P1 - Genivaldo Cavalcanti Filho
P2 - Grazielle Pellicel
R - Evelyn Mendes
P1 - Então, vamos lá. Evelyn, boa tarde!
R - Boa tarde.
P1 - A gente vai começar, então, a sua entrevista agora. Eu vou pedir pra você repetir pra gravação o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Tá bom. Meu nome é Evelyn Mendes da Silva. Nasci em Porto Alegre, em 1974. Faz tempo! Bom, já sou jovem há bastante tempo, digamos assim. (risos) Não preciso dizer quantos anos eu tenho também, né? Não precisa? Não precisa. (risos)
P1 - Não. Não precisa.
R - Ah, então está bom. (risos)
P1 - E qual o nome completo dos seus pais?
R - Ai, eles não se importam em ficar aparecendo em entrevista, não. Depois eu explico por quê. (risos)
P1 - Tudo bem. Sem problemas.
R - Eu não tô… Está mutado. Agora voltou.
P1 - Desculpa. É muito sensível isso daqui. A gente clica pra soltar e às vezes… Na mesma hora. Eu queria começar conversando um pouquinho sobre a sua infância. O que você gostava de fazer? O que você gostava de comer? Como era, né?
R - (risos) O que eu gostava de comer? Eu gostava de comer de tudo. O que tinha na frente, eu comia. Eu não tinha esse problema com comida. Mas bah, gostava de comer, na época, sei lá... O que eu comia bastante na minha infância? Nossa, eu tenho umas coisas que ainda lembro da minha infância, assim, que era uma coisa bem boba, que era pão torrado. Assim, eu lembro que... É uma coisa muito boba, né, mas eu lembro que eu acordava, algumas vezes... Eu morava numa casa muito pequena, assim, né? Então, o quarto onde eu morava era bem ao lado, assim, de onde tinha a cozinha da minha casa. E muitas vezes, assim, não lembro se era fim de semana, de semana, mas a minha mãe acordava mais cedo e ia fazer café. E eu lembro que acordava com cheiro de pão torrado, assim, sabe? Sabe acordar com cheiro de café? Sabe? Sendo feito, assim? Daí tu acordava, nossa, era um cheirinho, assim, pra mim é um...
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P2 - Grazielle Pellicel
R - Evelyn Mendes
P1 - Então, vamos lá. Evelyn, boa tarde!
R - Boa tarde.
P1 - A gente vai começar, então, a sua entrevista agora. Eu vou pedir pra você repetir pra gravação o seu nome completo, o local e data de nascimento.
R - Tá bom. Meu nome é Evelyn Mendes da Silva. Nasci em Porto Alegre, em 1974. Faz tempo! Bom, já sou jovem há bastante tempo, digamos assim. (risos) Não preciso dizer quantos anos eu tenho também, né? Não precisa? Não precisa. (risos)
P1 - Não. Não precisa.
R - Ah, então está bom. (risos)
P1 - E qual o nome completo dos seus pais?
R - Ai, eles não se importam em ficar aparecendo em entrevista, não. Depois eu explico por quê. (risos)
P1 - Tudo bem. Sem problemas.
R - Eu não tô… Está mutado. Agora voltou.
P1 - Desculpa. É muito sensível isso daqui. A gente clica pra soltar e às vezes… Na mesma hora. Eu queria começar conversando um pouquinho sobre a sua infância. O que você gostava de fazer? O que você gostava de comer? Como era, né?
R - (risos) O que eu gostava de comer? Eu gostava de comer de tudo. O que tinha na frente, eu comia. Eu não tinha esse problema com comida. Mas bah, gostava de comer, na época, sei lá... O que eu comia bastante na minha infância? Nossa, eu tenho umas coisas que ainda lembro da minha infância, assim, que era uma coisa bem boba, que era pão torrado. Assim, eu lembro que... É uma coisa muito boba, né, mas eu lembro que eu acordava, algumas vezes... Eu morava numa casa muito pequena, assim, né? Então, o quarto onde eu morava era bem ao lado, assim, de onde tinha a cozinha da minha casa. E muitas vezes, assim, não lembro se era fim de semana, de semana, mas a minha mãe acordava mais cedo e ia fazer café. E eu lembro que acordava com cheiro de pão torrado, assim, sabe? Sabe acordar com cheiro de café? Sabe? Sendo feito, assim? Daí tu acordava, nossa, era um cheirinho, assim, pra mim é um cheiro de infância, assim, sabe? Então, é uma das coisas que eu lembro da minha infância com relação à comida, sabe? É uma coisa, assim mais… Com relação à comida, é muito bobo pensar de pão torrado, mas é uma coisa que me remete à minha infância, sabe? Se for pensar com relação à comida, a minha mãe também fazia muita, coisa muito... Eu lembro que, apesar de ser uma casa pequena, estava sempre cheia. Fim de semana todo mundo ia pra lá, porque a minha mãe cozinhava muito bem, na realidade. E sempre fazia lasanha. Ou era… Tinha um pátio bem grande e sempre tinha churrasco, coisas assim. Mas o que me marcava mesmo era aquela coisa muito simples, assim: tu acordar com aquele cheirinho, assim, de café, café da manhã, sabe? Então era uma coisa bem simples que me remete muito à infância. Então, é uma coisa que, hoje em dia, é a coisa mais difícil. A não ser que eu programe a Alexa pra fazer: “Alexa, faça o café da manhã e torre o pão”, (risos) eu não vou ter isso hoje em dia pra fazer pra mim, entendeu? Então, só que daí eu tenho que pegar e, de noite, preparar tudo pra de manhã chegar: “Alexa, faça o café da manhã”, entendeu? Então, é uma coisa um pouquinho... Não é tão bacana quanto tu, do nada, num dia, assim, acordar com o cheirinho de pão torrado, café, sabe? Então, são coisas assim que, se perguntar, é uma coisa que me vem muito à cabeça: aquele cheirinho de pão torrado. E de café sendo feito, sabe? E tu acordar por causa do cheiro, sabe? Então, aquilo ali é uma coisa que me remete, assim. Tu me perguntou agora, me veio essa lembrança afetiva que eu tenho, em relação a isso. Então, claro que a minha mãe fazia lasanha e fazia isso, tinha um guisado que ela fazia com ovo e não sei do que, que era bem gostoso também, sabe? Então eu acho que as coisas mais simples são as coisas que mais me remetem à comida. Mas eu comia de tudo, acho que não tinha muito problema, assim. O que eu não devia comer? Eu não lembro o que eu não comia. Eu não lembro de nada que eu não comia, pra falar bem a verdade. Eu comia de tudo (risos) na minha infância, não tinha muito problema. Eu não sei. Realmente, eu não lembro o que não comia, sabe? (risos) Acho que colocou na minha frente, eu estava comendo. Não estava nem aí. Acho que eu não tive nenhum problema com relação a isso. Sei lá.
P1 - E do que você gostava de brincar?
R - Na época, olha, brincar era um problema. Porque tinha umas brincadeiras que me foram proibidas, né, na infância. Então, tinha algumas coisas… Eu lembro que algumas brincadeiras não eram brincadeiras de meninos, que me foram proibidas de fazer, sabe? Então, me restou brincar com os meninos. Eu não poderia fazer nenhuma brincadeira que fosse de menina. Então eu não poderia brincar, sabe? Então até com certas pessoas eu era proibida até mesmo de conversar, porque isso poderia remeter a algumas questões. Então, brincadeiras eram questões um tanto complicadas, assim, e complexas. A família [era] um pouquinho repressora com relação a isso, sabe? Ela não entendia nada, o que poderia estar passando ou não passando. Ela realmente me reprimiu em muitas questões, mas também por pura ignorância e não entendimento. Naquela época… Vê bem, eu já não tenho vinte e poucos anos, nem trinta anos, eu já estou na casa dos quarenta e poucos, sabe? Então, tu vê, década de oitenta, era uma questão que ninguém falava nada: questões Lgbts, questões de transexualidade. Nem existia. Tu via na tevê, simplesmente, a Roberta Close, que era uma questão bem diferente do que a gente tem hoje em dia, sabe? Então, eram simplesmente coisas que eram completamente fora de qualquer tipo de realidade alcançável para qualquer pessoa naquela época, entendeu? E tu nem pensava nisso. Tu nem tinha ideia de como é que seria isso. Então, a repressão por parte das pessoas te fazia ter um entendimento de vida bem precário, sabe? Então, o que me sobrava era tentar me encaixar de alguma forma, em alguma coisa. Então, as brincadeiras eram, às vezes, jogar bola, jogar vôlei. Eu gostava muito de jogar vôlei. Até tive muito problema, jogando vôlei, porque, na época, na adolescência, na infância – não lembro se foi infância, adolescência – mas eu tive até tendinite no ombro, sabe? Eu gostava muito de jogar vôlei, pelo menos era algo que daí... Eu não gostava de jogar futebol, gostava mais era de jogar vôlei mesmo. Então, tive tendinite no ombro, até por causa disso, de tanto que eu jogava, porque usa muito esse braço, né? Usa muito: jogar, cortar, etc. Era bem divertido isso aí, sabe? Não que eu fosse boa, mas pelo menos eu tentava. Então, eu vou ser bem sincera: não eram umas coisas, assim, que me traziam muito prazer, mas eu tentava passar o meu tempo, porque senão era uma coisa que eu ia entrar… Acredito que se eu não tentasse me encaixar em alguma coisa, nem que seja algo mais com relação aos meus amigos ali em volta que, apesar de tudo, não entendiam nada. Até mesmo... Como é que eu vou explicar? Porque, o que acontece? Eu também não tinha uma vida só de brincadeira. Eu gostava... Eu era muito - como é que se diz - “nerd”, naquela época, também, quando eu era criança. Porque em casa eu tinha muito acesso a livro e revista, sabe? E eu gostava muito de ler, gostava muito de assistir ficção científica. Eu gostava muito de “Star Trek”, já desde aquela época. É uma coisa que até hoje eu tenho muita paixão por isso, sabe? Eu sou uma "trekker" - que a gente chama -, sabe? Então, desde aquela época, por exemplo, assim, eu comentava (risos) com os meus amigos coisas sobre ciência e física, que eu lia nos livros. Nossa, eu era, praticamente, quase que espancada. Porque imagina, coisas assim e tudo o mais, sabe? Imagina assim: tu ser uma “nerdinha” na década de oitenta, falando sobre coisas que as pessoas simplesmente não tinham a menor noção, eram completamente ignorantes, sabe? Tu pegava uma revista “Superinteressante”, uma “Galileu”, que era a internet da época, sabe, onde tu tinha, ali que tu tirava informação. Lia Isaac Asimov, sabe? Então, livros do Isaac Asimov. É que eu também tinha a referência do meu vizinho. O meu vizinho era uma pessoa bem instruída. E daí eu conversava muito com ele, sabe? Então, eu tive um certo acesso a informações e coisas que outras pessoas não tinham, sabe? Então, nisso eu me sinto um pouco privilegiada com relação a isso. Eu não sei se posso dizer isso também, se eu era privilegiada ou não, ou se tive sorte. Porque, apesar da minha família ser um pouco, digamos, tosca com relação a isso, eles tinham essa tendência a sempre ter algo dentro de casa pra se ler, sabe? Nem que fosse, assim, gibi. Eu comecei lendo gibi. Comecei lendo “Turma da Mônica”, gibi do “Tio Patinhas”, essas coisas assim. Depois tinha essas revistas, como eu falei, “Superinteressante”. De vez em quando, se assinava “Superinteressante”, [então] eu tinha várias revistas pra ler. Então, a minha vida na infância e adolescência, não era só brincadeira. Também tinha muita coisa que eu lia, que eu via na tevê. Eu lembro que uma vez alguém me convidou pra sair, fazer não sei o que, e ia passar “Star Wars” na TV: “Gente, como é que eu vou sair, ir pra praia, se vai passar ‘Star Wars’ na tevê. Num sábado de tarde, que está um calor infernal? Eu vou ficar é dentro de casa, num calor infernal, assistindo “Star Wars”, é claro, sabe? Eu não vou pra praia”, sabe? Então, pra tu ver como eu era, sabe? Então, não era só a questão de... Então, aquilo ali, eu acredito que me levou a ter uma formação um pouquinho diferente. Muita coisa aconteceu na minha vida, com relação a... Mais tarde, eu lembro que depois eu entrei pra Escola Técnica [Estadual] Parobé, quando era adolescente. Eu não terminei o curso lá. Mas, o que aconteceu foi que fiz só o primeiro ano. Não cheguei a terminar os três anos do ensino médio lá, porque separação de pais, tudo meio que bagunçou a minha vida, sabe, nisso aí tudo. Mas a minha infância foi meio... Quando tu me pergunta da minha infância, (risos) eu não sei explicar direito, porque ela foi tão complicada e complexa, sabe, que às vezes é difícil falar sobre ela. E que eu falo, a única coisa que eu lembro é o seguinte: era reprimida, sabe? As coisas que eu queria fazer, tinha formas de me expressar. Eu não podia me expressar, tinha que me controlar pra me expressar. Algumas formas nem de ficar de pé, eu não podia. Só pra ter uma ideia, eu não podia nem chorar, sabe, porque chorar era coisa de viado. Então, eu lembro que uma vez teve um filme que eu assisti, comecei a chorar, brigaram comigo porque eu chorei, porque eu me emocionei assistindo o filme. Então, são questões que tu vai levando pra vida e vai te reprimindo, sabe? Então, por muitos anos, eu passei na minha vida, que eu não me permitia chorar, sabe? Não me permitia me emocionar com as coisas, sabe? Então, aquilo é uma coisa que tu tem que passar, mais tarde, depois disso, por uma desintoxicação, sabe? Então, é bem complicado, assim. E daí tu me pergunta como era a minha infância. Eu nem penso muito sobre ela, pra falar bem a verdade, sabe? Eu sei que ela foi complicada, bem tumultuada e turbulenta. E tu pode achar o que for. Eu sei que tinha que brincar com determinadas pessoas, tinha que falar com determinadas pessoas. Era vigiada sempre, pra não tomar certas atitudes, que não eram aceitas na época. E que mais tarde eu consegui me livrar, me liberar, viver, sabe? Só que só bem mais tarde, quando eu vi que, na realidade, aquele núcleo familiar era mais nocivo do que qualquer outra coisa na minha vida. É por isso que não é nem um pouco interessante falar nome de pai e mãe aqui, entende?
P1 - Sim, claro. Fica tranquila. Você era filha única, ou você tinha irmãos?
R - Eu era a mais velha de... É que hoje tem mais duas. Não sei mais quantas outras pessoas, mas era a mais velha de quatro, na época. Porque hoje em dia tem mais. Porque depois que as pessoas se separaram, fizeram mais filhos, agora. Então, na época, eu era mais velha de quatro. Então, ainda ser mais velha, tem mais cobrança, né? Então, tem mais isso ainda, tem que dar exemplo. Sabe aquela coisa? Então, ah, era um porre. Era um porre. (risos) Então, é meio complicado. A vida é complicada. Sabe como é que é, né? E pessoas são pessoas, sabe? É bem complicado.
P1 - Pensando um pouquinho na sua entrada na escola, foi uma coisa legal pra você? Você se lembra como foi a sua entrada na escola?
R - Gente, sabe que eu não lembro direito! Sabe por que eu não lembro direito? Porque na época da minha entrada... Tu diz no primário, isso?
P1 - Isso.
R - Sabe que eu não lembro. Sabe por que eu não lembro direito a minha entrada na escola? Porque, logo que eu entrei na escola, eu tive meningite e sarampo. Eu fiquei cinco dias em coma profundo, sabe? E a minha mãe conta que eu fiquei nesses cinco dias em coma, porque eu tive meningite. Ela conta, né? É meio que... Porque, o que acontece? Virou meio que lenda na família essa história aí. (risos) Deixa eu contar. Deixa eu tentar me preparar, pra contar essa história. Vamos lá! (risos) Essa é uma das histórias meio malucas da minha vida. Ela conta, eu não me lembro se no primeiro ano ou no segundo ano, quando eu tinha sete, oito anos, que eu estava no primário lá e eu peguei sarampo e meningite. E o que aconteceu? Eu estava lá, ela fala que eu estava lá me recuperando e de repente, “pum”, caí. Sabe, alguma coisa aconteceu no meu cérebro ali, que eu peguei e caí. E fiquei em coma profundo. E o médico disse que: “Olha, não vai voltar”. E a minha mãe diz que falaram pra ela: “Olha, essa pessoinha aí não vai voltar, porque o que aconteceu é muito difícil. E, se voltar, volta com sequela”. Eu devo ter sequela. Só pode ser isso. (risos) Aí ela falou que o médico… Olha só a loucura que ela falou! Eu não sei se é verdade, de fato, mas ela falava, ela falou pra família toda, que o médico ia viajar. O médico que me atendia ia viajar pra alguma coisa, sei lá, evento, não sei nem se ia sair de férias, alguma coisa. E ele deixou o atestado de óbito assinado, deixou só pra enfermeira colocar a data e a hora. Ele tinha certeza que eu não ia voltar. Eu não sei se isso pode, se na época podia. Porque tu está falando lá da década de oitenta, né? Porque naquela época tudo podia também, né? Aquela época era a época da barbárie, sabe? Naquela época, a gente batia... Como é? Naquela época, da barbárie, a gente batia [palma] em aniversário, a gente assoprava a velinha, aquela coisa e aí depois a gente comia o bolo. Assim, a gente passava um monte de germes pra todo mundo. A gente, hoje, usa máscara. A gente era bárbaro. (risos) Então, isso ela conta. E o médico falou pra ela: “Está aqui, ó”. Diz que ele mostrou pra ela isso, sabe? Então daí, do nada, que eu estava na UTI – antigamente era UTI, não era CTI – que eu estava do lado de uma - olha, parece coisa de filme! - janela e que ela estava me olhando. E eu estava vegetativa, ali, sabe? Uma criança vegetativa, sabe? E que, do nada, eu comecei a me mexer, depois daqueles cinco dias de coma. Que ela saiu correndo nos corredores: “Está se mexendo! Está se mexendo!”. E as enfermeiras tentavam parar: “Não, é só impressão tua. Não está se mexendo”, “Não, está se mexendo!”, e gritava no corredor, assim, sabe? Aí foram lá ver, eu estava acordando. E eu lembro, essa parte do acordar eu lembro. Tu acorda. Por isso que eu acho muito estranho essas coisas, assim, dos filmes. Sabe essa coisa do filme, da pessoa ficar anos em coma, acorda e abre o olho e enxerga a outra pessoa? Mentira. Tu abre o olho, tu não sabe nada. Tu não consegue enxergar. Eu fiquei cinco dias em coma, tu não enxerga nada. Tu não consegue enxergar, porque tu fica com os olhos fechados por cinco dias. Tu abre os olhos, tu não enxerga nada. Tu não sabe… De repente, tu está tentando enxergar, está tudo nublado, assim, na tua frente. Tu está tentando enxergar, de repente vem alguém, te pega, assim, enfia um negócio na tua boca, pra escovar o teu dente. Aí tu, assim, até porque tu não tem força também, aí tu fica: “Que merda é essa que está acontecendo comigo?”. (risos) Eu era criança. E tu fica completamente sem força também. Fiquei muitos dias me recuperando daqueles cinco dias de coma, sabe? Também não sei se aconteceu alguma coisa na minha cabeça, pra me deixar meio ruim assim, né? Mas eu fiquei vários dias me recuperando, até conseguir voltar a enxergar bem e voltar a me mover corretamente, sabe? As enfermeiras tinham que vir, me dar banho, pra poder ficar bem. Mas essa é uma das histórias. Daí, o que aconteceu? Uma das coisas que eu... Eu não lembro bem. Daí, quando eu voltei pro colégio, os meus coleguinhas lá, as coleguinhas: “Tu lembra quando a gente fez tal coisa?”, eu não lembrava mais. Meio que deu um “lag”, assim, sabe, de memória. Essa é uma das coisas que aconteceu, eu fiquei sem lembrar de algumas coisas: “A gente fez tal coisa. A gente foi...”, “Não lembro”. Eu não lembrava, sabe? Então, a entrada na escola, eu não lembro, sabe? Primeiro e segundo ano, pra mim, foi uma coisa, assim, meio que não lembro bem, assim, sabe? Mas só porque essa história é um adendo, assim, nessa coisa toda meio maluca.
P1 - E tinha alguma - no ensino fundamental - matéria que você se interessava mais e outra menos? Tinha alguma coisa que te puxou o interesse por estudar alguma coisa?
R - Olha, na realidade, deixa eu tentar lembrar o que eu gostava mais. Eu sempre gostei mais de coisas, de matérias de Exatas, sabe? Eu gostava bastante. Não que eu fosse ótima nisso, mas eu sempre tive mais curiosidade nisso. É engraçado que mais no futuro, eu comecei, no ensino médio, a me interessar bastante por História. Mas, no primário, eu gostava bastante das [matérias] de Exatas. Só que era tudo misturado, né? Porque não tinha muita diferenciação ali, até. Acho que eu não lembro como era naquela época, se até a quinta série era tudo junto. Eu não estou lembrada direito como era, pra falar bem a verdade. Eu nem sei nem como que é hoje, como é que isso funciona, pra falar a verdade.
P1 - Nos anos oitenta… Eu também estudei nos anos oitenta, tá?
R - Ah, tá bom. (risos)
P1 - Eu entendo bem, né? Também estou na casa dos quarenta, entendo bem o que você está falando. Bom, a gente tinha, da quinta série pra frente, a gente começava a ter Ciências.
R - É! Exato. É isso, né? Era Ciências. É. Daí tinha Matemática e tinha Ciências. Era meio misturado, né? Aí tinha Geografia, também. Geografia eu achava meio chato, porque tinha aquela parte da... Tinha uma parte da Geografia que eu achava meio chata, mas depois comecei a dar valor, que era a parte mais... A parte meio política, assim. Daí, o que mais... Tu vê que coisa engraçada, mas eu lembro assim de muita coisa. Apesar de eu não gostar, tem muita coisa que lembro das aulas. E eu lembro, tive professoras muito boas [e] tive professoras que não eram tão boas. E tinha coisas que eu lembro, de professoras que me ensinaram errado e que até hoje, eu aprendi, porque elas ensinaram errado. Tu vê que coisa engraçada isso, né? Então, porque eu acho questão de raciocínio lógico, porque pra mim não fazia o menor sentido o que ela estava falando, sabe? Então, naquela época: “Mas não faz sentido o que essa pessoa está falando”, sabe, eu pensava. Que coisa engraçada, sabe, isso aí. Mas eu pensava assim e... Eu também não era uma aluna... Era meio revoltada na escola, estava sempre arranjando confusão. Acho que isso era reflexo do problema de dentro de casa. Eu estava sempre com algum problema dentro da escola, sempre brigando com alguém, etc. E esse era um grande problema. Mais tarde que eu comecei [a] dar mais valor às relações. Quando eu comecei a me livrar da influência da minha família é que eu comecei a dar mais valor nas relações interpessoais, assim, com as outras pessoas, sabe? Então, quando, no ensino primário, ali, nas coisas, eu tinha muito problemas com as pessoas, sabe? Com os colegas, com professores, etc. Eu era uma pessoa bem revoltada, assim. E acho que isso era muito do reflexo que eu tinha com a minha família. Então isso, pra mim, me atrasou bastante, assim, na minha... Não é formação, mas eu acho que na minha... No meu entendimento como pessoa, sabe? Mas, apesar de tudo, eu ainda consegui tirar algumas coisas boas do ensino. Apesar de que, naquela época, o ensino não era uma grande coisa, também, né, se tu parar pra pensar. Acho que tu lembra também. Eu também não sei se hoje em dia é grande coisa também. Porque eu vejo, faço seleção de pessoas, às vezes, em algumas empresas e vejo que as pessoas até saem da faculdade não sabendo nada, sabe? Então, realmente, (risos) eu não sei como estão as coisas hoje em dia. Mas eu lembro que eu era uma ‘pessoinha’ bem revoltada em alguns momentos, em outros nem tanto, mas isso me dificultou bastante em algumas coisas. E mais tarde, que eu fui me tratar, fazer terapia, pra entender o porquê dos “porquês”, sabe? Então, saber, de fato, o que me levava a tomar certas atitudes, o que me levava a ter certos pensamentos. E porque isso, às vezes, até mesmo atrasou bastante a minha vida, sabe? De não entender o contexto da vida ao meu redor. E acho que naquela época era bem isso. Era uma coisa bem... Como eu te falei: quando eu penso sobre a minha infância, ela é bem conturbada. Quando eu falo em conturbada, é em todos os sentidos. Tanto na família, como no colégio, com relação a tudo. Então, eu lembro de bastante briga em casa, problemas na escola. Mas, mesmo assim, procurando... Eu sempre gostava de aprender. Pelo menos era uma coisa que eu tinha comigo, sabe? Então, não era só, eu não deixava só pra escola me ensinar alguma coisa. E acho que isso me ajudou um pouquinho a não me perder por completo na vida, sabe? Então, se eu não tivesse isso de procurar aprender, em tudo o que eu via, seja o que fosse, numa revista que eu lesse, alguma coisa que eu achasse interessante, acho que já teria me perdido por completo na vida, já naquela época, sabe? Acho que a minha vida teria achado um rumo bem mais rápido e eu nem estaria falando contigo aqui. Como muitas vezes isso já tentou acontecer, sabe? Mas isso é uma outra história. Não sei se eu consegui te responder alguma coisa. Eu sou meio prolixa, às vezes, também, falando. (risos)
P1 - Não. Fica tranquila. É a sua história. Você vai contar do jeito que você quiser.
R - Tá bom.
P1 - Tá bom? Você sonhava em alguma coisa: “Ah, quando eu crescer, quero ser tal coisa”?
R - Ah, eu sonhava! (risos) É muito bobo isso, mas eu sonhava em ser astronauta. Eu gostava daquela coisa. Mas é por causa de ficar assistindo Star Trek da vida. E ficar imaginando, não em ser astronauta, mas é algo assim: quando tu começa a ler muita coisa, imaginar um futuro diferente, assim, sabe? Como é que eu vou explicar? É participar de algo, assim, maior, sabe? Participar de alguma coisa diferente, assim. Poxa, eu ficava olhando aquelas coisas bacanas acontecendo, sabe? E tu lá, no meio do nada, onde nada acontecia, onde as coisas estavam todas estagnadas. Então, na realidade, era ser diferente. Ser uma pessoa que fosse de uma outra realidade, eu acredito. Então, participar, por exemplo, assim: eu sempre fui muito interessada por Ciências, por o que estava acontecendo na NASA, essas coisas assim, sabe? É uma coisa bem boba. Mas acho que era muito da minha situação, onde eu estava num lugar onde nada acontecia. Onde eu via, sabe, as coisas acontecendo, que eram muito legais, eu pensava: “Nossa, que bacana isso!”. Só que eu não conseguia evoluir, sabe? Eu não conseguia transpor limites que me eram impostos. Então, o que acontece? Quando eu descobri que esses limites vinham de questões externas e que, na realidade, eu tinha que me livrar dessas questões externas, que eu consegui evoluir um pouquinho na minha vida, sabe? Mas isso foi... tu tomar consciência disso é, às vezes, bem difícil, sabe? Porque é uma coisa que, às vezes, eu falo... Eu estou pulando um pouquinho do tema, mas é porque é uma coisa que, às vezes, assim, eu advogo muito pela inclusão de mulheres na TI e pessoas Lgbts, também. Eu vejo muitas pessoas que acabam entrando num círculo vicioso, que é: tu está num lugar onde as pessoas te puxam pra baixo e tu não consegue entender isso, sabe? E tu entender que, muitas vezes, quem está te puxando pra baixo é a tua própria família, sabe? E que ela, realmente, não vai te entender. E que tu tem que procurar, além da tua independência financeira, a tua independência emocional, que ela não pode depender das outras pessoas. Essa tua independência emocional não pode depender da tua mãe, da tua própria mãe, do teu próprio pai, da tua família; que ela tem que depender só de ti. E quando tu entende isso, tu se liberta de uma forma que não tem mais volta, sabe? As pessoas vão continuar ali. E que a maneira que elas te tratam, elas não podem mais influenciar na tua vida, sabe? Daí, quando tu entende isso - é claro que é bem difícil e pode demorar bastante, no meu caso demorou - tu consegue se libertar e consegue voar bem mais alto, sabe? Até mesmo mais alto do que tu jamais imaginou, sabe? Eu ainda tenho muitas questões que eu tenho que resolver comigo mesma, porque, às vezes, quando tu passa muito tempo apanhando, levando porrada, tu, às vezes, fica muito estigmatizada. Então, tu mesma se coloca certos estigmas, sabe? E arrancar isso de ti, puxar algo de ti dói. Então, quando tu fala assim: “O que tu sonhava?” Sim, sonhava. Sonhava ser uma grande mulher. Sonhava em trabalhar em lugares muito legais, em um lugar que eu gostaria de trabalhar, sei lá, trabalhar em lugares como a Nasa, trabalhar em lugares bacanas. Hoje em dia tem a SpaceX, sabe, que também é legal. Que são lugares de tecnologia, sabe? Lugares de pessoas que realmente estão fazendo algo de diferente, sabe? A Nasa é [mais] um símbolo que eu falo. Mas um lugar assim, que fosse diferente. Um lugar onde existem pessoas bem, muito inteligentes trabalhando. Eu gostaria de ser uma pessoa igual aquela lá. Só que eu estava cercada de pessoas que achavam que tu nunca iria conseguir chegar lá, porque tu era uma qualquer, sabe? Então, tu não podia nem sonhar. Essas pessoas não entendiam que nem ao menos sonhar tu poderia. Então, é uma coisa que eu procuro, pela essa minha experiência, falar pra pessoas: “Tu tem que procurar a tua independência emocional, pra poder realizar os sonhos que tu tem”, sabe? Eu falo porque demorei muito pra entender isso. E nessa jornada, pelo menos eu posso, hoje em dia, passar essa lição pra outras pessoas, sabe? Então, os meus sonhos eram esses, assim, meio bobos, meio de criança, assim, na época. Mas hoje eu sei que, se uma pessoa, hoje em dia, quiser, ela pode estar lá, ela pode estar na SpaceX. Se uma pessoa, hoje em dia, no Brasil, quiser e estudar bastante, ela pode ir pra uma SpaceX, pode estar na Nasa. Tem muitos casos que acontecem, que as pessoas saem praticamente do nada e estão lá, sabe? Então, hoje em dia conseguem. Só que tem que se deixar fazer isso. E não carregar toda, sabe, tudo; não carregar todo mundo junto. Ela tem que ir só ela, sabe? E claro, tem que, sei lá, ter afeto pelas outras pessoas, continuar o contato, mas ela tem que ir sozinha. Ela tem que trilhar o próprio caminho, sabe? Ela não pode levar, ficar amarrada ao local que ela está, porque senão tu não consegue crescer. É bem complicado isso de falar, mas pra mim, isso foi bem complexo passar. Sei lá. Estou falando, só.
P2 - Evelyn, teve alguém que te acolheu, que acreditou nessas coisas que você queria ser quando crescesse?
R - Ahm. Hum. Como é que eu vou explicar? Que me acolheu, que acreditou? Não. Não sei. Eu tive um período da minha vida que foi bem complicado, logo que comecei a transição. Eu comecei já faz um bom tempo. Mas se eu for pensar em alguém que me acolheu e que acreditou em mim, foi quando eu comecei a fazer a transição, né? Porque eu não fiz a transição logo novinha, como muitas conseguem fazer e tudo o mais. Eu fiz a transição bem tarde, depois dos trinta anos, que a gente fala que é transição tardia, né? Então, eu lembro que, uma das histórias que eu costumo conversar, é também tu ter pessoas bacanas ao teu lado, que podem te ajudar bastante. É uma coisa que eu sempre falo que, se não fossem essas pessoas também, é outra coisa que eu também provavelmente não estaria aqui. Eu estava trabalhando numa empresa e eu estava fazendo a transição. Só que essa empresa não estava nem um pouquinho preparada para ter uma pessoa igual a mim, trabalhando com ela, porque as pessoas que trabalhavam lá, tanto gerente, não se sentiam confortáveis com a minha presença. Elas, simplesmente, quando eu estava no ambiente, tinham que se comportar, sabe? No caso, se comportar é não falar, não contar piadas, não serem machistas, não serem, sabe, Lgbtfóbicas. E essas coisas assim. Se comportar, sabe? E aquilo incomodava demais as pessoas. E é muito engraçado, porque eu comecei trabalhar nessa empresa… Antes de trabalhar dentro da empresa, essa aí, eu fui enviada pra trabalhar numa outra empresa, onde trabalhava como terceirizada, né? E eu fui muito bem nessa outra empresa. As pessoas dessa outra empresa me elogiaram bastante, elogiaram bastante o meu trabalho. Só que, infelizmente, essa empresa onde eu estava, acabou sendo comprada e fechou. Aí eu fui trabalhar dentro da empresa mesmo, sabe? E daí, aí que começaram os problemas. Até chegou num ponto que me demitiram, sabe? Foi bem no momento em que eu estava iniciando a transição, e aquilo ali era algo que chocava muito essas pessoas. Eu sentia que chocava muito essas pessoas. E elas, como eu falei, novamente, não se sentiam confortáveis com a minha presença. Um dos motivos que alegaram pra minha demissão é que... Como é que era mesmo a palavra que usaram? Que eu era... Eu não lembro qual que era a palavra, mas... Bom, eu não lembro direito, mas falaram um monte de coisa, alegaram um monte de coisa pra me demitir e me demitiram. Pra vocês terem uma ideia, a menina do RH também estava lá, no dia da demissão. Quem me demitiu foi um gerente. Um gerente que também era uma das pessoas que tinham que se comportar e não gostava muito de ter que se comportar na minha presença, foi ele que me demitiu. E a menina do RH, a gerente do RH que estava comigo nesse momento que ele me demitiu, logo que foi feita a demissão, ela me chamou pra uma sala e começou a chorar. Eu comecei a chorar, né? Porque eu sabia que, dali pra frente ia ser bem difícil arranjar um emprego. Ela bem assim, falou bem assim pra mim: “Eu devia ter feito alguma coisa. Não devia ter deixado chegar a esse ponto”. Foi o que ela disse, na época, sabe? Ali eu notei que eles estavam me demitindo por simples intolerância, sabe? E daí fui embora. Não tinha o que fazer. Peguei as minhas coisas e fui embora, fui pra casa. E comecei a receber algumas propostas de emprego. Aí, como o meu currículo era bom pras vagas e em algumas vagas eles diziam que era perfeita pras vagas, eu ia. Eu lembro que o meu nome não estava retificado, na época. Eu ia nas vagas e, chegando lá, não era aquilo que eles imaginavam. E, de repente, o currículo não era mais perfeito pra vaga, sabe? Então, isso foi em algumas empresas. Até que chegou numa empresa, onde eu estava lá e fazendo... Porque pras questões de TI, assim, quando tu vai fazer pra desenvolvedora, programadora, engenheira de "software" etc., sempre tem alguma provinha, nem que seja de escrita, ali na hora, pra tu fazer, ou no computador. Aí numa empresa que eu fui, fiquei numa sala - a sala era toda envidraçada, assim, sabe? Era uma salinha bem pequenininha, era toda envidraçada. Me colocaram pra fazer uma prova escrita, aí fui fazer a tal da prova escrita, né? Mas logo que eu falei com a pessoa, a pessoa já ficou meio assim. Daí eu fui fazer a tal dessa prova escrita. Aí eu comecei a olhar que, durante essa prova, várias pessoas ficaram passando por mim. Várias pessoas ficavam passando por esses vidros, assim, né? Aí eu comecei a reparar. E as pessoas ficavam passando e me olhando. Até que chegaram duas pessoas, pararam tomando café, uma pegou e apontou pra outras pessoas, [que] apontaram pra mim. Eu peguei: “Tá bom”. Eu nem terminei a prova. Peguei, coloquei: “Ah, vocês querem me conhecer? Nós estamos aqui”. Escrevi ali e coloquei o meu Facebook, falei: “Está aqui o meu Facebook. Não precisa ficar me olhando aqui, né?”. Peguei, larguei a prova e fui embora. Não falei com ninguém. Aí, todas as outras provas, todas as outras ofertas de emprego que tinham pra eu participar, colocava assim... Eu colocava lá uma informação que vinha num “site”. Tipo... O nome do “site”, acho que é InfoJob, alguma coisa assim. Quando eu via uma oferta de emprego, sempre colocava uma coisa parecida com isso: se a empresa tinha algum problema com pessoas Lgbts, com pessoas trans - ou se alguma pessoa dentro da empresa tinha algum problema com pessoas Lgbts ou pessoas trans - porque eu sou uma mulher trans e etc. Estou em transição e tudo o mais, que desconsiderassem a minha candidatura. “Caso contrário, eu vou ficar muito feliz em continuar.” Olha, funcionou muito bem. Nunca mais recebi nenhuma resposta de empresa nenhuma. Sempre, quando liam aquilo ali, eu sempre era completamente desconsiderada de qualquer oferta de emprego, apesar do meu currículo sempre estar muito bem-posicionada nas vagas. O que aconteceu? Eu fiquei quase um ano desempregada. Nesse quase um ano desempregada, quem me ajudou foram as minhas amigas. Tinha uma amiga minha, uma ‘amigona’ minha que pagou a luz de casa [por] alguns meses. Outra amiga comprou comida. Compraram até gás aqui, pra eu comer, etc. Apesar disso, antes disso, teve momentos que eu fiquei quase completamente sem comida. Teve um dia que eu só tinha uma batata, um catchup. Parecia até coisa de seriado americano, abri a geladeira, só tinha um “ketchup” na geladeira. Eu tinha uma batata [e] estava sem gás. Aí eu fiz no coisinho elétrico que eu tenho aqui a tal da batata, pra comer. Teve uma hora que eu só tinha arroz pra comer e etc. Daí eu tinha os meus filhotes, que eu tinha que dar comida pra eles. Aí eu fiz arroz pra mim, fiz arroz pra eles. Não tinha nem ração pra dar pra eles, sabe? Então, foi um ano bem complicado, onde quem me ajudou foram as minhas amigas. E que, se não fossem elas, eu, realmente, não tinha conseguido passar. E quando eu falo em acreditar, elas realmente acreditaram em mim, no meu potencial, que, realmente, eu poderia conseguir. E aí foi quando eu apliquei pra ThoughtWorks, que é uma multinacional, e eles me aceitaram. Eu comecei a trabalhar lá. Fiquei um tempo trabalhando lá com eles, depois mudei de empresa. E que, se não fosse essa ajuda, essas pessoas acreditarem em mim, apostarem em mim e se preocuparem, eu não teria passado por essa, sabe? E é uma coisa que, hoje em dia, se outra pessoa também estiver passando, eu sempre procuro ajudar. E a gente procura fazer como se fosse essa corrente do bem pra que outras pessoas não se sintam desamparadas, porque acontece muito, assim, sabe? E as minhas coisas são por pura intolerância. Eu acho que hoje em dia, uma coisa que eu vejo e é uma coisa que eu procuro muito colocar, eu sempre falo, sempre me coloco como mulher trans, travesti, pra poder aparecer bastante. Porque isso não existia antes. Acho que, se isso existisse antes e as pessoas se colocassem e se mostrassem, eu não teria passado por isso, sabe? Não teria acontecido isso que aconteceu comigo. Seria uma coisa que as pessoas não estranhariam, sabe, que fosse uma mulher trans lá, ou que fosse o que fosse, sabe, o que tivesse acontecido. Por exemplo: eu fui a primeira pessoa trans no estado do Rio Grande do Sul a fazer retificação de nome e gênero nos cartórios, depois da decisão do STF. Quando o STF fez lá, que as pessoas trans podem fazer isso, só chegar no cartório: “Eu quero fazer a minha retificação de nome e gênero” e fazer. Aqui no Rio Grande do Sul, eu fui a primeira pessoa trans a fazer. Eu lembro que fui lá… O cartório, na realidade, foi super receptivo comigo etc. Acho que ele até estava esperando que uma primeira pessoa trans fosse lá fazer, sabe? Daí eu lembro que a mulher do cartório, a menina do cartório, de forma bem ingênua, falou bem assim pra mim: “Bom, agora, Evelyn, tu não precisa mais dizer que tu é trans, né? Pode dizer que... Não precisa ficar falando que tu é trans”. Daí eu falei: “Agora sim que eu vou falar que eu sou trans, sabe? Porque eu não posso fugir dessa luta. Porque tem outras pessoas trans, mulheres trans, homens trans, que também precisam entender que eles também podem chegar até onde eu cheguei, sabe?”. Eu sou bem militante nessa causa. Até esse dia, eu criei, registrei um domínio [de site]: travesti.dev. Aí, no site da UX, lá, eu coloquei: “Ah. Você tem um domínio?”, “Sim. Tenho um domínio. Está aqui: travesti.dev”. Está lá na UX. Se tu olhar lá no perfil, está lá na UX: travesti.dev. As pessoas vão lá. Vão ter que entrar no meu “site”, pra entrar lá, sabe? Então, justamente por quê? Pras pessoas não passarem pelo o que eu passei, sabe? Não ter que depender de uma amiga, pra não passar fome, sabe? Pra não ficar sem luz dentro de casa, sabe? Pra eu não ter que mandar o meu “login”, senha de “e-mail”, pra uma amiga minha lá ficar esperando que eu receba a notificação da empresa, pra saber se eu passei no emprego ou não, pra trabalhar, porque eu fiquei até sem internet. Eu estava sem internet, sem nada dentro de casa, sabe? Então, pra que as pessoas não passem por isso, eu me exponho o máximo que posso, sabe? Assim como aconteceu da treta do (risos) BrazilJS, que eu não sei se vocês conhecem. Vocês não devem conhecer essa treta do BrazilJS, né? Do que aconteceu em 2017? Eu não sei se vocês querem ouvir essa história da treta do BrazilJS. É por isso que eu digo assim que eu não sou de Humanas, nem de Exatas: eu sou de tretas. Aí, o que acontece? Em 2017, teve o BrazilJS, que é o evento, que é o maior evento de JavaScript do mundo, sabe? Que acontece aqui em Porto Alegre (RS). No Barra Shopping, que é um baita de um “shopping” que tem aqui em Porto Alegre, que tem um baita de um lugar de eventos. Ali. Aí, em 2017 me convidaram pra palestrar, uma palestra técnica. Aí, o que acontece? Eu sou a mulher trans que palestra, etc. e tudo o mais, e sabe de um monte de coisa. Então, só de eu estar num palco, já estou militando em questões Lgbt, transexualidade, biriri bororó, né? Eu nem preciso falar sobre questões Lgbt, porque eu estou falando lá sobre uma questão técnica, que as pessoas lá, que aquele monte de gente lá, às vezes, um monte de homem lá, meio idiota, meio escroto, que não sabe nada, mas tem que estar me ouvindo ali. Vai ter que estar ouvindo uma mulher trans pra poderem aprender, sabe? Então, isso aí já é algo que eles têm que engolir, digamos assim, sabe? O que aconteceu em 2017? Tinha um evento, tu olhava pra plateia e parecia que só tinha homem na plateia. Aí eu pensei: “Tem um monte de mulheres. Eu sei que tem um monte de mulher”. Antes de eu palestrar, eu chamei — tem um vídeo, até eu vou ver se eu acho aqui, pra vocês darem uma olhada depois; tinha um monte de mulher no evento — todo mundo, todas as mulheres no palco. Mas não foram só as mulheres da plateia. Eu chamei as mulheres da plateia, as mulheres que estavam assistindo o evento. Eu chamei as mulheres que estavam fazendo “coffee break”. Eu chamei as mulheres que estavam fazendo a limpeza do evento. Eu chamei as mulheres que estavam fazendo a segurança do evento. Eu chamei todas as mulheres que estavam participando do evento. Eu chamei no palco, sabe? Deixa que eu mando aqui no “chat”. Devo mandar pra vocês. Depois vocês dão uma olhada.
P1 - Pode mandar, por favor.
R - Mandei. Tem aí. Eu não sei qual minuto está. E chamei todo mundo pro evento. Todas as mulheres. E encheu o palco. Porque vocês têm que entender que não se... Ah, eu fiz isso porque eu descobri que na live da BrazilJS, do evento, tinha um monte de cara falando mal do evento, das mulheres que estavam participando e palestrando no evento, sabe? Estava tudo enchendo o saco. Daí eu fiz isso. Ainda, eu falei um monte de bobagens: “Vocês estão aí, falando, mas vocês não sabem nem limpar a bunda direito, não sei do quê”, sabe? (risos) Eu falei um monte de merda naquele negócio lá. Aí, o que aconteceu? Chamei, a gente fez todo aquele auê e tal. Está tudo no vídeo. Depois vocês dão uma olhada. Daí fiz a bagunça toda e fui palestrar. Aí dei minha palestra lá. Aí, tá. Ia ter o evento aqui em Porto Alegre, depois ia ter um evento lá no nordeste, que eu nunca lembro qual cidade é. Mas é lá no nordeste, bem lá em cima, lá. Sabe onde faz a curva, lá? É uma daquelas capitais lá. É bem lá em cima, eu não lembro qual o nome da capital. Isso seria no outro fim de semana. Daí, tá. Beleza, estamos lá, tudo festivo, pegando o avião. Vamos lá, a gente está aterrizando. Aí eu pego o meu celular, abro o meu celular. Abri o 4G ali, biriri bororó. Aí, primeira coisa que eu vou olhar os meus “e-mails”, eu recebo assim: “Eu vou te matar”, sabe, assim? Eu: “Ué, que interessante né?”. Aí: “Eu vou te matar com requintes de crueldade, com um taco de beisebol de titânio, que não sei o quê”. Eu: “O quê?”, sabe? Aí eu pensei bem assim: “Mas que audácia, né, um cara me ameaçar por ‘e-mail’? Eu? Uma travesti da TI? Um cara me ameaçar por ‘e-mail’? As pessoas me ameaçam na rua, ao vivo e a cores. O cara vai me ameaçar por “e-mail”?”. Eu: “Tá”. Peguei, tirei um “print” e coloquei no Twitter: “Olha, que legal!”. Eu só fiz assim: “Olha, que legal!” e postei pro Twitter. Fechei o celular e fui embora. Mostrei pro pessoal lá, mostrei pra algumas pessoas. Aí fui embora. Aquilo ali - depois, mais tarde eu fui ver - deu um bafafá no Twitter, sabe? E começou um bafafá. Depois eu fui ver, abrir o Twitter de novo, já estava um bafafá rolando etc. e biriri bororó, sobre aquela situação do cara que falou que ia me matar porque... Ah, porque... Ele ia me matar porque eu era uma aberração e ele está numa fodida, porque pessoas como eu estão trabalhando na TI e ele não está. Uma coisa idiotizada, nesse sentido, assim, sabe? Como se eu tivesse culpa e as mulheres da TI tivessem culpa, de que ele fosse um fracassado. Daí tudo bem. O que aconteceu? O rapaz que apresentava o evento pegou, a gente fez o evento lá nessa outra cidade, nessa outra capital, que eu não lembro o nome agora - depois eu posso pegar. A gente fez lá. Ele colocou no palco, lá, ele colocou no telão esse “e-mail”, pras pessoas olharem, etc. Aí os caras começaram a mandar mais "e-mail", me ameaçando. Eu pegava e postava no Twitter as ameaças que eles me mandavam. Porque, o que acontece? Eles se diziam "hackers", sabe, que eles eram "hackers" da internet. Que eles iam me matar, porque eles sabiam onde eu morava, eles sabiam o meu nome de registro, assim [e] assado. Naquela época, também, eu não havia… Como falei, eu não tinha... Em 2017, ainda não tinha feito a retificação. Eu fiz só em 2018. Então, eles começaram a me ameaçar, vários "e-mails" me ameaçando. Eram umas três ou quatro pessoas me mandando "e-mail", me ameaçando, e eu postava no Twitter. E começou a dar um bafafá! As pessoas começaram a "retuitar" e comentar. Inclusive, começou a escalar, que vocês não têm noção. E eu comecei a rebater esses caras. E esses caras bem assim: “Nós somos os 'hackers'”. Aí aconteceu uma coisa que foi bem interessante: algumas mulheres entraram em contato comigo no Facebook, dizendo que elas também haviam sido ameaçadas por essas mesmas pessoas. E que duas delas me relataram que elas pensaram em suicídio, de tanta ameaça que receberam deles, porque eles haviam descoberto onde moravam e diziam que iam matá-las ou alguém da família delas. Então, o que aconteceu? A ideia, o que eles queriam é fazer com que as pessoas acabassem cometendo suicídio. Só que eles pegaram uma pessoa que eles não entendiam, que era eu, completamente louca, sabe? (risos) Que não pensou, que eu fui atrás deles. E eles começaram a achar, falar que eram uns "hackers:" “Porque nós descobrimos o teu endereço”, “Ah, é?”. Eu pegava assim o "e-mail": “Nós descobrimos o teu endereço”. Eu pegava o "e-mail" que eles mandavam: “Ó os 'hackers' aqui. Está vendo que eles descobriram o meu endereço? O meu endereço, se tu procurar na internet, Fulano de tal, tu vai pegar e descobrir que o meu endereço está no ‘site’ registro.br. — Esse ‘site’, se tu entrar lá e procurar, tal, facilmente tu consegue o meu endereço, ou o meu CPF, ou o meu nome, assim [e] assado. — Eles não são "hackers", nada. É uma simples pesquisa, tu consegue esses dados aqui. “Ah, ele conseguiu o nome da minha mãe”, “Ah! É bem simples assim. Com uma simples pesquisa na internet, tu consegue tal e tal informação. Eles não são ‘hackers’, nada. Eles simplesmente vão na internet e fazem uma pesquisa no Google”. Aí eles ficaram putos! Isso começou a escalar mais ainda. Se vocês procurarem “Evelyn Mendes trans” agora no Google, tem várias reportagens, do G1, da BuzzFeed, de várias pessoas, de vários jornais, que fizeram reportagem comigo sobre mulher trans que recebeu ameaça depois de evento na coisa, depois de um evento de tecnologia. Como saiu no G1, como saiu em vários, como eu dei entrevista pra vários portais grandes e a BrazilJS, o evento, já havia pago uma advogada pra me defender dessas pessoas. A gente já havia ido numa delegacia de investigações cibernéticas, fazer o boletim de ocorrência. A gente fez o boletim de ocorrência. A gente fez tudo certinho. Estava lá o nome das pessoas, a gente levou os “e-mails” etc., a gente deixou tudo registrado lá. E daí, essas pessoas, os jornalistas vieram falar comigo, me entrevistar, pra saber o que estava acontecendo. Eu comecei a explicar: “Está acontecendo assim e assado. Estão me ameaçando por causa disso, disso e daquilo. Por causa do evento tal e tal. Porque, simplesmente, por causa de questões de machismo, misoginia, eles não querem que mulheres, pessoas Lgbts e pessoas trans participem de eventos de tecnologia, assim e assado”. Eu expliquei tudo. E começou a sair em vários canais de informação. O que aconteceu? Imagina o seguinte: tu está lá, Genivaldo, no Mato Grosso e eu fiz boletim de ocorrência aqui em Porto Alegre. Só que lá no Mato Grosso aconteceu a mesma coisa. Tem um boletim de ocorrência lá no Mato Grosso. Tu é o delegado lá do Mato Grosso e tem um boletim de ocorrência com o mesmo nome, do Marcelo lá, que ameaçou a fulana de tal. Só que todo mundo achava que eram casos isolados. Só que tu, Genivaldo, é o delegado do Mato Grosso. E tu leu no G1 esse mesmo tipo de caso, com esse mesmo nome e tu falou assim: “Cara, eu tenho um boletim de ocorrência aqui, parecido. Vou olhar”. E tu olhou lá nas tuas fichas: o mesmo boletim de ocorrência, com o mesmo nome. Aí, por que eu fiz esse bafafá? Quem me conta isso mais tarde foi a minha advogada, que o delegado aqui de Porto Alegre que falou pra ela. O que aconteceu? Como deu muito “buzz”, foi pra todo país isso e saiu, como eu falei, no G1, os delegados de outros locais — e depois que eu descobri que eles não se conversam, né? É tudo coisa, tudo um separado do outro — começaram a se conversar. O de lá de Mato Grosso ligou pro daqui de Porto Alegre: “Olha, tem um caso igual aqui”. Aí eles começaram a ligar, um pra cada um. Ligaram lá pro da Bahia, ligaram lá pro de Manaus etc. e começaram a fazer uma força-tarefa pra correr atrás desses caras, sabe? Então, eles viram que não eram coisas isoladas, estava acontecendo em todo o Brasil. Esses caras estavam atacando tudo o que era evento que tinha mulher, sabe, pra desmoralizar, pra tentar fazer com que elas não participassem de eventos, sabe? E eu, como era louca, que eles tentaram me atacar (risos) e não conseguiram, sabe? Eles não conseguiram me atacar. Eu ainda pegava e fazia memes com a cara deles, com as coisas deles. E outra: teve uma hora que eles começaram bem assim... Porque eu mostrava a cara, sabe? E eu chegava, comecei a falar bem assim: “Porque vocês não são homens, nada. Vocês estão aqui, ficam me ameaçando por “e-mail” anônimo. Vocês não são machos, nada. Vocês são um cagalhão, sabe? E eu estou aqui mostrando a cara. Vocês não mostram a cara, nada”. (risos) Eles gravaram um vídeo no Youtube mostrando a cara. Eles mandavam “e-mail” com foto. Eu pegava tudo isso, (risos) salvava e mandava pra polícia: “Olha, está aqui. Está aqui. Está tudo aqui. Ó, pra vocês verem. Esse é o cara”. E o cara gravou um _____: “Eu vou te matar”. O cara fazia isso, (risos) sabe? Aí, o que acontece? Mandei tudo pra polícia. O final da história é que essa força-tarefa foi atrás dos caras e prendeu. Eu fiquei sabendo mais tarde, porque teve um ponto que eles pararam de me mandar “e-mail”. Porque eles tinham um grupo, o tal do Dogolachan, que lá eles começaram a brigar entre eles. Porque eles começaram a tentar me provocar, a tentar ir contra mim, só que eles não imaginaram que eu era tão louca a [ponto de] ir contra eles, sabe? Porque eles falaram que tinham o meu endereço e etc. Teve um dia - só pra ter uma ideia de tão louca que eu sou - que eles não me mandaram “e-mail”. Eu coloquei no Twitter: “Ai, que saudade do Fulano e Sicrano. Hoje não me mandaram ‘e-mail’ pra saber como eles estão”, sabe? Então, (risos) só pra tu ter uma ideia, sabe? Então aí, teve um dia, pra finalizar a história deles, que eles brigaram dentro do grupo deles, com o primeiro cara que me mandou o “e-mail”, porque esse cara me deixou famosa e eles ficaram parecendo uns paspalhos, sabe? E daí eles pararam de mandar “e-mail”. Aí, tá. Uma das coisas que me deixam um certo orgulho, assim, é de ter ajudado a polícia, ter dado um monte de provas pra eles. E, no final, um dos principais caras lá – também não sei se ajudei, mas eu gosto de pensar que sim –, que era o principal “bullying” da “internet”, assim, foi preso e pegou quarenta anos de prisão. Não sei se ainda está preso, mas ele pegou um bom tempo. E os caras, acho que meio que baixaram a bola, porque eu nunca mais fiquei sabendo nada desses caras aí, sabe? Essa é uma das histórias do BrazilJS de 2017 e que as pessoas acabaram me conhecendo também por causa disso, sabe? Então, é por isso que digo que eu não sou de Humanas, nem de Exatas: eu sou de tretas, sabe? Se me chamarem pra uma briga, vai ser difícil de me tirar. E eles acharam que estavam tratando com qualquer uma, né? Então, quando me chamaram pra briga, eu que botei mais lenha nessa fogueira aí. Não foi fácil, não. Eu nem sei do que a gente estava falando. (risos) Eu nem sei mais.
P1 - Não. Fica tranquila. Na verdade, é até bom, né, pra você ver o exemplo da masculinidade frágil.
R - Uhum. (risos)
P1 - Que eles se expuseram, deram a cara.
R - Então, aquilo ali foi fantástico. Eu não acredito. (risos)
P1 - Então, foi bom pra pegar esse gancho, porque aí eu queria saber o seguinte: como é que você entrou na área de TI? Então, pelo o que eu entendi, foi antes da sua transição.
R - Foi.
P1 - Foi antes da retificação do nome. Então, você já tinha experiência na área, né? E aí, quando você começou a fazer a transição, começou a aparecer as questões de transfobia.
R - Sim.
P1 - Que começaram a te impedir de conseguir voltar pro mercado de trabalho. Você já tinha começado há muito tempo? Como aconteceu essa sua entrada?
R - Na TI, tu fala? Na verdade, eu trabalhava, antes de entrar na TI, numa rádio aqui em Porto Alegre, na Rádio Gaúcha. Daí, o que acontece? Eu lembro que a rádio... Rádio e TV, lá na década de noventa, era, digamos assim, o que tinha de tecnologia, né, assim. Então, eu lembro que comecei a trabalhar... Como é que eu entrei na rádio? Eu acho que o meu pai conhecia alguém, etc. — eu gostava de tecnologia —, algo assim, [e] acabei entrando. Ah, eu gostava muito de música também. Eu também gosto bastante de música, essas coisas, sabe? Não tem nada a ver com esse fone de ouvido aqui, porque ele é mais estético do que qualquer coisa. (risos) Mas eu gosto bastante de música, ouço bastante música. Naquela época, eu gostava bastante de música. Lá em casa tinha aqueles “systems”, sabe, com “receiver”, com toca-discos e toca-fitas. Sabe quando você tinha que montar os negócios? Aí tinha umas ‘caixonas’ de som, assim. Eu gostava de ficar ouvindo, etc. A gente fazia... Ah, a gente fazia festa. Eu era DJ, sabe? Então, o que acontece? Eu gostava bastante. A gente fazia festinha. Como é que é o nome das festinhas que a gente fazia? A gente fazia... Tinha uma amiga que tinha um salão, volta e meia a gente fazia festinha. Eu era DJ da festa. Então, eu gostava disso. Daí, o meu pai conheceu alguém do “não sei o que lá” e me levou lá pra rádio. Eu comecei a trabalhar em rádio. Isso foi lá por 1995. Olha, faz bastante tempo. Daí a rádio começou a se digitalizar, começou a comprar, colocar computadores e etc. Não era mais só aquela coisa analógica, igual quando eu entrei, assim, sabe? Daí eu comecei a brincar com os computadores. Eu comecei a me interessar por aquilo ali. Aproveitei, né, a chance. Eu lembro que a primeira vez que peguei no computador, eu não sabia nem mexer em “mouse”, sabe? Eu pegava o “mouse” e ia de um lado a outro da tela, até conseguir clicar em algo, sabe? Era bem difícil até, mexer naquilo ali. Então, mexi [muito e] fui aprendendo bastante. Até que um dia, uma amiga minha chegou pra mim: “Evelyn, não quer fazer um ‘site’ pra mim?” E eu: “‘Site’? Faço”. Eu não sabia nada, não tinha ideia nenhuma de como fazer “site”, mas vou fazer um. E fiz. Só que isso era na década, sei lá, noventa e poucos, na época do GIF animado — o “site” ficava todo piscando, sabe? Olha, vou dizer uma coisa: se tu sofresse de epilepsia, tu ia ver aquele “site” lá piscando e ter um ataque, sabe? Era [para] ter um monte de coisa piscando no “site”. Era no tempo do “flash”. Era um monte de coisa rodando, pesado pra caramba, sabe? Então, mas fiz. E eu comecei a me interessar cada vez mais por essa parte, sabe, de fazer “site”, essas coisas assim. E uma coisa foi levando à outra. Aí fui fazer alguns cursos no Senac. Eu nunca lembro se é Sesc, Senac, mas Senac, que era perto de onde eu trabalhava. Saía do trabalho, ia fazer o curso. E depois saí da rádio e fui trabalhar numa empresa, como desenvolvedora. Isso foi em 2002. E daí, dali fui evoluindo na área. Uma coisa legal que eu sempre falo, que logo quando comecei a trabalhar nessa primeira empresa, era uma empresa na parte de TI, bem legal, porque em 2002 já tinham, haviam mulheres – havia é ótimo - trabalhando na empresa já, sabe? Ela já tinha uma certa diversidade, já naquela época. Eu passei por outras, sabe? E eu vi gestor dizendo que não gostava de trabalhar com mulheres, porque não entendia mulheres. Então, já vi muita coisa na área. Eu sei muito bem como é a cabeça das pessoas com relação até mesmo a entendimento do diverso, do diferente, sabe? Porque pra eles, pra algumas pessoas, é mais fácil tu manter tudo igual, tudo linear, assim, porque, no final, pra eles não interessa. O que eles querem é um resultado. Se a pessoa é uma idiota, ou seja o que for, pra eles o que importa é o resultado final, sabe? Então, eu já passei por muitas coisas. Mas, o que acontece? Tem uma coisa — eu vou mostrar pra vocês. E o que acontece? — que eu costumo dizer com relação a isso tudo, que é: uma vez eu entrei numa empresa, que eu falei, que tinha lá — o (“ombudsman”?) da empresa, assim, né — um joguinho Conte Cinco Segredos, assim, né? Daí eu falei um dos segredos, que é, que eu anotei: “Eu já matei uma pessoa”, sabe? Aí (risos) as pessoas, quando as pessoas: “Nossa. Como assim?”. Aí eu conto que teve uma época na minha vida que eu tinha que decidir se me matava ou matava aquela pessoa que estava existindo, sabe? Então, eu resolvi matar aquela pessoa que estava existindo, porque não fazia mais sentido existir naquele formato. Então, foi aí que eu resolvi, de fato, nascer, existir de verdade, viver de verdade, sabe? Então, porque, o que acontece? Tu, desde que nasce, tem certeza de quem tu é, sabe? Então, a questão toda são alguns medos, alguns receios. Porque tem uma coisa que acontece e vai sempre acontecer quando tu faz a transição, ainda mais se tu faz a transição de forma tardia, é que tu vai perder. Tu tem que escolher: ou tu vive ou tu perde, sabe? Aliás, tu vai viver, tu vai perder, na realidade. Porque ou tu vive, ou continua com todos os teus privilégios, sabe? Porque tu vai perder algo, sempre, no momento em que for fazer a transição. Eu não conheço nenhuma pessoa trans que tenha continuado com tudo o que tinha antes. Sempre perde alguma coisa, sabe? Porque sempre existe algo, alguém, sempre existe… Sei lá, é meio complexo de falar, porque a relação que tu tem com as pessoas muda completamente. As amizades deixam de existir de um dia pro outro, sabe? E daí tu vê, realmente, quem são as tuas amizades, quem são as pessoas que se importam contigo. E isso é, no final, quando tudo passa, quando o furacão passa, é bem gratificante entender quem realmente se importa contigo, sabe? E quem, realmente, estava contigo por estar ali. Que não tinha ideia de quem, realmente, tu era; que não tinha ideia, que era só por aparências, sabe? Então, existem certos medos [e] receios. E é isso. E tem muitas pessoas que acabam desistindo por causa disso, que não fazem essa transição por causa disso, sabe? Eu conheço pessoas que não fizeram a transição por causa disso. Vivem num desgaste emocional terrível e vão viver [assim] até o fim da vida, sabe? Se não acabarem com a vida antes. Então, eu cheguei num ponto [em] que eu tinha que matar uma pessoa ou outra. E eu matei aquela outra, sabe? Resolvi continuar vivendo a minha vida, que é essa que vocês estão vendo. E eu não me arrependo de jeito nenhum. Posso ter passado por problemas, mas esses problemas foram resolvidos de uma forma ou outra e que apenas acabaram me fortalecendo. As pessoas ficam assim: “Nossa!”. Ficam com um certo... Eu acho tão engraçado, né? Porque elas ficam com um certo sentimento de pesar, quando tu conta a história pra elas. Mas não é bem assim, sabe? A gente acaba que... Como é que eu vou explicar? A gente acaba que a gente conseguiu, sabe? E a gente procura contar isso, pra que outras pessoas não precisem passar [pelo mesmo]. Não é pra se vangloriar. Não é pra contar vantagem. Não é pra alguém chegar e: “Nossa, que legal. Você é uma vencedora, uma super mulher. Você é isso, aquilo outro”, não. Tu acha, realmente, que eu gostaria de ter passado por isso? Tu acha, realmente, que gostaria de ter nascido assim, nascido assado? Cara, eu gostaria de ter, sabe, sei lá, nascido rica, sabe? E não ter me preocupado com nada, na minha vida. Sinceramente. Mas nasci assim. E eu tenho que entender que o que eu faço tem reflexos. Por exemplo: depois dessa coisa da BrazilJS, o que aconteceu? Eu comecei a participar de eventos. Uma vez eu estava lá em Salvador, eu estava sentada. Estava eu e uma amiga minha, almoçando, depois de um evento. Durante o evento, na realidade. E eu lembro que olhei pra um lado, assim, um rapaz me olhou. Ele também estava almoçando, numa outra mesa. Ele levantou, veio falar comigo. Ele falou: “Tu que é a Evelyn?”, “Sim, sou”. Daí ele veio assim: “Eu posso te dar um abraço?”. Daí eu: “Pode”. Ele me abraçou e falou bem assim: “Olha, depois que tu apareceu, eu resolvi voltar pra TI. Muito obrigado”, sabe? E eu recomecei a receber mensagens de pessoas, que depois de alguns eventos que eu comecei a participar e comecei a palestrar etc., a aparecer. Principalmente depois dessa ‘loucurada’ que foi essa treta toda que deu, lá da BrazilJS. Pessoas, mulheres que resolveram voltar pra TI, pessoas que falaram bem assim: “Cara, eu saí do armário por tua causa”, sabe? “Eu fiz a transição por tua causa”. As pessoas vieram me falar isso. Então, acaba tendo uma certa responsabilidade nas coisas que tu faz e vê que acaba influenciando as pessoas. E eu simplesmente estou só existindo. Tu acha que eu tive a intenção de impactar alguém? Eu só tive a intenção de mandar aqueles caras pra puta que os pariu, por exemplo, sabe? (risos) E estar no palco mostrando o que eu sei. E mostrando pra pessoas que eu posso estar no palco e que todo mundo pode estar no palco. Mas eu nunca imaginei que eu poderia impactar tanto, assim, na vida das pessoas, sabe? E a última coisa que eu ouvi, que me deixou, daí me impactou, foi: “Eu não me matei por tua causa”, sabe? Eu pensei: “Bah, que filho da puta! Tu não sabe o peso que me dá”, sabe? (risos) Então, é uma coisa meio maluca, se tu parar pra pensar. E eu só estou vivendo, lutando todo dia, sabe? Hoje eu tenho o privilégio de ter um bom emprego. Só que eu sei que, de repente, amanhã eu posso ser demitida. Eu, realmente, não sei se eu tenho estabilidade no meu emprego. Não sei te dizer. Realmente, não sei te dizer. Então, a minha vida está sempre assim, meio que na corda bamba, sabe? Eu estou bem hoje. Amanhã, será que eu vou estar? Daqui um ano, será que eu vou estar? Não tenho ideia. As pessoas falam em ter uma carreira. O que é ter uma carreira? Eu não tenho ideia. Eu tenho um emprego. No momento, eu tenho um emprego, sabe? Amanhã eu posso estar desempregada, posso estar fodida de novo, tendo que correr atrás. Posso estar ganhando, sei lá, muito menos do que eu ganho hoje; estar passando trabalho, sabe? Então, eu estou sempre, como é que vou dizer? Apesar de todos os privilégios que eu tenho, perante outras pessoas trans, ainda tenho as mesmas preocupações que essas mesmas pessoas trans têm hoje. Porque o mundo não é feito pra gente viver, o mundo é pras pessoas cis. As pessoas cis, hoje em dia, não se preocupam, porque o mundo é feito pra elas. Principalmente um homem, branco, hetero, cis, sabe? Então, é o que eu falo, hoje em dia: um homem branco, hetero, cis, hoje sai de um trabalho, amanhã está em outro, sabe? Eu, pra conseguir um emprego, é a coisa mais difícil do mundo. Porque, primeiro, eu tenho que entender se a empresa vai me aceitar, se as pessoas vão me aceitar, se a empresa tem uma forma inclusiva de tratar as pessoas, sabe? Tu acha que um homem branco, hetero, cis, está preocupado se a empresa aceita pessoas Lgbts, se ela tem um plano de inclusão pra mulher? Toda empresa tem um plano perfeito de inclusão para um homem branco, hetero, cis. Toda empresa. Toda, em qualquer lugar é assim, sabe? Então, não é qualquer lugar que eu posso ir. O mundo, o meu mundo é bem mais restrito do que [o de] muitas outras pessoas. Então, tem certos lugares que eu não posso ir, tem certas coisas que eu não posso fazer. De certa forma, eu já me acostumei com isso. E, de certa forma, dentro, como eu falei, do meu contexto, do contexto trans, eu sou, tenho certos privilégios. É muito estranho falar sobre isso, mas tem. Então, é ruim eu ficar reclamando de alguma coisa, mas acho que a gente tem muito ainda que evoluir, com relação a nosso entendimento do que são seres humanos, pra gente poder tratar as pessoas com equidade, sabe? Então, ainda luto, né, vou lutar bastante. É por isso que vocês vão me ver muito falando sobre mulheres trans, pessoas trans, travestis. E fazer com que a coisa seja cada vez mais vista, mais lembrada, mais aceita, mais humanizada e cada vez mais normalizada, sabe? Que ninguém mais faça piadinhas, ridicularize, menospreze ou ofenda, bata, violente ou mate pessoas trans. Que é o país que mais mata pessoas trans no mundo, que, na realidade, se tem notícias, no mundo, né? Apesar de ser o que mais procura, nesse paradoxo todo que a gente tem, pornografia trans e travesti, no mundo, também. Pra tu ver que existe esse ódio pelo que tu gosta, pelo que te atrai, sabe? Então, é bem complicado isso tudo. Bem complicado mesmo. Eu nem sei, acho que já me perdi também.
P2 - Evelyn, qual foi o momento na sua vida que você parou pra pensar: “Sim. Eu sou uma mulher trans”? Ou você sempre soube?
R - Então, isso aí não é uma coisa que... Como é que eu vou explicar? Isso aí, é uma pergunta um tanto quanto... Por exemplo, eu vou te perguntar uma coisa: quando é que tu parou pra pensar que tu é uma mulher cis?
P2 - É. Faz sentido. Sim.
R - (risos) Entendeu? É uma coisa, é que tu sempre sabe, entendeu? Só falta o momento do despertar, sabe?
P2 - Entendi.
R - Pra algumas [pessoas], esse momento é mais cedo. Outros, mais tarde. Isso depende muito de fatores, né, socioambientais. (risos) Eu acredito. Se eu posso definir dessa forma. Então, esse despertar, assim, eu acho que a gente pode chamar, até ter uma palavra um pouquinho melhor, é que te define. Mas não existe, assim, porque parece que vira. Se tu pensar dessa forma, parece que é uma opção, mas não é uma opção, né? É algo que tu sempre sabe. Tu já nasce com isso dentro de ti, sabe? Eu sei disso desde que me entendo por gente. Sempre me imaginei de uma forma na qual eu não conseguia me relacionar. Então, daí tu procura tentar se adequar. Em algum momento, no momento que tu não... Como é que eu vou explicar? Quando tu não está adequada àquilo, tu tenta viver um mundo que não é isso. Tanto que tem partes da minha vida que parece que — até converso, conversei com a minha psicóloga, sobre isso — eu estou me vendo fazendo as coisas, sabe? Que não sou eu que estou ali. É muito estranho isso. Parece que eu estou do lado, assim, e estou vendo aquelas coisas acontecendo, sabe? Porque parece que tanto faz. Muito tempo da minha vida, tanto fez aquela vida estar ocorrendo, acontecendo, porque aquela vida não servia pra mim, sabe? Daí tu desperta. Desperta. Tu tem que viver, tem que ter uma vida pra ti. Felizmente, hoje, as pessoas trans estão conseguindo ter isso mais cedo. Isso é muito positivo. Não existe mais tanta repressão. Existe mais entendimento do que se é, sabe? Antigamente não se tinha isso: ou se era gay ou se era lésbica, sabe? Ou se era travesti. E, na realidade, não era nem “a” travesti, era “o” travesti, entendeu? Então, existia uma outra conotação pra tudo isso, sabe? As coisas eram um pouquinho diferentes. E também não existia espaço pra um desenvolvimento da pessoa. Não existia espaço pra desenvolvimento, tanto emocional, quanto profissional. Hoje existe esse espaço. Apesar de que pequeno, mas existe. Mas também tem uma coisa, né? As pessoas trans, hoje, que têm mais, como eu disse, esse privilégio também. Eu sei também que esse privilégio, esses privilégios que eu tenho hoje são decorrência de uma vida passada, onde eu também vivia como uma pessoa que não tinha feito ainda a transição. Então, apesar daquela vida que eu tinha, que não fazia sentido, conquistei algumas coisas, sabe? Então, digamos assim: provavelmente, se eu tivesse, naquela época da minha vida, lá pela década de oitenta etc., feito a transição, me assumido como travesti, provavelmente eu nem existiria hoje. Como muitas aconteceram. Porque, naquela época, a vida de uma travesti naquela época era, realmente, muito curta. Muitas que existiam naquela época, que viveram naquela época, não vivem mais, sabe? Então, a faixa... Como é o nome que se diz, mesmo? O período… Como é o nome que se diz? Eu não me lembro agora, como se diz. Mas hoje em dia...
P1 - A expectativa de vida?
R - Exatamente. A expectativa de vida de uma pessoa trans, hoje, é de 35 anos, no Brasil, sabe? Então, pra tu ter noção de como é que funciona as coisas. É por isso que eu digo, voltando à situação: tu sempre sabe. Sempre sabe quem tu é. Falta é tu se deixar ser. “Se deixar ser”, é só isso.
(Isto está além das minhas habilidades no momento)
P1 - Você [falou] alguma coisa?
R - Eu não. Alguém falou, não sei quem. Não sei se foi a minha Siri. (risos) Alguma Siri falou aí. Agora, eu não sei quem foi. (risos)
P1 - É. Eu não tenho. (risos)
R - Quer se meter na conversa. (risos)
P1 - É, quer conversar também. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre a criação do seu canal no Youtube, o Trans de Programa.
R - Ah!
P1 - Como surgiu? De onde veio essa sua ideia? E você falou: “Vou fazer”?
R - Ah, então, o que acontece? Isso foi porque eu comecei a escrever alguns artigos. E, na época… Foi quando isso? Em 2017, por aí, eu comecei a escrever alguns artigos. Eu não tinha a menor ideia de inscrever, fazer o canal, nem nada. Daí, do nada, eu resolvi, um dia, fazer um vídeo, porque só o artigo estava meio difícil explicar algumas coisas pras pessoas, sabe? Porque daí, tu tinha que escrever muito texto, pra explicar algumas coisas. (risos) Aí o vídeo ia ser mais fácil. E eu lembro que os primeiros vídeos que eu fazia, nossa, eu tinha uma vergonha horrível. Primeiro, de falar e depois de colocar a cara, sabe? Então, eu nem editava. Os primeiros vídeos eram assim, eu nem editava — era como se fosse uma “live”. Eu começava a gravar e eu ia do início ao fim. Se desse erro, aparecia tudo no vídeo, ali. Eu não estava nem aí, pegava e gravava do início ao fim. Eu não mostrava o rosto, não mostrava nada, porque morria de vergonha. E, no final, terminava o vídeo, só cortava o início e o fim ali, e publicava. Nem tinha nome, nem nada. Era só pra mostrar pras pessoas, porque eu queria que as pessoas pudessem entender que existia uma maneira mais fácil de fazer desenvolvimento, né? Que era nessa tecnologia que eu estava apostando na época, que é do Firebase do Google. Daí começou. Comecei a postar alguns vídeos, etc. E mais tarde, só, que surgiu essa ideia do canal Trans de Programa, sabe? Pra juntar, porque é uma piada com o que eu faço, que é programação e eu sou trans: então ficou Trans de Programa. Eu acredito que tem algumas pessoas que se inscrevem naquele canal, achando que vão ver alguma putaria, porque acham... (risos) Porque esses dias, eu escrevi, coloquei Trans de Programa ali no meu Twitter e veio umas pessoas meio estranhas me seguir, sabe? (risos) Que eu tenho certeza que acharam que iam ver alguma putaria. Tu está rindo de mim, mas é sério. É sério. Eu estou falando sério. Eu comecei: “Mas que pessoa estranha me seguindo, não tem nada a ver com TI. Tem umas fotos estranhas aqui”. (risos) Então, tem umas pessoas que olham o Trans de Programa...
P1 - É que eu achei o trocadilho genial. Mas sempre vai ter alguém que não vai entender, né?
R - É, então. Eu acho que tem várias pessoas que não entenderam. Daí quando olham que não tem nada a ver, eles pegam e param de seguir. E é muito engraçado isso. Acho bem engraçado, até, por sinal. Daí, o que aconteceu? Eu pensei: “Nossa. Eu preciso ter um nome pra esse canal, né?”. Aí pensei em vários nomes: Trans Nerd... Eu tinha lá que era Trans Nerd, mas aí ficou muito nada a ver, assim, sabe? Até achei legal no começo, mas depois tirei. Aí ficou Trans de Programa. E ficou Trans de Programa. Aí todo mundo conhece como Trans de Programa. E ficou, o canal, como Trans de Programa. E daí, acabou que fez sucesso, um certo sucesso, assim. As pessoas conhecem e assistem lá. Eu acho legal que ele não é um canal que tem muitas pessoas que se inscrevem, mas muitas pessoas me dão muito “feedback” bacana, nos eventos que eu vou, sabe? Que aprenderam muita coisa sobre essa tecnologia, né? E o Google, depois, veio atrás de mim, pra que eu fosse Google Developer Expert nessa tecnologia. Eu sou, agora, Google Developer Expert em Firebase, já faz dois anos, por causa, justamente, [do canal]. E o que acontece? Como eu pego o que aprendo, costumo passar pras pessoas. Porque eu acho que conhecimento não é suficiente se tu tem só pra ti, né? Acho que é uma coisa que deve ser passada. Então, se eu aprendo uma coisa nova, gosto de mostrar pras pessoas: “Olha que legal aqui”. Gosto de passar. Hoje em dia, tem... Não tem só [video no meu canal] sobre tecnologia, tem outras coisas lá da minha vida: “Comprei uma mochila nova. Olha, que legal!”. (risos) ______, mas está lá. As pessoas gostam de ver. Mas tem outras coisas de tecnologia bem interessantes. Por exemplo, esses dias o Google chegou lá e disse que: “Agora, essa parte aqui do Firebase tem que pagar”. Daí eu fiquei puta. Enfim, eu acho que sei lá, não quero botar assim, mas fiquei puta com isso aí. Aí eu mostrei pras pessoas como usar essa parte paga, só que de graça, sabe? No próprio servidor etc. Aí está lá, também. Então, tento ajudar as pessoas, da maneira que eu consigo, dentro dos meus conhecimentos, sabe? Tento sempre aprender alguma coisa nova e sempre passo pras pessoas. Porque o que adianta tu ser uma pessoa que vai lá, super conhecedor, um super cientista, [que] vai à lua duas ou três vezes e não transforma isso num conhecimento que seja aproveitável por outras pessoas, sabe, que tu consiga passar. Tu nunca escreve, ou escreve de uma forma que não seja, que as pessoas não consigam entender. E é uma coisa que eu procuro fazer, é sempre falar e escrever de uma forma que as pessoas consigam entender. Mesmo que tu seja uma pessoa muito experiente ou que tu não tenha experiência nenhuma naquilo ali. Pra que tu consiga pegar, que seja quase que uma receita de bolo, sabe? Porque eu cansei de já ir na “internet” e procurar algo e o cara assim: “Faz dessa forma aqui” e colocar um trechinho de nada e toda parte, o resto ficar faltando. E aquilo ali te traz mais dúvida do que trazer a solução do que tu estava procurando, sabe? E aquela pessoa ser até mesmo arrogante o suficiente, pra achar que só aquilo ali é o suficiente pras outras pessoas. Eu gosto de poder chegar e explicar pra pessoa, pra que a pessoa realmente consiga entender e ver valor naquilo ali, sabe? Eu realmente não acho que meia informação seja suficiente pra que uma pessoa realmente consiga ter conhecimento e aprender algo. Eu acho que meia informação pode prejudicar mais do que informação nenhuma, às vezes, sabe? Então, eu procuro sempre dar o meu melhor. Quando eu vou passar alguma coisa, que isso consiga realmente chegar na pessoa. A pessoa consiga realmente desenvolver algo, sabe? Porque, sei lá, é como eu falei: já passei muito perrengue com gente que se acha arrogante, pra passar a coisa pela metade, que tu chega lá e vai implementar algo... E aquilo ali... E a pessoa: “Não, é isso aí mesmo e se rala e vai atrás do resto”, sabe? Então, sei lá, eu gosto [que] se for passar informação, gosto de passar algo com qualidade. Então, eu acho legal o “feedback” das pessoas, que elas conseguiram seguir o que eu falei, conseguiram olhar um vídeo ou um tutorial, fazer aquilo e aprender com aquilo, sabe? Um rapaz, uma vez, falou que passou aquilo pros alunos dele e várias pessoas conseguiram usar, sabe? Eu achei fantástico aquilo, porque é uma tecnologia que consegue usar de graça. E pode incluir pessoas na tecnologia, sabe? Porque tu não precisa ter um computador super bom. Eu tenho um e eu digo assim: “Cara, tu não precisa ter isso aqui, sabe? Se tu usar dessa forma aqui, tu pode pegar uma paginazinha, um Htmlzinho simples, assim, e tu vai ter o mesmo ‘software’ aqui. Tu tem acesso a toda essa arquitetura e [consegue] aprender, sabe? E, aprendendo, tu tem toda essa documentação aqui. E mesmo tu, agora, nesse momento, sabendo muito pouco, tu vai evoluindo”, sabe? Então, coisas que outras plataformas e outras arquiteturas não oferecem, que é ser de graça, sabe? Eu acho que isso é algo que as pessoas, às vezes, não entendem, sabe? Porque é tu oferecer algo pra que as pessoas abram uma porta, uma janela, pra que as pessoas possam vislumbrar um futuro diferente do que elas têm hoje, sabe? O que eu ofereço pode ser feito até pelo celular, se a pessoa quiser, se a pessoa realmente tiver disposição. Pode até usar o celular pra desenvolver algo, sabe? Então, tu não precisa ter um supercomputador, ter uma super conexão com a internet, sabe? É por isso que eu digo que sou privilegiada: tenho um baita de um computador. Eu tenho uma baita conexão com a internet, sabe? A minha “webcam” é 4k. Vocês falaram do meu microfone, o meu microfone também é um microfone bom. E quando eu comecei a gravar vídeos, olha só, as pessoas: “Não. A Evelyn grava vídeo com uma câmera super boa. A Evelyn tem um iPhone. A Evelyn tem isso...”. Cara, quando eu comecei a gravar vídeo, eu tinha um… Tenho até ele, hoje, aqui, ó. Eu tenho esse cara aqui. Acho que nem era esse aqui, não. O microfone que eu usava era o do fone de ouvido do celular. Se tu ver os primeiros vídeos que eu tenho... Ele está aqui, ó, ele está amarradinho aqui. Ele está balançando aqui. Esse é o microfone que eu usava. A “webcam” que eu usava, a câmera, era do “smartphone”, que eu colocava ali e usava. O computador que eu tinha também não era dos melhores que tinha. Então, o que eu digo pras pessoas: “Você não precisa ter as melhores coisas pra passar conhecimento. Tu não precisa ter o melhor computador pra aprender tecnologia”. Eu estou tentando mostrar para as pessoas que não é necessário. Porque, se tu esperar pra ter o melhor, tu nunca vai fazer nada, nunca, sabe? Tu nunca vai conseguir chegar a lugar nenhum. Se tu esperar a melhor estrada pra poder trilhá-la, me desculpa, mas tem que começar por uma trilha, primeiro, sabe? Uma trilhazinha ali, pra começar a tua vida. Porque vai esperar uma “freeway” ou uma autoestrada? Não vai rolar. E ter um super carro? Não vai rolar. Você tem que começar aos poucos, sabe? Eu comecei aos poucos também. Então, eu fui, aos pouquinhos, avançando. A mesma coisa foi quando eu comecei a aprender as coisas de TI. Comecei tentando aprender JavaScript, fiz um cursinho. Os cursos que eu fiz, iniciais, de JavaScript e de desenvolvimento de programação, eram extremamente básicos. [Muito] básicos. O resto eu tive que correr atrás. Então, as pessoas, eu não sei se elas querem tudo de mão beijada, sei lá, mas eu não acho que isso seja o ideal, sabe? Pra ter uma ideia, na época que eu aprendi a desenvolver, eu tinha que pegar, baixar o tutorial — eu trabalhava ainda lá na rádio —, imprimia, levava pra casa. De noite, eu lia. Chegava outro dia, no trabalho — porque eu não tinha computador em casa —, botava no computador e escrevia o que aprendia quando eu lia, durante à noite. Porque eu não tinha computador em casa. Então, eu acho que se tem uma certa diferença, sabe, na forma como eu trabalho, pra como as pessoas trabalham hoje. Hoje em dia, ficou muito mais fácil, de repente, porque tu já tem tudo na mão. Vai no Google, já tem tudo ali. Eu já não. Tinha que procurar, já tinha que baixar, tinha que fazer as coisas de uma forma muito mais, digamos, precária. Não sei, mas isso me ajudou bastante, em termos de ter essa... Correr atrás, sabe? Ser mais “safa” nas coisas todas. Eu acho que as pessoas, eu acho que, de repente, podem estar esperando por algo muito mais além. E as coisas, na realidade, estão mais à frente delas, ali, pra tentar se resolver. E eu procuro mostrar isso pras pessoas, que elas podem. Não precisam esperar tanto, elas podem começar já, sabe? E tem gente que procura dificultar isso. Tem pessoas que dificultam — que TI é difícil, que é isso, que é aquilo outro —, que TI é só pra pessoas super inteligentes. Cara, as pessoas da TI não sabem nem fazer um cálculo. Esses dias fui lá: “Faz um cálculo de tanto mais tanto, não sei o que”, a pessoa vai pro computador, pra abrir a calculadora. A pessoa não sabe fazer um cálculo de cabeça, sabe? A pessoa manda o computador sempre fazer. A TI é a arte de mandar o computador fazer, não é de tu fazer, sabe? As pessoas da TI são extremamente preguiçosas, nesse sentido. Então, se tu quer entrar pra uma área onde tu vai fazer as coisas mais de cabeça, você vai pra ciência, vai pra outras coisas. Vai pra outras áreas, sabe? Não pra TI. (risos) A TI é pra pessoas preguiçosas. (risos) Não é nessa área que tu vai ver gente muito crânio, não. Claro que tem exceções, obviamente. (risos) Mas a maioria, ó, não é muito boa, não. (risos) Eu estou falando mal das pessoas. Nem devia. Eu vou tomar um pouquinho de suco. (risos)
P1 - E vou… Pra te perguntar: a questão da pandemia, na sua vida, mudou muito a sua forma de trabalho ou de diversão? Em geral, qual foi o impacto?
R - Mudou. Mudou muito a minha forma. (risos) Eu engordei horrores. Eu só fiquei dentro de casa. Acho que eu engordei uns quinze quilos nessa pandemia. Acho que [foi] isso que aconteceu. Mas eu já trabalho… Assim, mudou quase nada, porque eu já trabalho remoto faz alguns anos. Então, isso que vocês estão vendo aqui é o meu escritório: eu já tenho toda a minha área de trabalho aqui, já pronta pra trabalhar. Então, ela não mudou quase nada, assim, sabe? O que aconteceu foi que, realmente, fiquei mais sedentária, né? Porque daí, o que acontece? Eu fiquei... A pandemia me forçou a ficar, realmente, só dentro de casa. Aí, o que acontece? (risos) Imagina o seguinte: eu acordo, estou deitada, levanto, tomo banho, me arrumo. Porque eu tenho essa mania, né? Mesmo trabalhando em casa, eu me levanto, me acordo e vou trabalhar. Eu tomo banho, me arrumo. Tem gente que fica na cama, trabalhando. Eu não. Eu vou, tomo banho, me arrumo bem e venho pra cá, pro escritório. Só que daí, ou estou deitada ou eu estou sentada. (risos) E não faço exercício nenhum. O exercício que eu faço é: eu desço com — ele estava aqui agora — o Ishiro, o meu filhote, pra dar uma volta na quadra, durante a semana. Porque nem no mercado mais [eu] vou, porque agora, até isso a pandemia facilitou, até isso, porque eu entro ali no “smartphone” e chamo o mercado, eles vêm aqui. Quatorze reais, mais barato do que pegar um Uber pra ir no mercado, sabe? Então, eu só engordei. Só engordei. Agora, depois da pandemia, eu vou ter que pegar forte numa academia. Eu não sei o que eu vou fazer, vou ter que correr atrás [dessas] coisas, sei lá. Mas, de resto, mudou muito pouco. Durante a pandemia, eu ainda acabei indo pra Manaus. Porque teve uma época que Manaus ficou quase... Teve aquela época ruim lá em Manaus, né? Que deu todo aquele fuzuê lá, que morreu muita gente. Depois parou um pouco. Eu acabei indo pra Manaus, ainda dei uma... Fiz umas viagens, ainda, mas depois parou tudo. Fiquei só dentro de casa, mesmo. Não fui mais. Mas pra mim mudou muito pouco, mesmo. Mas foi mais [fácil] ficar mais dentro de casa. Teve dias que eu fiquei, acho que uma semana sem, realmente, mais de [uma] semana, sem realmente sair de dentro de casa. Acho que logo no início, que deu a coisa da pandemia. Eu não lembro direito. Fiquei, realmente, bem isolada; dentro de casa, assim. Mas, de resto, mudou muito pouco, mesmo.
P1 - Certo. E, pra entrar nas perguntas finais: primeiramente, eu queria que você comentasse um sonho pro futuro que você tem, agora?
R - Sonho pro futuro. Futuro distante? Ou futuro próximo?
P1 - Tanto faz.
R - Sei lá. Eu acho que o meu maior... Você diz, assim, pessoal? Ou pra humanidade, a paz mundial?
P1 - Não. Pessoal.
R - Ah! Então, tá. (risos)
P1 - Fale da sua vida. Seus sonhos, seus desejos.
R - Ah, tá bom. Bom, agora eu quero ser vacinada. Então, mas não é... É mais um anseio, ser logo vacinada. Mas eu acho que o que eu mais quero, hoje, é ter um futuro mais tranquilo. Lembra que eu falei sobre a questão de não ter certeza sobre o meu futuro? Eu não tenho certeza sobre o meu futuro. O meu sonho é ter certeza, ser um futuro mais assertivo, assim. Conseguir... O que acontece? Eu não consigo definir o meu futuro. Eu não consigo saber o que vai acontecer. Não consigo… Vou dizer assim, ó: “Genivaldo, ano que vem eu vou estar fazendo tal coisa”. Não sei, sabe? O meu sonho é poder fazer isso, poder planejar um futuro. Esse é um dos meus — Como é que eu vou dizer? — principais objetivos de vida: poder planejar o futuro. Hoje em dia, eu não consigo. Sinceramente, eu não consigo. As pessoas podem achar isso um tanto quanto estranho, mas eu não sei. Eu não sei o que vai acontecer no ano que vem. Não sei o que vai acontecer, de repente, até, daqui a seis ou três meses. Eu, realmente, não tenho ideia. As coisas são tão... Às vezes, pode ser — deixar a palavra um pouquinho mais leve, dinâmicas na minha vida — que eu não consigo planejar o futuro. O meu sonho é poder planejar o meu futuro, sabe? Que eu possa ter tranquilidade com relação à minha vida. Isso que eu gostaria de ter. Só isso.
P1 - E o que você considera mais importante pra você? Pode ser uma ou várias coisas. Mas na sua vida inteira, o que você dá mais valor, mais importância?
R - Ah, minha tranquilidade emocional, sabe? Eu estar bem comigo mesma. Poder dormir tranquila. Mas isso é algo que passa por questões de saúde e questões financeiras, né? Então, é saber que amanhã eu vou estar tranquila. Eu vou poder pagar as minhas contas, os boletos, sabe? (risos) Não vou ter que me preocupar. Então, poder chegar e dormir. Chegar, olhar a minha cama e poder dormir tranquila. Então, eu passei bastante tempo em terapia, com psicóloga, psiquiatra. Eu já tomei bastante remédio. Hoje em dia, a minha psicóloga e psiquiatra já estão procurando até me dar alta, sabe? Então, são coisas que, aos pouquinhos, eu estou conseguindo. Porque eu noto que os perrengues da vida estão ficando mais distantes, assim, sabe? Não que eles vão sumir. Mas essa tranquilidade de poder dormir bem, pra mim, é muito importante, sabe? Poder estar tranquila, não ter mais nenhum problema durante o dia, que vá incomodar o meu sono, pra mim, é, nossa, uma das coisas mais fundamentais, hoje em dia, né? É coisa simples, sabe? Eu acho que não tem... É que nem o pão torrado de manhã: são coisas simples. (risos)
P1 - Simples e fundamentais, né?
R - É.
P1 - Então, a gente vai pra última pergunta: o que é que você achou de ter contado essa história pra gente?
R - Eu achei interessante. Eu revivi algumas coisas que não achei que fosse reviver. Pra mim, é interessante. Eu gosto. Por que, o que acontece? Tem coisas que eu procuro não reviver, assim, sabe? Mas às vezes é importante, até mesmo pra... São coisas que definem quem eu sou. Então, tem coisas que, às vezes, tu pensa assim: “Nossa, acho que não é legal eu ficar pensando nisso”, mas são coisas que me formaram, que definem quem eu sou. E que, sem elas, provavelmente vocês nem estariam aqui falando comigo, sabe? Então, é importante, às vezes, contar essa história e mostrar pras pessoas que eu não sou nada demais também. E é uma coisa que eu também (risos) não gosto de ficar falando. Porque, eu vou ser bem sincera: tem pessoas que me colocam num pedestal, que eu acho horrível, sabe? Por que eu falo isso? Eu acho que contar a história, essa história, por exemplo, assim, daquela treta louca do BrazilJS, eu fiz aquilo porque tinha que ser feito, sabe? Não porque eu gostaria de fazer, tá? É porque tinha que ser feito. Porque, se eu não fizesse, quem faria? Eu já estava ali, já estava na briga, mesmo, por que eu vou sair, sabe? Eu não ia deixar ninguém falar mais alto, quando sabia que essas pessoas estavam erradas. E como eu sempre fui muito, digamos assim, aguerrida, sabe, eu aproveitei. Mas não é porque eu quis. Não é porque eu gosto, de verdade, de brigar e etc. É porque é necessário, porque outras pessoas não conseguem. E, se eu consigo, por que eu não vou fazer? Então, na realidade, eu sou aquela pessoa que está sempre lá na frente, fazendo, brigando pelas outras, mas que, se pudesse, não precisaria estar, porque eu acho que ninguém precisaria estar fazendo isso. Acho que eu não gostaria que ninguém precisasse estar fazendo isso, mas eu tenho força, vou lá e faço. Mas acho que é importante. Acho que é importante pra eu mesma entender quem eu sou. Acho que é importante falar isso porque, às vezes, eu tento esconder quem eu sou e tento não ficar mostrando. Acho que é mais ou menos isso. Não sei se eu consegui te responder.
P1 - Conseguiu, sim. Bom, então a gente vai encerrar aqui a entrevista. Eu agradeço muito o seu depoimento. Eu vou pedir só pra você ficar mais um pouquinho.
R - Tá.
P1 - Porque a gente encerra e a gente conversa mais algumas coisas, tá bom?
R - Tá bom. Uhum.
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