As narrativas descritas são memórias da infância e das narrativas dos meus pais, irmãos, primos e tios, e particularmente de minha mãe, Antonia Traversim Gomes Maranhão, conhecida também como “irmã Tonica”. O termo “narrativa” segundo o dicionário é uma ação o...Continuar leitura
As
narrativas descritas
são memórias da infância e das
narrativas dos meus pais, irmãos, primos e tios, e particularmente de minha mãe, Antonia Traversim Gomes Maranhão, conhecida também como “irmã Tonica”. O termo “narrativa” segundo o dicionário é uma ação ou efeito de narrar ou a exposição de um acontecimento ou de série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou imagens. Entretanto ao consultar dados históricos muitas das narrativas de meus pais se confirmam.
Antonia Traversim
nasceu em 23 de julho de 1915, em Amparo, distrito de Tietê.
O pai Santi Luca Traversim, era filho de Bortolo Traversim nascido em Quinto de Treviso e Cristina DeMarchi nascida em Morgano, que migraram para o Brasil para trabalhar em fazendas no interior de São Paulo. Santi Luca casou aos 19 anos com
Philomena Piva, 20 anos,
filha de Frederico Piva da região Alto Adge e
de Albina
Farinelli que nasceu em
Ferrara. Antonia se referia ao avô Frederico Piva como
“austríaco, alto, de olhos azuis,
fluente no idioma
alemão e italiano além do português. Durante o dia
trabalhava na fazenda e a noite
ensinava os outros colonos a escrever. Canalizou a água para sua casa usando bambus. A região onde nasceu antes da primeira guerra pertencia à
Áustria e depois foi incorporada à Itália.
Santi Luca, era pedreiro, construía rodas de moinho, domava
animais
e participava como
músico da banda de Tietê. Philomena Piva era costureira para os moradores das fazendas onde residiam como colonos.
Quando Antonia Traversim completou 80 anos em julho de 1995 viajou com a filha Damaris e os netos Bruno e Melissa até o subdistrito de Arcades em Amparo para revisitar os locais onde nasceu e cresceu. Conforme visitam
a região ela reconhece
locais onde residira com a família, brincava com irmãos e relata suas percepções e memórias emocionada.
A partir destas falas a filha vai registrando tudo em um diário
No ano de 1925 eu morava em Arcadas. É uma região muito bonita, serrana, com muitas cachoeiras. Morávamos numa casa que ficava no meio de um pasto, na beira de um açude, onde havia muito peixe. Eu tinha 10 anos e gostava de pescar. Pescava lambari, bagre, etc. Uma vez peguei um bagre tão grande que ele quase me levou rio afora. Buscava água na bica com o auxílio de um “bigole”: um cabo arredondado de madeira e nas extremidades dois baldes. Lavava roupa no rio. Ajudava minha mãe que costurava para homens e mulheres da região.
Meu pai, Santi Luca Traversim,
era pedreiro e construtor de rodas de moinhos e domador de animais bravos. Era amigo do Alfredo Leopoldino dos Santos, um fazendeiro vizinho da região. Meu pai tocava na banda do Maestro Felizardo Pompeu, autor da música “Benemérito”).
Em homenagem a ele que meu irmão recebeu o nome de Felizardo. Eu frequentava a Escola Reunidos de Coqueiros. Ficava em um sobrado, sobre uma venda. Minhas professoras eram Rosinha, depois Leonor e Dinorah. O governo obrigava todas as crianças serem matriculadas na escola, mas as famílias que não tinham condições de comprarem material recebiam os cadernos e livros. Uma vez não queriam me doar o material. Meu pai ficou muito bravo e foi até a cavalo e ameaçou: ou me davam os cadernos e livros ou ele invadiria a sala de aula a cavalo. No dia seguinte sobre minha carteira estava o caderno de linguagem, de desenho e de cálculo, lápis e tudo que tinha direito. Meu pai era um homem de coração muito bom, mas quando perdia
a paciência ficava até violento. Lembro que as carteiras da escola tinham um tinteiro no centro onde os colegas e eu molhávamos a pena. O livro era de
João Köpke (1852-1926) . Todas as lições terminava com um versinho. Lembro-me de alguns: Fui ao mar buscar laranja Fruto que o mar não tem Vim de lá todo molhado Das ondas que vão e vem.
Esta casa está bem feita Por dentro, por fora não Por dentro cravos e rosas Por fora manjericão
Levávamos o livro e os cadernos numa sacolinha de pano. Íamos descalços por falta de sapato. Frequentei a escola apenas dois anos, pois naquele tempo era considerado suficiente para uma menina pobre que logo teria que ajudar a mãe. Buscava lenha no mato, lavava roupa no rio, ajudava a enfornar o pão. Eu gostava de estudar, principalmente ler, escrever e desenhar. Minha nota de caligrafia era sempre 12. Isso mesmo, 12 era a nota máxima. E a professora sempre dizia: “ Hum, mas está bonito! Até hoje encontro meus escritos e acham minha letra bonita. Eu não era muito boa em cálculo. Naquele tempo tínhamos de decorar as tabuadas. A conta de dividir
era a que eu menos gostava. Tínhamos que decorar e cantar todas as tabuadas em pé, eretos, de frente para a professora. Quem errava ficava em pé, de frente para a classe, de castigo e os outros riam do coitado. Eu nunca errava. O Felizardo foi o que mais frequentou a escola....
Havia uma igreja onde eu brincava e meus irmãos iam atrás...... Eu subia a torre da igreja e ficava batendo o sino. O sacristão corria atrás da gente e brigava dizendo que as pessoas iam achar que havia morrido alguém.....A igreja tinha vitrais muito bonitos. Hoje está velha, escorada para não cair.....Agora só podemos olhar lá dentro, Está tudo em ruinas. Deve ter mais de 100 anos..... E quem imaginaria que 70 anos depois de brincar aqui, eu retornaria e pisaria neste chão. Voltaria aqui com meus netos. Na época nem pensava em nada, só queria brincar....( terça feira, 25 de julho de 1995)
.
Foi muito bom vir aqui e recordar, pisar de novo esse chão....Saindo da estação de Arcadas e atravessando a linha do trem, entre dois açudes e ao lado de um curtume ficava a nossa casa. Do lado de baixo ficava a Fazenda Mazzetti, com
muito gado. Havia um monjolo onde morava Nhá Amélia que fazia canjica, farinha de milho, etc. Na fazenda produziam fubá e beneficiavam café. Éramos vizinhos dos Curte que criavam porcos. As crianças dessa família tinham tantos bichos nos pés que andavam com os dedos abertos. Depois moramos numa fazenda chamada Cachoeira. Era muito parecido com esse lugar, não sei bem se era aqui. Acho que sim, talvez tenha mudado algumas coisas....
Minha mãe às vezes ajudava os colonos a rodar o café. Os grãos eram lavados, escolhidos e colocados
no terreiro ao sol para secar. De vez em quando tínhamos que puxar com o rodo e ir “rodando” os grãos. Uma vez minha mãe estava com dor de cabeça e precisava rodar o café e colocar o almoço para meu pai. Pediu para mim ir rodar o café e depois colocar a mesa.
No meio dos grãos haviam “felipes” ( dois grãos grudados que gostávamos de juntar para brincar). Sentei no meio do terreiro de café e fiquei catando os felipes e esqueci de ir arrumar a mesa para o almoço. De repente vi meu pai chegando, bravo, com uma corda grossa dobrada em quatro. Morri de medo. Pedi desculpa. Mas quando ele ficava nervoso não havia perdão. Depois se arrependia mas era tarde....Desci a escada apanhando. Chorando coloquei a mesa... Meu pai era muito bravo, não levava desaforo para casa. Andava armado. Graças a Deus ele nunca matou ninguém. Tinha epilepsia, pressentia os ataques. Morreu aos 47 anos em Amparo. Mas antes minha mãe
Philomena Piva Traversim, morreu de tuberculose, aos 40 anos de idade, deixando oito filhos: eu com 17 anos, Felizardo com 15 anos, Iolanda 14, Gumercindo 12, Dinorah 10, Lucas 8, Cristina 5, Elza 4, Zara 1 ano.
Alguns meses depois meu pai casou com Christina que teve dois filhos Persida e Bortolo.
Aos 20 anos, em 28
de maio de 1936,
Antonia Traversim que residia no bairro Caixa Dágua em Amparo casou com Nelson Gomes Maranhão.
Ela dizia que casou não porque estivesse apaixonada, mas porque ele pagou o dentista para tratar dos seus dentes,
comprou-lhe o vestido de noiva e concordou em assumir
em parceria com ela os cuidados e a educação das irmãs mais novas
Christina e Zara
enquanto o seu irmão Felizardo que também casou, ficou responsável por Elza.
Provavelmente se
conheceram
por frequentarem as
“casas de oração” da
Congregação Cristã no Brasil, instituída na capital e interior de São Paulo pelo ítalo americano
Louis Francescon.
Antonia sempre falava sobre o “irmão Louis Francescon” que ela havia hospedado em algumas ocasiões.
Em viagem de trem pela Estrada de Ferro Sorocabana, entre São Paulo e a pequena estação de Ourinhos, aberta em 1908, e Salto Grande, com destino a Santo Antonio da Platina, Louis Francescon tomou conhecimento que em Sorocaba havia um distrito por nome de Votorantim e que a colônia de imigrantes italianos era significante no vilarejo. Em Votorantim conheceu Angelo de Ciene e deixou a semente plantada, deixando com ele um hinário e uma Bíblia. Louis Francescon voltou ao Brasil em 1918, e em Votorantim já encontrou os irmão reunidos numa casa na atual Rua Cel. Augusto Cesar Nascimento nº 38. Além do italiano Angelo de Ciene, a família Ribeiro aceitou a nova religião. Eram duas famílias que formavam o primeiro grupo de oração na vila operária. Começa a nascer em Votorantim a primeira Congregação Cristã no interior do Estado de São Paulo e a terceira no Brasil, espalhando para Sorocaba, Piedade, Salto de Pirapora e toda região circunvizinha de Votorantim.
Residiram em Salto onde Nelson
trabalhava com comércio de frutas que colhia e vendia para a empresa Cica. Também tiveram uma quitanda, mas que após o prefeito autorizar feiras livres na cidade duas vezes por semana, diminuiu as vendas. Antonia ajudava o fazendo um doce Quebra Queixo que era comercializada por um senhor que hospedaram por compaixão.
Em Salto nasceram os quatro primeiros filhos: Iracema, Mizael, Cilas, Miriam.
Quando Iracema era
uma menina de cerca de uns dois anos,
Antonia relatava que ela gostava de continuar trabalhando como tecelã
na fábrica Brasital e
se orgulhando de
“dar conta” de manejar o tear. Como não tinha ainda água encanada em sua casa, Nelson antes de ir trabalhar
enchia um tambor com água do poço, mas um Iracema quase se afogou nele, caindo de cabeça para baixo provavelmente ao investigar o que tinha lá dentro. Então Antonia foi convencida pelo marido a deixar o trabalho de tecelã na Empresa e deu-lhe uma máquina de costura. Ela aprendeu a costurar com sua mãe, que conforme seu relato, mesmo doente e acamada a orientava a medir e cortar as peças no piso ao redor da cama.
No dia em que ganhou a
máquina conforme relato dela, não dormiu por ficar admirando o presente.
E assim ela começou a costurar,
pois gostava de ter a própria renda. Um dia
quando Nelson ia
viajar para outra cidade do interior e não tinha dinheiro para a passagem dela, ela mostrou-lhe as próprias economias para comprar a passagem, pois guardava o dinheiro em uma xicara dentro do armário.
Ou seja, ela era
uma mulher independente.
O primeiro filho Mizael, morreu conforme seu relato, de “Mal de Simioto”. Mais tarde pesquisando, Damaris que se graduou em enfermagem,
identificou que era
um tipo de desnutrição severa causada em crianças pequenas por alergia ao leite de vaca ou dificuldade de digeri-lo. Antonia relatava que posteriormente foi aconselhada por um pediatra de Salto a oferecer leite materno aos filhos mas não o fazia de forma exclusiva pois “não tinha tempo”. Sem dúvida para uma mãe que tinha que cuidar dos filhos,
cozinhar, tirar água do poço, lavar a roupa manualmente no tanque e ainda ajudar o marido com o comércio ou costurar,
deve ter sido um desafio.
Provavelmente moravam na mesma casa ou próximos dos pais de Nelson, Ignácia e Afonso Gomes Maranhão. Ela sempre relatava que sua
sogra era uma pessoa muito boa, admirava os cabelos loiros e olhos verdes da filha Iracema, após a morte do primeiro filho Mizael. Em 1941, nasceu Iracema um bebê loiro de olhos verdes,
com uma pequena malformação no lóbulo da orelha semelhante a uma semente de caju. Ela atribuía o fato a ter ficado olhando admirada um caju que ganhou da sogra. Após o nascimento percebeu que o
formato do lóbulo da orelha da filha era semelhante à castanha de caju.
Mas esta característica nunca atrapalhou
Iracema que quando e jovem era muito bonita e
admirada pelos rapazes da CCB que queiram desposá-la.
Iracema teve um parou de andar logo após começar a fazê-lo devido “um tumor ” no joelho. Ela ficava sentada em uma cadeirinha e Antonia Traversim
atribuía à sua
fé e orações a
cura.
Naquela época além de não existir o SUS, por serem trabalhadores não contratados não tinham direito ao INSS. Alem disto na época os crentes da CCB
não iam ao médico, confiavam na própria fé. Com a evolução na nova doutrina reviram esta prática.
Em 11 de maio de 1943, durante a segunda guerra mundial, que impôs racionamento de alimentos como açúcar e outros bens exportados para os soldados, nasceu um menino, que recebeu o nome do primeiro filho que morreu,
Mizael. Era uma prática comum atribuir o mesmo nome de uma criança que morreu ao próximo filho do mesmo sexo. Depois nasceu Ceci, outra menina que também morreu.
Em 1947 nasceu Cilas, em 1950 Miriam
todos na cidade de Salto, e em 1953, após a família mudar para a cidade de São Paulo, nasceu
Damaris, autora desse diário, mãe de Melissa e Bruno que participaram da viagem.
Bruno, neto
mais novo de Antonia retornou a cidade de
Amparo em 2021 e visitou a igreja que foi restaurada.Recolher