “Eu não vou, professora”. Eu falei: “Vai, eu vou estar lá na plateia te aplaudindo, te esperando”. E assim, aquele menino nervoso, bravo, estava todo, no fundo, orgulhoso de estar lá em cima passando por aquela situação. Envergonhado, mas ele viu que conseguiu vencer aquilo ali. Então assim... Foram vinte e cinco alunos no ano de 2016 e dezessete no ano de 2017. Cada um tem uma história diferente para contar, sabe? Eu tinha um aluno - esse era de 2016 - que a mãe falava... Um dia ele falou assim comigo... Porque tem as festas do mês de agosto, lá da cidade, do meio de julho, bandas, cantores... Aí eu levo a minha menina, porque ela sai mas eu levando. Aí um chegou para mim e falou assim: “Professora, eu posso ir com você?” Eu falei: “Como assim, como que você quer fazer? Você quer que eu leve, eu passo na casa da sua mãe e converso com ela”. Aí eu fui na casa da mãe, antes, conversar se eu poderia levá-lo. Aí ela: “Deixa eu falar uma coisa: esse negócio está muito estranho. Porque ele não gosta de professor nenhum, todo dia eu recebia uma reclamação e hoje ele quer sair com você? É verdade mesmo?” E aquela expressão de: “Não acredito!”. Eu: “Pode ter certeza de que eu vou levar e vou trazê-lo aqui na porta da sua casa”. E virou aquele assim... É aluno, dentro da sala, com respeito, fazendo tudo, mas é uma pessoa que hoje faz parte do meu convívio. Todos eles. Eu fui à escola para pegar a fotografia, para poder trazer, e quando eu chego na escola eles vêm correndo me abraçar, como se fossem os meninos pequenos: “Ei tia! Ei, professora! Vai começar a nova sala?”, tudo. Então, foi uma conquista muito bacana porque eu não vou ser lembrada como a professora que conseguiu empurrar - porque era assim que era falado dentro da sala: “Você vai empurrar esses alunos para o ensino médio”. Aí houve até uma discussão assim, no sentido bem bacana, que eu coloquei que não existiu o empurrar, que estava ali para impulsioná-los. Todo mundo precisa de um impulso. Eu, nas minhas quedas, tive um impulso. Eu olhava pelo que passei e acreditava naquilo, e cada vez que eu caía era um impulso para eu ir para a frente. Então foi o que eu falei com eles, eu contei a minha história para eles, antes de descobrir a história deles. Eu cheguei lá, eu não era a professora que estava lá, cara fechada, para dar aula, ganhar seu salário e ir embora. Eu era uma pessoa comum, que chegou lá, que teve vários problemas, várias decepções, tinha ‘n’ motivos para ser uma pessoa revoltada, não querer saber de estudo, não querer saber de nada, e eu estava lá, estava trabalhando, tinha o meu cargo, o meu salário e estava fazendo aquilo por amor. A vida não para, mas é você que vai direcionar para onde é que vai. Então assim... Quando eu comecei, nos dois anos, o que eu fiz? Eu mostrei para eles quem era eu, para descobrir quem eram eles. Aí foi puxando, não é? O quem sou, onde estou e para onde eu vou. E hoje eu olho, porque eu tenho acesso lá na escola, no Eloy, eles estão no ensino médio, eles estão indo para algum lugar. E isso foi muito bacana, porque foi colocado na primeira formação que a gente estava ali para plantar uma semente, a gente não sabia se ela ia germinar, se ela ia dar flores ou traria resultado. Às vezes, a gente quer um grande resultado, em termos de quantidade, mas eu observei ali que eu consegui em termos de quantidade e de qualidade, de olhar no olho de alunos que não queriam nada, nada, nada e ver que eles estão levando a sério os estudos. Eu tenho uma aluna, que hoje está em Curitiba, ela liga para mim e fala: “Professora, eu estou com dúvida disso, será que você pode me lembrar?” Então, é muito gratificante isso, eu acho que nada paga isso. Quando você faz com amor, quando você faz o que você gosta, eu acho que o pagamento maior é esse: você se sentir capaz de fazer a diferença, em algum momento ali. Eu acho que tanto no ensino regular, quanto no projeto de Elevação - no caso, o Telecurso - eu me redescobri nessa situação. Porque eu acabo levando agora as questões, o que eu aprendi no Telecurso para o ensino regular. E aí eu vejo o que posso estar adaptando, porque são adaptações que a gente faz no dia a dia, no caso do Telecurso. A gente vai estar pegando o cotidiano e adaptando para poder construir essa aprendizagem. E eu cresci muito enquanto profissional, enquanto pessoa, nesse sentido. Essa metodologia, além de proporcionar avançar nos estudos, no sentido de recuperar o tempo perdido, é uma coisa concreta porque o que você aprende ali você não vai esquecer, você não está decorando.
P/1 – Ana, eu vou, daqui a pouquinho, recuperar o que você estava falando sobre as equipes. Mas você disse que está levando da telessala para o regular. Quais as diferenças... Mas tentando mostrar na vivência mesmo, se você puder dar algum exemplo de aluno, de situação de sala, a diferença que você percebeu na prática do regular para o telessala? Você falou: “Eu estou levando para lá agora”.
R – É. Olha, no caso do regular é tudo muito... Como eu posso dizer? É tudo muito certinho, tudo cronometrado, tudo organizado, de forma que o aluno que está no primeiro ano vai fazer aquilo, o que está no segundo vai fazer aquilo e o que está no terceiro, aquilo. Já é, como se diz, já é pronto. Aí, você vai lá e faz aquilo, você repete aquilo por vários anos, as mesmas atividades, os mesmos questionamentos, os mesmos projetos às vezes, não é? E, no caso do Telecurso, o que a gente pode ver, na prática, é justamente isso que eu falo: um aluno no ensino regular, ele leva trabalhos para fazer em casa que, às vezes, ele tem tanto trabalho em casa, ou por trabalhar fora, ou por não ter vontade, ou por não ter tempo, ele acaba não fazendo. E dentro da sala de aula do Telecurso você constrói ali, você leva para casa o que você aprendeu, você não leva para casa para você aprender. Então assim... Eu acho essa a diferença. Eu saí da sala de aula hoje, lembrei que aquilo ali aconteceu, houve aquela discussão na sala sobre determinado assunto que eu tenho a minha opinião formada sobre ela, eu não tenho que levar para casa para pesquisar na internet, pedir a alguém para fazer por mim e chegar para eu ganhar um visto, como se eu tivesse cumprido o meu compromisso de ser estudante naquele sentido. E no caso da telessala não, ali você entra na situação, expõe sua opinião e cria alguma coisa a partir dali. Você concorda, você discorda, você modifica, é muito interessante. E o fato de estar trabalhando com todos os conteúdos interdisciplinarmente... Porque você acaba se voltando para um e para outro, você vai levando para sua vivência mesmo, aquilo. Quando você assiste uma teleaula, peso, medida, aí você olha que você tem uma balancinha na sua casa para fazer alguma comida, alguma coisa assim, e vai buscando, dentro da sua casa. Porque você vive com aquilo, você não é um mundo à parte, não, você não aprende pelos livros, somente. Claro que tudo vai ter o seu conceito, mas a prática lhe dá segurança no que você vai fazer. Eu tenho três alunos que já estão fazendo cursos de formação - não no ensino superior, formações técnicas - e eles estão maravilhados com a situação, porque estão se sentindo inseridos na sociedade a partir do momento em que eles se formaram, em que eles recuperaram aquele tempo deles, e mesmo - eu gosto de frisar - sabendo que eles têm alguma dificuldade. Porque o tempo ainda é pouco para poder recuperar tudo, eles acabam criando uma responsabilidade, de falar assim: “Eu estou estudando”. Essa metodologia foi uma válvula de escape que eu posso dizer, a princípio, que deu muito certo. Você sabe por quê? Porque, a princípio, era só assim: “Vamos tentar passar esses alunos e tudo, porque eles têm que ir mesmo, eles têm que seguir”. Só que a metodologia os ajuda a seguir, mas seguir de cabeça erguida e sabendo o que eles estão fazendo. Eu acho que é muito válida. Eu falo com orgulho mesmo, de ter trabalhado com esses alunos. Eu sinto que eles, por mais que qualquer pessoa chegue hoje e diga: “Ah, mas você não fez isso, não fez aquilo”, eles vão responder: “Isso foi um processo de aprendizagem”. É isso que eu sempre plantava para eles: “Não deixe ninguém apagar o sonho de vocês, não deixe ninguém colocar vocês para baixo nesse sentido”. Eu sempre coloco: “Você pode ir além do que você imagina. Acredite no seu potencial e mostre, com atitudes, com atos, o que as pessoas acham que você não é capaz de fazer. Não precisa debater, discutir. Você é capaz”. Eu acho que essa metodologia levanta muito isso.
P/1 – Ana, você falou uma coisa que está aqui na cabeça o tempo todo. A mãe falou: “Ele está até lavando louça em casa”. Eu estou juntando com isso que você falou agora, o que será que fez? Você tem uma lembrança do que fez ele mudar o jeito dele na casa dele? Como que isso acontece? Assim... Juntando a aula, em que ele aprende... Você mostrou bastante a relação de vocês, que muda a postura... Mas, como é que acontece isso tudo na aula e, de repente, ele, na casa, começa a lavar louça? Imagina que nem em casa ele ficava...
R – Nem em casa ele ficava, não é? Então assim... Vamos estudar água, vamos estudar isso, vamos estudar… Em uma das aulas eu tenho um botijão de gás, está escapando o gás. Eles estão conhecendo os tipos de gás, o que acontece. As mães disseram assim: “Nossa, chegou lá, meu menino foi me explicar que não podia deixar porque, se o gás saísse, ele ia virar um pouco de gelo, mas não pode. Aí eles foram explicar”. “Não, mãe, eu aprendi na teleaula. Isso acontece com o contato do gás, quando ele sai do botijão, o gás da geladeira”. Então, as teleaulas são muito voltadas para a realidade. É o que eu estou lhe falando: às vezes, o comportamento deles se modifica a partir do momento em que eles passam a ver que aquele mundo ali faz parte do cotidiano deles. Situação igual tem o guarda de trânsito, falando do seu direito - ou do direito dele. Então eles ficam assim: “Eu não aceitaria se fosse eu, professora! Ele deveria ter feito isso, ele deveria ter multado, ele não deveria”. Então, a linguagem... Eles ficaram maravilhados quando foram aprender a linguagem formal e a linguagem informal: “Quando, professora, eu vou falar dessa forma? Quando eu vou escrever dessa forma?”. Então assim... A palavra, não é banalizando, acaba tornando parte do dia a dia deles, sem que eles percebam. Como essa mãe falou: “Nossa, a educação do meu filho está diferente demais. Ele chega, me ajuda em casa, está interessado, está mais concentrado”. Mas é isso que eu falo: é a valorização dele, dele como ser. Então, é orgulho para a mãe chegar e ver um filho abrir um livro, responder a um exercício. Para quem não pegava num caderno... E ter aquela curiosidade. Outra coisa: o memorial. Eles sentiam muita vergonha no princípio: “Mas eu vou falar de mim?”. A gente sente, às vezes, não é? Como é que eu vou falar de mim? Qual é a minha opinião sobre mim mesma? E eles começavam a escrever o memorial: “Professora, não quero que você leia, não. Eu tenho vergonha”. Aí, muitos tinham vergonha porque não sabiam escrever direito. “A senhora não vai corrigir os erros de Português, não é, professora?” “Não! Eu quero ver você falar de você”. E assim ia construindo naquele dia a dia. Quando eu menos esperava, eles chegavam: “Lê aí, professora, vê se ficou bom hoje”. “Eu vim da minha casa, fiz isso, cheguei aqui tive um contratempo”. E palavrar. Eu sempre amei trabalhar com eles, dicionário. Todos os dias eles descobriam uma palavra diferente, às vezes na própria tele aula sempre tem um vocabulário muito rico e eles pesquisavam. E eles estavam falando na forma, assim, as palavras de forma corretas, e tinham orgulho daquilo. Nós, como mineiros que somos, acabamos comendo um pouquinho das palavras. E aí, nós fizemos um acervo de palavras diferentes, que a gente não tinha noção do significado e que eles traziam de casa e falavam: “Professora, hoje eu descobri uma palavra. É assim e assim. Adivinha qual é o significado dela?” Quando a gente assistiu ao filme Capitães de Areia, o vocabulário deles, o vocabulário da Bahia, com palavras diferenciadas, a gente fez um mini dicionário daquelas palavras. E eu me lembro também de que, por eles terem aquele vocabulário diferenciado, de falar bastante palavrão, de ser muito irritado, nós fomos descobrir o que significavam aquelas palavras. E eu acho interessante, porque foram... Uma palavra que está no dicionário, no caso, ‘rapariga’, ‘moça’, ou... Aí, lá no dicionário está escrito, tem duas titulações para essa palavra. Aí eles falavam: “No sentido um ou no sentido dois, professora? Porque no sentido um seria tal sentido - é uma moça, é uma menina. E no sentido dois seria uma mulher”. E eles explicavam aquilo e eu voltava: “Está vendo como vocês estão inteligentes, estão ricos, estão chiques no que vocês conversam?” Texto para eles passarem de informal para formal, e eles descobriam tantas coisas que para a gente é uma coisa tão simples, mas não faz parte do dia a dia deles, eles não conhecem aquilo. Então, tudo o que é novo, que chegava para eles, eles se empolgavam bastante. Muito, muito mesmo.
P/1 – Ana Paula, você falou do filme Capitães de Areia. Faz parte do quê esse momento do filme? Como que isso dentro do curso... É o que eles assistiam? Só para a gente se situar.
R – Esse livro faz parte do percurso livre de Língua Portuguesa. Nós estudamos sobre o autor e, na formação que a gente teve para poder passar, eu fui sortuda e ganhei o livro (risos). E assim... Eu trabalhei com eles, na sala, sobre o autor, sobre as obras do Jorge Amado, e a gente foi trabalhando trechos do livro. E eu levei o filme para eles assistirem. Primeiramente a gente trabalhou os trechos e a gente foi assistir a obra na sala. E eu lembro que eles ficaram apaixonados. Eu passei mais de uma vez para eles, e por ser um filme que já tem um certo tempo, eles ficaram admirados, ficaram maravilhados como se estivessem assistindo a um desses novos, de tecnologia e tudo. E também, por fazer essa comparação com a vida deles, a realidade deles. Nossa, eu achei emocionante quando eles chegaram... Que Dora morreu. “Mas, professora, nossa, coitada! Ela sofreu tanto para poder ficar junto, na primeira noite de amor dela, aí ela morre?” Então, já não era aquele conceito de ficar. De palavras: “Nossa, o amor que ela tinha por ele”. E o professor: “Será que o professor vai ficar sofrendo?” Então: “Eu acho que sou parecido com o professor”. “Eu acho que sou parecido com isso, com aquele”. “Eu já fiz isso na minha vida”. Eles vivenciaram aquele filme de forma tão particular, que eles levaram... Falaram com os pais, falaram na escola. Nós fizemos vários cartazes, eles fizeram um resumo do livro e colocaram lá na escola, fizeram uma pesquisa sobre o autor. Descobriram: “Ah, ele fez outras novelas! Minha mãe falou”. E eles foram buscando de um lado e de outro, e foi muito bacana. O percurso livre nos dava essa liberdade, sabe, de trabalhar com a Arte, com a pesquisa, com internet, meios de comunicação, que eles buscavam aquilo para trazer para a sala. Muito interessante também, ajudou muito. Tanto o percurso livre da Língua Portuguesa, quanto o de Matemática, a gente trabalha com eles.
P/1 – Ao invés de eu perguntar das equipes, já que a Teresa falou que não é tão prioridade….
P/2 – É para ela poder dizer assim: eles gostavam de trabalhar com as equipes? Como você trabalhava com as equipes, e se eles gostavam de trabalhar com as equipes.
R – A princípio, eu fiz uma combinação com eles. Porque essa questão do egocentrismo: “Eu quero ficar na equipe de socialização”. “Eu quero na de avaliação”. “Meu colega está na síntese, então eu quero ir para lá”. Não, nós formamos as equipes e a cada quinze dias eu trocava os grupos para todos passarem por cada processo daquelas equipes, para eles saberem como avaliar. Eles não estavam ali para avaliar o outro, era para avaliar o aprendizado, avaliar se ele estava conseguindo participar daquilo. Porque quando você tem: “Eu quero ir para a avaliação, porque eu vou falar se foi bom, se foi ruim, como eu me senti hoje”.
Não, não era assim que funcionava. Todo mundo tinha que passar pela síntese, você tem que descrever, escrever o que você passou, o que foi bom, o que foi ruim, o que vai ser acrescentado, como melhorar. A equipe de coordenação, não é que você vai mandar na sala, você vai tomar conta da situação. Não, você vai ajudar a organizar o ambiente em que você está estudando. Era um processo bacana, porque cada um foi passando em cada equipe para sentir mesmo o que realmente tinha que ser feito. E entender. Nós trabalhamos o que significava cada uma daquelas equipes, antes deles participarem delas.
P/1 – Sabe o que me fez agora lembrar? Me fez lembrar do seu aluno que ajudava, que virou seu parceiro, não é? Ele se encaixou em alguma equipe? Como aconteceu isso?
R – Sim!
P/1 – Fale dele um pouquinho, de novo.
R – No caso dele, no caso de Vitor, ele participou de todas as equipes, assim como um todo. Porque por mais que eu busquei trazê-lo como meu aliado dentro da sala, ele, para mim, era como os outros. Então ele teria que fazer, ele teria que dar o exemplo para os outros. Como ele vai fazer uma coisa que ele... Como ele vai cobrar uma coisa que ele não faz, ele não participa? O fato é que ele ganhou esse prêmio de um dos melhores alunos porque ele não saía da sala, ele participava de tudo. E assim... E aquela questão de interesse mesmo.
P/1 – Você lembra dele em alguma equipe, depois desse processo?
R – Eu lembro que ele falava isso, quando estava na Avaliação: “Olha, eu estou avaliando porque eu conheço a professora” (risos). Nesse sentido: “Eu conheço”. E por viver nessa situação que até hoje ele vive, eu acho que foi um grande salto. Eu tinha a mãe dele na porta da minha sala direto, não para reclamar, para nada. Às vezes eu estava dando aula e ela pedia para eu poder sair para me pedir... Para ver se eu conseguia fazer com que ele fosse fazer a matrícula num curso: “Ô professora, me ajuda nisso, me ajuda naquilo”. Então, essa parceria que foi criada com a família e a escola ajudou muito. Eu acho que até por isso que voltou aquela questão: “Está acontecendo alguma coisa errada”. Acho que o costume de simplesmente deixar o filho na porta da escola e falar: “Toma conta”, tinha acabado. Porque eles estavam tendo retorno, e não sabiam o que fazer com esse retorno: “Como assim, meu filho?” Eu me lembro de que na formatura deles a gente fez tudo muito bem organizado, o diretor foi chamando nome por nome, eu fui entregando os diplomas para eles, a gente fez tudo bem assim. E a gente via que eles estavam caminhando com a cabeça erguida, no sentido assim: “Eu venci, eu consegui, vou ser alguém na vida”. Porque eles falam: “Esse menino não vai ser nada, esse menino não consegue fazer aquilo”. Meninas, principalmente. Essas meninas que eu tive, a gente teve problema de buscar uma aluna minha, ela estava na mão de um traficante; enquanto não fosse levar o dinheiro, ele não liberava. E ir atrás da gente, da direção da escola: “Ajuda ela”. Fizemos vários trabalhos sobre drogas, sobre doenças sexualmente transmissíveis. Eu conversava com eles sobre tudo. O que eles não conversavam com a mãe em casa, eles conversavam comigo na sala, eles tinham total liberdade para me perguntar qualquer coisa. Às vezes chegavam de cabeça baixa, com vergonha de alguma coisa: “Ô professora, o que é que a senhora acha que eu devo fazer disso ou daquilo?” Aí eu voltava a pergunta: “O que você acha? Isso vai lhe fazer bem?” E eu sempre quis deixar para eles o seguinte: “Tudo o que você faz escondido não é certo. Se você tem que esconder, é porque não é bom”. Então, eles sempre levavam isso antes de perguntar: “Professora, não vai ser bom” (risos). Então assim... Era como se fosse uma mãe, tia… Porque chegava aluno chorando, um dia estava bem, no outro dia estava nervoso, beijos e abraços. Outra questão que o professor regente de turma tem... Por passar a maior parte do tempo, ou o tempo todo com os alunos, cria um vínculo afetivo muito grande, e através disso você vai buscando o aluno para dentro da sala, para o desenvolvimento deles e tudo. Então, esse contato de chegar e abraçar: “Oi, professora, tudo bem? Como foi o seu dia? Hoje eu trouxe uma frase, hoje eu trouxe uma dinâmica. Eu li isso, eu lembrei do que nós estudamos aqui na escola”. Aí, o papel da criança, que eles falavam: “Mas isso é coisa de criança”, para eles era rotina, nem sentia que era como se fosse criança mais, eles estavam se sentindo adultos, responsáveis. E que estavam criando o futuro deles ali, naquele momento.
P/1 – Ana Paula, você falou que teve uma menina que vocês tiveram que buscar. Só rapidamente fala um pouquinho dessa situação.
R – Na época, ela estava com quatorze anos, ela não tinha completado os quinze anos. E a mãe ia muito na escola pedir ajuda à gente, porque ela fugia, ela sumia. E eu me lembro de que eu fiquei, um dia, até uma, duas horas da manhã com a mãe. E pedia socorro para detetive, para polícia, para ir atrás mesmo. Ela ia, porque ela queria. Ela não ia forçada em momento algum, porque ela achava que a vida era aquilo ali, era a liberdade dela ficar na rua, de tráfico, de armas, que era aquilo ali que ia ser o futuro para ela. Mas nós tivemos uns três episódios desses com ela, dela sair, sumir e a mãe ficar procurando. E o último episódio, até graças à câmera da escola, descobriu-se que quem foi buscar ela na escola e a levou, foi um traficante. Ele a levou para uma casa, era uma pessoa de maior idade e tudo. A câmera da escola pegou quando ele foi buscar, e nós a encontramos através disso, da câmera da sala lá. E quando ela voltava, eu conversava com ela. E perguntava a ela qual o retorno que ela sentia daquilo, o que ela sentia. E ela falava: “Eu preciso ser livre, minha mãe me sufoca, ela não deixa eu sair à rua, ela não deixa eu fazer nada”. E eu sempre falava com ela assim: “Conquista, não disputa. Porque se você conquistar, é seu; se você disputar, vai ser seu mas vai ser naquele momento. A disputa sempre vai continuar”. Ela não tinha confiança dos pais. E eram pessoas trabalhadoras, que sofriam com ela, mas não confiavam mais, porque ela simplesmente desaparecia, não ia para a escola”. Mas se formou, chegou até o final, foi para o ensino médio, está estudando no regular. Assim... São histórias de vida, como eu coloquei, que, às vezes, a gente fala assim: “Nossa, se você for levar em consideração cada um”. Mas é essa a diferença. Você tem que levar em consideração cada um. Cada um vai ter uma atitude, cada um tem um sentimento. E é nessa diversidade que a gente junta aquilo tudo ali e se descobre, e redescobre várias coisas na vida da gente.
P/1 – A gente vai precisar até que você fale... Como a gente falou das equipes, só descreva o que é isso. Cada uma. Só para a gente contextualizar.
R – As equipes são com assunto dividido em quatro equipes: a Síntese, a Avaliação, a Coordenação e a Socialização. Eu costumo dizer que é um círculo, é uma ciranda, uma leva à outra. E ela tem que ser feita, ela tem que acontecer durante as aulas. Porque é justamente isso, é como se fosse uma empresa, cada um com a sua hierarquia naquele determinado momento. Não para um bem próprio, para um bem comum, de todos. O que acontece? A socialização é o momento da chegada, você vai estar trazendo para a turma uma mensagem, uma dinâmica, alguma coisa que faça acrescentar naquele dia: “Vamos começar o dia bem?” Seja com uma frase, com uma palavra, com uma música. É justamente isso é socializar, é você se unir ali. A metodologia já é diferenciada também nesse sentido, do trabalho em círculo, justamente para ninguém ter que dar as costas para o outro ou, para ser diferente, todo mundo olhando um no olho do outro e participando. Você vai lá com a socialização. A síntese, no caso, é justamente descrever, sintetizar o que você aprendeu naquele dia, o que você acha que deve acrescentar, que não foi válido, ou que foi ótimo, que deve ser repensado. É você colocar no papel mesmo e discutir junto com os outros o que foi bom e o que deveria melhorar. No caso, a avaliação, como eu falei, é estar trabalhando justamente isso. É você avaliar o que você produziu no final do dia, no final da sua aula, nesse sentido de, no próximo dia, ser melhor. É aquela avaliação crítica, mas voltada para o bem e não para poder te derrubar. Em momento algum. A gente sempre trabalhou isso. Hoje, a carinha vai estar legal, a carinha vai estar triste, feliz, alegre, decepcionada, com interrogação, não entendi. Vamos avaliar com eu fui, como a professora foi, como a aula foi hoje. Será que sou eu que não estou bem para a aula? A aula não foi legal? Vamos repensar. Eu falei da síntese, socialização... falta a coordenação. A que todo mundo quer, no caso da sala. Porque eu acho que vou mandar, vou coordenar. Mas é justamente isso, é você organizar o espaço de maneira que a aula aconteça da forma que ela tem que acontecer, com todo o processo, desde o início até o final. Que você aprenda junto com os outros, ajude a professora, os seus colegas. Você vai coordenar nesse sentido, de organização mesmo. A gente sempre deixava, no caso da coordenação, organizar, a arrumação das mesas. “A professora está dando uma aula, eu vou pegar uma revista, vamos participar, nós vamos coordenar nesse sentido”. “Ó, você está deixando a sala suja, vamos cooperar, vamos organizar nesse sentido aí”. “Está atrapalhando, você não quer assistir a aula hoje, a professora está explicando, está tendo vídeo, você não está prestando atenção”. Então, é como se estivesse dando uma responsabilidade para eles. Eu costumo fazer uma brincadeira, que eu faço tanto com eles quanto com os pequenininhos: eu peço a eles para pegar o dedo e colocar no nariz. E falo: “Cada um cuida do seu nariz. Se você fizer certinho, certinho, se cada um estiver cuidando do seu nariz e fazendo o que tem que fazer, vai dar certo. A partir do momento em que você pega seu dedo e vai cuidar do nariz do outro, e deixa o seu, sem fazer a sua parte, não funciona”. Então, foi minucioso, foi devagarzinho, como um bom mineiro, foi quietinho ali, pelas beiradas, a gente foi conquistando, conquistando e formando, realmente, um círculo. Eu falo que essa eu aproveito também muito no ensino regular. Eu não consigo, às vezes, estar trabalhando com os alunos ordenados em cinco fileiras. Hoje eu cheguei: “Vamos fazer um círculo? Vamos trabalhar em U, em V, em L, vamos mudar a dinâmica?” “Vamos”. Você é importante em qualquer localização que você estiver dentro da sala, vamos aprender, vamos buscar. Porque a sala não vai ser só o quadro ou o fundo dela, a lateral. Então, se você tem a visão de um todo, você consegue observar, aprender, aproveitar as coisas com mais precisão, eu acho.
P/1 – Você falou em cooperação, no momento aí dessa coordenação.
P/2 – Eu queria também... Eu fiquei com curiosidade... Que legado você acha que essa metodologia deixou para a sua prática pedagógica?
R – Nossa!
P/1 – Acho que a gente pode fechar com isso, não é, Teresa?
P/2 – Sim. Porque eu pensei...
P/1 – Só antes dela responder... Porque eu acho que é um bom fecho. Faltou alguma coisa que você gostaria que ela falasse?
P/2 – Não, está bom.
P/1 – É?
P/2 – Está.
P/1 – Então, quer fazer de novo a pergunta?
R – Faça de novo a pergunta.
P/2 – Que legado você acha que essa metodologia deixou para sua prática pedagógica? Que mudanças ela trouxe, que contribuições... Se trouxe ou se não trouxe, você é que vai dizer, entendeu?
R – Nossa! Eu acho que me proporcionou uma abertura tão grande de opções de... Como eu posso falar? É bem complexo mesmo porque eu fui além do que eu imaginava que pudesse ir, que pudesse chegar. E essa questão de me impulsionar, essa metodologia, me impulsionou muito mesmo, sabe? É você fazer a diferença fazendo diferente, entende? Me enriqueceu muito, muito mesmo, porque eu me tornei pesquisadora. Porque... Como eu vou transmitir um conhecimento, ajudar, ensinar, se eu não passei por aquilo? Então você volta a ser estudante, você volta a passar por aquilo, você sente antes de passar. Eu acho assim, já faz parte do meu cotidiano, da minha vida, eu sempre falo isso. A prática dessa metodologia me deu uma segurança como profissional enorme, enorme! Eu vou longe no que eu quero, li várias disciplinas, com segurança. Eu busco vários métodos, não preciso ficar numa coisa só para chegar onde eu quero. Até porque cada um é diferente. Talvez eu consiga te alcançar de uma forma e consiga alcançar até de outra, mas eu quero alcançar todo mundo junto, diferente. A metodologia traz uma pluralidade enorme, você tem ‘n’ opções de chegar no que você quer. Desde o início da aula até o final é uma coisa que é como se você estivesse... Quando a gente está... Por exemplo, no caso dos memoriais... É como se você estivesse escrevendo a página da sua vida naquele dia. Então, por que, às vezes, a gente esquece das coisas? A gente não sintetiza? Será que eu fiz certo? Será que eu fiz errado? Eu posso mudar aquilo? Posso aprender de outra forma? O ‘não’ ali é escasso, você pode, você é capaz, você consegue. E por mais que tenha errado, tenha caído, você vai se levantar. Nós não somos donos do conhecimento, o dia a dia te faz aprender. Eu aprendo com os livros, com outros professores, eu aprendo com a realidade. E o cotidiano faz parte dessa metodologia, e é o contrato, que eu acho que eles, não só a mim, mas todos os alunos vão levar para eles. Assim... Essa semente, eu acho que consegui plantar no coração deles. Vamos ver como é que vai florir aí, não é? (risos)
P/1 – Está ótimo! O que você achou de contar a sua história?
R – Ah, foi emocionante! (risos) O imposto de renda afetivo foi ótimo (risos).
P/1 – Que negócio é esse de imposto de renda?
R – Imposto de renda afetivo (risos). Eu falo assim, ela foi me buscando. Interessante que eu fiz, eu passei, hoje, pelo processo que eu falo com eles na sala. Vocês me proporcionaram isso, entende? Hoje eu me senti no lugar deles. Cheguei, fui falar quem eu sou, para onde eu vou (risos). E foi bom, sabe por quê? Porque eu estou sentindo o que eles sentem e eu posso chegar mais longe, sabe? Eu posso conseguir, de outras formas, o que eu não consegui. E é difícil a gente falar da gente, mudar. A mudança é muito difícil, mas se você buscar lá no fundo, se tiver um impulsozinho, e buscar, e acreditar, nós somos capazes. Eu acredito numa educação eficaz, seja ela regular no ensino, naquela metodologia, ou na metodologia do Telecurso, porque eu já sou apaixonada de carteirinha, estou aplicando nas duas linhas de ensino. Para eu falar, já estou ficando é boba, estou parecendo a mãe falando do filho (risos). É! Porque assim... A gente fez um vídeo... Esse vídeo, eu não consegui trazer para vocês porque estava com a outra supervisora, foi no ano de 2016. Se vocês tiverem noção do que eles montaram, os próprios alunos montaram -
eu estou tentando organizar para ver se consigo mandar para vocês - eles montaram uma entrevista falando sobre o Telecurso, o que melhorou na vida deles, entrevistaram o diretor da escola, o vice-diretor, me entrevistaram, e fizeram aquele vídeo caseiro mesmo, mas ficou uma coisa tão bacana, tão bacana... E quando teve o encontro dos diretores, lá em Montes Claros, esse vídeo foi passado, a gente foi homenageado, foi muito bacana mesmo. E é isso. Educação é isso, não vem pronta, não é? A gente vai adquirindo com o tempo. Vai precisar, é claro, do impulso da sociedade, do pai, da mãe, do professor, mas ela acontece. Se você acreditar, ela acontece, indiferente do ambiente em que você estiver. Eu acredito muito nos meus alunos e no potencial deles. Em momento algum eu deixei de acreditar.
P/2 – E em você também, não é? É maestrina! (risos).
R – A prof, a tia, professora. E mais: o ensinamento foi recíproco, eu aprendi muito. Ensinando, eu aprendi. Eu acho que isso acrescentou muito, muito, muito na minha vida.
P/2 – Você agora me deu uma dica, um curiosidade mesmo. Você acha que é possível fazer essa mediação pedagógica, você sendo pedagoga?
R – Eu acredito perfeitamente nisso, acredito mesmo. Eu vivenciei aquilo ali, sabe? E passei por isso, por vários questionamentos: “Ah, eu não acredito que isso vai dar certo. Como? Isso nunca vai dar certo!”
P/1 – Por que não? O que eles falavam? Por que não ia dar certo?
R – “Se não conseguiu até hoje, não vai conseguir mais”. Essa falta de credibilidade que o aluno não tem. Se o aluno já é marginalizado, vamos colocar ele mais à margem ainda? Não tem jeito: vamos fazer salas homogêneas - o bom fica com o bom, o ruim fica com o ruim - e pega um professor que vai levando. É assim o conceito de educação hoje. E nós vivemos numa diversidade tão grande, tão tamanha... E eu acredito, pelo pouco tempo - porque foram dois anos, mas que ficaram marcados na minha vida - que acontece. Se você determinar, você consegue. Tudo na vida é conquista. Se você conquistar um aluno seu, dentro de sala de aula, ele vai lhe dar esse retorno. Qual é o retorno? O retorno vai ser bom, tanto para você quanto para ele mesmo. Que é o crescimento do próprio aluno. Eu acredito numa educação diferente, eu acredito que ela aconteça.
P/2 – Ana, e você? Eu queria, também, que você dissesse para a gente qual foi o desafio de trabalhar todas as disciplinas, entendeu?
R – Desafio mesmo! Eu voltei a estudar, abrir os livros, assistir às teleaulas. Minha menina entrou no ensino médio este ano, aí eu voltava: “Duda, vem cá! Me ajuda nisso aqui”. “Mamãe, eu aprendi assim”. Aí eu voltava, assistia à aula: “Ó, que tal você fazer dessa forma?” Outra ajuda que eu tive, de alguns colegas que são professores regentes de aulas, é que o que eu tinha de dúvida, eu podia chegar e perguntar. E foi recíproco, porque o material, eles também utilizavam. Nossa, eles acharam muito rico. E o que eu tive dúvida, eu voltei a estudar, voltei a ser aluna (risos). Aliás, o estudo nunca para. Tem que estar sempre renovando.
P/1 – Você teve que estudar, teve trabalho, foi desafiador. E qual a vantagem de fazer assim, um professor dar todas as áreas?
R – Olha, eu acho assim... Eu trabalho com ensino regular todas as áreas, porém, no caso do Telecurso, as disciplinas ficaram um pouco mais complicadas. Mas, no sentido de que tudo o que você faz com planejamento, eu acho que é interessante, a gente sempre tem que estar estudando, tem que sempre estar buscando, guardando aquilo ali. É um acervo profissional mesmo. Você trabalhar interdisciplinarmente enriquece cada dia mais, tanto o seu currículo, quanto a sua vivência. Você vai fazer um concurso hoje, você vai fazer uma faculdade hoje, você precisa ter conhecimento de outras coisas. Eu não posso parar simplesmente porque eu sou pedagoga, eu posso dar aula de primeiro ao quinto ano. Eu vou parar naqueles conteúdos e não me interessa mais o restante? Interessa sim, eu preciso. E tenho filhos que eu preciso também estar passando. E, dentro de sala de aula, é muito interessante isso, você relembrar.
P/1 – E para os alunos, por que é interessante?
R – No sentido de...
P/1 – Da interdisciplinaridade.
P/2 – Se um professor dissesse... Como um professor trabalhando todas as disciplinas, passando todo o tempo com o aluno, se isso facilita ou complica.
P/1 – As duas coisas então, não é? Para os alunos trabalharem de forma interdisciplinar o período todo, isso que a Teresa perguntou, não é?
R – Eu creio que, no processo por que eles passam dentro do Telecurso, eu acho muito válido, porque eles estão... Por que eles estão atrasados no sentido do ano, ano escolaridade, de aprendizagem? Justamente porque eles foram alunos que, provavelmente, não ficaram dentro de sala, não tinham compromisso com o estudo. E o professor regente de turma, ele vai lá no início, ele é a base.
P/1 – Regente que fica quatro horas.
R – O que fica quatro horas. Porque ali a gente vai estar tendo esse mesmo vínculo que eu falei a princípio. Você vai passar... Olha as quatro equipes voltando, não é? Você vai instruir o aluno, que ele tem que passar por aquilo. Se o aluno não fica dentro da sala de aula, ele não obedece, ele não tem comprometimento com o estudo, está faltando o quê? Ele não tem a base, não é? Então, o professor regente de turma passa essas quatro horas justamente para poder estar tendo esse vínculo. Imaginem que o professor está dentro da sala cinquenta minutos. Muda de professor. Cinquenta minutos, mudou de professor. E aí, como eu vou conquistar esse aluno? Como eu vou trazê-lo para perto de mim se muitas vezes, por eu ter mais de duzentos alunos, eu não lembro nem o nome? Eu tenho que saber quem ele é para depois eu ajudá-lo a construir para onde ele vai. Então assim... Eu acho que é muito válido mesmo e eu entendi, na prática, que o professor, por passar esse tempo todo com o aluno, ele vai ter até uma habilidade maior de estar ajudando aquele aluno, de saber qual que tem maior dificuldade, ele vai estar dando uma assistência individual maior, ele vai estar voltando, muitas vezes, no que um professor regente de aula não tem certo tempo para poder fazer aquilo. Como eu vou te tratar? Eu tenho duzentos alunos, eu entro em uma sala, às vezes eu não te conheço pelo nome, certo? E é justamente esse aluno, que está nessa situação de precisar de ajuda. Como que você vai pedir ajuda para um estranho? Então, esse vínculo, eu acho que ele é indispensável nessa situação. E é a partir daí que, com o vínculo, você consegue recuperar a autoestima do aluno e a confiança. Aí você passa para o aluno... Você passa a ser não a professora, mas a referência que eu tenho de ensino. Aí você começa em casa a agir de forma parecida com o que você está conquistando, está aprendendo dentro da escola. Eu acho que a Educação hoje, às vezes, acaba tendo dois pesos e duas medidas justamente por isso. Porque o professor vai para a escola para poder estar ensinando, mas ele tem que voltar o processo todo de educar. Como você vai prestar atenção, se você não senta, se você não tem compromisso e você não chega no horário certo? E você é uma pessoa dispersa, não quer estudar. Então, enquanto você não voltar e organizar toda essa situação, como você vai trabalhar? Esse tempo, eu acho, principalmente nesse caso... E é justamente... Como você vai construir uma base? Como você vai alfabetizar? Como você vai conseguir fazer uma equação, se você não conhece nem os números direito? Você não consegue começar do fim, você não consegue começar das dificuldades maiores para as menores. Enquanto você não voltar e você não pegar o básico, você não vai para a frente. Então, até essa questão de afetividade mesmo, de confiança. E quando você passa a confiança e o aluno começa a sentir que ele tem potencial para aquilo, aí sim, ele vai estar preparado para o mundo, para outras coisas. Quando você não prepara, o que acontece? A rejeição. Através de quê? De violência, de não querer mesmo, deixar o estudo como se fosse uma punição. “Eu não tenho necessidade”. E aí, a gente busca fazer o aluno ter um olhar diferente do estudo. Eu torno a dizer: o ser humano, hoje, ele pode lhe tirar tudo enquanto você está aqui, um ser vivo; a educação ele não tira. Então, é por isso que eu enfatizo muito: estuda, estuda, gente, porque o retorno vem!
P/1 – O seu avô já falava isso, não é?
R – Novamente: você vale o que você tem. Mas não só no sentido financeiro, de bens, não. Se você tem uma educação, você é tratado com ela. Se você é uma pessoa grossa, mal educada, muito dificilmente a outra pessoa vai lhe tratar com educação, lhe tratar bem. Você planta hoje e colhe lá na frente, justamente porque você plantou. Você vale o que tem. E o que você tem de melhor, ele volta para você o tempo inteiro, se você plantar (risos).
P/1 – Está certo, querida. Olha, muito obrigada, mesmo. Parabéns!
P/2 – Parabéns!
R – Desculpe o choro, eu converso igual a um papagaio.
P/1 – A gente também se emocionou, então, está ótimo! Que bom que teve emoção!
R – Nossa! E verdadeiramente mesmo, porque eu me emociono com essas coisas. Eu acredito que a educação ainda vai vencer (risos).
P/1 – Está ótimo, querida. Obrigada, viu?
FINAL DA ENTREVISTARecolher