Museu Aberto
Depoimento de Lourdes Alves de Souza
Entrevistada por Rosali Henriques e Ana Carolina Aguiar
São Paulo, 16/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
PCNA_HV_004_Lourdes Alves de Souza
Transcrito por Suely Aguilar Branquilho Montenegro
Revisado por Júnior César Oliveira Farias
P/1 – Qual seu nome completo, local e data do seu nascimento?
R – Eu me chamo Lourdes Alves de Souza, eu nasci no dia 1º de abril de 1955, na Freguesia do Ó. Sou paulistana e vivo lá até hoje.
P/1 – Qual é o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Sebastião Alves de Souza e minha mãe Maria Balbina Soares de Souza.
P/1 – Eles são vivos?
R – Minha mãe é viva, têm 80 anos, meu pai é falecido há nove.
P/1 – Conte um pouco sobre a origem da sua família, você sabe a origem dos seus avós? Os seus pais são aqui de São Paulo mesmo?
R – Os meus avós paternos são do interior de São Paulo, divisa com Paraná, foi onde meu pai nasceu, em São Manuel, interior de São Paulo. Os pais da minha mãe são da região de Bauru, Agudos, também interior de São Paulo. Meu pai veio para São Paulo bastante jovem, ele era filho de agricultor e também foi um agricultor. Com 12 anos o meu pai veio para São Paulo, veio buscar alguma coisa diferente que não tinha no interior. A minha mãe permaneceu no interior até seus 20 anos quando veio junto com a família que ela morava e saiu dessa família para casar.
P/1 – O seu pai veio sozinho com 12 anos?
R – Meu pai veio sozinho com 12 anos num caminhão de boias-frias, ficou na casa de amigos, na casa de pessoas que ele fez amizade e cedo começou a trabalhar, fazendo um bico aqui e outro ali. O primeiro trabalho que ele teve, registrado, aqui, foi em uma empresa de metalurgia, uma indústria metalúrgica e ele se aposentou nesta empresa. Ele foi galgando cargos lá e conseguiu ficar até se aposentar.
P/1 – E para qual bairro ele veio aqui em São Paulo. Ele já veio para Freguesia do Ó ou não?
R – Não, ele morou muitos anos no Cambuci. Cambuci, se não me engano é Zona Sul de São Paulo.
P/1 – Qual é essa metalúrgica que ele trabalhou? É aqui em São Paulo ou é no ABC?
R – Era no ABC, não me lembro do nome da metalúrgica, mas foi onde meu pai aprendeu muita coisa sobre sindicalismo. Meu pai sempre foi um homem ativista que pensava o seu tempo, que influenciava o seu tempo.
P/1 – Mas ele chegou a pertencer a sindicato?
R – Participava de reuniões, nunca foi uma liderança do sindicato, mas, eu penso que tudo o que ele aprendeu no sindicato em termos de cidadania, de defender direitos de ser trabalhador, ele fez isso onde nós morávamos, ele fez isso no bairro, ele fez isso na vida.
P/1 – E você chegou a ter contato com os seus avós paternos?
R – Não, nem maternos, eles morreram antes que eu nascesse.
P/1 – Fale um pouco sobre sua mãe. Você falou que ela veio com 20 anos para São Paulo?
R – Isso, a minha mãe ficou órfã com quatro anos de idade e o pai dela, que só tinha filhas, sentiu dificuldade para cuidar dessas filhas. Então, ele entregou cada uma delas para uma família diferente e a minha mãe foi entregue para uma família italiana, classe média, lá em Agudos. E ela começou a viver com essa família e trabalhar para eles, ela trabalhou o tempo todo para essa família. Ela conheceu bastante da cultura italiana por conta disso, sobretudo a gastronomia, mas eu penso que ela não foi muito feliz lá já que ela tinha uma condição de empregada e de muita exploração. E tem uma passagem da vida dela que ela conta de uma forma bastante emocionada: quando ela tinha 12 anos eles adotaram e rasparam a cabeça dela para que ela não saísse na rua e, portanto, se ocupasse mais com o trabalho doméstico. Mas ainda assim ela fala com carinho dessas pessoas, porque cuidaram dela, enfim, é a história dela, é a família que ela teve. Depois que ela se casou com o meu pai, ela nunca mais visitou essa família, é uma coisa, é uma quebra, assim, sai para casar e nunca mais volta. Mas eu penso que foi uma boa influência para minha mãe, porque apesar de ela nunca ter frequentado a escola - é analfabeta-, ela soube buscar informação, soube aproveitar dessa convivência com pessoas mais polidas. Então ela fala muito bem, é uma pessoa que é autodidata, ela aprendeu a ler pegando livros, então hoje ela consegue, enfim, ler, assistir um filme e se ocupar com leitura.
P/1 – Você falou que ele veio para São Paulo com essa família. Eles moram onde, você sabe?
R – Eles moraram no Alto da Lapa, Rua Tito, especificamente.
P/1 – E quando é que se dá esse encontro entre a sua mãe e seu pai?
R – A Lapa era um lugar onde as pessoas iam passear, era um ponto de encontro e eles se encontraram numa praça da Lapa, na Rua Tito, namoraram durante um ano e casaram em seguida. A minha mãe é dez anos mais jovem do que meu pai, hoje ela está com 80, ele estaria com 90 anos. Casaram-se e viveram juntos por 49 anos.
P/1 – E você sabe em que igreja que eles casaram?
R – Casaram-se também numa igreja na Lapa, na Vila Hamburguesa, ali na proximidade do Alto da Lapa também.
P/1 – Depois de casada ela deixou a família e foi trabalhar em casa ou arrumou algum trabalho fora?
R – Ela vai trabalhar em casa... E aí já na Freguesia do Ó, que é onde ela vive até hoje. Meu pai comprou um terreno antes de se casar, ele próprio fez a casa, ele ia pedindo ajuda das outras pessoas que sabiam construir e construiu a própria casa e lá eles foram morar. Esta foi a casa que recebeu todos os outros parentes do interior que vieram para São Paulo, tanto da família da minha mãe como da família do meu pai. Era uma casa grande, com um quintal grande, ainda de uma cultura de criar bichos no quintal: galinha, pato... Eu lembro que foi uma infância feliz ali naquele quintal. Tínhamos árvores, meu pai fazia balanço nas árvores. Mangueira, horta... É de um tempo ainda que se passava roupa com ferro a brasa, eu me lembro, eu tenho lembrança disso e foi uma fase boa, uma fase gostosa da vida.
P/1 – Quantos filhos eles tiveram?
R – Cinco filhos.
P/1 – Por favor, diga a ordem dos nomes.
R – A primeira das filhas é a Sonia, depois a Rosalina, que levou o nome da minha avó, depois o Carlos, que é falecido, eu, e por último o Celso, que é o mais jovem da família, tem diferença comigo de 12 anos, eu fui a caçula durante 12 anos, depois veio o Celso. O Carlos, o meu irmão, esse que é falecido, morreu aos 19 anos, ele foi assassinado pela polícia, o que nós soubemos na época é que ele foi confundido com um ladrão, levou um tiro e morreu. A namorada dele estava grávida e o filho que ela teve nós adotamos. Criamos como mais um irmão, então, somos seis.
P/1 – Descreve para gente como era essa casa. Quantos quartos, o tamanho dela, o tamanho da sala...
R – É engraçado que quando eu era criança achava essa casa muito grande. Tinha o quarto dos meus pais, outro quarto onde ficavam todos os filhos, uma sala grande, isso num andar. No andar de baixo tinha a cozinha e banheiro, tudo muito grande, cada um dos cômodos, e na frente da casa tinha uma área e era lá que a gente fazia as brincadeiras, tinha os encontros com os primos, os irmãos, tudo. Era uma casa bastante simples, mas uma casa acolhedora, uma casa confortável.
P/1 – E esse quintal? Você falou em animais, que tipos de animais vocês tinham, o que vocês plantavam?
R – A minha mãe fazia horta, então tinha tudo, praticamente tudo que nós comíamos era fruto dessa horta. Ela também criava patos, criava galinhas e teve um tempo que criou porcos, e essa não foi muito uma boa ideia, porque depois a gente não queria mais comer os bichos que levavam nome, que ficavam fazendo parte da família. Aí, não dá para comer um ente querido, né? Eu não como porcos até hoje, enfim, me parecem muito meigos, não me parecem feitos para serem comidos por pessoas.
P/1 – E tinha algum pé de fruta? Que tipo de fruta que tinha?
R – Tinha muita, aliás, hoje pouco se vê, mas ameixa, ameixas amarelas, grandes, e esses pés de ameixas são tão grandes e fortes que é possível fazer balanço. Eu me lembro de balanças espalhadas pelo quintal, nesses pés de ameixa. Tinha manga também, banana, uva, laranja, mexerica, limão, essas coisas que eram comuns na época, a minha casa não era uma exceção, tinha um quintal grande.
P/1 – Essa casa ainda existe?
R – Existe, essa casa existe, foi construído nela mais duas casas. Em uma delas a minha irmã mais velha mora com os filhos, e ainda no fundo tem outra casa que alugamos. Essa primeira ainda é uma casa que a gente mantém, mas ela é alugada. Meu pai fez outra casa na mesma rua, bem maior que essa, que é onde a minha mãe vive. Eu construí em cima dessa casa, eu com meu marido, e o meu irmão vive com a família dele nesse mesmo prédio.
P/1 – Todo mundo vive pertinho, não é?
R – Pertinho.
P/1 – Lourdes, e a escola? Como é que você entra no colégio? Qual foi sua primeira escola?
R – Era escola municipal, na época era uma boa escola, entrei com sete anos, enfim, eu acho que segui esse roteiro básico dentro do esperado. Fiz o primário (na minha época tinha admissão, que era a quinta série, e era opcional), fiz o ginásio também em escola pública, aí numa outra escola e também fiz o colégio em escola pública, foi toda uma trajetória de escola dentro do previsto, com as idades previstas, tal que também foi uma experiência boa. Eu fui alfabetizada antes de entrar na escola, apesar de meu pai nunca ter frequentado a escola formal ele também se alfabetizou buscando informação. Então, para todos os filhos ele fez questão dele próprio na escrita, na leitura. Isso foi feito de uma forma muito boa que me fez apaixonar pelos livros. Eu sempre fui uma aluna boa, estudiosa do que aprendia. Uma coisa boa que eu estudei durante o ginásio foi francês e eu descobri que gostava de línguas no ginásio, eu tive um ano de francês e me apaixonei pela língua francesa, era um sonho da minha vida conhecer a França e falar francês.
P/1 – Você se lembra de alguma professora que tenha marcado esse período?
R – Lembro. Dona Jaqueline, professora de francês, e a minha primeira professora, Dona Terezinha. Era uma mulher - não sei exatamente se era, na minha lembrança era - muito bonita, alta, magra, que usava um batom vermelho, eu me lembro da boca dela muito vermelha. E ela passava em frente à minha casa para ir até a aula, até o colégio, e eu ia com ela de mãos dadas. Eu me sentia segura com ela, ela era muito generosa, enfim, ela foi a minha primeira professora, eu lembro muito bem dela.
P/1 – E nesse período da primeira infância, desses primeiros estudos, que tipos de brincadeiras vocês faziam? Vocês brincavam só entre os irmãos ou com outras crianças da rua?
R – Era um tempo bom. Essa rua em que eu morava era de terra e também era uma estrada para passar boiada. Era muito divertido seguir a boiada, tocar a boiada... E as crianças faziam isso juntas, tanto os meus irmãos como os vizinhos. Esses vizinhos eram meio que parentes. Minha mãe batizou alguns, nós fomos batizados por outros, meio que uma comunidade. As pessoas todas se conheciam e as crianças obviamente ficavam juntas.
P/1 – A escola em que você cursou da 5ª série em diante também era municipal?
R – Não, era estadual.
P/1 – Estadual?
R – É, o colégio também.
P/1 – E esses colégios, são todos no bairro, na Freguesia do Ó?
R – São, são do bairro. Essa onde eu estudei o “ginásio”, hoje é uma escola referência, é tida como uma escola pública de boa qualidade e o colégio também. Eu busquei esse colégio porque ele era tido como um colégio referência, que daria condições para eu fazer o cursinho, fazer o vestibular sem necessariamente fazer o cursinho e isso aconteceu.
P/1 – Vocês viviam na Freguesia do Ó. Frequentavam o centro de São Paulo? Utilizavam o centro da cidade como forma de obter cultura e/ ou lazer?
R – Então, a gente está falando dos anos de 1960 e naquela época, para quem morava na periferia (Freguesia do Ó era um bairro periférico), vir ao centro da cidade era uma coisa rara. Eu lembro que vínhamos ao centro pelo menos uma vez por ano em ocasião do Natal, quando comprávamos roupas novas. Era um dia especial, um dia em que você ia ganhar uma roupa nova e você podia escolher tal roupa. Eu lembro que era divertido vir para cidade, andar de escada rolante, de elevador, que era todo um recurso que a gente não tinha. Era raro então, era uma festa vir ao centro da cidade e esse centro da cidade é esse centro velho de São Paulo mesmo, ali onde é o Mappin, foi o Mappin... A Lapa também era um centro interessante de comércio onde aconteciam coisas. Isso me faz lembrar um pouco a história de carnaval, o carnaval também era na Lapa, muitas coisas interessantes de lazer e cultura aconteciam na Lapa.
P/1 – Fale um pouco sobre este carnaval. O quê que tinha nesse carnaval da Lapa?
R – Era um carnaval ainda de cordões. A irmã mais velha do meu pai, tia Maria, gostava muito de carnaval, não de desfilar, mas de ver. Ela levava os filhos e os sobrinhos, e eu era uma dessas, e nós andávamos, ficávamos vendo esse Carnaval passar horas e horas, porque o carnaval contava histórias, como é hoje que tem os enredos. Antigamente também tinha isso, mas eram marchas e as pessoas se encontravam, era muito divertido o carnaval dos anos 1960, começo de 1970. Não era essa festa toda, não era esse glamour todo, mas era bem gostoso.
P/1 – E cinema e teatro na sua infância e adolescência? Você se lembra a primeira vez que foi ao cinema e em que cinema foi?
R – Então, no meu bairro não tinha cinema, nós íamos para um bairro próximo do Jaraguá, que é um bairro naquela região, para assistir filmes, ia toda garotada. Para chegar até esse cinema alguns iam de bicicleta, outros caminhando, era uma longa caminhada até chegar ao cinema, mas era muito divertido e íamos em grupo. Geralmente eu ia acompanhada do meu irmão, ele gostava de me levar ao cinema. Depois teve uma fase interessante, não sei exatamente quem organizou, não tínhamos uma sala de cinema, mas assistíamos filmes em um campo de futebol. Era colocado um telão e a comunidade toda era convidada a ir assistir filmes. Eu assisti bons filmes: Gordo e o Magro, coisas assim. E ainda em PB (preto e branco) era um jeito que a gente tinha de assistir filme. Isso me fez, por exemplo, montar uma sala de cinema no bairro, na minha adolescência. Fazer um cineclube mesmo, buscar filmes fora e assistir junto com os meus amigos, discutir o filme, tentar entender o que estava rolando, o que estava passando e o que não chegava até o nosso bairro.
P/1 – E você montou essa sala quando? Você tinha quantos anos?
R – Ah, menos de 20 anos com certeza. Foi numa sociedade de amigos de bairro, fundada pelo meu pai e que tinha várias atividades, mas essa do cinema me parecia encantadora. Junto com outros jovens da região nós fizemos um jornal que falava um pouco de arte, cultura, música, teatro e de cinema, como fizemos uma sala e também era um telão. Na época nós conseguimos que uma empresa emprestasse esse material e buscávamos filme gratuitamente, era um projeto que existia na época e trazíamos ao bairro para assistir.
P/1 – Que tipo de filmes vocês buscavam?
R – Ah, filme nacional sempre. Nós assistíamos tudo: Mazzaropi, Glauber Rocha, Rogério Sganzerla... Enfim, assistíamos filmes que as pessoas indicavam. Eram filmes bons e que ensinavam algo para nós.
P/1 – E durou quanto tempo essa cinemateca?
R – Talvez tenha durado mais de um ano e tenha se misturado com outras atividades, que era festa, viagem, fazer baile. O grupo também montou um grupo de teatro, de poesia, era uma forma de ter acesso à informação garantindo isso em grupo. A gente conseguia fazer com que artistas de verdade, atores, fossem até lá e fizessem palestras, falassem com a gente, indicassem livros e fizessem alguma vivência de teatro com o grupo.
P/1 – Você se lembra de alguma coisa que marcou nesse período em termos de teatro, de um artista que tenha ido lá?
R – Eu lembro que essa época para mim foi importante, porque eu comecei, junto com a arte, resgatar um pouco da história do negro no Brasil. Até então não tinha muita diferença, para mim, entre ser negro e ser branco, não me parecia importante olhar para isso. Na adolescência eu descobri que sou uma mulher negra e que era diferente de ser branco nessa sociedade. Então o teatro me fez conhecer um pouco da história de Zumbi dos Palmares, a poesia me colocou diante de autores africanos, eu conheci nessa época Agostinho Neto, que era um líder forte de Angola, um poeta, Amílcar Cabral. Eu comecei a ter noção de que tinha um mundo, tinha um universo que eu precisava conhecer e era um universo de cultura, que era um universo que tinha a ver com a etnia, que era uma coisa pouco conversada, era pouco olhada. O meu pai contava que teve dificuldades para trabalhar nessa empresa por ser um homem negro, ele se considerava um vitorioso porque ele conseguiu, com o trabalho dele, ser reconhecido nessa empresa. Ele se aposentou, se aposentou bem, num cargo bom e com muitos amigos, ele se orgulhava disso. E ele dizia para nós, para todos os filhos, que por sermos negros a gente deveria estudar muito, que a gente deveria ser muito aplicado na escola e que dessa maneira a gente teria um espaço. Ele dizia também que uma herança deixada pelo pai dele era ser honesto e trabalhador, que é o que ele foi na vida inteira. Um batalhador, tanto do ponto de vista da sobrevivência, de cuidar de cinco filhos, mas também o compromisso que ele teve com a comunidade, meu pai sempre fez coisas junto com outras pessoas. Ele é a pessoa que mais me inspira, a pessoa que me mostrou um pouco isso que é a gente cuidar da gente e dos outros, e o gosto de fazer junto, o gosto de ser alguém que transforma a vida e ajuda a transformar a realidade... Que você pode mudar, que você pode sonhar, que você pode fazer coisas.
P/1 – E a sua mãe, o que ela trouxe para você de valores?
R – A minha mãe? Acho que é a pessoa mais meiga que eu conheço, a minha mãe é uma pessoa bondosa, carinhosa, e eu sempre conversei sobre isso com ela. Eu falo: _ “Mãe, a senhora não teve mãe, como é que a senhora aprendeu a ser mãe, assim, tão carinhosa?” e ela disse: – “Justamente porque eu não tive, eu quero que vocês tenham”. Então, o que a minha mãe me ensinou? A minha mãe me ensinou a ser uma pessoa carinhosa, que expressa o afeto. A minha mãe tem uma coisa muito forte, da cozinha, e eu sou uma das filhas que gosta dessa coisa da cozinha, de preparar comida, de esperar as pessoas, de receber as pessoas na minha casa... A minha mãe tem muito isso de juntar as pessoas. Nós somos nascidas no mesmo mês, então a gente tem uma energia muito parecida de juntar as pessoas, de ter amigos, de ser conversadeira, enfim, a minha mãe me passa um pouco dessa coisa do afeto, o meu pai mais da luta, a minha mãe mais do afeto.
P/1 – Você falou que desde cedo gosta muito de ler... Que autores marcaram sua infância e adolescência?
R – Eu comecei a ler num tempo que você tinha cartilhas, e eu me lembro que me apaixonei pela cartilha, pelas histórias que tinham, histórias de cartilha, historinhas. Na escola os livros que li foram os livros que foram indicados pelos professores, alguns livros, as fábulas sempre me encantaram, eu penso que devo ter explorado muito mais isso do que literatura. De literatura eu acho que foi mais a formal que a escola indicava: Machado de Assis, Cecília Meirelles, Clarice Lispector. Na adolescência eu já fiz uma escolha mesmo, eu comecei a ler Lima Barreto, a obra do Lima Barreto me encanta, eu acho que tem muita coisa interessante, muita poesia. Eu gosto de poesia, li bastante coisa do Drummond, a poesia me encanta. Eu procuro todos os dias da minha vida ler uma poesia para começar o dia, para enfeitar a vida, para deixar legais.
P/1 – E você se lembra de algum livro que marcou sua vida?
R – Um livro importante? Eu vou falar de um livro recente, porque marcou a minha vida. É recente, mas faz muito sentido, encontrei sentido, outras coisas importantes da minha vida nesse livro, a biografia do Gandhi, que conta toda trajetória dele, e ao contar a história dele conta um pouco da história da Índia, conta um pouco da história da Inglaterra, conta um pouco a história de ser indiano na Europa, conta a história de pais, de como alguém pode fazer uma luta de uma forma não violenta e eu me identifico com isso. Eu me descreveria como uma mulher que luta, mas de uma forma não violenta, e o Gandhi para mim é uma grande referência.
P/1 – Conte um pouco sobre o período pré-universitário. Como foi esse processo de terminar o colégio e escolher um curso?
R – Eu pensei, antes de fazer uma escolha, que eu poderia estudar línguas, então achei que talvez Letras pudesse ser uma coisa que eu abraçaria, mas durante o colégio eu pensava nisso e foi nesse período que eu perdi meu irmão, e foi uma perda, porque ele era mais do que um irmão, ele era um amigo e a forma com que ele morreu me chocou e chocou toda a minha família, desestruturou. Eu nunca tinha visto meu pai triste na vida e ele ficou muito triste. A minha mãe também sofreu muito com essa perda e eu senti uma fragilidade enorme, a ideia que eu tinha era de que a qualquer momento eu podia perder outras pessoas da família e eu mesma, porque foi um momento da história da minha família que eu acho que se confunde também com a história de São Paulo, pois foi um período onde houve muita violência policial, eliminação física de negros nos bairros. Naquele mesmo ano que o meu irmão foi assassinado muitos outros jovens negros foram mortos naquele bairro, dois deles eram de famílias próximas, que eram comadres da minha mãe, e eu não entendia muito bem o que estava acontecendo e, eu não sei exatamente como apareceu, mas me chegou a informação de Psicologia, que Psicologia era um curso que estudava comportamento, que a gente podia conhecer melhor as pessoas fazendo o estudo de Psicologia. Talvez buscando um entendimento sobre a minha própria pessoa eu escolhi fazer psicologia, e foi bárbaro. Eu fiz uma escolha acertada, porque quando se forma em Psicologia, ou pelo menos quando você é estudante de Psicologia, você necessariamente faz uma terapia, e eu fiz, conheci uma pessoa maravilhosa, fiz análise durante 15 anos, e foram 15 anos que eu pude passar a minha vida a limpo, que eu pude lidar um pouco com essa coisa das perdas, da perda do meu irmão... E também descobri na Psicologia a possibilidade de ajudar outras pessoas, de conhecer melhor outras pessoas, de ajudar a fazer a vida melhor, com mais qualidade.
P/1 – E você estudou onde?
R – Eu comecei estudando em Mogi das Cruzes, na Faculdade Brás Cubas, era muito divertido ir até lá, ia de trem, ia um monte de gente, mas era longe de casa. Da Freguesia do Ó para Mogi das Cruzes era uma boa caminhada e, então, fiz dois semestres lá e depois mudei para FMU [Faculdades Metropolitanas Unidas], uma faculdade burguesa, cara, e fiz até o quarto ano lá, licenciatura, depois fui para uma faculdade paulistana, que é ligada ao Colégio Madre Cabrini, terminei meu estudo lá. Em seguida eu fui convidada para fazer um curso de especialização na USP [Universidade de São Paulo], de Psicologia. Tinha uma professora na faculdade que montou um grupo e ela era professora da USP e acabou me levando para lá. Fiz um trabalho de dois anos lá na Psicologia e comecei a trabalhar como psicóloga a partir daí.
P/1 – E nesse período de estudante universitária, você trabalhava ou só estudava?
R – Sempre trabalhei, comecei a trabalhar com 15 anos de idade, tem mais de 30 anos que trabalho.
P/1 – Conte qual foi o seu primeiro emprego e quantos anos você tinha.
R – Eu comecei a trabalhar com 15 anos, que era um pouco a média de idade que os jovens da periferia começam a trabalhar, e eu disse para meu pai que eu queria trabalhar e a exigência dele foi que eu não deixasse os estudos, ele queria manter os filhos só estudando. Eu fui a primeira a sair de casa para trabalhar. Ele me acompanhou para buscar esses primeiros empregos. Eu trabalhei numa fábrica que fazia esponjas – esponjas de pó, de maquiagem-, fiquei um curto período lá e depois fui para uma segunda fábrica. Era uma fábrica que trabalhava com pedras semipreciosas e fazia um tipo de artesanato com colher, garfo, faca, que eram ornamentados com essas pedras e era para exportação. Nesse lugar eu fiquei alguns anos da minha juventude e fiz amigos que eu tenho até hoje. Em seguida eu entro numa outra experiência que eu fiquei também muitos anos, que era ser bancária. O primeiro trabalho que eu tive no banco foi no Banco Itaú, ali na praça Marechal, e era um mundo para mim, um mundo novo que estava sendo revelado, foi a primeira vez que eu tive contato com computação, com o mundo dos negócios. Era o máximo trabalhar em um banco, depois de alguns anos ficou muito chato, mas quando você descobre, a coisa da transação financeira, do valor do dinheiro, de como se trabalha para dinheiro circular, é encantador. Mais do que isso, foi a questão do acesso à informática, foi lá que eu comecei a fazer um trabalho de computação, depois virou uma profissão para mim, aí eu fui trabalhar com computação em vários lugares, mas eu descobri isso no Banco Itaú. Trabalhei alguns anos também no Banco Real, também com digitação.
P/1 – E eram aqueles computadores grandes ou já eram os pequenos?
R – Aqueles grandes, eu comecei com aqueles de cartões, era um sistema antigo. Esse computador novo, do jeito que a gente conhece agora é muito diferente do computador que comecei, eu tive que reaprender algumas coisas mais recentemente. Eram muito valorizadas as pessoas que trabalhavam em bancos na década de 1980, final de 1970, trabalhava-se meio período, tinha-se um salário razoável e acho que o status mesmo, como foi algumas décadas antes o status de ser professor, era bom ser professor - devia ser mesmo, né?
P/1 – Você então pegou a fase em que ser bancário era uma profissão ”valorizada”?
R – Era uma profissão valorizada se comparada aos jovens do meu bairro, eu tinha um bom emprego, eu tinha um bom salário, e era uma vitória você sair de uma fábrica e trabalhar no banco, isso era considerado ascensão, então do ponto de vista dos relacionamentos, de carga horária, de salário, isso era um diferencial. As pessoas não gostavam muito de dizer que trabalhavam em fábrica, as fábricas não ofereciam muitas condições para o trabalhador, e era um período em que se levava marmita [ao trabalho], comia marmita junto com as outras pessoas, tinha que esquentar a comida. No banco já tinha outra coisa, tinha refeitório, aí você começa a ter outras possibilidades de conforto, de informação, de respeito, de noção de que você é um trabalhador, que você tem direito, que você tem benefícios, enfim, o banco serviu para isso, para eu ter essa noção, essa compreensão. Permitiu-me também fazer a faculdade. Quando eu fiz a faculdade eu trabalhava no Banco Real, também meio período, isso me liberava para fazer a faculdade de um jeito legal, tinha tempo, tinha tempo para estudar, para pesquisar, para me envolver com os meus estudos de Psicologia.
P/1 – Como era esse convívio universitário nessa época? Em que década que é isso?
R – Eu terminei a faculdade em 1983, 1982, então eu estudei na década de 1970. No começo da faculdade, que eu comecei em Mogi das Cruzes, eu tive convivência com alunos de vários cursos, porque em Mogi das Cruzes tinham duas importantes faculdades, a Brás Cubas, que o forte era psicologia e a UMEC, que era uma universidade com vários cursos. Como os jovens saiam de São Paulo para ir a outro município, íamos de trem, e esse era um trem interessante, essa viagem, acho que era mais interessante que o curso, porque tanto você tinha contato com muita gente, e gente da mesma idade, então eu conhecia. Eu sempre gostei de cantar, então as viagens eram cantadas, e tinha algumas pessoas instrumentistas, então, cantava muito e tinha um grupo de músico, de cantores, isso fez até com que eu, em algum momento da minha vida, fizesse isso profissionalmente, eu acabei me apaixonando pela música e fui buscar uma informação para ser cantora.
P/1 – E qual era o repertório que vocês cantavam?
R – Cantava Música Popular Brasileira, cantava Bossa Nova, cantava música da Jovem Guarda, mas sempre músicas nacionais que naquele momento a gente entendia que eram músicas boas, que eram músicas de Chico Buarque, Caetano, Gil, Cartola, gostava muito de cantar Cartola.
P/1 – Você poderia cantar alguma coisa para nós? (RISOS) Alguma do Cartola, por exemplo?
R – “As Rosas não Falam”?
P/1 – Pode ser.
R – (RISO) (PAUSA) (CANTANDO): “Devias vir para ver os meus olhos tristonhos e quem sabe sonhar mais meus sonhos...” – essa música é muito linda, eu gosto dessa música, me emociona porque foi um período bonito, legal na minha vida (FALA EMOCIONADA) e essa é uma música linda, uma música bonita. Não me peça mais para cantar. (RISO)
P/1 – Tudo bem. Você falou que até resolveu cantar profissionalmente, como foi isso?
R – Então, essa brincadeira de cantar no trem me despertou uma vontade de cantar profissionalmente, mas foi quase que acidentalmente. Eu conheci um músico, compositor, ele era também ator de teatro e começou a fazer algumas coisas no bairro em que eu morava. Ele era de fora e eu comecei a cantar algumas músicas dele e ele me apresentou a um grupo de músicos africanos, um grupo do Zaire que veio estudar na USP e montaram uma banda, e eles precisavam de uma vocalista e, aí, esse meu amigo me convidou, fez uma aproximação minha com esse grupo. Mas e aí, o que canta o povo do Zaire? Canta em francês e canta em suahili, de novo eu encontro a língua francesa, então foi uma dupla paixão, poder conhecer um pouco mais da língua francesa. Naquela época não tinha noção de que um dia eu poderia ir à França, que eu poderia falar francês, e eu comecei a sonhar com isso, comecei a sonhar e dizer – “não, eu vou ser uma pessoa que vai viajar, eu vou conhecer outros mundos, eu vou conhecer outras coisas” – eu acho que de certa forma na minha vida inteira sempre quis fazer mais do que aquele cotidiano estava oferecendo, eu sempre sonhei querer mais. Mas com relação à língua francesa, aconteceu junto com a música, esse grupo me deu a possibilidade de aprender um pouco de suahili, na época eu cantava porque eu decorava as músicas e saía repetindo, mas a canção era muito bonita, a música era muito bonita, dançante, enfim.
P/1 – E vocês se apresentavam onde?
R – Nas universidades, em teatros, em eventos, sobretudo eventos ligados à questão do movimento negro, também é um período que eu comecei a descobrir uma organização de negros no país. Eu fui ao Rio de Janeiro fazer uma apresentação musical e fiquei de boca aberta porque tinha uma comunidade, um grupo de negros organizando um evento e o foco principal era a discussão da questão racial no Brasil. Comigo aconteceu meio junto, descobri a arte e a cultura, fui descobrir sobre identidade racial e que havia uma luta racial no país, da qual eu não tinha tido acesso. O movimento negro de São Paulo foi fundado em 1979 e eu ouvia falar dele, mas não tinha nenhum contato, não fazia a militância, que entendia que era fazer movimento, tinha a ver com arte, em fazer cineclube, em fazer poesia, em descobrir novos autores, mas tinha alguém que estava lutando num ponto de vista mais político. Nessa época do movimento negro fundou-se um partido político, que mais tarde eu teria acesso, um pouco, à organização deste partido, que era a Convergência Socialista. Isso me fez também conhecer um pouco do movimento cultural que existia no Colégio Equipe. O Colégio Equipe promovia eventos de cultura, chamava cantores, artistas que eram considerados marginais na época. Foi dessa forma que eu fui saindo do bairro e tentando buscar um pouco mais de informação. Sempre um desejo de “espera aí, quê que tem atrás do muro? Quê que tá acontecendo em outros lugares. Por que as coisas não chegam aqui?”, a gente tem que fazer um esforço enorme para sair, não é? E eu acho que eu fui uma das pessoas que conseguiu sair daquilo que era previsível, previsto. Como é que eu penso que as coisas são? Eu penso que as pessoas que nascem de uma determinada raça e numa determinada classe, no Brasil tem-se muita dificuldade em mudar isso, de ascender para outra classe ou de ter acesso a coisas que não estão disponíveis. Por isso a referência do meu pai é muito forte, porque um cara que nasceu no interior de São Paulo, numa família de agricultores – e ele conta que tinha uma roupa, que quando essa roupa era lavada ele tinha que ficar deitado esperando secar–, um cara que veio para São Paulo, criou uma família de cinco filhos, defendeu que esses filhos estudassem. Mesmo quando eu senti um pouco de cansaço e queria desistir de tudo, ele disse: “Não. O estudo não. É inegociável. Quer parar de trabalhar, para, mas o estudo vai fazer”. Então ter feito uma faculdade é também um diferencial de onde eu venho e com a família que eu tenho, de pais analfabetos, e hoje há uma distância tão grande entre o que minha mãe teve acesso e o que eu tenho acesso, que parece que é uma distância muito grande, cronologicamente falando. É uma distância em termos de acesso, que parece que representa cem anos, mas não, é apenas uma geração, duas de diferença. Então contar essas coisas todas é também ter a possibilidade de registrar que os negros, e se forem negros pobres – que na maioria é isso que restou ao Brasil, em função do tipo de colonização que nós tivemos, que foi um pouco, que foi um pouco não, onde foi bastante dificultada a questão do acesso do negro ao estudo, ao trabalho digno, a sonhar com coisas. Sonhar! Sonhar em conhecer outro país, sonhar em conhecer outra língua, sonhar em ser uma pessoa respeitada. O que eu considero uma pessoa respeitada? É uma pessoa que pode fazer escolhas. É uma pessoa que pode escolher que caminhos ela vai fazer. Ela escolhe o trabalho que ela quer fazer, ela escolhe onde ela vai viver, ela escolhe com quem ela quer conviver, eu acho que isso é dignidade.
P/2 – Seus irmãos também seguiram esse caminho que você seguiu? Eles estudaram, fizeram faculdade e saíram do bairro em que você estava?
R – A minha irmã mais velha fez uma façanha interessante, ela se formou em secretariado – é um curso comparado ao colégio –, mas numa escola muito boa, era uma escola particular – Álvares Penteado –, ela fez o curso de secretariado lá e trabalhou muitos anos nessa área, e não quis fazer um curso universitário. Depois dela minha outra irmã também optou por parar no ensino médio, casou, foi fazer família e parou de estudar. Aí, no ano passado, com 54 anos, ela terminou o curso de Pedagogia, voltou a estudar novamente, então ela está iniciando aí um processo já de fazer pós-graduação na área de Psicologia. O meu irmão mais jovem, o Celso, é advogado. Ele fez faculdade de Direito e já trabalha a muitos anos, também muito incentivado pela minha família. Eu fui uma pessoa que ajudou ele a estudar. Quando acabava o dinheiro no meio do mês eu ajudava a pagar a faculdade, mas não o deixava desistir. E foi assim. Isso tem a ver com uma coisa que é da cultura, que eu considero que é da cultura negra, que é a questão de comunidade, de você apoiar o outro. Eu não tenho filhos, mas os filhos dos meus irmãos são responsabilidade minha também. Bancar o estudo, fazer com que essas pessoas cheguem onde elas querem chegar. E isso tem a ver com uma questão de cultura, de cuidado, eu vi meus pais cuidarem dos irmãos, os trazendo para São Paulo, garantindo que eles tivessem emprego, garantindo que eles tivessem uma vida melhor. Eu faço isso pelos meus sobrinhos, e meus irmãos fazem por mim, e, enfim, acho que tanto pela questão de cultura como de consciência. O que eu pude avançar, eu tenho clareza de que foi por meu esforço pessoal, mas também muita ajuda familiar, o apoio de família mesmo.
P/1 – Então você avalia que fez a diferença, tendo em vista o contexto social de onde veio?
R – Nossa, sem dúvida. Em uma época onde as crianças negras na escola eram pejorativamente chamadas de macacas (PAUSA), meu pai dizia que nós éramos princesas. Então isso (RISO), eu não tenho dúvida de que meu pai ajudou a gente a construir uma identidade positiva, uma visão positiva de nós mesmos, e isso me fez avançar. Entender que eu tinha direito, que eu podia sim, que as portas que estavam fechadas poderiam ser abertas com esforço.
P/1 – E você disse que através dessa banda – como é que chamava a banda? Essa do Zaire?
R – Afobanguê.
P/1 – Afobanguê. Que você foi ao Rio de Janeiro e participou desse evento que te despertou para essa questão da militância do movimento negro. Você chegou a se envolver, ajudou a fundar a Convergência Socialista?
R – Eu conheço a Convergência Socialista. Não, não...
P/1 – Ah, você não ajudou a fundar?
R – Não, não ajudei a fundar...
P/1 – Ah tá, mas participou?
R – Mas eu tive noção do que ela significava e apoiei indo à rua... Mas eu não participei da organização.
P/1 – Mas eu queria que você contasse um pouco dessa militância no movimento negro. De que forma este evento no Rio te fez despertar para questões mais políticas? Como se deu esse processo?
R – Uhum. Despertar para essa questão me faz mudar minha posição no mundo, na sociedade, eu começo a levar um pouco essa discussão dentro da minha própria família. Começo a tomar consciência de que algumas coisas são intencionais, tanto para avançar como para ficar estacionado, me dou conta de que tem uma linha invisível que separa as pessoas, e isso serve tanto para minha própria formação no sentido de tomar consciência, como com os relacionamentos que eu vou tendo na minha comunidade, na faculdade. Eu sempre acabei de alguma forma levantando essa discussão, não era possível passar pela faculdade sem fazer essa discussão em alguns momentos. Que a gente vive num país racista, separatista, que dificulta o acesso dos negros ao estudo. Eu digo isso porque eu era a única negra na sala de aula no período que fiz faculdade. Ainda hoje isso é uma realidade. Então, ter consciência política é fazer com que as pessoas que eu tenho convivência estudem, tenham a oportunidade de vivenciar coisas que sem ajuda é muito difícil, porque tem um filtro. É o filtro do emprego... Se as pessoas não trabalham, se elas não ganham dinheiro, elas não conseguem manter escola, elas não conseguem viajar, elas não conseguem ter lazer, elas não conseguem ter uma participação na sociedade da qual ela se sinta pertencente, da qual ela se sinta fazendo parte. Então hoje eu estou voltada, toda a trajetória da minha vida profissional depois de formada na área social, está na área da educação, essa é a minha contribuição. Não é no partido. Mas é com a consciência de que é necessário contribuir. Então para mim, trabalho não tem o significado de sobrevivência somente do ponto de vista financeiro, mas é sobrevivência do ponto de vista do compromisso que você tem com os outros, com a vida, com a transformação, com o crescimento, com o desenvolvimento...
P/1 – Lourdes, profissionalmente falando, como é que se deu esse caminho de trabalho no banco até chegar à área de educação?
R – A faculdade me levou a um primeiro trabalho, em 1986 eu fui trabalhar na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM), o meu primeiro emprego como Psicóloga. Eu fiquei quase quatro anos nessa Fundação. Um primeiro emprego como profissional, como um técnico é bastante importante, e ter começado na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor me colocou diante de uma realidade que eu não fazia ideia, eu não fazia ideia do que era a convivência num cárcere, do que era, nos anos 1980, a FEBEM. Era um cárcere de jovens, um amontoado, um depósito de jovens com histórias infelizes, com histórias de muito sofrimento. Eu, de novo, pude ver que a maioria daqueles jovens eram negro, pardos, de famílias pobres, das periferias, e que não se tinha muita preocupação com o destino daquelas pessoas. Por que eu digo que não se tinha preocupação... Porque o número só crescia, só crescia, e o discurso que se tinha na época era fechar, fechar, confinar essas pessoas. “Essas pessoas não fazem bem para sociedade, vamos confinar”. Por ter estudado Psicologia também, obviamente eu visitei manicômios, prisões e isso sempre me passou a ideia de que a sociedade acaba se livrando das pessoas, se livrando das pessoas que não estão adequadas. A FEBEM foi um aprendizado as duras penas, de que a gente está num país dividido e que de diversas maneiras essa realidade precisa ser mudada. Na FEBEM eu trago a questão racial para ser discutida, talvez mais para ser conscientizada. Eu acho que a sociedade, sobretudo as pessoas de outra etnia, não discute a questão do negro, a desvantagem com que o negro ficou nessa sociedade. Foi reservado aos brancos mais privilégios, mais dignidade, eu penso que se a sociedade como um todo não olhar para isso, a gente continua consentindo que uma parte da população continue em desvantagem, muita desvantagem. Na FEBEM eu vi isso.
P/1 – Nesse período que você ficou na FEBEM chegou a acontecer alguma rebelião?
R – Muitas rebeliões. Acho que com um mês de trabalho na FEBEM eu acompanhei uma grande rebelião, e jovens foram mortos ali, queimados... Trabalhava na unidade da FEBEM do Tatuapé que agora está sendo finalmente desmontada, e por uma ironia do destino eu faço parte hoje do Conselho da FEBEM, representando o SENAC [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial]. Ontem eu tive uma reunião de posse como conselheira da Fundação e na verdade é uma alegria ver aquilo tudo ser desmanchado, desmantelado, aquele aglomerado de condenados... Porque o futuro daqueles meninos é um futuro curto. Muitos daqueles jovens que eu atendi naquela época não chegaram a viver mais de 20 anos de vida. Então, trabalhar na FEBEM olhando por esse ponto de vista é ser testemunha da história de extermínio (PAUSA) e de uma população que eu poderia ter feito parte, em função da minha origem. Do ponto de vista humano, como seres humanos eu penso que não dá para gente ver outros seres humanos nessas condições, desculpa.
P/1 – Tudo bem. E você falou que ficou cinco anos na FEBEM?
R – Quatro.
P/1 – Quatro anos.
R – Isso.
P/1 – E você saiu por quê? Como foi a sua decisão de sair?
R – Eu saí depois de um movimento grevista de profissionais que criticavam aquela condição de trabalho, e eu concordava com isso. Achava que tínhamos uma condição de trabalho, e me engajei no sindicato, me dividi mesmo, fiquei contra a instituição. Não conseguia mais ficar lá sem fazer uma contraposição, e as pessoas que ficavam lá, de algum modo, tinham que se adequar àquele sistema, tinham que tentar resolver aquilo de alguma forma. Você me perguntou antes se eu vi alguma rebelião? Com um mês de trabalho na FEBEM teve uma grande rebelião e os jovens que eram considerados perigosos foram transferidos para o presídio, presídio de adultos, e eles tinham que ser acompanhados por algum técnico e como eu estava lá há um mês não sabia como que as coisas funcionavam. Eu fui chamada para ser uma dessas pessoas que acompanham esses jovens, e fui, e eles ficaram aproximadamente 40 dias nesse presídio e eu acompanhei todo esse processo e pude conhecer as histórias, fui ouvindo histórias dessas crianças, desses jovens. Tem toda essa coisa difícil e dolorida de ter trabalhado na FEBEM, mas que eu posso dizer que foi uma experiência aprendida, a solidariedade, isso me humanizou, eu comecei a olhar para as pessoas de outro jeito depois de trabalhar na FEBEM, comecei a, de fato, me preocupar com as pessoas, mas não enquanto elas estavam na minha frente, mas com a vida delas, depois dali. Esse foi um grande aprendizado, mesmo com muita dor eu fico feliz de ter conhecido essa realidade.
P/2 – Dessas histórias de jovens que você ouvia lá na FEBEM tem alguma que te chamou atenção, que marcou mais?
R – Eu costumo me recordar de um jovenzinho homicida, ele já tinha matado dez pessoas e se orgulhava em dizer isso, e por algum motivo ele manifestava algum afeto por mim. Ele dizia:_ “Você me lembra Nossa Senhora e eu quero ficar perto de você”. E ele sentava perto da minha cadeira, no chão, e ficava ali encolhido ao meu lado, ele dizia que se sentia protegido assim. Era um jovem temido, um jovem considerado psicopata, que já tinha matado dez pessoas, e o que ele contava dessas coisas é que essas pessoas mereciam morrer, eram pessoas que de algum modo tinham traído a confiança dele, tinham o frustrado de alguma forma... Ele era um ladrão e essas pessoas roubavam, no entendimento dele, e quando a partilha era injusta do produto de roubo, ele matava essas pessoas. Isso me marcou porque todas as vítimas dele eram mortas de uma forma muito violenta, ele agredia a face das pessoas, desfigurava as pessoas, era uma coisa meio monstruosa, assustadora, eu tinha medo dele. Eu tive muito medo no período que eu trabalhei na FEBEM, eu fiquei até com medo de andar na rua, de encontrar com esses criminosos que me conheciam, porque eu convivia com eles. Você não tem o menor controle de que ele está olhando, o quê que ele está sentindo, o quê que ele está pensando de fato, o profissional fica muito exposto, a qualquer momento as pessoas podem saber onde você mora. Eu fui, em algum momento, ameaçada, felizmente não por jovens, mas por colegas de trabalho. Eles diziam assim “Olha, de repente a gente pode dizer onde você mora”. Aí você fica com medo, fica com medo porque as pessoas são mortas, são agredidas e se são pessoas simples - que não são famosas - a família chora, alguém sente muito, mas acabou a sua vida ali. Eu tive muito medo.
P/1 – E tem mais alguma coisa desse período da FEBEM que você gostaria de contar?
R – (PAUSA) Eu conheci pessoas fantásticas também na FEBEM, profissionais comprometidos, engajados. Tem um dos monitores que era um educador que tomava conta dos jovens que eu tenho amizade até hoje. Uma pessoa encantadora que levou muita coisa boa para FEBEM, que tratava os jovens com muito respeito e que levava música. Eu também influenciei nesse sentido na FEBEM, comecei a levar música para lá, arte, convidava amigos, artistas, para fazerem apresentações na FEBEM e para trabalhar com arte. Eu entendo que a arte tem força de resgatar o que as pessoas têm de melhor, a arte fez isso comigo. Quando eu propus um projeto de arte na FEBEM e facilitei a ida de muitos artistas para lá de algum modo contribui naquele momento daqueles jovens. A música, a poesia... Acho que é muito parecido com o que o rap hoje faz, acho que o rap é uma forma dos jovens se manifestarem, contar suas histórias, mas também de se divertir, de criarem, de viver a vida sem ser, olhar só para parte difícil, para parte dura da sobrevivência.
P/1 – E quando você sai da FEBEM? Vai para onde?
R – Quando saí da FEBEM, logo após - isso sempre aconteceu na minha carreira, imediatamente após eu deixar um emprego me engajo em outro -, fui trabalhar na Prefeitura Municipal de Diadema, numa época boa, época em que o município de Diadema era uma referência em termos de administração petista. Era um governo petista e eu entrei para trabalhar na Secretaria de Promoção Social e quase que simultaneamente ela foi extinta, num processo muito interessante com ajuda da Aldaísa Sposati, na época, que discutia a questão da promoção social que era um trabalho paternalista. Então tudo que era creche, alguma coisa ligada à educação e tal, que deveria ir para educação e não ser um trabalho de promoção. Creche naquela ocasião, 1989 começo de 1990, era visto como trabalho de promoção social e naquela ocasião eu tive oportunidade de viver toda essa transformação de passagem da promoção social para área de educação, e aí eu vou para Secretaria de Educação, fico lá um tempo, depois eu fui convidada pela primeira dama do município a trabalhar na Secretaria de Saúde. Eu trabalhei em unidade básica de saúde lá em Diadema com jovens com problema de aprendizagem, trabalhei também no hospital de Diadema atendendo crianças na parte de psicoterapia. Na educação eu fiquei especificamente trabalhando com as creches e fiz um trabalho com mães de creche. Esse também é um trabalho que eu gostei muito de fazer, era um trabalho de minha iniciativa, mas de atender os pais de creche para discutirmos sobre a vida dos filhos, o cotidiano das crianças na creche... E acabou virando um trabalho muito interessante para próprias famílias, um trabalho que durou dois anos, com encontros semanais com pais onde a gente podia conversar sobre as coisas da vida deles, do cotidiano e tal, foi um trabalho bom.
P/1 – Você estava contando sobre esse período em que você trabalhou na Prefeitura de Diadema, que você passou por algumas secretarias, como é que se desenvolveu profissionalmente depois da sua carreira?
R – Eu penso que esse período foi uma oportunidade para mim, porque eu pude conhecer tanto o trabalho da educação – e era um trabalho técnico, eu influenciei na metodologia, no projeto pedagógico, e dentro do projeto pedagógico foi contemplada a questão do trabalho com as famílias –, isso foi um ganho, tinha a ver um pouco com as propostas do partido, que era de pensar a questão da educação além da criança, envolvendo as famílias neste projeto. Então, educação, política, saúde, naquela ocasião, naquele momento histórico-político, andavam muito juntas. Foi um período também de construção de conselhos – conselho de saúde, conselho de educação – e eu vivi isso. Foi um período que meu marido estava viajando, ele foi à França para se apresentar num festival, e ficou lá um ano (RISO). Foi para ficar uns quinze dias, mas oportunidades foram surgindo. Foi tranquilo, e eu fiquei esse ano exclusivamente para o trabalho em Diadema. Eu quase fui morar lá. O prefeito, na ocasião, falou: “Lourdes, venha morar aqui, a gente arranja uma casa para você”. E o contato com o prefeito era muito próximo – quando o município é pequeno você encontra o prefeito, você fala com o prefeito. E foi uma experiência boa. Naquela ocasião eu me identificava bastante com o Partido dos Trabalhadores. Não é muito diferente hoje, mas naquele tempo muito mais. Eu pude participar de uma administração petista, fazer uma contribuição, isso tudo contribuiu para minha formação profissional, porque era mais do que o trabalho técnico, era um trabalho de envolvimento político com a proposta. Saí de Diadema a convite de uma secretaria de estado, para vir fazer o mesmo que eu fazia lá, aqui em São Paulo - esse convite veio de uma pessoa que tinha trabalhado e que ocupava um cargo de chefia na Secretaria de Educação e queria desenvolver um trabalho em creches aqui na capital, que contemplasse o trabalho com os pais, e essa era uma experiência que eu tinha vivido em Diadema. Eu trabalho naquele projeto que integra a secretaria – na época era Secretaria da Criança e do Adolescente, algo assim, não me recordo mais – com as estatais, e eu vou para um projeto que era uma creche do Metrô. Foi um projeto do Quércia [ex-governador do estado de São Paulo] – aliás, foi uma das coisas boas que o Quércia fez – que era fazer parceria com estatais que bancassem o projeto de educação infantil. Essas creches foram uma experiência belíssima, acho que foi uma oportunidade para muita gente... Muitas famílias e crianças estarem num espaço físico que foi pensado para isso. Era uma creche belíssima, que foi desenhada pelo Ruy Otake, com toda infraestrutura que se possa imaginar para uma escola. Era uma escola, no caso a que eu fiz a gestão, era diretora dessa creche, dez por cento das vagas eram destinadas à estatal – ou seja, aos metroviários –, e noventa por cento para população comum. E a maior parte dessas creches surgiu na Zona Leste. A Zona Leste é uma das maiores regiões de São Paulo e também região carente da capital, e todo transporte das pessoas para saírem da Zona Leste ao centro acontece de trem, de metrô e de ônibus, mas é intensa a conexão com o trem. A creche ficava exatamente na estação Tatuapé, então tinha uma procura muito grande, as mães passavam de trem, de metrô, deixavam as crianças e continuavam o trabalho, continuavam o caminho para chegar ao trabalho. Creche de 12 horas de atendimento, era uma creche com 200 vagas, era a maior de todas as creches desse projeto, era uma das duas maiores creches. Coordenava uma equipe de sessenta pessoas para fazer esse trabalho acontecer com 200 crianças. Foi uma experiência boa também com os pais, então teve dois grandes projetos para esses pais: um era a reforma da creche – quando eu cheguei a creche carecia de reforma, chovia dentro de algumas salas, então foi uma atividade interessante onde eu me juntei a alguns pais em prol da reforma da creche – e o outro foi de coleta seletiva. 90% desses pais de comunidades carentes, e alguns tinham dificuldade para sobreviver, estavam sem emprego. E isso era num tempo que ter vaga em creche era sinônimo da mãe [enfatizando] ter que trabalhar. Muito louco, num lugar onde não tem emprego para todo mundo, a exigência é que as mulheres trabalhem para ter direito a uma vaga na creche. Começamos a pensar uma forma dessas mulheres, mesmo sem trabalho, terem renda, então uma saída foi fazer coleta seletiva, um trabalho de solidariedade, de parceria entre os pais, de convivência, já que entendíamos que a coleta seletiva era capaz de juntar as pessoas. E foi bem o resultado, é possível fazer alguma coisa junto e que gere renda. Com o dinheiro que era fruto dessas coletas, o grupo decidia o que fazer: em algum momento era para comprar brinquedo, presente de Natal para as crianças; em outro momento era para comprar alimento para algumas famílias que estavam com mais dificuldade. Foi uma passagem também boa, tenho amigos que trabalharam comigo até hoje. Não só dessa etapa, mas de Diadema, da FEBEM e do Banco também (RISO). E eu digo “também” porque hoje eu faço um trabalho em que sou uma articuladora, uma fomentadora de trabalhos em rede, então mencionar essas ligações que tenho com pessoas que trabalharam comigo é mencionar minha própria rede, minha própria rede de relacionamento. Prezo bastante pela conservação das amizades que conquisto. A Sônia London eu conheci nesse projeto da creche. Ela fazia parte da equipe que supervisionava o trabalho dos diretores e até hoje é uma pessoa importante para mim, a gente tem relacionamento.
P/1 – Do trabalho no Governo do Estado você já foi diretamente para o SENAC ou passou por outra instituição antes?
R – Não, eu saí da creche em 1995, saí com vontade de ter uma nova experiência, que era ter a minha própria empresa, de fazer meu trabalho de forma mais autônoma. Eu entendia, naquela ocasião, que já tinha experiência suficiente para fazer por conta própria o trabalho de educação e tal. Naquele momento eu abri uma empresa que tenho até hoje, ela se chama “Bom Diálogo”. Comecei a fazer um trabalho de assessoria para escolas, orientar projetos educativos, sociais, e fui com isso até 1998, quando eu entro no Senac. Fui ao Senac para oferecer o trabalho da minha empresa e fui convidada a fazer parte de um projeto que estava sendo iniciado, um projeto da educação. Era uma proposta bonita, era uma proposta interessante, tinha a questão de ter um salário, também, bom. Eu conseguiria manter as duas coisas: poderia trabalhar fixo e manter os trabalhos que eu fazia na empresa. Então, os últimos nove anos de trabalho profissional e remunerado aconteceram no SENAC, mas eu mantenho essa empresa ainda. Ela completou dez anos em fevereiro agora, e ganhou um presente: saiu da mesa da sala da minha casa e foi para um escritório na Consolação. Isso é uma conquista. Eu considero uma conquista, talvez isso não tenha muita importância para muitos, mas para mim tem. Porque, como já contei aqui, a expectativa é de que pessoas com a minha origem não se tornem empresários, e que tenha um escritório no centro da cidade, no centro rico da cidade, ou seja, do outro lado da ponte. Isso para mim é um ganho, é uma vitória, e tenho reunido pessoas em torno desse trabalho de educação na minha empresa. Quero manter. Daqui cinco anos eu me aposento no SENAC, e eu quero que essa empresa vá ganhando espaço para que eu possa continuar meu trabalho, aí exclusivamente nela.
P/1 – Conte um pouco sobre o trabalho que você desenvolve no Senac e a evolução desse trabalho até hoje.
R – Então, esse é um projeto que eu ajudei a construir. O SENAC tem um trabalho de responsabilidade social já de 30 anos. Esse trabalho consistia em o SENAC ir às comunidades carentes oferecer cursos gratuitamente, então a instituição entendia que as pessoas que não podem pagar poderiam ser beneficiadas com alguns cursos. Com a reflexão desse processo – e a reflexão era a seguinte: o SENAC oferece os cursos, mas não sabemos se as pessoas que recebem a informação entram no mercado de trabalho - começamos a identificar outra necessidade na comunidade, que era a das lideranças comunitárias, que geralmente estavam ligadas a alguma organização não governamental. Começamos identificar que eles demandavam por cursos, por capacitação para fazer melhor os trabalhos na comunidade. E isso nos fez pensar que, se oferecêssemos curso para essas lideranças, e se elas trabalhassem de uma forma mais equipada, mais profissional, poderiam atender melhor sua comunidade. Isso aconteceu em 1997, 1998 – em 1997 eu fiz um trabalho de contrato com período determinado, então eu tenho um pouco dessa história de 1997 no SENAC –, e a gente foi avaliando que o trabalho podia ser diferente. Aconteceu junto com uma discussão na sociedade de que as organizações não governamentais, que são chamadas de terceiro setor, precisavam de um investimento, elas precisavam ser investidas para que pudessem crescer, para que pudessem se profissionalizar, então foi onde as grandes ONGs fizeram contato com Canadá, França, Alemanha para receber verbas, e as pequenas não tinham muito esse canal. Essas pequenas careciam de um processo de aprendizagem de elaboração de projetos, de pensar captação de recursos... Foi isso que o Senac começou a fazer com as organizações sociais, e a conseqüência dessa capacitação fez a gente ver que poderíamos fazer mais do que isso, mais do que oferecer cursos. Poderíamos promover uma convivência entre as organizações sociais, o poder público – que ficava muito distante dessa discussão da questão social –, e também aproximar a iniciativa privada do trabalho social. Então nós acabamos promovendo o encontro dos três setores nessas localidades onde a gente simplesmente oferecia cursos, e isso fez nascer um projeto que a gente chama de Rede Social, que é convidar os três setores de uma determinada localidade, de um bairro, de uma cidade, para que eles possam pensar projetos de interesse comum. É esse trabalho que eu faço há anos. Eu articulo, eu vou atrás das pessoas e faço propostas para que trabalhemos juntos para pensar um projeto de interesse daquela comunidade. Têm sido fantásticas as experiências pelo interior de São Paulo. Atualmente eu faço parte de uma equipe que coordena 33 projetos em todo o interior de São Paulo e na capital também. A gente constrói esse tipo de encontro de redes para que as localidades tomem para si a responsabilidade, a reflexão e a noção de que elas podem fazer. E que não depende só do poder público, que não depende de quem está fora, a localidade pode fazer alguma coisa pela própria localidade. Isso tem sido fantástico e se assemelha um pouco à proposta do Museu [da Pessoa], que é uma proposta política, de dar voz às pessoas que não têm voz. A ideia da rede é de que a gente pode fortalecer um tecido social, a gente pode integrar os setores de forma que as pessoas decidam aquilo que elas desejam nas suas localidades e não esperem políticas públicas para que isso aconteça. As experiências das pessoas que começam a participar de discussões, de debates, que escolhem o que elas gostariam de ver modificado na sua comunidade, e ajudam a fazer isso acontecer são fantásticas. Eu me considero uma pessoa privilegiada de estar à frente de um projeto que faz uma diferença concreta na vida das pessoas, do ponto de vista humano e do ponto de vista social. Importante do ponto de vista econômico, também. Vejo acontecer com esse trabalho a transformação das pessoas que não participavam da vida comunitária e que agora participam. Pessoas que não falavam, por timidez ou por insegurança e que agora falam, e que agora já descobriram que oque elas sabem é útil, que pode ser utilizado para o avanço daquela comunidade. É rica a possibilidade de fazer esse trabalho de redes e de desenvolvimento.
P/1 – Como é que você conheceu seu marido? Como foi o namoro? Qual o nome dele?
R – O Toninho eu conheci numa festa e acho que não tinha lugar melhor para eu conhece-lo, porque ele é uma festa para mim. Ele é uma pessoa que eu conheci em 1979, que me ajudou muito a entender o mundo, as coisas. O Toninho foi engajado na convergência, foi uma pessoa que atuou politicamente no país, uma pessoa extremamente sensível, um artista, é músico, compositor, guitarrista. Desde criança ele vem perseguindo essa coisa da música. Uma pessoa extremamente doce, meu companheiro, que me ajudou a ser a pessoa que eu sou hoje. Penso que nosso encontro foi muito feliz. Encontramo-nos e depois nunca mais a gente deixou de se ver. Conheci numa festa, mas depois eu busquei saber onde que ele trabalhava, ele também procurou saber onde eu estava, e começamos um namoro que teve um período de três anos, suficiente para gente construir a nossa casa e em janeiro de 1983 nós nos casamos. Conheci em 1979, em 1983 foi a nossa cerimônia de casamento. Eu e o Toninho não somos católicos, então fizemos uma cerimônia simples no civil e fizemos uma cerimônia religiosa no candomblé, que é a minha orientação religiosa. Vivemos os últimos 24 anos de casados também lá na Freguesia do Ó, e da Freguesia do Ó para mundo, porque a carreira do Toninho faz com que ele viaje bastante, e isso me propicia também a possibilidade de viajar. O Toninho foi fundamental para que eu realizasse também o meu sonho de juventude, que era de conhecer a França. Em 1999 eu fui pela primeira vez à França junto com o Toninho, e foi uma viagem que nós nos demos de presente de casamento. Quando desci no aeroporto da França me senti a vitoriosa, pois tinha conseguido realizar um sonho, conhecer o país que eu queria conhecer. Fizemos outras viagens, também pelo mundo. Conheço a Itália, Inglaterra, Mônaco... Nos últimos cinco anos ele tem trabalhado em Mônaco como músico contratado, isso também propicia a minha ida prá lá. Eu procuro ir quando ele está terminando a temporada.
P/1 – Ele toca numa banda? Sozinho?
R – Não, tem uma banda. Tem um grupo que é contratado lá, pela empresa... Mônaco é uma empresa. Mônaco funciona mesmo como uma empresa de eventos para o resto do mundo. Eles são contratados anualmente, há cinco anos, seguidos, eles têm feito esse trabalho. E o Toninho é muito ligado ao rap internacional, então na França ele tem uma relação bastante intensa e estreita com o movimento rap francês, que tem a influência dos argelinos, dos africanos, enfim... É um rap mesclado com o povo que vive na França. Enfim, nossas idas à França têm sempre uma motivação de trabalho, de arte e de intercâmbio de cultura. Eu gosto muito disso, o Toninho também.
P/1 – E ele toca que tipo de música?
R – Nesse trabalho que ele faz em Mônaco ele toca Música Popular Brasileira, que é o que agrada. Eu acho que o mundo inteiro gosta da Música Popular Brasileira. Toca Bossa Nova, Samba. Tom Jobim, enfim, os grandes compositores. O que eu posso dizer é que eu tenho um companheiro, um companheiro de estrada, um companheiro de viagem, não é menos que isso, é um companheiro mesmo, é uma pessoa que eu escolhi para estar na minha vida e que eu aprendi muito.
P/1 – Vamos chegando ao final do depoimento. Você gostaria de falar alguma coisa que a gente não perguntou? Algum episódio ou passagem da sua vida...
R – (PAUSA) Não, acho que talvez o que eu gostaria de registrar é que toda essa história, que é uma história de mais uma pessoa de São Paulo, e que é a história de pessoas que sobrevivem em São Paulo. Acho que é uma história de sobrevivência. De alguém que tem que fazer muito esforço para ser o que é, e que não é muita coisa, mas é importante, porque tem conquistas. Tem pequenas conquistas que hoje resume a pessoa que eu sou. E isso tem a ver com a minha família, tem a ver com essa cidade, com tudo que a gente é.
P/1 – Se você pudesse mudar alguma coisa na sua vida, você mudaria?
R – (PAUSA) Eu penso que não. Não, eu estou satisfeita com a minha vida, eu estou feliz com minha vida. São coisas que eu escolhi. Eu vivo hoje coisas que eu escolhi viver, então eu estou feliz com as minhas escolhas.
P/1 – E algum sonho, tem ainda um sonho a ser realizado?
R – Eu gostaria muito de ter a experiência de viver fora do país por um tempo, e eu penso que esse país é a França, eu quero que seja lá, mais pela paixão pela língua, mas me encantou a convivência, o nível de relacionamento das pessoas. Quando eu estive lá eu fiquei realmente impressionada com a capacidade que o europeu tem de dialogar, de falar sobre o que pensa, de viver de uma forma mais livre, sem tanto pré-conceito, as pessoas se colocam mais livremente. Podem ser o que elas são diante dos outros. Talvez eles não tenham essa percepção, porque vivem nisso já, mas eu me senti muito respeitada na França, e isso também se passou na Inglaterra - e muito respeitada mesmo - mais do que aqui. E não é só pela questão da madame, monsieur (RISO), mas é uma consideração, a consideração que a própria infraestrutura proporciona. Se você quer fazer viagem, a viagem de fato acontece, as coisas acontecem como previsto, é possível planejar, é possível acesso. Também encontrei, tanto na França como na Inglaterra, a possibilidade de conhecer lugares gratuitos, de ir a museus, de participar de eventos que são gratuitos, acho que isso ajuda as pessoas a se encontrarem, a se integrarem... me encanta, sobretudo na França, o contato com a diversidade. É possível você conversar com um chinês, com um argelino, com africanos de diversas partes do continente, com marroquino, num mesmo bairro. Eu acho isso extremamente rico, que talvez aqui a gente não tenha possibilidade, já que temos aqui bairros mais italianos, bairro mais japonês, bairros que concentram mais os judeus, mas esse relacionamento, essa coisa do encontro das diversas culturas, povos, línguas etc... Eu acho encantador na Europa. Eu quero viver isso, eu quero proporcionar isso para mim, essa experiência de olhar para o diferente com igualdade, de estar, de evoluir também do ponto de vista da convivência com o outro. Eu quero mais nesse sentido (RISO).
P/1 – Qual a importância de ter contado essa história para o Museu da Pessoa? O que você achou?
R – (SUSPIRO E PAUSA) É a importância da revelação. Uma história nunca é igual a outra, a história de cada pessoa é única. A minha história é diferente da dos outros, mas também, de certo modo, se assemelha à história de muitas mulheres como eu - e talvez elas não venham aqui. E eu, de algum modo, gostaria que a minha história pudesse também ser a história de outras pessoas. Da minha própria família – porque quando eu conto minha história, eu conto também a história dos outros –, acho que é isso que me motiva. Contar minha própria história, mas também trazer a história de uma cultura, trazer a história de uma etnia, trazer a história de um profissional, de uma mulher de 52 anos, como eu vejo o mundo, como eu vejo a vida. Isso me motiva, com uma visão de que não é vaidade pessoal, é necessário documentar a história das pessoas, e eu me voluntario nesse sentido.
P/1 – Lourdes, nós agradecemos! Muito obrigado por ter vindo aqui hoje.
R – Eu é que agradeço. Vocês me receberam bem e me ajudaram a contar a história de um jeito que eu gostaria de ter contado, com tranquilidade, com respeito, com tempo. Obrigada.
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