Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Luiz Fernando Prado Uchoa
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Bruna Oliveira
São Paulo, 05 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1419
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:27) P/1 - Boa tarde, Luiz Fernando. Tudo bem?
R - Boa tarde, estou muito bem, e muito feliz de participar desse projeto do Museu da Pessoa.
(00:39) P/1 - A gente também está muito feliz de conseguir falar com você. A gente vai começar com a pergunta mais fácil, que é o seu nome completo, a sua data de nascimento, e onde você nasceu.
R - Luiz Fernando Prado Uchoa, 02/01/1984. Nasci no Hospital 9 de Julho, no município de São Paulo, capital. Vamos dizer que eu sou paulista.
(01:03) P/1 - Certo. Você quer falar um pouco sobre os seus pais?
R - Vamos lá.
Meu pai faleceu faz algum tempo, em decorrência de um infarto fulminante. A minha relação com ele era um pouco tensa, porque o meu pai sempre quis outra pessoa e essa outra pessoa nunca fui.
A gente era muito parecido, em muitas coisas. Falar do meu pai me gera certo… Não é como se eu não quisesse lembrar dele, ou algo do tipo. Eu amava muito meu pai, mas me lembra uma época da minha vida em que eu não pude ser eu, porque meu pai era muito preconceituoso. Ele teve motivos para isso, não vou dizer que uma pessoa que sofreu tenha motivos para ser preconceituosa, não é isso, só que ele foi uma pessoa que foi impedida de ter a própria vida, vamos dizer assim, de uma certa forma, porque ele teve que se tornar responsável pela família dele. Ele teve que criar os irmãos junto com a minha avó, porque o meu avô os abandonou à própria sorte, e uma pessoa assim tende a se endurecer para ser adulta mais rápido.
Ele sempre foi muito inteligente, mas ele não gostava de estudar, ele aprendia tudo muito rápido, muito fácil.
Meu pai tinha um sonho, que era se dar bem com o pai dele, mas o pai dele, depois que...
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Entrevista de Luiz Fernando Prado Uchoa
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho e Bruna Oliveira
São Paulo, 05 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1419
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:27) P/1 - Boa tarde, Luiz Fernando. Tudo bem?
R - Boa tarde, estou muito bem, e muito feliz de participar desse projeto do Museu da Pessoa.
(00:39) P/1 - A gente também está muito feliz de conseguir falar com você. A gente vai começar com a pergunta mais fácil, que é o seu nome completo, a sua data de nascimento, e onde você nasceu.
R - Luiz Fernando Prado Uchoa, 02/01/1984. Nasci no Hospital 9 de Julho, no município de São Paulo, capital. Vamos dizer que eu sou paulista.
(01:03) P/1 - Certo. Você quer falar um pouco sobre os seus pais?
R - Vamos lá.
Meu pai faleceu faz algum tempo, em decorrência de um infarto fulminante. A minha relação com ele era um pouco tensa, porque o meu pai sempre quis outra pessoa e essa outra pessoa nunca fui.
A gente era muito parecido, em muitas coisas. Falar do meu pai me gera certo… Não é como se eu não quisesse lembrar dele, ou algo do tipo. Eu amava muito meu pai, mas me lembra uma época da minha vida em que eu não pude ser eu, porque meu pai era muito preconceituoso. Ele teve motivos para isso, não vou dizer que uma pessoa que sofreu tenha motivos para ser preconceituosa, não é isso, só que ele foi uma pessoa que foi impedida de ter a própria vida, vamos dizer assim, de uma certa forma, porque ele teve que se tornar responsável pela família dele. Ele teve que criar os irmãos junto com a minha avó, porque o meu avô os abandonou à própria sorte, e uma pessoa assim tende a se endurecer para ser adulta mais rápido.
Ele sempre foi muito inteligente, mas ele não gostava de estudar, ele aprendia tudo muito rápido, muito fácil.
Meu pai tinha um sonho, que era se dar bem com o pai dele, mas o pai dele, depois que teve um outro casamento, uma nova questão, fez questão de esquecer os outros filhos, inclusive ele. Ele vivia nessa busca, por esse pai, e de certa forma ele não soube ser pai por isso. Ele provia, ele fazia todas as questões, sempre teve uma questão estruturante do padrão cis, heteronormativo, do cara que trabalha, que prove sua família, que respeita sua família, que não tem outra familia, até pelo trauma dele, mas ele nunca foi uma pessoa de falar sobre seus sentimentos, de ouvir filhos. Para ele, filho tinha que estudar, obedecer, fazer o que ele impunha e acabou. Ele nunca parou para entender o que éramos, os três filhos, porque eu sou eu o mais velho, mais dois irmãos; ele nunca parou para ter esse tipo de conversa, porque ele nunca teve. Como é que eu vou ser um pai, se eu nunca tive um pai, né?
Muita coisa eu acabei, dentro desse processo… Meio que entendi que eu não ia ter esse pai, esse pai amigo, esse pai companheiro; eu tinha o pai que tinha que ter.
A minha mãe se casou com o meu pai em decorrência de uma decepção amorosa, porque ela era noiva de um outro cara. Fizeram toda uma tramoia para esse noivado ser rompido, porque ele veio para São Paulo trabalhar com banco e ela veio procurá-lo, porque ela ficou muito tempo sem resposta. Fizeram uma intriga que ela estava namorando um amigo do meu avô, e não era nada disso. Ele acreditou, porque na época não tinha Whatsapp, não tinha telefone celular, não tinha essas coisas, então a comunicação era muito parca. E ela, decepcionada, o meu pai do lado dela, se mostrando como uma força… Ela falou: “Tá bom, vamos ver o que que dá.”
Minha mãe é viva, hoje ela é uma boa mãe, é uma pessoa que conversa, ela busca, sempre buscou suprir isso que meu pai não tinha, que é a questão do diálogo. Só que eu não poderia e nem posso exigir que minha mãe tenha uma certa compreensão de gênero, de sexualidade, porque foi uma pessoa que teve experiências afetivas e sexuais limitadas. Era uma pessoa que tinha o sonho de casar com uma determinada pessoa e isso não foi cumprido. Ela viveu em uma época em que as pessoas, para se relacionar, para namorar era [com] o pai do lado, só podia tocar na mão. A sexualidade, a questão identitária, tudo era muito reprimido, né? Porque minha família vem do Nordeste, de Parnaíba, Piauí, então imagina há trinta, quarenta anos atrás? Se hoje lá as coisas estão engatinhando, imagina atrás, nesse tempo?
Eu sou essa pessoa aos 39 anos, posso dizer que vivi grande parte da minha vida tendo que ser uma outra pessoa. Eu encaro como se eu tivesse tido duas… Uma vida como uma gêmea, como uma fulana, e a vida quando eu nasci como Luiz Fernando, aos 26, 27 anos.
Eu tenho lembranças boas, mas quando não tem a questão de gênero imposta, quando a questão de brincar de boneca, brincar com as lousas, brincar com as coisas, quando isso não significava eu ter um gênero. A partir do momento que eu compreendi que eu não poderia fazer determinadas coisas devido a ser designado no gênero feminino, isso começou a me pesar. Eu falei: “Não sou eu, não sou essa pessoa.” E aí você passa a ter traumas, você passa a tentar se encaixar.
A minha vida foi tentar me encaixar em padrões, na infância, na adolescência. Eu [ficava] tentando me encaixar, tentando ser aquela menina, mas não dava certo, porque eu não tinha muita vaidade, muito jeito com as coisas femininas, e não queria aquilo para mim. Sempre quis outras coisas, almejava outras coisas, mas eu não sabia o que era, eu não tinha vocabulário para falar.
Fui uma pessoa que cresceu em uma família muito reprimida com esses assuntos, vivia naquele meinho, naquela coisinha. Eu nasci em 84, né? A gente estava a quatro anos para democratizar o país, então para poder entender o Luiz Fernando hoje, eu tive que olhar o contexto em qual eu nasci, as pessoas que eu fui com o tempo e entender que não era possível ter tido acesso antes as informações que hoje eu tenho, e que hoje eu busco muito mais.
[Na] minha infância e adolescência, quando eu me conscientizei dessa questão de gênero, eu passei a não gostar dessas fases. Eu fui uma criança que pôde brincar, eu pude experimentar muita coisa, sempre andei pela casa com aqueles calções cheios de fonfon, muito bonitinho. Eu me sentia livre, não gostava muito de usar vestidos que minha mãe me colocava, eu tirava os vestidos, era uma coisa que, nossa… Mas mesmo com essas tensões, eu posso dizer que tive uma infância em que pude ter os brinquedos que queria, pude ter o suporte familiar que muitas crianças hoje não possuem, infelizmente, devido à irresponsabilidade política e econômica de se trazer programas de conscientização familiar, da questão da liberdade do corpo, daquelas pessoas que podem gerar, que são mulheres cis e homens trans, e trans masculinos que optam por essa gestação, ou que têm essa corporeidade, e que podem falar sobre isso. As pessoas não encaram isso como política pública. Não se tem a ideal educação sexual nas escolas, não é só distribuir preservativo, mas sim pensar para além disso, né?
Pensar nessa que eu me tornei, pensar em uma pessoa que na escola sofreu todo tipo de bullying, todo tipo de preconceito que alguém possa sofrer… Eu troquei de escola mais do que qualquer pessoa do universo, porque eu sempre via que o problema era… Eu não me encaixava nem com os meninos, nem com as meninas, porque eu não queria. Eu queria simplesmente aprender coisas, eu queria estudar. Eu não entendia como as pessoas da minha idade não se interessavam por determinadas coisas que eu gostava, e sempre foi isso, né? Tanto que eu sempre fui ligado a política, me envolvi com grêmio estudantil, me envolvi com muitas outras coisas, mas eu percebi uma coisa, que eu não me encaixava em lugar nenhum. Eu falava: “Gente, o que está acontecendo comigo? Qual o problema que eu tenho? Quem sou eu de verdade?” Você se fazer essa pergunta aos quatorze, quinze anos é positivo, mas não é tanto, principalmente quando você não tem um ambiente que te fomente a crítica e a reflexão.
Eu tive o Nelson, que foi meu professor de Filosofia, que me despertou isso, que me despertou esses questionamentos, que me despertou gosto pela Filosofia, só que lamentavelmente eu tive que sair da escola, porque eu queria fazer curso técnico em Processamento de Dados, e eu consegui bolsa em uma outra escola. Fui para essa escola e tinha uma psicóloga nessa escola; claramente ela era lésbica, a Cristina, lembro muito bem dela, e toda vez ela me mandava dizer: “O que você tem?” Eu não gosto muito de desenhar, para falar a verdade eu não gosto, só que, meu, eu queria me livrar da aula de educação artística, e ela ficava insistindo que eu tinha que desenhar para expor meus sentimentos. Eu falava: “Não gosto, não é assim que eu exponho, não é dessa forma.” Foi tudo muito complicado.
Fiquei nessa escola, terminei, fiz dois anos de Ciência da Computação. Eu fui student ambassador da Microsoft por algum tempo, e mesmo fazendo parte deste programa, quando me vi desempregado não pude concluir a faculdade. A universidade não deu chance de bolsa, ninguém me oportunizou nada, aí eu fiquei dando um tempo aula de inglês, espanhol, fiquei só trabalhando e sem o ensino superior. Aí fui em uma palestra em uma universidade do meu município, onde eu resido hoje, Guarulhos, e vi uma palestra sobre jornalismo. Aquilo me chamou atenção, eu falei: “Nossa, que legal poder fazer todas essas coisas.”
Eu me matriculei, fiz um esforço, com FIES, tudo, e fiz a graduação. Aprendi muitas coisas? Muitas coisas, inclusive o meu livro-reportagem que está publicado pela Editora Metanoia é fruto desse aprendizado, que é um livro que conta a história de seis homens trans em diferentes momentos da vida. Eu trago curiosidades, trago questões de cirurgia, de procedimentos corporais que as pessoas têm curiosidade. Eu falei: “Eu vou fazer uma obra que fale de tudo isso, para as pessoas não terem que ficar perguntando essas informações para todo homem trans com quem elas cruzarem.”
Foi muito difícil o ambiente acadêmico, porque dentro desse ambiente acadêmico, dentro dessa coisa eu me percebi como um homem trans, e aí foi a luta para nome social, uso de banheiro, ser respeitado, validado. As pessoas só começaram a me respeitar e a entender que eu era eu após ameaças. Aquelas pessoas não compreendiam. Dentro de um curso de comunicação social que o professor era gay, ele falava que era mimimi, que tudo que eu estava falando era frescura. Eu falava: “Não. No dia que você se olhar no espelho e não se ver, e tudo for tirado de você por decisão de outras pessoas você vai entender o que eu estou falando.”
Eu vivi isso por quatro anos na universidade. É uma universidade em que eu voltei muito tempo depois, palestrando, mas eu tenho essa questão com a universidade. Hoje oriento muitos alunos LGBTQIAPN+, ou que não são mais, que querem fazer trabalho com a temática.
Depois fui fazer aulas na USP, no curso de Jornalismo, porque eu queria estudar Teoria da Comunicação. Eu fiz um ano com o Ciro Marcondes Filho uma disciplina como aluno visitante em Teoria da Comunicação I e II. Depois fui assistir as aulas dele de mestrado, só que a pandemia veio - ele tinha algumas questões de saúde - e me tirou ele, e agora é difícil encontrar um professor que se adeque na mesma linha de pesquisa que a dele.
Fui por outros caminhos. Estou agora em um processo de retomada do meu mestrado no Mackenzie no programa de Educação, Arte e História da Cultura, para falar justamente de transmasculinidades, pela perspectiva de construção histórico-cultural e social, como se dá a construção dessas masculinidades nessas instâncias. Levar isso para uma discussão presbiteriana, na qual fiz Filosofia pelo ProUni 100%... As coisas no Mackenzie são complicadas, porque é uma instituição com um viés religioso, conservadora; as pessoas se dizem modernas, mas só são modernas até um ponto.
Atuo com a população LGBTQIAPN+, principalmente trans, no meu atual trabalho, sou militante e ativista da causa. Perceber tudo isso hoje… [Isso] começa aos quinze anos, quando eu comecei a militância política. Comecei militando no PSTU por ser um partido de esquerda, por ser um partido aberto a questões de um novo projeto político-social, em que as pessoas pudessem desenvolver suas potencialidades, as riquezas existentes do planeta [fossem] igualmente distribuídas, homens e mulheres chegassem a um patamar de equidade. Isso me encantou muito no PSTU. Além da formação política, vendi muito jornal, limpei muita sede, participei de cursos e fiz muitas coisas - comprei agenda, vendi agenda, todo esse tipo de coisa que a gente passa.
Fui para o movimento estudantil secundarista, depois universitário, conheci esse funcionamento, só que quando chegou na parte de gênero e sexualidade eu vi que a esquerda estava em um movimento muito aquém do que eu esperava. Eu vi muito casalzinho cis hetero, mas quando eu via duas lésbicas e dois gays era motivo do partido ter toda uma discussão sobre aquilo. Eu falei: “Mano, como assim? Como assim uma discussão sobre pessoas estarem juntas?” Aquilo não cabia para mim e eu estava me percebendo enquanto uma mulher cis lésbica, então para mim era muito complicado, por mais que esporadicamente, nessa época, eu estivesse tendo algum relacionamento com homem. Foi um choque, tudo na minha vida estava acontecendo ao mesmo tempo.
Saio do PSTU e começo a apoiar a Juventude Rotariana, aquela galera extrema, que conversa com a direita. Eu me empolguei, não por essa questão econômica; eu me empolguei porque ali eu poderia conhecer outras pessoas, poderia fazer ações sociais, poderia ampliar o que eu já fazia, só quando eu percebi que ‘esta’ galera e ‘esta’ não se conversavam e eu ficava no meio disso tudo, eu falava: “Gente, eu sou de esquerda, eu não sou de direita. Eu não concordo com essa classificação de pessoas, mas também não concordo com essa visão arcaica de sexualidade também”, aí buguei. Comecei a flertar mais com outros partidos, fiquei frequentando o PSOL, fiquei frequentando o PT, mas nada de me filiar, nada de ter um compromisso efetivo, mas ser de esquerda, estar ali colocar meu corpo, a minha voz à disposição da luta.
Fui para os movimentos LGBT, comecei a ir para coletivos, comecei com essas coisas, e no meio de tudo isso eu me percebo homem trans, e fui me perceber homem trans em uma idade em que você está em uma fase adulta, que você já está beirando os trinta anos. Não é muito fácil, porque você não teve o repertório de masculinidade anterior, você não foi ensinado a ser homem, porque a gente vive em instâncias que um corpo feminino é uma instância, um corpo masculino é outra, a gente vive em uma sociedade binária. A barba foi surgindo, a leitura foi mudando e eu não sabia como me comportar como homem no espaço social. Eu sabia ser o Luiz Fernando, sabia ser eu, mas as cobranças vêm, por exemplo, na questão de gesticular. “Isso não fica tão bem assim.” A questão de você não ter uma voz tão grossa, a questão de você ter algumas características que remetem ao feminino… As pessoas automaticamente te percebem como gay, e em uma época da minha vida eu não era, eu me via como homem trans heterossexual. As pessoas me liam como gay pelo jeito, elas nem perguntavam, nem titubeavam, o jeito já denuncia, e aquilo me irritava muito, aquilo me fez questionar uma série de coisas.
Você vai estudando, vai lendo, vai percebendo que as coisas não são assim, mas até chegar nesse ponto de clareza eu digo que vivi uma época da minha vida em que eu me travestia de mulher, porque eu usava saia, salto alto. Eu não sabia sentar de saia, eu literalmente sentava com as pernas muito abertas, a calcinha aparecia, um desastre. Já dei aula de informática de vestido e os alunos lá, olhando para a professora com as pernas abertas. Eu tinha uma relação muito masculina com eles, porque eram só homens na minha turma de hardware, então era uma coisa muito assim.
Era muito complicado você ter que lidar com esse masculino, com esse feminino, com o que as pessoas esperavam.
Nesse processo maluco conheci a minha ex-noiva. A gente ficou seis, sete anos [juntos], mais ou menos, e ela me acompanhou no início do Luiz Fernando. Eu sentia que desde o começo, por mais que ela gostasse, por mais que ela me amasse, ela queria a fulana de volta e não ia ter a fulana de volta. Por um tempo a gente tentou esse relacionamento, mas acabou não dando certo, porque eu conheci outras coisas, né? Eu passei a entender que por mais que eu gostasse dela, esse gostar dela não estava bastando para essa relação ficar. Eu passei a me relacionar com homens e perceber que o que eu queria com homens era ser visto como homem, não como uma mulher. Passei a entender que meu campo de desejo era masculino, que por mais que porventura eu venha me relacionar com uma mulher, nunca vai ser a plenitude de estar com um homem que me veja como homem.
Foi todo um processo, em que eu tive que sair do armário da minha vida duas vezes, no sentido identitário e no sentido afetivo-sexual, ter que validar para as pessoas que eu sou o Luiz Fernando, ter que dizer o tempo todo.
O episódio que marcou a minha vida em relação a isso foi a demora do meu processo de retificação de nome. Na minha época não era comum, em 2018. Com o acórdão do STF, é só apresentar a documentação e pagar a taxa, se você tiver dinheiro, e o cartório resolve. [Tive que apresentar] carta de testemunha, foto, print de rede social, abrir processo, e todas essas questões.
No meio de tudo isso, fiquei desempregado. Eu tinha um nome e uma aparência [diferentes]; quem ia empregar fulana parecendo fulano? Ninguém. E não tinha os programas específicos para a população trans que hoje existem.
Fiquei três anos desempregado, vivia humilhado. Eu contava com a ajuda das pessoas para ir para as reuniões de militância, até para beber uma cerveja, para poder me deslocar, para poder fazer muitas coisas, e uma pessoa em especial que me ajudou muito mesmo, que foi meu pai de família LGBT, foi o Elvis. Ele me acolheu, me abriu essa possibilidade de ter esse vinculo com ele e com a [Família] Stronger, e através disso eu fiz um Núcleo de Transmasculinidades na Stronger, falei para outras famílias LGBTQIAPN+ que existem homens trans, porque até então eles não sabiam quem era o homem trans. Eles sabiam o que era uma travesti, uma mulher transexual, e ali no [Largo do] Arouche - comecei a frequentar o Arouche, refrequentar, mas como Luiz Fernando - eu passei a dizer que era homem trans. Bebia Cantinho do Vale com aquelas pessoas, conversava com eles, e eles: “Ah, tá, agora eu entendo o que é um homem trans, é diferente de lésbica.” Eu falei: “É diferente de uma lesbica masculinizada, ela reivindica a feminilidade dela de outra forma. Eu reivindico masculinidade, então a nossa diferença está aí.” E essas pessoas passaram a entender, tanto que hoje, em muitas famílias LGBTQIAPN+ existem homens trans nelas, e hoje tem relacionamentos trans-centrados nessas famílias, ou seja, uma mulher transexual, uma travesti, um homem trans, dois homens trans, duas mulheres transexuais, então hoje está muito aberto.
Eu tive que garimpar muito, [em] tudo. Falar um pouco do que é esse Luiz Fernando é atravessar instâncias que me doem muito, é ter que pensar no momento em que eu peguei a minha certidão de nascimento e senti a maior felicidade do mundo, e ao mesmo tempo, quando fui ao Poupatempo eu senti a maior tristeza do mundo, porque eu tive que pegar uma sentença judicial e obrigar a pessoa a fazer o que ela deveria fazer sem me expor ao ridículo para todo mundo. Eu peregrinei por tantos lugares que eu já fico tonto de pensar - Receita Federal, Poupatempo, cartório eleitoral…. Nossa, é o que eu tô lembrando, são muitos lugares. Cadastros tanto físicos quanto virtuais, enfim, para apagar uma pessoa e nascer outra. Isso é um processo muito árduo, muito complicado. Ter que explicar para as pessoas, fazer alistamento militar depois de trinta anos foi a melhor; um cara te senta em uma salinha [e pergunta:] “Mas por que você não veio antes?” E você tem que inventar desculpa, porque você não queria falar disso com um cara lá no alistamento militar. Eu ia dizer o que para ele? “Olha, até x anos eu era ela, agora eu sou ele.” Não, né? É um ambiente hostil às questões de diversidade, eu tinha medo de nem sair de lá. Quando eu saí de lá foi o alívio da minha vida: “Não [sou] apto para o serviço. Não vou jurar bandeira, não vou fazer nada.” Acima dos trinta você não faz. Se eu tivesse uma idade menor eu sairia dali em pânico, mas pelo menos fui poupado disso.
Quando eu peguei essa certidão teve um churrasco na minha casa, na minha antiga casa, não onde eu moro hoje, e aí as pessoas [diziam:] “Fulana está aí?” Meu filho, quando eu ouvi “fulana”, ah, meu filho, “fulana”, aí desceu em mim. [Pro] meu tio, que estudava Direito, hoje ele é advogado, falei: “Tio, você é futuro operador do Direito, certo?” “Certo.” O que está escrito aqui?” “Luiz Fernando.” Eu falei: “Então como é que vocês vão me chamar agora? A partir de agora, qual é o nome?” “Luiz Fernando.” “Então, meu nome é esse. Não quero “ela”, não quero “a”, não quero “b”.”
Naquele dia eu me irritei, porque mexeu comigo. Eu não admito isso até hoje. Recentemente fui ver um negócio de um exame; estava escrito outro nome. Falei: “O que? Nem pensar, vocês vão mudar isso agora.” Aí a mulher [disse:] “Ai, desculpa.” “Não é desculpa, vocês vão mudar isso agora. Você não sabe o que eu lutei para ter esse nome. Esse nome para mim é minha identidade, esse nome define quem sou eu. Não admito nunca, em nenhuma instância, que alguém me chame por outro nome a não ser Luiz Fernando.”
Passei a entender que por mais que eu esteja em um processo de desconstrução, eu me vejo de uma forma binária. Não deveria ser um problema e hoje parece que é um problema, parece que hoje eu tenho que me ver de um jeito que eu não sou. Não, eu sou assim, não estou dizendo para todo mundo ser assim. As pessoas têm que entender que tem uma diferença entre impor a minha forma de ser e forma de querer ser respeitado, e isso se confunde muito. Falar do Luiz Fernando é falar de uma pessoa que luta e lutou para ser quem é, que desde muito pequeno, sem referência, sem nada, eu tive que construir uma maneira de ser; eu só fui por muito tempo quem eu fui devido às circunstâncias que me foram dadas.
Não querer parar de estudar, ter o mínimo de dignidade, porque o que resta para nós ainda hoje é a marginalização, porque se você não for uma pessoa trans, principalmente no caso de homem trans, se você não tiver aparência masculina e estudo, é o que vai sobrar para você. Eu não quero essa narrativa para mim. Quero ser ouvido, quero ser respeitado, quero que as pessoas entendam que homens trans podem ser líderes políticos, que eles podem desenvolver estratégias corporativas, que eles possam fundar organizações, que eles possam estar em todos os lugares, para a nossa história ser contada - não só a partir dos anos 2000, porque a gente existe muito antes -, e que as nossas masculinidades existem para confrontar essa visão binária, de que uma determinada parte de um corpo defina um gênero.
A minha luta vem desse processo. Dentro desse processo fiz parte de uma outra instituição voltada a homens trans. O Núcleo de Transmasculinidades surgiu em 2018, na Casa Florescer, por quê? Porque não tinha o centro de acolhida João Neri, quem batalhou por isso lá atrás foi Luiz Fernando, Beto Silva, e pessoas que lá estavam nessa ocasião, porque levaram o debate: “Por que existe Florescer e não existe uma casa para homem trans? O que acontece? Quer dizer que a causa do homem trans está resolvida?” Não está, é um corpo estrupavel, é um corpo fragilizado, é um corpo lido como feminino, mas que não se vê nesse feminino; se for para um lugar feminino vai ser desrespeitado, se for para um abrigo masculino vai ser estuprado, então o que a gente faz com essas pessoas?
Em 2020 a gente fez um festival que está disponível no YouTube e também no Facebook, que é o Transmasculinidades em ação, porque a gente queria levar vinte horas de programação só falando de transmasculinidade, no Brasil inteiro. A gente desenvolveu também rodas de conversas virtuais, desenvolvemos uma série de ações físicas também, em 2019, com transmasculinidades em pauta, descentralizando a questão das transmasculinidades, porque o debate de transmasculinidade tem que estar nas periferias, porque não existe só o homem trans branco, passável, e que a vida está resolvida; isso perpassa por gênero, raça e classe. Eu preciso falar com os pretos, com os indígenas, com outras etnias, com outras pessoas que sejam gordas, que sejam PCDs e que sejam de outras realidades distintas da minha. Eu preciso falar que nós existimos, esse núcleo tem esse objetivo. Estou coordenando esse núcleo, a gente tem altos projetos e altos planos.
Por que isso é a história da minha vida? Porque para você começar a lutar pelos outros, você tem que começar primeiro a lutar por você. Eu fui meu grande projeto, sou meu grande projeto, então para poder lutar por alguém eu tenho que lutar por mim, porque esta luta está em mim. Eu não deixo de ser homem trans, nunca vou deixar de ser; eu não vou deixar de ser gay, eu não vou deixar de ser LGBTQIAPN+, mas a minha luta é política, porque se esse corpo, dentro desse espaço político que é o espaço público, não for respeitado, não forem pensadas e concebidas políticas sociais e públicas para ele, o que eu vou estar fazendo? Eu poderia estar confortável, simplesmente não comprando tantas questões quanto hoje eu faço, só que eu penso que nossa vida não está resolvida. Se estivesse resolvida, eu pautaria diversidades em toda sua amplitude nas escolas. Eu teria isso desde o berçário, não teria uma escola binária; eu fui professor de educação bilíngue, hoje eu posso trabalhar com educação bilíngue para criança? Nem sonhando, porque eu sou homem, eu represento uma ameaça. Eu sou um cara, vai vendo, eu sou um cara que reproduz a ameaça de estupro, de violação, sendo que essas instâncias - é pesquisa, não sou eu que estou dizendo - acontecem dentro das casas, não é o professor de educação infantil, entende? Não é o professor de educação infantil que comete essas atrocidades, mas sim o homem dentro de suas casas, que não tem consciência de que o corpo do outro não lhe pertence, não foi feito para ele utilizar, e uma educação machista, misógina, LGBTfóbica, patriarcal que fez com que esse homem pense. Não é o homem, não é a figura masculina em si que representa ameaça, mas todas essas instâncias que eu coloquei.
Hoje, sinceramente, eu prefiro trabalhar com questões ligadas ao terceiro setor, com questões múltiplas que englobem a questão das diversidades, do que trabalhar dentro do ambiente escolar. Sinto falta? Muito, porque eu gosto de sala de aula, sinto cheiro de sala de aula. Gosto de material, gosto dessas coisas, só que infelizmente a educação precisa ser revista urgente, porque é uma área que forma pessoas, mas é uma área que ainda tem muitos tabus - haja vista o fracasso do Conselho Tutelar, os progressistas ganharam em poucos lugares. A infância e adolescência estão ameaçadas devido a grupos extremistas - aqui não vale ser dito nem os nomes, porque eu não publicizo essas pessoas - e a gente tem que lutar por essas infâncias, por essa adolescência.
Eu estou falando isso na minha história de vida, porque eu fui vitima de pessoas preconceituosas. Eu não tive infância, não tive adolescência; não quero que mais meninos trans vivam o que eu vivo, entendeu? Eu não quero que uma pessoa chegue perto dos quarenta anos e tenha que rasgar todas as suas fotos de infância e adolescência porque não consegue lidar com aquelas fotos. Foi o que eu fiz, rasguei. Minha mãe falou: “São minhas.” “Não, essas fotos são minhas, sou eu que estou aí.” Me deu a louca, apaguei; não quero, não tenho foto. Não sou um antes e um depois, eu quero que as pessoas entendam.
Se uma pessoa trans se sente à vontade falando do antes dela e do depois dela, maravilha! As pessoas são diversas, mas eu, Luiz Fernando, não me sinto. Eu sou o processo que eu construí, não dou permissão para ninguém mudar essa narrativa. Sou o Luiz Fernando e é assim que eu quero que as pessoas me vejam. Não existiu outra vida, existiu a gêmea, que eu apaguei muito tempo atrás, porque a história de vida é minha, e é assim que vamos indo. Eu sou um produto de mim mesmo. Tenho influências externas sim, porque eu não sou uma coisa ensimesmada; não existe isso, não sou ensimesmado.
Em nome de todas essas coisas, na graduação falei: “Eu posso falar sobre o quê?” [Responderam:] “Desde que não seja sobre você.” “Pode ficar tranquilo, não vai ser sobre mim, não, vou falar sobre homem trans.” Aí a coordenadora de curso [disse:] “Mas como? Você é homem trans.” “Querido, homem trans não surgiu e terminou em mim, não. Eu sou jornalista, vou falar com outras pessoas.” E quando eu trouxe um negócio… Meu filho, eu sou desses, fale para mim que eu não posso? Eu trouxe um pré-projeto de trezentas páginas. [Disseram:] “Meu filho, isso é inviável, vamos enxugar isso. Você quer falar de tudo.” Falei: “Não, você disse que não tinha assunto.” Cento e poucas páginas, contando as narrativas e tudo, né? Não me desafie, não diga que eu não posso. A vida já disse que eu não podia muita coisa.
Hoje eu estou em um processo de emagrecimento. Não é fácil, porque eu gosto de comer. Estou em um processo de gostar da academia, ainda estou em um processo. Eu estou vindo de muitos processos.
Não é só por questão estética. Muitos ficam dizendo que eu não defendo a pessoa gorda; não é isso, é porque eu estava com situações de saúde complicadas. Não é só por causa da gordura, mas sim porque junta gordura, junta hormônio, junta… O hormônio não é pensado para a gente, eu tenho uma medicina que não pensa no meu corpo a longo prazo, então eu estou fazendo o quê? Redução de danos, cuidados paliativos, é isso que eu estou fazendo. Pra poder ter uma expectativa um pouco maior de vida eu tenho que pensar o que vou fazer desta vida, desse objeto que me foi dado, então vou ter que rever algumas coisas.
Eu não deixo de comer as coisas que quero, não deixo de fazer as coisas que quero, mas eu tenho que entender que se eu puder fazer duzentas vezes, por que não fazer 150?
Eu estou nesse processo de educação em tudo na minha vida, até com pessoas. Tem pessoas que vale a pena estar na minha vida, tem pessoas que não. Eu tenho um filho de família LGBT, ele é um cis gay, um negro maravilhoso, eu sou ateu e ele é do candomblé; eu falo das coisas de candomblé dele como se eu entendesse, para provar para as pessoas que um ateu é muito mais tolerante do que um religioso, que eu consigo falar das coisas dele sem problema nenhum. Tratar de algo que é tão caro para ele não vai diminuir o meu processo de lidar com religião, pelo contrário, só vai fazer eu ficar próximo de uma pessoa que eu gosto.
Tem o meu sobrinho, que é o Benicinho; ele tem seis anos. Ainda não conversei com ele sobre muita coisa porque ele é meu sobrinho, não é meu filho, então eu tenho que ir com calma, senão já viu.
Eu tenho dois irmãos, como eu tinha dito. O Marcel é um cis gay, uma pessoa que se reconehce com o mesmo gênero, mas é gay. E eu tenho o Jordão, que é hetero. Minha relação com eles é tranquila, até porque eu sou o mais velho; a gente tem nossas diferenças, nossas questões, mas a gente se respeita muito. Tenho a minha mãe, o nome dela é Deusa. A gente se entende. É óbvio que minha mãe não entende uma série de coisas, a casa dela já foi aberta para equipe de reportagem, já falaram sobre mim, já dei entrevista, isso, aquilo. Ela achando: “O que está acontecendo? Ah, tem que fazer isso.” Eu falei: “Mãe, é exatamente como essas novelas que você assiste. Tudo tem bastidor, minha filha.” “Mas eu vejo lá tão glamuroso.” “Mãe, tem câmera, tem gente falando coisas. As coisas não são assim, né?” Pra minha mãe foi difícil falar de mim, mas uma hora ela entendeu que eu tinha que fazer isso.
Deixa eu ver, tem pessoas na minha vida que me inspiram muito, sim. Vou falar de outros homens trans. Anderson Herzer, [que escreveu o livro] A Queda para o Alto. Não o conheci pessoalmente, mas ele me inspira, no sentido de ter tido força em pelo período ditatorial para escrever aquele livro, para ter sido ele, mesmo que ele tenha sido suicidado pelo estado, por não ter tido política, por não ter tido o acolhimento devido na sua transmasculinidade. O João Neri também, conheci o João Neri, estive próximo a ele. Falar dele me emociona bastante, assim como do Anderson, e falar de outros homens trans que nós nem sabemos o nome, de pessoas que deveriam estar aqui nesse Museu da Pessoa.
O Museu da Pessoa, a meu ver, faz um trabalho de visibilizar vozes que precisam ser ecoadas, porque as pessoas precisam entender que existem diferentes perspectivas do eu, não só o seu mundinho, não só a sua caixa. As pessoas precisam entender que uma história de vida às vezes pode te ensinar muito mais do que inúmeras teses de mestrado, doutorado e documentos de pós-doutorado. Uma história de vida pode te apontar caminhos para você não reproduzir. Todos nós temos preconceitos, não vou dizer que eu não tenha, porque preconceito é uma ideia preconcebida de algo que você não conhece, todos nós temos, mas o que você vai fazer com isso? Você vai insistir nessa ideia preconcebida ou você vai andar passos para trás, vai falar: “Opa, preciso conhecer mais”? É o que você faz com suas ideias preconcebidas que te torna cumplice de um assassinato, cumplice de uma violação de direitos humanos, cumplice de um exterminio de uma população, ou um aliado. Você tem as duas opções. Não existe neutralidade, bebê, não existe, nem o shampoo é neutro. Se te falaram que neutralidade existe, existe uma imbecilidade. O que existe é um caminho do meio, o caminho de conhecer as diferentes coisas, para você ter um meio de conceber a sua prática e sua teoria, mas dizer que você é neutro? Neutralidade é calar, o calar já matou muita gente.
Eu sempre parto dessa iniciativa:, ecoo, leio, processo, elaboro. Não vou dizer que eu sou perfeito, porque se eu aos 39 anos chegar nessa ideia falida de perfeição a filosofia não vai ter me ensinado nada. Ela é uma ideia que nós buscamos, mas ela não existe. O que é bom para mim não é bom para o outro e assim vai. Não tem que ser só bom para alguém, tem que ser bom para o coletivo, porque se é bom para o coletivo, tem uma taxa de sucesso daquilo ser replicado; se é só bom para um, tem algo de errado nisso, muito errado. São coisas que me pegam bastante.
Costumo dizer que a minha história poderia ter um roteiro altamente estruturado, mas eu prefiro que ela siga sem roteiro. Prefiro que ela siga natural, que ela siga sendo eu, uma pessoa em busca de conhecimento, desse conhecimento que eu não sei qual nome dar pra ele, mas eu só sei que é em busca de algo, para conhecer acerca desse algo que é algo muito maior e que é uma reunião de coisas. Eu me vejo muito nessa perspectiva. Até no processo de escrever, eu faço toda uma linha, toda uma questão, mas vou envolvendo outros assuntos e aí fica difícil de poder adaptar, mas tenho que reler de novo, respirar, para as coisas terem uma lógica.
A escrita é algo que te exige muito, mas ela te dá muito alento ao mesmo tempo. Quando eu escrevo sobre algo, mesmo que seja um rascunho, mesmo que sejam ideias confusas, aparentemente, eu escrevo essas ideias no ____ e depois elas viram textos, aí eu sinto como se eu tivesse parindo alguma coisa. É um processo socrático, na verdade; a mãe dele era parteira e ele acreditava que parir coisas… A maiêutica vem disso, vem do processo de parir, do processo de levar, de trazer para fora aquilo que está dentro, e isso me pega muito.
Acho que as ideias que eu possa ter sobre mim… Se eu pudesse falar para alguém: “Você quer entender alguém? Toma um café, um suco, ou uma cerveja se quiser com essa pessoa, mas sem filtros do que você vai ouvir. Sente e ouça, sem filtros, sem ficar naquela ideia “isso está errado, isso está certo, aí eu não faria, aí não sei o que.” Ouve, porque de repente aquilo vai te dizer o quanto você é limitado na sua experiência humana de interação.”
A pandemia evidenciou muito isso. Nós sabemos lidar com telas, mas não sabemos lidar com pessoas. As pessoas não sabem lidar com uma pessoa como eu, que simplesmente é verdadeiro. Se eu gosto de você, eu gosto de você; se eu não gosto de você, eu vou fazer de tudo para você entender que eu não gosto de você.
Eu não sou de dar ‘bom dia’, ‘boa tarde’, ‘boa noite’ para todo mundo, todo dia, todo o tempo. Prefiro dar um ‘bom dia’ bem dado do que ficar “bom dia, bom dia, boa tarde”, porque eu acho isso falso, acho isso démodé. Confraternização? Nunca gostei, porque sempre ganhava aquilo que eu não queria, era para espezinhar. Quando eu dava aula em escola eu era obrigado a participar. Sempre me davam batom, maquiagem, porque era o que eu não queria ganhar, para dizer: “Olha, você precisa ser consertada, viu? Eu vou te dar isso.”
Teve uma professora que falou para mim que ia me dar um conjunto de panela - que eu peguei e dei para a minha mãe, foi útil - porque eu precisava casar. Eu falei: “Realmente, amiga, preciso mesmo, preciso realmente casar. Preciso tanto casar, amiga, que quero fazer outra coisa da vida.” E no fim ela é uma frustrada, que continua com o marido até hoje, que trai ela com todo mundo, mas aí são escolhas que se faz, né?
Escolhi pagar o preço da solidão, mas escolhi ser livre, porque as pessoas não sabem ter um relacionamento com um homem trans. Elas fetichizam, tanto pro bem quanto para o mal. Ou é a pessoa super-herói, porque está se relacionando comigo, ela está fazendo um favor - “olha, relação com homem trans, eu superentendo” - ou fetichiza, então, em nome dessas coisas, eu quero não me relacionar. Quero simplesmente me permitir viver, descobrir pessoas e descobrir o mundo, o que ele tem para me oferecer. Se é a forma certa, errada, enquanto eu não sentir uma verdade, de me ver como humano, para além do campo do campo identitário, para além do que a sociedade manifesta, eu estou muito bem assim. Estou muito bem, me permitindo viver essa ebulição e viver questionando, dizer o que eu quero e o que eu não quero, e falar, falar, falar, porque por muito tempo eu fui calado, tolhido, então eu quero falar cada vez mais.
Quero que mais pessoas como eu ocupem esses espaços, estejam nesses espaços, porque quando a gente para para pensar que uma pessoa aos 39 anos vive querendo entender o que vai acontecer com a vida dela a longo prazo, no sentido material do corpo, é porque alguma coisa tem de muito errado nisso. Eu vivo em uma experiência, em uma ciranda, em uma roleta russa, porque eu não sei o que vai acontecer comigo. É muito complicado, eu vivo em uma iminência de querer mais informações acerca da minha existência, porque ninguém se interessa em estudar e pesquisar. Será que eu tenho que ser um nerd? Eu tenho que ser pesquisador? Eu tenho que ser tudo para as pessoas falarem um pouco mais de homens trans, eu tenho que falar que precisa? Será que ninguém vai ter consciência de falar “essas pessoas existem, essas pessoas são gente, essas pessoas carregam traumas de serem invisíveis”? Até quando as pessoas vão achar que a nossa vida está resolvida porque nós aparentamos uma masculinidade?
A masculinidade cisgênero não é nossa. Eu não fui educado para ser homem. Fui educado para ser dócil, fui educado para aprender a calar, e isso também no processo de masculinidade é muito complexo, porque a vida inteira te calaram, aí você tem que aprender a falar, tem que aprender a se impor, tem que aprender uma série de coisas que em outros campos identitários isso já é dado, e no seu não. E você tem que falar, você ser o único e falar: “Eu existo, viu? Olha, eu quero isso, eu quero aquilo.” E as pessoas dizerem: “Mas vocês são tão poucos.”
Não somos tão poucos, só que a gente não está no IBGE. Coloca no IBGE o campo ‘homem trans’, faz uma educação da população para a pessoa falar que é homem trans e ter certeza que os dados não vão vazar, que ela não vai sofrer represália nem nada, para você ver o tanto de homem trans que brota. Brota do chão. Mas para as pessoas brotarem elas precisam ter segurança. Como eu vou ter segurança em uma sociedade que não pensou acerca da minha existência, em uma sociedade que quer que todas as pessoas sejam iguais, que quer que as pessoas cumpram um padrão de acordo com o nascimento, uma biologia feita por homens em um laboratório, não foi concebida… Até a metade do século XIX a mulher era um falo incompleto, que categoria é essa? Ela só existe porque existe um homem. Se para uma mulher cisgênero o negócio é desse jeito, que dirá para mim.
Você tem que conhecer tudo isso para ter subsídios pra falar de você. Falar de mim é falar de uma pessoa que carrega muitas marcas, de uma pessoa que hoje conquistou coisas, mas que hoje não se vê plena, não se vê de forma plena, porque eu ainda vejo os meus, inclusive a mim, sem possibilidade de ter uma visibilidade, porque nós fomos questionados do porquê queremos visibilidade, porque queremos um conhecimento, porque queremos as cotas trans. [Acham que] eu quero privilégio.
Realmente, ser trans é um privilégio, só que não, né? Seja uma pessoa trans 24 horas, depois você me conta se é um privilégio ser trans, principalmente homem trans. Não ter hormonio para você, não ter médico para você, você ter que explicar o tempo todo que você é você, e aí as pessoas ficam querendo saber como você se relaciona afetivamente e sexualmente, que cirurgias você fez, o que você fez para ser assim; depois de tudo isso você me fala se é privilégio, me fala como é você não gostar de parte da sua vida, porque os outros quiseram te impor uma feminilidade. Fala como é você ter um relacionamento com alguém, e a primeira coisa que você tem que explicar é que você é trans, porque se você não falar é como se fosse uma grande mentira, como se você fosse uma farsa, e você tem que explicar, senão a pessoa vem com três pedras na mão, ela pode até te matar. Que privilégio é esse, meu povo? Me conta o privilégio, que eu estou doido para saber. Ninguém me conta, ninguém me contou até hoje esse privilégio. No dia que alguém me contar, alguém falar “olha, privilégio”, aí estou eu na fila do privilégio, mas ninguém contou, isso porque não tem, né?
Em livros de história que eu leio, cadê as transmasculinidades? Cadê os homens trans que existiram e que fizeram contribuições significativas para a ciência? Cadê essas pessoas que eu não sei delas? Cadê o privilégio? Eu tenho transepistemicídio, eu tenho nossas ____ sendo silenciadas, eu tenho pessoas fazendo dinheiro com nossas histórias, mas nós não. As pessoas querem nos convidar, aí é gratuito; ela vai, ela é paga? Como assim? Por que o que ela fala é melhor do que o que eu falo?
Eu não estou falando de qualificação, de titulação; eu estou falando de história, eu estou falando de presença, é disso que eu estou falando. Estou falando de todos esses questionamentos, porque eles fazem parte da minha existência, porque essa existência só existe devido a esses questionamentos. Eu só sou o Luiz Fernando que sou hoje pelas marcas, pelos traumas que eu tive no passado, eu só sou esse Luiz Fernando devido a isso.
Eu me pego pensando, por que as pessoas não conseguem entender que ninguém é um ser universal? Não existe homem trans universal, existem homens. Se você quer conhecer a perspectiva da transmasculinidade, não é uma, são várias transmasculinidades. É questão de geração, de arcabouço intelectual, é questão linguística, são ‘n’ questões que você tem que considerar. Vamos parar de tratar as pessoas como universais.
Dentro dessa mensagem da minha vida eu quero passar por inúmeras reflexões. Quero que as pessoas entendam de uma vez, de uma maldita vez que nós não queremos privilégios nem universalidade, nós queremos uma política diversa de fato, e nós queremos que nossos corpos diversos circulem por aí sem nenhum tipo de represália. A gente tem que se adequar a uma lógica cisgênera. Eu não sou uma pessoa cis, eu nunca vou ser uma pessoa cis, eu não quero ser uma pessoa cis. Quero ser o Luiz Fernando, dentro da perspectiva de masculinidade. Não me cobrem uma perspectiva cisgênera para minha masculinidade, eu não tenho que atender às suas demandas para ser respeitado. Quero ser respeitado simplesmente pelo fato de ser uma pessoa que exige respeito, porque dá respeito. Eu não quero ser démodé em muita coisa, sabe? Mas parem, parem de querer que as pessoas se adequem a essa lógica, porque é uma lógica que mata, suicida, e pior, elimina potencialidades. O mundo precisa urgente de potencialidades.
(PAUSA)
(54:15) P/1 - Voltando, Luiz, já que você é coordenador deste Núcleo de Transmasculinidade da Família Stronger, eu queria que você falasse um pouco sobre saúde para pessoas LGBTQIAPN+, porque isso é uma questão que você citou e é uma questão importante. Queria que você falasse um pouco sobre como vocês lidam com isso nesse núcleo, o que você acha.
R - O que a gente está fazendo no núcleo? A gente está preparando uma série de materiais em conjunto com parceiros, acadêmicos e profissionais da área. A gente está no processo de preparação, que está nos exaurindo bastante, para poder falar de como cuidar de homens trans, desde o cuidado da atenção básica até coisas ambiciosas que a gente pretende levar para Brasília, porque a gente quer conversar com outras instituições.
Quer saber o que a gente já levou para Brasília? Na página do núcleo a gente tem uns cards com umas dez propostas de um documento que levamos para o Conselho Nacional LGBTQIAPN+, na figura de um homem trans que está representando o segmento de transmasculinidades. Nós levamos algumas demandas, algumas questões que perpassam toda a questão do processo transexualizador, pelas questões dos direitos reprodutivos, pela questão da sexualidade mesmo, de contraceptivos, e pesquisas que falem das questões de ISTs, da própria questão de desenvolvimento de… Da questão do do hormônio mesmo, o que o hormônio faz nesse corpo a longo prazo, que tipo de pesquisa que tem que ter, pesquisa da questão cardiovascular, questão óssea, questão de educação física para homens trans, porque tem um corpo que exige uma coisa ali, porque tem homem trans que quer se hormonizar, tem outro que não quer; tem trans masculino que quer uma harmonização, mas não tão agressiva. Todos esses questionamentos a gente colocou nesse documento e foi encaminhado para o conselho nacional LGBTQIAP+, foi encaminhado para a Ministra da Saúde. A gente está esperando essas devolutivas, estamos nesse processo de conversa.
Um apelo que a gente gostaria muito de fazer é que profissionais da saúde acessassem a página do Núcleo de Transmasculinidades no Instagram para oferecer seus serviços, para a gente poder fazer dias da saúde voltado para a população trans masculina em conjunto com a rede, para a gente poder descentralizar a ideia de que só possa ser feito em locais que propiciem o processo transsexualizador. A saúde tem que ser feita de forma integral e a gente quer trazer isso para outros lugares de discussão, fazer com que essa discussão seja descentralizada. São essas ações, no mínimo, que a gente está fazendo, além das rodas de conversa, lives etc que visem lidar com questões impactantes na saúde mental dessa população.
(57:20) P/1 - Mudando de assunto, eu queria que você comentasse um pouquinho sobre… Esse é um dos eixos do nosso projeto, que é falar sobre morar em São Paulo. Você morou em vários lugares diferentes em São Paulo ao longo da sua vida?
R - Eu morei ali na região do Brás, no meu processo de sair da infância para adolescência, depois morei ali próximo do Parque Dom Pedro, também próximo do Brás. Eu, me mudei para o município de Guarulhos aos quinze anos, mas sempre andei por São Paulo, sempre estive em São Paulo, porque Guarulhos é uma cidade que, por mais que seja um município com um milhão e trezentos mil habitantes, de médio porte, não tem a questão LGBTQIAP+ desenvolvida como São Paulo tem. São Paulo, apesar das suas contradições, tem uma política mais aberta, tem uma questão de entretenimento.
Eu trabalho no Centro de Cidadania LGBT em São Paulo. Trabalho em São Miguel, São Miguel fica na fronteira com Guarulhos, estou falando da Zona Leste. A Zona Leste, mesmo com suas questões… Por mais que Guarulhos tenha uma subsecretaria, não tem dotação orçamentária prevista, tem um prefeito que não tira foto com questão LGBT, que é aliado aí do inominável, que tem uma perspectiva muito alinhada com o outro grupo. Aqui em São Paulo, mesmo o prefeito tendo umas questões, devido a questão do movimento ser mais articulado, de ser uma metrópole - uma megalópole, aliás - e isso gerar dinheiro, pink money, pinkwashing, São Paulo é muito diverso, então eu vivo mais em São Paulo do que Guarulhos, na verdade.
Vou para todos os extremos, desde Cidade Tiradentes, Vila Madalena, Jardim ngela, e você percebe que São Paulo tem essa questão de raça, de gênero e de classe muito demarcada. Tem lugares que devido à questão financeira, devido à minha branquitude, eu posso ser quem eu sou, mas tem lugares que mesmo assim eu tenho que ter uma ressalva, porque aquele território não está acostumado com esse tipo de assunto, entendeu? Viver em São Paulo é você viver em mil Brasis, tanto pela questão de raça, quanto de gênero e classe, como eu tinha te dito. Isso é São Paulo, é a questão do restaurante que tem, a questão do transporte público, da malha rodoviária, é a questão da linguagem, é questão do ritmo das pessoas, é você viver em mil e um Brasis.
(01:00:00) P/1 - E falando sobre isso, o que você tem… Desculpa, Bruna, eu já abro para você. O que você gosta mais de fazer em São Paulo? Lugares, coisas que você gosta mais de fazer por aqui.
R - Eu gosto muito de ir à Pinacoteca, ao Museu da Língua Portuguesa, ao Museu de Arte Moderna. Gosto muito de andar pela Avenida Paulista, pelos barzinhos da Vila Madalena, pela [Praça] Roosevelt também, pelo Arouche também. Gosto muito do Caneca de Prata, do Soda Pop, da própria praça mesmo. Barzinhos da Vila Madalena eu gosto de todos, então ficar falando só de um não vira.
Gosto muito da região da Paulista, da região da [Avenida Engenheiro Luís Carlos] Berrini, por lembrar a questão de tecnologias, essas coisas que eu estive envolvida no passado. Gosto muito dos parques, acredito que eu gosto muito da questão verde, por mais que eu não seja fã da questão de acordar cedo, não vira, mas eu gosto de estar no parque por causa das pessoas nos parques.
E no geral eu sou uma pessoa amante do teatro. Eu gosto do Centro Cultural FIESP, gosto bastante. Gosto dos SESCs, adoro os SESCs, sou apaixonado pelo projeto dos SESCs, do Itaú Cultural, tudo mais que seja ligado a bancos. Gosto da parte de cultura, mesmo que o banco se utilize daquilo com a isenção de imposto, eu gosto do espaço, gosto dos trabalhadores e trabalhadoras que ali tem, que são pessoas muito foda, são pessoas - eu gosto de falar essa palavra, ‘foda’, porque ao meu ver não é nenhum palavrão e sim uma palavra como outra qualquer.
Deixa eu ver… Sou apaixonado por São Paulo, por mais contradições que São Paulo possua, I love São Paulo, te quiero São Paulo, eu amo São Paulo, ich liebe dich, São Paulo, eu falo em mil idiomas possíveis que eu amo morar nessa cidade. Mesmo que eu more no município adjacente, eu me considero morador de São Paulo, pelas histórias, pelos projetos, e principalmente pelas pessoas que eu amo, que eu quero e vivem em São Paulo.
(01:02:14) P/2 - Luiz, você estava contando um pouco…. Você passou pelo processo de retificação do seu nome e dos seus documentos. Eu queria saber como foi esse momento para você, o que você sentiu. E também, se você quiser contar sobre o seu nome, Luiz Fernando, o que você quiser contar sobre esse momento.
R - O meu nome, Luiz Fernando… Vou começar de trás para frente, porque eu odeio seguir roteiros. Luiz Fernando eu escolhi porque eu sempre gostei de novela mexicana, tá? Eu sempre amei novela mexicana, [sou] fã de Thalia, Gabriela Spanic, entre outras, mas teve lá a dona Maria del Barrio e tinha o Fernando Colunga. Meu ideal de homem era ele e na novela ele se chamava Luiz Fernando. Eu falei: “Esse vai ser o meu nome.”
Todo mundo quer saber a história desse nome, eu digo “é essa história”, e o povo fala: “Gente, mas é uma coisa tão besta.” Eu digo: “Mas ele, para mim, no sentido simbólico, significava o que eu queria ser.” Essa coisa masculina, essa coisa que as pessoas olhavam o Luiz Fernando e até rima o negócio, por isso que é com z e não com s, então eu falei: “Esse é o meu nome.” [Era] aquilo que eu queria ser, então eu escolhi.
O processo de retificação foi muito doloroso, porque você é duas pessoas. As pessoas são extremamente visuais, se eu me apresento assim, beleza, só que quando o documento está [diferente] a pessoa buga. Na cabeça dela, eu não sou uma pessoa; eu sou um mutante, eu não tenho definição. A pessoa passa a me destratar, fica dando risada, ela debocha, ela fala: “É Maria Macho”. Eu, de homem, viro maria-macho, aí depois eu viro hermafrodita. Ela não sabe nem o que ela está falando, ela vai se perdendo, e aquilo vai me passando uma impressão de que eu sou o errado, e eu sei que não sou errado. Mas de tanto a pessoa repetir o preconceito dela, a ideia preconcebida dela na forma da discriminação, na ideia de afastar, de alijar do convívio, você fala: “Mano, eu estou errado.”
Pronto, apagou tudo. Você se isola, você passa a entender que as pessoas estão certas, você não. Eu sei conscientemente que não, mas inconscientemente, de tanto apanhar, você se sente mal.
Eu só tive a libertação desse conflito quando meu nome foi retificado e eu tive a possibilidade no cartório, mas não foi fácil assim não, tá? Porque o processo foi dividido em dois: o primeiro nome, que é o prenome, e depois o gênero. Consegui o prenome primeiro. O gênero eu não tinha conseguido, só que aí o que aconteceu? O tabelião chefe do cartório onde eu nasci leu a sentença e falou: “Tem um problema nessa sua sentença.” Eu falei que não. Eu já estava tendo um troço, ele falou assim: “Olha, eu vou te dar uma notícia muito triste. Só o seu nome está dizendo aqui para mudar, o gênero não.” Eu falei: “Mas como eu vou me chamar Luiz Fernando e o gênero é feminino, meu filho, me explique isso?” Aí ele falou: “Não me pergunte, mas eu vou dar um jeito.” Sei lá o que ele fez, só sei que voltou a certidão Luiz Fernando Prado Uchôa, gênero masculino.
Olha como eu digo que religião não é desculpa para o preconceito. Ele [ficava] lá, falando de Jesus… Quando a pessoa fala muito de Jesus é evangélico. Ele falou por último: “Olha, vai ser feliz. Se era esse nome que te impedia de fazer as coisas, vá, meu filho, vá, porque o meu Jesus é vivo, meu Jesus não quer saber se você é x, y. Ele quer que você seja feliz, se você é assim. Não entendo o que você é, quem você é, mas vá. Você quer esse documento?”
Menino, mas naquele dia eu chorei, peguei aquele homem, abracei aquele homem, agarrei aquele homem. Acho que ele não conseguia nem respirar. Ele poderia me negar a dignidade, mas não, ele deu um tapa na minha cara, ele me deu a dignidade para poder ter um emprego e ter uma vida. Se não fosse ele ter colocado masculino naquela certidão, a minha vida não teria existido, porque eu teria que esperar mais três anos para ter o gênero na documentação, e aí a minha vida ia virar mais um inferno. Ao invés de três sem emprego, seriam seis; ao invés de mais humilhação, ia ter muito mais humilhações e muito mais descasos comigo, porque as pessoas são extremamente visuais e elas querem um documento, elas querem uma definição. A nossa sociedade é pautada nisso, então quando as pessoas falam “você é a favor, você é contra…” Meu filho, na pauta da não-binariedade eu sou aliado. Não é minha causa principal, eu não reivindico isso; eu não sou contra a existência de ninguém, eu só quero que cada um tenha o que é seu de garantia. Se você é não-binário, você vai lutar pela neutralidade da certidão, você não é como, eu que luto… As lutas não podem ser invalidadas, você tem que saber o seu papel de causa primária e causa aliada.
Hoje eu sou aliado da causa indígena, da causa étnico-racial, que é ligada à questão do movimento preto, só que eu não sou uma pessoa preta. Meu pai foi uma pessoa preta, mas eu não, porque eu tenho o privilégio dessa melanina mais clara, por mais que eu tenha traços que sejam negróides, enfim. Mas eu não sou uma pessoa negra, não sei o que é racismo; eu sei o que é transfobia, homofobia, o que é gordofobia, todas essas coisas eu enfrento. Por mais que eu esteja em um processo de emagrecimento hoje, as pessoas me perguntam: “Você não vai comer tudo isso, senão você vai engordar, né?” Sabe? Essas narrativas eu sei, então ter um nome, ter dignidade, ter a possibilidade de ser você é a melhor coisa que a vida pode te dar, e que é negado a nós, porque a sociedade acha que simplesmente por nascer você tem que ter uma história carregada.
A meu ver, nós deveríamos ter uma possibilidade de se desenvolver e depois escolher muitas coisas da sua vida, porque tudo é número, nós não somos nomes, somos números, meu povo. Eu sou o número de CPF que eu tive que dizer, número de RG, título de eleitor, de PIS, nós somos um emaranhado de números, e os nomes, muitas vezes, são utilizados nas situações para marcar e delimitar gênero, mas não determinam coisa alguma, porque as pessoas colocam apelidos nas outras, muitas vezes, sabe? Porque elas criam uma relação com o seu campo visual, elas querem saber quem você é, se você é homem ou mulher, a preocupação da humanidade é essa, e com quem você deita. Para partir do pressuposto de como eu vou tratar, se você é homem, cis, heterossexual, você é o parça; se você é homem cis gay afeminado você é quem eu posso às escuras ter um negócio, mas não pode estar na minha vida; se for travesti, eu posso matar.
É muito complexo a gente pensar nessas questões, sabe? Dependendo de como você é e você se manifesta vou te respeitar ou não, eu determino isso, sabe?
É isso que eu tenho para te dizer, que o nome poderia muito bem ser escolhido ao longo da vida e que essa fixação doente que as pessoas têm por chá revelação, por não sei o que, é uma forma de oprimir corpos, de oprimir existências. Se eu oprimo um corpo, eu oprimo e imprimo toda minha perseguição àquele ser, àquela subjetividade. Isso é um crime, isso deveria ser crime capital
(01:10:46) P/1 - Posso continuar, Bru? Então vamos lá.
Luiz, eu queria que você falasse um pouco sobre a sua atuação nesses conselhos estaduais. Como você lida com isso? As lutas, os avanços que você consegue enxergar, ou não.
R - Hoje eu percebo o seguinte: a gente tem um cenário político complicado, porque a gente não pode desconsiderar o prefeito e o governador que temos. Eu tenho questão LGBT, já tinha ao longo dos anos, mas hoje a gente tem uma questão no conselho estadual. A gente não tem uma dotação orçamentária prevista para o funcionamento desse conselho, a gente tem uma gestão que saiu. As pessoas que estavam no governo do conselho [saíram], estão demorando para nomear as pessoas novas via diário oficial e isso impede com que o conselho se efetive. Estou falando do Conselho Estadual LGBT, do qual eu sou conselheiro.
Os outros conselheiros tiveram um corte nas suas atuações de verba, corte de espaço, corte de um monte de coisas. Colocaram no Conselho Estadual da Mulher uma mulher que reproduz machismo e misoginia, ligada à igreja.
O que estão fazendo com esses conselhos? Estão esvaziando, como em Guarulhos. Hoje os espaços em Guarulhos, o município em que eu resido, são esvaziados, porque as pessoas não acreditam mais naquele espaço. Porque eu tenho um atual governo que emparelha, faz as reuniões em horário de trabalho dos servidores, e eu, sociedade civil, se quiser me adequo, senão… E não tem dotação orçamentária para esse povo trabalhar.
Conselho não funciona só de boca. As pautas do conselho têm que estar em uma LDO. Se você não está na Lei de Diretrizes Orçamentárias, se você não está alinhado com o processo de organização da sociedade civil, é isso que resta.
Eu sigo nesses espaços por acreditar que apesar do esvaziamento, apesar do sucateamento, apesar desse projeto, nós não devemos abandonar os espaços e sim questionar os espaços, aprimorar esses espaços de discussão, de fomentação, de política pública social. Se a gente abandonar, vai ficar como? A gente tem que seguir resistindo, mesmo diante desses desafios, para a gente seguir pontuando.
Tem eleição ano que vem, vamos nos envolver, vamos nos engajar. Vamos conhecer, vamos entender mais sobre como funciona a política municipal para a gente não cair em esparrela. “Ah, mas eu não entendo nada.” Gente, tem um site, Politics; ele é um site muito bom, muito básico, feito por pessoas de movimento social, feito por jornalistas, que vai te explicar o que um prefeito faz, o que um vereador faz, para você entender um pouquinho, e isso deveria ser ensinado nas escolas desde o primário.
O primeiro livro que deveria ser ensinado, adaptado para as crianças, é a Constituição Federal. Tem um projeto muito bonito que adaptaram O Capital para as crianças, o pessoal da [Editora] Boitempo fez. De verdade, eu queria que adotasse essas informações para crianças, para desde crianças entenderem o que é uma constituição, o que é uma lei, o que é um decreto, o que é um inciso, para entender que não é chato entender dessas coisas, porque se você não entender disso, você não vive em uma sociedade organizada, em um estado democratico de direito; você não entende nem o que eu acabei de falar. Eu não estou dizendo que ele é perfeito, ele foi pautado para defender interesses da burguesia, mas se você não entender como ele funciona você não pode reivindicar coisas dentro dele para fazer sua vida ter um pouco de qualidade e lutar por uma melhoria de fato, para a gente ter um sistema em que a gente consiga fazer com que a classe oprimida, em todas as suas amplitudes, consiga espaços e consiga respeito pelo seu trabalho.
É inconcebível hoje você valorizar o bem e não valorizar a pessoa. O bem vale mais que a pessoa, uma casa vale mais que o trabalho, do que o exercício, o pensar e o executar de alguém, e eu estou falando isso da população LGBTQIAPN+, em que poucos têm a oportunidade de intelectualizar o trabalho e a maioria vive da produção, e dentro dessa produção, o pouco que ela tem, ela tem que destinar para um entretenimento x, para ela poder viver em uma bolha e viver o que ela é. Isso é criminoso. A cidade tem que ser para todos, todas e todes, o espaço urbano tem que ser para todos os corpos, e eu estou falando isso porque banheiro para homem trans, coitado, dependendo do lugar, meu filho, salve-se quem puder, porque as pessoas acham que ser homem é só urinar em pé, não tem um outro tipo de fazer xixi, e não sabe que isso é anti-higiênico, não sabe que isso é horrível para outras pessoas que utilizam e até para esse homem, que o ideal seria urinar sentado para não respingar tanto no banheiro, proliferar bactérias etc. Isso é outro assunto, mas que está dentro disso, do espaço urbano.
A gente tem só um banheiro na nossa casa. Eu não tenho banheiro a, banheiro b, banheiro c, só que para a gente discutir diversidade e diversidades, a gente precisa discutir a arquitetura dos espaços e como eles são opressores, como eles remodelam a lógica cis heternormativa, de como eles ainda não conseguem se abrir para discussões de como uma questão do banheiro, uma questão nas escolas, nos espaços urbanos… Gente, por favor, o problema é esse. Vamos fazer um corredor de cabines, pronto, ninguém vai fazer nada com ninguém. Mas isso é aqui, em uma sociedade machista, misógina, LGBTfóbica, patriarcal, que educa homens para não expressar sentimentos, e homens que acham que só a corporeidade masculina deve dominar. Não é o banheiro que está errado, mas sim essa lógica, e sim, essa lógica que diz que eu, por ser um homem trans, não posso reivindicar uma masculinidade. Essa lógica dessa sociedade que me fez sofrer e viver uma vida que não era minha, viver tendo que pensar que o erro era meu e não dos outros, e não existe erro nenhum em ser quem eu sou.
(01:17:24) P/1 - Eu queria fazer uma pergunta que tem a ver um pouco com o que você falou sobre vários interesses que você tem. Você tinha dito antes da entrevista que além da formação que você teve em Filosofia e em Comunicação Social você também tem uma formação em Pedagogia e em Letras, então você é uma pessoa de muitos interesses. Queria que você comentasse um pouco sobre esses últimos, sobre Pedagogia e Letras. O que te atraiu na pedagogia, o que te atraiu na literatura? Conta um pouquinho para gente.
R - O que me atraiu na pedagogia foi, na verdade, uma necessidade. Eu sempre quis ter feito magistério, mas não consegui porque eu estava no curso de processamento de dados e não consegui conciliar os dois. Acredito na educação como uma ferramenta de transformação de pessoas, que transforma o mundo, linha freireana total. Acredito na educação como essa possibilidade de despertar e eu sempre amei lidar com educação.
Eu tinha meu carrinho com quatro, cinco anos de idade… Minha mãe me contava que eu tinha um carrinho. Eu colocava caderno, giz de cera; eu nem sabia ler e escrever direito, fui aprendendo a ler e escrever com essas coisas, e dava aula para os ursos, para as bonecas. Eu tinha lousinha, tinha tudo, sempre gostei dessa coisa, então a pedagogia veio para isso.
Pedagogia não é só lidar com a infância, mas é aprender a estruturar processos para ministrar um curso, um treinamento; existe um conteúdo, mas como eu vou trabalhar esse conteúdo? Quais são os processos ali? Pedagogia é um campo muito grande, dá para você trabalhar em empresas, hospitais, em muitos lugares. As pessoas não têm essa visão da pedagogia, infelizmente, e é muito rebaixado, é um curso que as pessoas fazem para ter porta de entrada para um emprego. É o máximo que elas podem alcançar, porque o ensino superior no Brasil ainda tem essa discrepância de acesso, devido à meritocracia do vestibular, fábrica de cursinhos, essas universidades particulares, enfim, tudo é negócio, né? Não é preocupado com a educação, com os interesses, possibilitar acesso etc.
A pedagogia se tornou esse curso, infelizmente as pessoas não conseguem entender o poder que tem um pedagogo.
O que me fez me interessar por Letras é a questão da palavra. Eu sou uma pessoa obcecada pelas palavras, o som delas, as letrinhas delas, porque sem entender essa possibilidade, você não se comunica com ninguém. Eu adoraria falar todos os idiomas do mundo para poder entender mais sobre as pessoas, para entender como elas pensam, como elas encaram o mundo, como elas sofrem, como elas são felizes, como elas produzem, ou como elas vivem o ócio, porque só com isso você tem essa informação, não toda, mas você consegue captar essências, porque língua é isso. Por mais que uma pessoa seja completamente de ciências exatas, ela escolheu um meio de se comunicar muito mais pragmático do que eu, que venho utilizando de uma série de ferramentas para poder passar a mesma mensagem. Ela fez uma escolha, mas não deixa de ser linguagem. Tudo é linguagem, a máquina fala uma linguagem.
Letras é isso, é a possibilidade de despertar, possibilidade de ver linguagens através da literatura, através da gramática; as pessoas odeiam gramática, mas ela norteia a logicidade do nosso idioma. Pode ser opressor? Pode, a partir do momento que eu utilizo muito exemplo masculino executando tarefas, a partir do momento que eu nego ao outro o conhecer, que eu digo: “Você é burro porque você não sabe pôr virgula.” Não, você não é burro, você foi uma pessoa impossibilitada de ter esse momento de conhecer, mas agora você pode conhecer. Você não vai ser menos ser humano porque não conhece o uso de uma vírgula, ou o uso de uma crase, sei lá o quê.
A nossa língua é bela, mas ela também pode ser opressora, porque ela não é nossa. Nosso idioma originário seria tupi-guarani, qualquer outro, mas é isso que me fez partir para essas áreas, foi entender que educação não é isso que as pessoas pensam, um meio de produzir opressões, “eu sou meu diploma”, “eu sou mestre, doutor, pós-doutor,” “eu tenho um currículo Lattes”. Esse currículo Lattes deveria incentivar as pessoas a produzir e a pensar; não, virou uma ferramenta de dizer que eu sou um sujeito que produz incessantemente, que eu sou um sujeito que é válido pra ser ouvido, e que você que não tem não é nada, você não é ninguém, você não merece nada, porque você é um mero produtor. Você é um mero ser que existe para produzir para alguém que vai se aproveitar do seu trabalho, porque tem dinheiro para lhe pagar.
São essas coisas que me incomodam, Genivaldo, é as pessoas não entenderem que o conhecimento tem que ser uma ferramenta de libertação, uma ferramenta de autoquestionamento, não uma ferramenta para eu ficar apontando quem é mais, quem é menos. Isso é pobre, não tenho nem palavras para descrever o quanto isso é ridículo.
(01:22:55) P/1 - Luiz, a gente vai para as perguntas finais. Essas são um pouco mais pessoais, tá? A primeira é: quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - As coisas mais importantes para mim hoje, se eu pudesse… É que eu não gosto muito de hierarquização, mas vamos lá.
A minha mãe é uma pessoa importante na minha vida. Os meus irmãos, meus primos, meu pai e o meu filho de família LGBT, meus beneficiários, minhas beneficiárias do programa Transcidadania, as pessoas que eu conheço no sentido político de pensar, essas são pessoas importantes para mim.
Coisas: meu livro, eu tenho muito orgulho dele, convido as pessoas a adquirir. Deu muito trabalho, pretendo fazer outro. Meu trabalho, mesmo com os tensionamentos existentes, a militância, é uma coisa importante; o ativismo, mesmo com as dores de cabeça, com tudo que ele me provoca, mas faz parte de mim.
A academia também se tornou uma coisa importante - ontem eu não fui e me senti muito mal - porque eu fiz amizades lá, e porque fazer exercícios físicos está me ajudando bastante a lidar com algumas questões. E amigos, amigos que me apoiam, que apoiam meu trabalho, que apoiam e compartilham as minhas coisas, eu também compartilho as deles. Acho que é muito isso, pessoas e isso que eu disse. São coisas que me norteiam, que me proporcionam ser essa pessoa que eu sou hoje.
(01:24:59) P/2 - Luiz, você estava falando um pouco… Você acabou citando o Transcidadania. Eu queria saber como foi o seu ingresso no trabalho do Transcidadania e se tem alguma história marcante sua no Transcidadania que você queria compartilhar.
R - Em junho de 2017 eu vim trabalhar aqui com a parte de comunicação. Fiquei por um ano na parte de comunicação, nas redes sociais, fazendo parte de eventos etc. No final do ano de 2018, o pedagogo que tinha aqui pediu para sair, e o meu gestor, vendo que eu sempre estive a par dessas questões, falou: “Você assume a pedagogia do Transcidadania?” Eu falei “tudo bem”, aí assumi. Estou desde 2018 como pedagogo e assumi esse desafio.
Fiz parte de comunicação e eventos e antes de ser pedagogo eu era o orientador socioeducativo, ou seja, eu era o responsável por trazer as atividades extracurriculares, com cursos, monitorar as visitas externas; depois, quando ele saiu, eu assumi a pedagogia de vez.
Foi um desafio, porque até então muitas meninas e meninos aqui, quando sabem que eu sou um homem trans, é um espanto, porque para eles e para elas, eles não conhecem alguém que esteja à frente, alguém trans, próximo deles à frente, tecnico, próximo, e que tenha a passabilidade. Isso pode ser uma armadilha, mas para eles, quando eles veem, eles percebem que é possível também, percebem que não são, eles, elas e elus, não são só atendidos, então isso é muito bom.
A perspectiva de uma história boa para contar… São tantas, são tantas histórias, que nossa! Tem a história de uma beneficiária que era da Bahia. Ela veio para cá, foi de uma das primeiras turmas que eu peguei. Ela tinha um grande sonho, que era aprender a ler, e quando ela aprendeu a ler, ela chorou muito. Ela falou: “Nossa, por sua causa eu sei ler.” Eu falei: “Não, por minha causa não, por sua causa, do seu esforço.” Ela falou: “Ninguém nunca teve paciência para me ensinar a ler.”
Essa é uma história. Eu tenho histórias recentes, das minhas turminhas de alfabetização e letramento, e quando elas conseguem escrever o nome, quando as letras delas melhoram, elas falam: “Nossa, quando eu entrei eu não sabia nem escrever o meu nome, agora eu sei escrever meu nome certinho, na linha. Minha letra está melhorando. Eu estou entendendo, depois das nossas aulas, que estou evoluindo, que sei fazer conta, que eu sei ler.”
Apesar de tudo, apesar da burocracia, de coisas que te engolem, quando você ouve de uma pessoa que ela, motivada pelos exercícios, pelas coisas que você faz, ela aprendeu a ler, aprendeu a escrever, aprendeu a olhar o mundo por uma outra perspectiva, você se sente muito satisfeito.
Agora a gente está em um processo de pecinha de teatro. Não é que o objetivo seja a peça de teatro, mas sim trabalhar as habilidades comunicativas, a questão do raciocínio lógico, o trabalho em equipe. Ver que elas estão aderindo, que elas estão comprando roupa, que a gente comprou camiseta, que elas falaram: “Eu vou fazer”... Mesmo elas brigando, mesmo naquela balbúrdia que é sempre, mas elas aderiram. A questão do lanchinho da tarde, cada uma traz alguma coisa para elas confraternizarem, fazer isso delas - porque a minha turma é só mulheres, tá? É uma turma que eu vejo duas vezes por semana.
Estar com elas, fazer com que elas percebam que elas são importantes, que elas podem ler, que elas podem escrever, que elas podem atuar, que elas podem ser quem elas quiserem e que ninguém vai dizer que elas não podem é muito bom, é prazeroso.
(01:30:13) P/1 - Vou te fazer uma pergunta sobre a Família Stronger. Como é que foi a sua entrada, como é que você conheceu? Conta um pouco para gente.
R - Eu entrei na Stronger de uma forma muito distinta, porque os membros normalmente entram… Eu ia muito nas reuniões da Associação da Parada de São Paulo, ia de forma independente. Eu já estava sem instituição, já estava sem alguma questão…
O que aconteceu? Eu via muito o Elvis lá, ele me via muito. Aconteceu uma coisa muito chata comigo e ele falou: “Não, você não vai ficar sem instituição, eu vou te adotar como filho.”
Ele foi uma pessoa que me ajudou muito em um período em que eu fiquei desempregado. Ele me ajudava financeiramente, me ajudava com motivação, me ajudou muito. Nunca me negou auxílio, nem nada do tipo. Foi muito interessante, porque ele me adotou. Ele comprou [a ideia]. Falou com o Roberto, que é o fundador da família: “Eu quero adotar o Luiz Fernando. Aconteceu isso, aconteceu aquilo com ele.” Eles me abraçaram, e aí eu venho com essa pegada política para a Stronger, junto com ele, aí a gente funda tipo um núcleo político que tem lá, em que a gente discute as coisas de conjuntura política, processos que a gente queira desenvolver para a família, enfim, a gente vai compartilhando.
Entrei na Stronger já mais velho, aos vinte e poucos anos; geralmente as pessoas entram na Stronger aos treze, quatorze anos, e eu entrei muito mais velho na Stronger. Eu entrei com acúmulo de militância, entrei com questão de movimento estudantil, movimento de partido político, movimento LGBT. Fui conhecer outro tipo de ativismo e posteriormente militância, mas não o que eu estava acostumado. Geralmente, os membros da Stronger conhecem a Stronger como porta de entrada; eu não, eu conheci a Stronger como uma outra possibilidade, de entrar em um lugar que você tem uma configuração familiar de acolhimento e também de disputas, né? Porque quando você entra em uma família você tem que disputar seu espaço, mostrar quem você é, para vocês saberem: “É filho de fulano. Esse filho de fulano é assim, ele se interessa por essas coisas”, porque quando você entra em uma família LGBTQIAP+ cada um ali já tem seu espaço. “Quem é você, estranho que está entrando aqui?” Aí você tem que se impor, você tem que se colocar, você tem que dizer que você quer o seu lugar, não o lugar do outro, porque assim são as relações humanas.
Entrar em uma família que veio do Largo do Arouche, que veio da periferia, que veio do cúmulo da exclusão, entender essa realidade muito mais de perto me deu uma noção do que eu deveria fazer pela militância e também falar para essas pessoas que nem sabiam o que era um homem trans. “Gente, eu estou aqui. Eu não estou falando só o que é, não, eu sou, tá? Tá aqui, o livro humano, sou eu.” E isso foi muito bom, isso foi uma coisa que me deu um gás novo, me fez descobrir novas pessoas, novas perspectivas e sentir um acolhimento genuíno; me fez sentir uma relação de irmão, de pai, de tio, de tia, e que também essa questão de gênero é muito ampla em família LGBTQIAPN+. Você, Genivaldo, pode ser mãe, eu posso ser mãe, isso não afeta a minha identidade de gênero, mas sim o papel que eu quero fazer na vida daquele indivíduo, entendeu?
(01:34:06) P/1 - E quais são os seus sonhos para o futuro, Luiz?
R - Eu sonho em ter doutorado, pós-doutorado, em aprender mais idiomas, em viajar um pouco o mundo para ampliar essa perspectiva de mundo que eu tenho, até para descobrir novas formas de organização social, cultural, descobrir novas pessoas também, por que não? Que as pessoas avancem suas mentes e seus corações acerca das diversidades, e que a gente consiga fazer com que as pessoas não tenham que lutar para comer um prato de comida. Que a gente alcance um lugar em que o conhecimento seja prioridade e não a técnica. Acho que meu sonho seria isso, e publicar mais livros.
Estou sendo humilde, só que não, mas é isso que eu sonho. Por isso que a gente sonha, por isso que a gente tem vontades, que a gente anseia coisas, porque se tudo estivesse resolvido não teria porque sonhar.
(01:35:19) P/1 - E qual legado você gostaria de deixar, Luiz Fernando?
R - O legado de alguém que lutou em prol das transmasculinidades serem vistas, reconhecidas como identidades possíveis e reais, e não como fantasia de alguém, não como uma impossibilidade de viver, e sim como mais uma possibilidade. Eu quero homens trans, trans masculinos ocupando todos os espaços, sejam espaços que eu goste ou não, mas eu quero eles como uma identidade comum. Tem homem cis em tudo que é lugar, por que não tem homem trans? Por que não tem trans masculino? Mesmo em coisas que eu não queira, não sou eu que tenho que querer, eu quero que essas pessoas ocupem, ocupem todos os espaços para as pessoas entenderem: a gente existe de forma diversa, está bom? Vão contar nos livros de história essas identidades, para não sermos mais apagados como fomos até agora, porque existiram outros homens trans - até reis, até uma coisa que eu não concordo, que é a monarquia, mas eu queria [saber]. Até santo tem, São Marino, que dizem que foi um homem trans, e outros não, tem toda uma questão, mas eu quero saber mais. Mesmo que essa pessoa represente aquilo que eu não goste, eu quero a existência dela escrita, para as pessoas entenderem que não é uma ficção, que não é uma utopia, mas sim uma realidade.
(01:36:46) P/1 - A gente vai para a última pergunta, Luiz. Como foi contar um pouquinho da sua história para a gente hoje?
R - Foi um processo de se desnudar. Foi um processo de contar muita coisa que eu nem lembrava, foi um processo de lidar com emoções que eu não esperava. Muitas vezes eu ficava: “Será que eu vou chorar? Será que não?” Porque foi um processo emocionante.
Estar falando de uma vida é como calçar os sapatos daquela sua outra realidade. O Museu da Pessoa faz um trabalho primoroso, que é fazer com que histórias invisíveis se tornem visíveis. É descartar a ideia de que fama e sucesso sejam os únicos ferramentais que te possibilitem contar a sua história, porque toda a história tem que ser contada.
É isso que eu senti. Fazer parte de um projeto que toda a história merece ser ouvida e contada é um privilégio. Eu queria que mais pessoas participassem, porque é um exercício terapêutico. Não substitui a terapia tradicional, mas lidar com você mesmo diante de uma entrevista é muitas vezes aprender a valorizar cada coisa que você passou, é valorizar cada instante que você respira, pois muita gente nem respirar direito respira, e essa respiração pode ser útil para fazer do mundo um lugar melhor para você e para outras pessoas. É isso que eu senti nesse processo, e eu recomendo a todo mundo, que se quiser, faça seu próprio museu da pessoa, para proliferar nas redes sociais museus das pessoas virtualmente, parar de usar as tecnologias somente para o lado superficial, “eu tenho, você não tem.”
Vamos nos avaliar, há beleza em tudo, há feiura em tudo, e pode ser feiura, beleza, enfim, cada um com seu ponto de vista. Vamos aprimorar as contradições, vamos nos ouvir, porque ouvir e falar é um exercício maravilhoso, para demonstrar que ainda somos humanos e pretendemos continuar humanos. Não vamos imitar máquinas, senão vamos estar perdendo toda a beleza da contradição e a beleza da humanidade, pois o ser humano tem dois lados. Vamos valorizar essa humanidade, essa contradição, esse ouvir, esse falar, essa contradição que existe em uma pessoa ou em várias pessoas, apreciar, mesmo que você não goste de uma coisa, mesmo que você tenha aquele ranço, mas pelo menos é humano. Não vamos nos robotizar ao ponto de só ouvir aquilo que me apetece, só fazer aquilo que seja palatável. Vamos sentir também o contraditório, é isso que eu convido as pessoas a fazerem.
Amei essa experiência do museu, por mais museus das pessoas, ou da pessoa. Tem que criar a campanha, #museu.
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