P1 – A gente pede pra que você fale seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Eu me chamo Marcelino Juvêncio Freire, nasci em 20 de março de 1967. Fiz quarenta anos em março, neste ano. Nasci em Sertânia, no alto sertão de Pernambuco, pertinho de Arcoverde. Quando eu estava com dois anos de idade, a família foi morar em Paulo Afonso, na Bahia, depois foi para o Recife.
P1 – Fala um pouquinho dos seus pais, Marcelino. Nome, profissão...
R – Meu pai se chama Antônio Juvêncio Freire, casado com dona Maria do Carmo Freire. Maria do Carmo Freire, conhecida como Carminha. Eles tiveram nove filhos. Eu sou o caçula. São oito homens e uma mulher. Meu pai era comerciante, na verdade tinha umas terras lá em Sertânia. Terras que vinha a seca, acabava com tudo e tinha que reconstruir tudo de novo. Minha mãe não queria de jeito nenhum essa vida, de ficar o tempo todo reconstruindo, se renovando. O que ela fez? Insistiu que insistiu que queria ir embora de lá. Levou o pessoal todo pra Paulo Afonso, na Bahia, que ela já tinha alguns familiares lá. Todo mundo foi pra Bahia, pra Paulo Afonso. Na verdade, minha grande lembrança não é nem de Sertânia, é de Paulo Afonso. Eu não lembro em nenhum momento, depois estive lá, conheci Sertânia e tal, mas não me lembro em nenhum momento da paisagem de Sertânia. Minha paisagem é de muita água, de cachoeira. Cachoeira de Paulo Afonso, imensa, que eles me levavam pra visitar quando pequeno. Aquelas pontes que você atravessa, assim, vê aquela cachoeira imensa... Aí também as coisas não estavam muito boas em Paulo Afonso e foi quando ela levou a família toda pra Recife.
P1 – E nessas andanças, sua infância, fala um pouco do seu cotidiano, do cotidiano da casa, dos amigos. O que você lembra disso?
R – Foi como te falei: tenho mais lembrança de Paulo Afonso. Lá eu lembro das cachoeiras, dos amigos, da escola. Quando eu achava que ia ficar em Paulo...
Continuar leituraP1 – A gente pede pra que você fale seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Eu me chamo Marcelino Juvêncio Freire, nasci em 20 de março de 1967. Fiz quarenta anos em março, neste ano. Nasci em Sertânia, no alto sertão de Pernambuco, pertinho de Arcoverde. Quando eu estava com dois anos de idade, a família foi morar em Paulo Afonso, na Bahia, depois foi para o Recife.
P1 – Fala um pouquinho dos seus pais, Marcelino. Nome, profissão...
R – Meu pai se chama Antônio Juvêncio Freire, casado com dona Maria do Carmo Freire. Maria do Carmo Freire, conhecida como Carminha. Eles tiveram nove filhos. Eu sou o caçula. São oito homens e uma mulher. Meu pai era comerciante, na verdade tinha umas terras lá em Sertânia. Terras que vinha a seca, acabava com tudo e tinha que reconstruir tudo de novo. Minha mãe não queria de jeito nenhum essa vida, de ficar o tempo todo reconstruindo, se renovando. O que ela fez? Insistiu que insistiu que queria ir embora de lá. Levou o pessoal todo pra Paulo Afonso, na Bahia, que ela já tinha alguns familiares lá. Todo mundo foi pra Bahia, pra Paulo Afonso. Na verdade, minha grande lembrança não é nem de Sertânia, é de Paulo Afonso. Eu não lembro em nenhum momento, depois estive lá, conheci Sertânia e tal, mas não me lembro em nenhum momento da paisagem de Sertânia. Minha paisagem é de muita água, de cachoeira. Cachoeira de Paulo Afonso, imensa, que eles me levavam pra visitar quando pequeno. Aquelas pontes que você atravessa, assim, vê aquela cachoeira imensa... Aí também as coisas não estavam muito boas em Paulo Afonso e foi quando ela levou a família toda pra Recife.
P1 – E nessas andanças, sua infância, fala um pouco do seu cotidiano, do cotidiano da casa, dos amigos. O que você lembra disso?
R – Foi como te falei: tenho mais lembrança de Paulo Afonso. Lá eu lembro das cachoeiras, dos amigos, da escola. Quando eu achava que ia ficar em Paulo Afonso, a família, como te falei, foi para o Recife. De alguma forma, eu meio que pensava que ia ficar num canto e ia pra outro. Sou meio retirante. Quando eu pensava que ia ficar em Recife vim morar pra São Paulo. Tem meio esse desenraizamento, essa coisa de se desambientar sempre. Lembro de Paulo Afonso, quando era pequeno. Mais do Recife, muito novo também. A família muito agitada, a casa muito grande, com oito filhos, mais os sobrinhos. Uma casa muito movimentada. Mas lembro principalmente da chegada no Recife, com a família toda. Fomos morar num bairro chamado Água Fria, um bairro que até hoje minha mãe mora lá. Lembro dessa família agitada, grande. Não era uma família em que o pessoal lia, que tinha biblioteca, nada disso. Mas, por insistência da minha mãe, que queira que pelo menos os mais novos estudasses, já que os mais velhos, quando moravam em Sertânia tinham que andar léguas pra poder estudar. Eles não têm nem o segundo grau completo. A briga da minha mãe era que pelo menos os mais novos estudassem, isso era a salvação da família. Os mais novos de fato estudaram, por insistência dela. E por essa teimosia que ela levava de Sertânia pra Paulo Afonso, de Paulo Afonso pro Recife. Ela queria porque queria, insistia que pelo menos houvesse uma salvação ali, de uma família tão grande, para que ela pudesse ter uma vida mais tranquila quando ficasse mais velha. Meu pai faleceu, já tem uns seis ou sete anos. Minha mãe continua viva, está com oitenta e quatro anos.
P1 – Uma informação pontual. Quando sua família mudou para o Recife?
R – Mudamos pra Recife quando eu estava com oito anos de idade. 1967 mais oito, 1975.
P2 – E você disse que não tinha esse ambiente tão favorável à leitura na sua casa, que esse não era um hábito familiar. Como você foi tendo contato com os livros na infância e na adolescência?
R – Eu sempre gostei muito de estudar, muito. E meu irmão mais próximo também gostava bastante. Então, em um dos livros de um dos irmãos mais próximos, um pouco mais velho do que eu – ele trouxe um dia um livro de português e naquele livro tinha um poema do Manuel Bandeira, chamado O Bicho. Eu lembro bem, devia ter nove anos de idade, por aí. Li aquele poema e vi O Bicho. Eu disse: “esse poema O Bicho deve ser legal”. O poema diz: “vi ontem um bicho, na imundície do pátio, catando comida dos detritos. Quando encontrava algo, não examinava, nem cheirava. Engolia com voracidade. Este bicho não era um cão, não era um gato, nem era um rato. Esse bicho, meu Deus, era um homem”. Eu nunca tinha lido um poema daquela maneira. Imaginava que o bicho fosse um urso. Vi ontem um bicho catando comida entre os detritos. Quando encontrava algo não examinava, nem cheirava. Engolia com voracidade. Esse bicho não era um cão, não era um cão? Nem era um gato. Era menos que um cão, ou um gato? Nem um rato. Menos que um rato? Esse bicho meu Deus era um homem. Aquilo pra mim foi sintomático, assim. O que o Bandeira usa muito do alumbramento, do encantamento, não é? Da pedra do escândalo. Ele me causou uma pedra de escândalo e eu fui atrás do Manuel Bandeira. Era muito novo e atrás do Manuel Bandeira, atrás das coisas dele. Fui pedindo pra meu irmão ir trazendo outros poemas, até que depois ele me deu uma antologia do Manuel Bandeira. Eu me deparei com uma poesia altamente melancólica, um homem doente. Imediatamente, eu descobri que ele era recifense, que era pernambucano e que falava das ruas que estavam muito próximas – eu estava morando no Recife – ruas que minha mãe dizia: “Eu vou ali na Rua Aurora, resolver algum problema”. Então, eu descobri que poderia ser poeta. Porque se o Manuel Bandeira, era um pernambucano, recifense, eu descobri que poderia ser doente, ser tuberculoso. O meu contato com a poesia do Manuel Bandeira me salvou, nesse sentido. Porque eu não tinha salvação pra oferecer pra família. Uma salvação pelo estudo, perfeito. Mas se fosse uma salvação econômica, lascaram-se, porque eu não tenho salvação econômica, nem pensamento econômico pra dar pra aquela família que se julgava salva pelos mais novos, enfim. O contato com Manuel Bandeira foi sintomático. Eu quis imediatamente ser poeta, queria aquilo lá. E queria ser doente como ele.
P1 – Tinha quantos anos?
R – Tinha uns dez anos. E já comecei a escrever poesia. Comecei ler, comecei a escrever poesia. Tem na mesma fase do Manuel Bandeira, eu queria muito fazer teatro. Eu vi na escola onde estudava, aulas de teatro. Vi na televisão alguém dizendo que fazia teatro e achava bonito ser ator. Comecei fazendo teatro na escola. Procurei a professora Ilza Cavalcante, muito conhecida no Recife. Procurei por ela e comecei a fazer teatro. Então, o teatro e Manuel Bandeira foram os responsáveis por esse meu começo de escrita. Comecei a escrever pra teatro, comecei interpretando, comecei querendo ser ator. Pequeno, com dez anos de idade, fazendo peças infantis. Com doze anos de idade, chegou minha primeira peça escrita e montada pelo grupo da escola. Meu contato de criação, meu contato criativo, meu despertar, meu alumbramento veio com Manuel Bandeira e com o teatro.
P1 – Como seus pais receberam esse envolvimento com as artes, assim tão precoce?
R – Eles não entendiam. Minha mãe dizia: “Meu filho, isso dá dinheiro?”, aquelas coisas. E eu quando comecei a fazer teatro mobilizava a casa toda, porque não tinha dinheiro pra comprar cenário, então pegava almofada, e por ser sempre muito desligado, perdia as coisas. Eu levava as coisas emprestadas pra fazer a peça e não devolvia. Então, minha mãe ficava sem uma cadeira. Ela não entendia, mas gostava. Quando começou a sair no jornal umas notinhas sobre a peça de teatro, tal, ela ficava muito feliz.
P2 – Além desse envolvimento com o teatro, você foi incentivado a ler na escola?
R – Você imagina o que é um rapaz, numa escola pobre de Água Fria, chegar e perguntar pra um professor quem era Manuel Bandeira. Quando eu comecei a descobrir a história de Manuel Bandeira, ele estava participando do movimento modernista. Então, perguntar sobre Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto? Por sorte, eu peguei professores lá que diziam: “Nossa, esse menino está interessado em pessoas assim?”. E começavam a me passar textos de autores, tive contato com Monteiro Lobato e fui lendo outras coisas. A minha porta de entrada para a literatura, sem dúvida foi Manuel Bandeira. Por ele, quando ele começava a falar de Mário de Andrade, movimento modernista, fui caminhando e procurando aquelas referências que ele ia passando. Depois vai descobrindo Drummond, João Cabral de Melo Neto. Isso foi exatamente nessa fase de dez, doze anos. E comecei a ficar cada vez mais encaramujado. Enquanto meus irmãos iam aprender a dirigir carro e jogar bola, eu estava lendo Manuel Bandeira, aquela tristeza, aquela melancolia, aquela tuberculose toda, né? Nunca fui bom de bola, minhas lembranças são horrorosas em campeonatos de futebol. Participava assim sempre do pior time, um horror. Ninguém me queria no time, porque era uma tragédia. Aí eu compensava na hora das provas. Eles não podiam ficar reclamando, enchendo muito meu saco, porque iam lá colar na minha prova. Eu era bom em português, naquelas matérias todas. Então, se por um lado eu não era saudável, por outro eu tinha saúde em outras coisas. (RISOS)
P1 – Depois de aberta essa porta com Manuel Bandeira, você citou alguns outros poetas. Você conseguiria de bate pronto, lembrar de alguns outros marcos pessoais? O que te marcou na juventude? Algum autor ou livro especificamente?
R – Veio Graciliano também. O primeiro livro que eu li de Graciliano foi São Bernardo, não foi nem Vidas Secas. Fiquei encantado com aquele jeito enxuto de contar as coisas. Morria de chorar lendo José Lins do Rego, principalmente com o primeiro livro que eu li dele, Eurídice. Era melancólico. Muito triste. Eu chorava lendo aquele negócio. Olhai os Lírios do Campo, lembro bem quando li, do Érico Veríssimo. Mas sintomático, os que me deixaram marcas muito fortes, foram Manuel Bandeira, Graciliano e João Cabral de Melo Neto. Comecei por Morte e Vida Severina, já fazendo teatro deparei com João Cabral de Melo Neto. Eu estudava numa escola lá em Águas Frias, escola do Estado, porque sempre estudei em escolas do Estado, e essa escola se chamava Alfredo Freyre. Era o pai do Gilberto Freyre. De quando em quando havia uma homenagem ao Alfredo Freyre, no aniversário da escola, e o Gilberto Freyre ia lá. Eu via aquele senhor que vinha num carro, com motorista, e a escola toda mobilizada pra receber aquele senhor, o pai da sociologia. Chega ele, entrava e como eu fazia teatro na escola, desde pequeno, e era apontado como destaque, um bom ator, um menino muito novo, tinha hora que eu fazia o papel do Gilberto, ou fazia o papel de algum outro texto dele. Lembro bem de um chamado Outro Brasil que Vem Aí, um poema, na verdade. Eu lia esse poema e ele lá na primeira fila. Mas o que eu achava bonito era a figura daquele escritor, daquele homem que era recebido na escola, que a escola parava pra ouvi-lo, para ele ser homenageado. E aí, eu já tinha uns catorze anos, uma professora da escola pediu um trabalho sobre José Lins do Rego, que a gente meio que lendo algumas obras de José Lins do Rego, algumas outras entrevistas e pesquisar sobre ele, a gente inventasse uma entrevista com José Lins do Rego, as perguntas e ele respondendo com o material dele. Aí, eu tive a seguinte ideia: fiquei sabendo numa leitura desse material do José Lins, que ele era muito amigo do Gilberto Freyre. Pensei: “Já sei. Sendo aluno da escola Alfredo Freyre, indo com minha equipe fazer uma entrevista com o Gilberto Freyre, não vou fazer o que a professora pediu, mas vou surpreendê-la”. Porque eu queria saber como era a casa daquele homem que chegava. (RISOS) Se tinha muito livro, se não tinha muito livro. Consegui marcar uma entrevista e fui com a equipe lá. Estava com catorze pra quinze anos e quando entregamos a professora ficou completamente espantada, maravilhada. Tiramos dez, com louvor. E eu conheci ali, misturando Manuel Bandeira, com João Cabral, Drummond, Clarice Lispector, misturada à figura do escritor que eu tinha conhecido e misturada ao doente que eu queria ser, ao tuberculoso que eu queria ser, com aquela figura, digo: “Quero ser um escritor!”. Envolvido com o livro, é isso.
P1 – Você disse que com dez anos já escrevia peças e tal. Mas no seu amadurecimento, qual você acha que foi seu grande começo como escritor, que você começou a escrever alguma coisa que já tinha uma visão mais crítica?
R – Aqui em São Paulo, evidente.
P2 – Um pouquinho antes. Conta pra gente como você veio pra São Paulo?
R – Eu sou branco desse jeito como vocês percebem. Então, nunca gostei muito de praia, sol, muita contemplação, nunca gostei muito de colocar uma sunga e ir pra praia, ficar prostrado lá no sol. Não sei que sentido tem aquilo. A praia tem tudo que eu não gosto: sol, areia, vento e sunga. (RISOS) Então, eu nunca gostei muito disso. O que eu falei mesmo? Qual era a pergunta?
P2 – Como você veio pra São Paulo?
R – Sim, eu não gostava muito, nesse período – eu preciso fazer um link pra poder chegar em São Paulo – na época, o seu primeiro trabalho era em banco. Banco era uma coisa disputada. Aí eu fiz testes, aquelas coisas, passei e fui trabalhar no Banco Nacional do Norte, Banorte, com dezessete anos, por aí. Fui trabalhar de office-boy. Exatamente, comecei com dezessete anos como office-boy, nesse banco. E comecei também um curso de Letras, na Universidade Católica de Pernambuco – Unicap. Na verdade, eu queria fazer Jornalismo, comecei querendo Jornalismo, mas não passei. Passei em Letras e fui fazer Letras. Trabalhando no banco, curso de Letras, comecei a conhecer uns poetas na Universidade Católica, comecei a participar de um grupo de poesia. Montei um grupo de poesias chamado Poetas Humanos. Espalhava poesia pela cidade, fazia pichação, essas coisas todas, fazia um jornal. Fazia teatro, esse grupo de poesia, universidade e tal. Mas num certo momento aquilo ali tudo me cansou um pouco. Queria fazer outras coisas. Um amigo muito próximo veio morar em São Paulo e sempre me convidava pra vir pra cá. E aí, em certo momento em que não queria mais fazer a faculdade, tranquei a faculdade; não queria mais ficar no banco, deixei o banco – não vou lembrar o ano, mas deixei o banco, porque não estava mais querendo ficar em banco. Queria colocar à prova meu texto. Queria conhecer os escritores da cidade, saber quem estava produzindo literatura lá. Já estava com dezoito, dezenove anos. Saí do banco, fiz acordo com eles e no dia que deixei o banco vi no jornal que ia ter uma oficina de literatura com o escritor Raimundo Carreiro. Eu falei: “Vou fazer essa oficina com o Carreiro”. E passei o período de dois anos, dois anos e pouco sem trabalhar, só escrevendo, encontrando esses escritores, colocando meu texto à prova, discutindo, participando de grupos de poesia. Mas em certo momento, eu precisei voltar a trabalhar. Precisava voltar a trabalhar, porque o dinheiro acabou. Minha mãe: “Meu Deus, o que esse menino tem? Deve ser tristeza”. Porque vinham umas propostas, mas eu não queira. Porque se é pra começar a trabalhar, vou trabalhar noutro lugar. E juntando essa minha preguiça de sol, meu cansaço de beleza, São Paulo era perfeito, porque não tem mar, não tem sol, não tem beleza, não tem contemplação. São Paulo é uma cidade que não amanhece. São Paulo não amanhece. Recife amanhece, Salvador amanhece. São Paulo acorda! Então, eu já sou uma figura muito descansada e muito propícia à preguiça, então São Paulo me ajuda a acordar, porque toda hora você tem que acordar. Estava precisando disso. Então vim pra São Paulo, aceitando o convite desse meu amigo, Carlos Renato, que tem uma história também muito maluca. Eu cheguei em 1991 em São Paulo e quando cheguei, ele tinha combinado de me aguardar pra me ajudar nessa fase da vida. Mas ele teve um problema de os olhos deles incharem quando ficava nervoso. Acho que de ficar apreensivo, ficou doente, caiu duro, não tinha quem mandasse me esperar na rodoviária. E ele não foi na rodoviária. Mas como felizmente tinha combinado também com outro amigo, ele foi e acabei indo pra casa desse outro amigo, o Ivan. Morei na Vila Carrão, no Jardim Aricanduva, quando vim pra cá. Morei lá nove meses.
P1 – Como foi essa primeira impressão de São Paulo?
R – Um horror.
P2 – Mudou?
R – Um horror, porque eu fui jogado. Logo que eu queria. Eu sou um kamikaze, adoro me jogar e acho que resolve se jogar assim. Ficar muito “neura”, eles perguntam muito, perguntam, vai fazendo pergunta, colocam muito as deficiências à frente: “Eu não posso isso, não tenho aquilo...” Você nunca tem nada. Principalmente no Brasil, você nunca vai ter nada. Se você coloca o que você não tem sempre na frente, então diga logo o que tem. Vim com essa vontade. Eu me joguei em São Paulo. E quando chego aqui, uma cidade evidentemente grande, um frio da “porra”, treze graus, sei lá quantos graus, acho que onze graus quando cheguei, frio, chuva, desempregado, tendo que enfrentar aquela cidade e procurar. Vou pra aqueles prédios na Paulista, imensos. Pra quem está vindo Sertânia, de Recife, de Paulo Afonso, ver essa cidade imensa, aquela gente toda correndo e você dizendo: “Eu vou ter que enfrentar esse touro. Vou ter que olhar esses prédios de igual pra igual. Vou ter que brigar”. Fui procurar forças que eu julgava que não tivesse. Só no contato com São Paulo é que eu percebi que tinha. Que é esse meu apego a, por exemplo, eu não achava que tinha uma memória musical, oralidade sertaneja, específica, que é bem presente no que eu escrevo. Só tive essa noção aqui em São Paulo. Por quê? Porque em São Paulo, ou você se agarra em alguma coisa ou a cidade te atropela. Ela tem tudo pra te diluir. Quando eu cheguei nessa cidade, estava me apegando a memórias que eu não julgava que tivesse. Nesse sentido, os textos que comecei a produzir aqui, o choque com a cidade de São Paulo, fez com que minha literatura pudesse usar dessa memória.
P1 – São duas histórias paralelas, porque você começa a produzir esses textos mais maduros. Mas paralelo a isso, como foi a sua vida profissional? Você foi batalhar outro emprego?
R – Tem uma coisa curiosa que é o seguinte: de longe eu já vinha. Então não poderia morar longe, trabalhar longe. Colocava isso na minha cabeça. E se a Avenida Paulista era o centro de São Paulo, ou o coração de São Paulo, então só procurava trabalho na Avenida Paulista. Quando as forças ou as portas todas, nenhuma pudesse ser aberta, eu procurava na vizinhança da Paulista. Mas não podia estar longe, porque de longe eu já vinha. Então, a minha grande concentração de munição era na Avenida Paulista. Porque era a única, o centro, ficava perto de Metrô e tal. Procurava por ali. Procurei e encontrei. Procurava na minha área, porque no banco eu comecei como office-boy, fui promovido a escriturário e como era muito bom em português, o banco tinha aquela coisa de r
Relações Humanas, RH, e me colocaram numa área de revisão, de redação do banco. Tratava de circulares, comunicados. Lá eu trabalhava com revisores, que revisavam os textos que eram impressos. Eu fui office-boy, escriturário e revisor. Quando vim pra São Paulo, vim como revisor, na minha carteira. Procurava então como revisor em editoras, porque queria ficar perto dos livros e em agências de propaganda, porque fiquei sabendo que eles pagavam muito bem. Consegui numa agência de propaganda, a AlmapBBDO. Eu cheguei aqui dia 13 de julho de 1991. Comecei a trabalhar na Almap no dia 16 de setembro de 1991. É uma das maiores agência, uma das mais antigas agências de propaganda do Brasil. Comecei como revisor, trabalhei lá durante treze anos. E aí ficava na Paulista, morando na Vila Carrão. E o que aconteceu? Eu só trabalhava, porque agência de propaganda é aquele ritmo absurdo, ficar até altas horas, não conseguia mais voltar pra casa no horário. Dormia muito em hotel, porque como ia voltar pra Vila Carrão às duas da manhã? Era aquele inferno. Eu sempre levava comigo uma roupa, uma cueca, uma meia e dormia em hotel, motel, pra trabalhar no outro dia. Não estava dando muito certo isso. Encontrei um amigo pernambucano que tinha se mudado pra cá, recentemente. Ele estava morando atrás do Masp, dividindo um apartamento com mais duas pessoas e aí eu fui pra lá. Trabalhei uma época na Paulista e ia caminhando pra casa. Uma fase ótima. Depois a agência, a Almap, mudou para o Morumbi e eu fui para o Morumbi. Fiquei na Almap uns treze anos. Mas só fiz trabalhar. Cheguei em 1991, trabalhei, trabalhei, e dizia: “Gente!” não estava escrevendo, tinha um livro de contos na gaveta, que tinha sido premiado no Recife. O primeiro nome era M Saiu do Vermelho. Depois, acho até engraçado, porque esse título parece o cara que pagou todas as suas contas e saiu do vermelho. (RISOS). Depois ele se chamou O Sol que Gera e Devora seus Filhos. Esse livro foi premiado no Recife, mas eles não me deram o prêmio, que dava direito a uma publicação. O governo estava mudando, uma confusão, isso em 1991, eu disse: “Olha, não tenho saco pra ficar esperando prêmio nenhum”. Vim embora pra São Paulo, nessa fase. E tinha esse livro inédito, na gaveta.
P1 – De contos, o livro?
R – De contos. Mas aí, cara, só fazia trabalhar. Não tinha paciência pra procurar editora. Ficava com aquele livro. Isso foi em 1991. Quando foi em 1995, que bateu a crise: “Só vim pra trabalhar nessa cidade. Não tenho feito mais nada. Puts, que porcaria”. Estava reclamando pra caramba. Olhei pra minha frente na agência e estavam lá os computadores, o produtor gráfico, uma diretora de arte que era minha amiga, falei: “Está aqui. Do que estou reclamando? Ele não está lá, está aqui!” Já falei pra ela, falei com o arte-finalista que disse que fazia, falei com o produtor que conseguiu uma gráfica pra fazer o livro em suaves e humilhantes prestações e aí fiz o livro. Lancei em 1995. Era um livro que reunia esses contos que haviam sido premiados e outros que eu escrevi. Ele se chama Acrústico. É acústico com um R penduradinho, assim, ficou Acrústico. Péssimo o título e o livro pior ainda. Imaturo, ruim, não tinha noção de unidade, ainda, mas a linguagem que eu vim depois percorrer, procurar, está presente naquele livro. Alguns contos de vez em quando até reaproveito de lá, reescrevendo e tal. Mas isso é importante pra exorcizar esses textos da gaveta, que eu não ia pra lugar nenhum, mas pra dizer: estou vivo, estou respirando. Só ser revisor na agência de propaganda, só estar trabalhando em São Paulo? Então que me matasse logo, porque o sonho não estava sendo trabalhado. É preciso que você tenha esse sonho, que você vá atrás dessa coisa que esteja intimamente ligada à tua vida.
P2 – Ainda sobre São Paulo, a tua visão da cidade mudou de 1991 pra cá? Você está mais em sintonia com ela?
R – A cidade, a gente acostuma com ela. A gente acostuma. Eu sempre cito um exemplo do Drummond, quando ele estava no elevador e sentia saudades da roça. E quando estava na roça, sentia saudades do elevador. Então, acho que São Paulo tem muito isso. Ela te acostuma com essa correria. E se eu era uma pessoa de já não contemplar muito, agora que não contemplo mesmo. São Paulo me deixou doente mesmo, nesse sentido. Ela te deixa doente e uma doença sem cura. Você fica acostumado nesse inferno e não consegue mais viver longe dele. O tempo todo você tem que estar correndo, trabalhando, produzindo. Gosto disso, até porque não vou ter muito tempo pra ficar pensando em me matar, por exemplo. (RISOS) Embora tenha tanto carro em São Paulo, que a hora que você pensar em se matar tem ali à sua disposição. Carro, prédio, metrô. É uma beleza. A minha visão é a visão de uma cidade que oferece oportunidade. Mas não te deixa na porta, não. Como eu diria? Está tudo ali pra você se movimentar. Não pode reclamar que as coisas não estejam ali pra você ir atrás. Eu gosto de São Paulo nesse sentido. Uma cidade que eu estou aqui há dezesseis anos e o tempo inteiro você está descobrindo ela. É uma cidade muito grande, muita comida pra comer, muito restaurante pra conhecer, muita rua pra andar. O tempo inteiro. Agora vou pro Recife, adoro ir pro Recife. Mas tem um momento em que tenho que voltar pra São Paulo, porque não aguento a coisa parada, não aguento mais. Vou visitar uma irmã que mora numa cidade perto do Recife, chamada Bezerros. Vou visitá-la mas não aguento ficar dois, três dias lá não. O burro vai devagar, cachorro vai devagar, janela vai devagar né, como Drummond fala. Tudo vai devagar, o sol vai devagar. “Caramba”, nasce logo esse sol. Você pergunta a hora: duas da manhã, duas da tarde ainda e você está pensando que já são seis. É isso.
P2 – Marcelino, depois do lançamento independente desse primeiro livro, como se deu seu processo de escrita, sua vida literária até o Angu de Sangue?
R – Eu fiz esse primeiro livro, e como eu mesmo paguei, no lançamento que eu fiz em São Paulo e no lançamento que eu fiz em Recife, já pagou o livro. Animado, eu disse: “Vou fazer agora um próximo livro de contos”. O primeiro foi em 1995, independente. Acrústico. Quando encontro ele num sebo, compro pra ninguém poder comprar. (RISOS)
P2 – Dá oportunidade pra gente poder conhecer!
R – Eu rasgo, dou fim. Estou brincando. Tenho um carinho por ele. É essa coisa de ter começado por ele. Você precisa começar alguma coisa. Por isso que eu digo: não planeje. Planeja, planeja, planeja e não começa. O fazer é o grande motriz na criação. Eu estava preparando um outro livro de contos. Não se chamava ainda Angu de Sangue. Queria retomar o título O Sol que Gera e Devora e seus Filhos. Queria retomar e comecei a fazer uns contos. Um desses contos era nomes de pessoas. Comecei a fazer esse livro. E tive a ideia de convidar um amigo meu, o Jobalo, um grande artista plástico, pernambucano, que hoje mora em Milão. Um grande amigo, grande talento, não só como artista plástico mas como poeta. Nunca publicou nada, mas me ajuda muito nos títulos dos meus contos. Quando ele não me ajuda, eu roubo dele os títulos. O Jobalo. Convidei pro Jobalo fazer lá da Itália algumas interferências nesses contos. Já tinha o nome do livro, Angu de Sangue, já tinha mudado, não, desculpe, ainda era O Sol que Gera e Devora seus Filhos. Convidei o Jobalo pra fazer algumas imagens pra esses contos. Mandei os contos pra ele e ele começou a fazer as imagens deste livro. Só que esse livro era caro de fazer, envolvia imagem, fotografia, livro caro. E eu ia fazer independente de novo. Pensei: “Puts, esse livro vai ser caro de fazer”. Fiquei lá remoendo, remoendo. Até que um belo dia, no meu computador eu vi uma frase, eu gostava de ficar brincando, escrevendo umas coisas, ficar brincando, e eu coloquei a seguinte frase no computador: Penso. Logo existo. Eu fui ver o que tinha escrito nesse “Penso. Logo existo”, e tinha a palavra “sexo”, lá. Penso, S. Logo EXistO. SEXO. Puxei as letras pra frente: “Penso, logo existo – Sexo”. Disse: “Nossa”. “Deixa eu pegar outra frase de provérbio.” “Errar é humano”. Ficava olhando pra aquilo lá e vinha erRar É hUmano- RÉU. Eu digo: “Eta, rapaz”. Coloquei outro lá: “Ser ou não ser, eis a... Neurose”. Eu não pegava nenhuma letra, estavam lá. Fiquei tão pirado que num fim de semana peguei livros de provérbios e fiquei colocando lá no computador, tentando descobrir o que estava escrito, o que desmontava aqueles provérbios todos. Eu disse: “Se descobrir em cinco frases, descubro em cinquenta. Se descobrir em cinquenta, descubro em quinhentas”. Então, tive a ideia de fazer essas frases e tive a ideia de fazer num livrinho menor, pequeno, pra me ajudar com a venda desse livro, no Angu de Sangue, no Sol que Gera e Devora seus filhos. Vou dizer depois porque ficou Angu de Sangue. Eu queria que a venda desse livro me ajudasse no outro que ia ser mais caro. Eu comecei a fazer na agência, na Almap e o pessoal me ajudava: “E aí? Descobriu mais um?”. E o dono da agência, Marcelo Serpa, que até hoje é sócio lá, ele passando na minha mesa, viu e perguntou: “Você vai fazer como esse livro? Faça, termina esse livro que eu vou fazer pra você esse livro. Vamos fazer em papel couché. Veja com o Zé Roberto”. Eu terminei o livro. O livro se chamou Era o Dito. Um título que eu pedi pro Jobalo. Disse: “Jobalo, a ideia é essa. Um livro de ditados, como não diz o ditado, alguma coisa assim”. Ele pensou Era o Dito, uma brincadeira com erudito e o dito popular. Eu fiz esse livro, publicado pelo dono da agência lá. Ele mandou imprimir. Ficou bonito, pequeninho. E esse livro me tomou um tempo, porque começou a vender, as pessoas gostaram e eu comecei a ser convidado pra uma série de coisas por causa desse livro. Ele foi lançado em 1998 pra ajudar no livro de contos. Ele demorou de 1998 a 2000, porque ele vendia muito bem na Livraria Cultura, vendia muito bem na Belas Artes. Antes de ir pra agência, de manhã, ia na fila da Livraria Cultura, na fila da Belas Artes, na fila da livraria Quinta Avenida, eu ia naquela fila de vendedor de editora pra oferecer o livro. Eles gostaram muito. Começaram a comprar e começaram a vender. O que eu ia falar é o seguinte: quando eu vi, de repente tinha dois mil e quinhentos livros. Eles fizeram dois mil e quinhentos livros. Eu fiz um lançamento ótimo aqui em São Paulo, no Ática Shopping Cultural, naquela época, hoje Fenac. Diziam: “Como você vai fazer na Ática Shopping Cultural se eles só fazem lá com Saramago, Chico Buarque...”. Por aquilo ali, teve uma época que tinha uma pauta... Eu digo: “Vou fazer, porque eu quero fazer lá!” Eu bati lá na porta, mostrei pra mulher o projeto do livro, ela adorou e falou: “Você vai fazer aqui”. Foi um sucesso o lançamento, vendi pra caramba lá. E continuou. A Ática colocava montes daquele livro e vendia. As pessoas compravam porque era ótimo pra dar de presente. Tudo bem. Aí, fiz esse livro e me demorou dois anos, porque fui pra Búzios, fui pra não sei onde, virou vídeo, essas histórias. Começou a me tomar tempo. Quando foi no ano 2000, eu entrei em crise. Por quê? Porque eu queria fazer os contos. Esse livro era pra ajudar aquele outro. Então como eu ia conseguir fazer as frases? Eu tenho um livro até hoje, completo, em casa, que se chama Pornô Gráfico. Só “baixaria”, e também uma visão gráfica do negócio, umas frases. Eu já estava querendo fazer o Pornô Gráfico, porque as pessoas tinham adorado o Era o Dito. Eu digo: “De maneira nenhuma. Não vou fazer esse livro. Vou fazer meus contos”. Nessa fase que eu disse vou fazer meus contos, retomei com o Jobalo. Disse: “Jobalo, desculpa. Estou te mandando uns contos novos. Vai fazendo essas interferências. Não sei o título ainda”. Ele me mandou uma carta de Milão, com Brincando de Era o Dito, Angu, Angu de Sangue. O Sangue, se você tirar a letra S e a letra E fica Angu. Angu de Sangue. Adorei aquilo, estava precisando de um título e ficou Angu de Sangue. Estava preparando pra fazer um lançamento independente, quando conheci, nessa minha crise de retomar os contos, queria muito conhecer os escritores, as pessoas que estavam sofrendo da mesma angústia, de publicação, de criação, queria conhecer os escritores. Já estava morando na Vila Madalena. E, todo sábado, eu caminhava pelas ruas, ia nas livrarias, passear. Ia pros sebos, tal. E conheci o Evandro Affonso Ferreira, que vocês já entrevistaram aqui. Conheci o Evandro Affonso Ferreira, ele tinha um sebo e a gente começou a fazer umas reuniões num café na Vila Madalena, na Rua Fradique Coutinho. Nessas reuniões fui conhecendo os escritores da minha geração, que também estavam no primeiro livro, como o Marcelo, Nelson de Oliveira, o Evandro. Esse pessoal todo se reunia nesse café. Eu estava pra fazer o Angu de forma independente. Foi quando encontrei nesse café o João Alexandre Barbosa. Ele era, porque faleceu no ano passado, um crítico pernambucano, muito respeitado, profundo conhecedor da obra de João Cabral. E nesse café, ele me ouviu lendo um texto e perguntou se eu queria editora. Eu contei a história pra ele, como estou contando pra vocês, e ele disse: “Vou te indicar pra Ateliê Editorial, porque gostei muito do conto que você leu. Me mande os outros contos”. Eu mandei, ele gostou muito. Me indicou pra Ateliê. Escreveu o prefácio do livro, publicou o prefácio na revista Cult. Eu publiquei pela Ateliê, procurei o Plínio Martins, editor, que apostou. Ele publicou no ano 2000 este livro. Esse livro foi muito bem recebido pela crítica. Vou abrir um parênteses rapidinho, porque o Millôr Fernandes disse uma vez isso pra mim, quando pediram um conselho pra essas pessoas que estão escrevendo: “Que conselho você daria pra pessoa que está escrevendo, esses artistas. Que conselho você daria?” Ele disse: “Eu pensei: pedir conselho pra mim? Mas vou dar um conselho: tenham sorte!”. (RISOS) É um conselho maravilhoso. Não adiantava, tem uma coisa aí de sorte, um fator no meio também nesse sentido. Por que estou falando isso? Porque na época que fiz o Era o Dito, descobri nesse café que muitos jornalistas, intelectuais, artistas conheciam o Era o Dito, gostavam dele, mas nunca tinham falado sobre ele. Quando eu lancei o Angu de Sangue pela Ateliê, eu mesmo fazia a divulgação, no sentido de envelopar, mandar pras pessoas que o Ateliê dizia pra eu mandar e pra outras pessoas que eu conheci no café. Eu mandava o Angu de Sangue junto com o Era o Dito, porque digo: a pessoa vai abrir o envelope e vai lembrar que foi o mesmo cara que fez o Era o Dito, vai ter uma referência. E mandei pra Folha de São Paulo os originais, as provas, bonitas, coloridas. Mandei pra lá, pra Folha. Cássio Machado, que na época trabalhava lá, recebeu o Era o Dito e esse original pra que possivelmente resenhasse ou noticiasse sobre o lançamento. A Folha, na época, tinha um caderno chamado Inéditos, que saía no sábado, uma vez por mês, onde eles faziam duas páginas inteiras com um autor completamente inédito. Quando o Cassiano recebeu esse livro, começou a ler, viu que era do João Alexandre, do Era o Dito, começou a gostar e disse: “Vou fazer alguma coisa pro lançamento desse livro”. Naquela semana, o cara que seria o Inéditos Folha do sábado, publicou esse conto antes no Jornal do Brasil. Invalidou completamente a publicação do sábado. A Folha não poderia chamar de Inéditos Folha um texto que o Jornal do Brasil publicou. Aí ele lembrou do Angu. “Caramba, esse Angu de Sangue vai ser lançado daqui a quinze dias. Estou gostando, vou terminar de ler e vou ver. Qualquer coisa, ligo pra ele na quarta”. Me ligou na quarta, pra entrevistar na quinta, pra ele escrever na sexta e sair no sábado. O primeiro livro por uma editora, com o João Alexandre, foi quatro páginas na Folha. E daí a trajetória, foi indo, porque de alguma forma essa matéria pautou outros veículos, e o pessoal gostou muito do livro. Foi indo e conheci o Nelson, a Geração 90.
P2 – Fale um pouquinho mais dessa Geração 90. Tem uma questão que eles colocam que o Gustavo estava até falando de serem muito midiáticos, de saberem os caminhos da divulgação. Você encara isso com naturalidade ou como uma crítica?
R – Encaro com muita naturalidade, porque quando a gente se conheceu, cada um estava fazendo um livro. O Evandro não publicava pela editora. Publicou em 2000 pela Toc Books, eu publiquei pela Ateliê. Foi uma fase muito rica, onde os livros se encontraram e a gente precisava deixar isso registrado de alguma forma. Daí, o Nelson tinha muito contato com escritores de outros estados e descobriu que tinha um pessoal produzindo coisas muito boas nos outros estados e que não eram conhecidos aqui. Saiu aquela famosa antologia do Ítalo Moriconi: Cem melhores contos brasileiros do século. E o Nelson tinha muita vontade de fazer uma antologia e de intitular isso aí de Geração 90, já que o último boom de contos era da Geração 70. Ele topou essa briga de chamar de Geração 90, como uma logomarca, assumir isso. E colocar todos os autores que estão produzindo e ser uma extensão do Ítalo Moriconi. Isso surgiu nessa fase do café. Só que tem uma história curiosa, bem rápida. Nessa época do café a gente levava convidados lá. Eu levei um poeta português que estava de passagem aqui pelo Brasil, chamado Valter Hugo Mãe. Ele veio a São Paulo, era editor também em Portugal. E ficou muito animado com uma ideia que nós demos pra ele de fazer uma antologia chamada “Putas”. Uma antologia com essa temática “Putas” que ia sair em Portugal. Saiu aqui do Brasil certo que ia publicar a antologia “Putas” em Portugal e a Boitempo Editorial, que publicava Luiz Ruffato, adorou a ideia. Então a antologia sairia “Putas” em Portugal e “Putas” no Brasil. Uma antologia que uniria prosadores brasileiros e prosadores portugueses da nova geração. Aí o Valter Hugo Mãe desapareceu e o Nelson, esse contato que ele tinha feito com a Boitempo estava aberto, ela estava querendo publicar aquela antologia. Eu brinco com o Nelson que a Geração 90 surgiu disso. Começou com “Putas”, putas não rolou, vieram os putos. (RISOS) Ele fez a Geração 90. A gente acompanhou todo esse processo. Acho que teve essa provocação mesmo, sim. Ele assume isso. Agora, é inegável que esse pessoal todo que se encontrou, cada um já com seu livro, a antologia do Nelson não fez de ninguém escritor, né? Esses encontros, outras pessoas participaram desses encontros. Por que essas pessoas não estavam na antologia? Por que não continuaram escrevendo? Cada um estava muito certo daquilo que estava produzindo no sentido mais de angústia, do que queria fazer. A duras penas, como fosse, mas queria fazer. Então, você pegar por exemplo hoje, veja hoje: as editoras maiores pegaram todos esses autores que continuam publicando. Você vê o Nelson, continua, o Marcelo, o Evandro, embora não tivesse participado da antologia, mas acompanhou. Quem mais? A Cíntia Moscovich, Altair Martins, tantos outros escritores que a partir daquela antologia, hoje continuam produzindo. Nesse café, a gente tinha contato com uma turma que estava começando a escrever em Porto Alegre. O Marçal Aquino chegou com uns livros da Livros do Mal pra gente dar uma olhada. Estive em Porto Alegre e os conheci pessoalmente, o Daniel Galera, o Daniel Pelisario. Todos esses continuaram produzindo, continuaram escrevendo. Outros não produzindo. É inegável que começou com essa vontade, mas cada um trilhou seu caminho, seu trabalho, sem muitas certezas.
P2 – Marcelino, você estava contando dessa agregação que foi no café, que gerou a Geração 90. Eu queria enveredar por outro caminho: além de escritor, você organizou, depois veio a organizar coletâneas, foi jurado de eventos, dá palestras, faz muitas leituras públicas e tal. Como você vê essa questão das suas outras atuações, dessa publicidade, dessa outra forma de mostrar seu trabalho? Como você define isso?
R – Algumas pessoas fazem uma certa confusão no seguinte, pegando o gancho da publicidade: eu trabalho numa agência de propaganda, mas nunca fui redator. Nunca trabalhei como redator. Trabalho com revisão. Desde o banco até hoje, eu trabalho como revisor. Como escritor não dá pra viver disso. Eu preciso ter um salário fixo. A agência paga muito bem e hoje consigo ficar só meio período, até três e meia. Mas já trabalhei muito, até muitas horas, altas horas. Hoje consigo trabalhar só meio período. Quero deixar de vez, por muitos outros compromissos, mas a literatura não te garante um salário fixo, essas coisas todas. Mas nunca trabalhei como redator, porque não tenho vocação, nunca quis ser. Se eu quisesse ser redator, seria redator. Mas não quero ser. O que eu escrevo é um texto criativo. Quando eu escrevo alguma coisa, quero criar na literatura e não como redator. Às vezes fazem alguma confusão, achando que eu sou publicitário. Evidentemente o contato com a agência de propaganda, de alguma forma me limpou em muitos aspectos da minha produção. Em que sentido? Uma produção de um livro legal, bonito, de cuidar da capa, de ter um arejamento lá dentro. Eu não tinha essa noção e a agência de propaganda dá muito. A feitura do Era um Dito, por exemplo, embora eu gostasse de procurar palavras, mas o Era o Dito só foi possível porque eu trabalhava numa agência de propaganda, tinha um computador ali na frente. Entendeu? Eu jogava a palavra ali e de alguma forma assistia o que estava sendo ali escrito. Mas a agência de forma nenhuma vai fazer de alguém escritor ou de alguém artista. Você pode ter ali o computador, a ferramenta, mas não faz. Da mesma forma que a propaganda por si só em cima de um livro não vai fazer nada. Eu sempre fui assim. Se perguntarem pra mim quando eu quis, quando escrevi e produzi minha primeira peça no Recife – a gente não falou disso, mas eu, já no Recife, escrevia peças, mas teve uma fase de dezoito a dezenove anos que eu mesmo produzia minhas peças – eu dizia: “Eu quero que minhas peças passem no principal teatro daqui”, que era o Teatro Santa Isabel. Você fazer uma peça infantil no Teatro Santa Isabel, além de garantir um público de imediato, um público fantástico pra te assistir era muito difícil de garantir a pauta. Mas eu nunca coloquei “não” na minha boca. Eu queria aquele teatro porque queria que a peça fosse apresentada ali. Eu nunca quis menos. Porque a minha mãe nunca quis menos. Se ela quisesse menos, eu nunca teria saído do sertão. Teria virado pó. Não estaria dando entrevista aqui pra vocês. Quando eu vim pra São Paulo, procurei trabalhar na Avenida Paulista. De longe já vi. Eu quero o que eu não tenho, com as forças que eu tenho. (RISOS) Não é verdade? Então, quando eu publico um livro, eu me apaixono por aquele livro, quero formar um público pra aquele livro. Não tenho vergonha. Se é pra tirar da gaveta, tire da gaveta, assuma essa criança, cuide, zele, divulgue. Quando falam da Geração 90, a diferença é que a Geração 90 é muito marketing, muita publicidade, como se todos os escritores hoje não tivessem uma assessoria de imprensa, um divulgador, uma exposição melhor nas livrarias. É uma pena que o escritor tenha que escrever e divulgar. Adoraria só escrever. Outra coisa: o agitador cultural está presente na minha “biografia” desde o Recife, quando eu fazia as peças, divulgava. Achava pouco, vou produzir uma peça; achava pouco, vou fazer os jornais, Jornal dos Poetas Humanos. Produzia sempre. Sempre estava envolvido em produção. Desde quando pegava o sofá da minha mãe, desde quando peguei o Santa Isabel, desde quando fui lá no Diário de Pernambuco e disse: “tem uma moçada aqui escrevendo, produzindo. E vocês têm que divulgar essa moçada que está escrevendo aqui na terra do Bandeira, na terra do Cabral”. Eles divulgavam. Eu tenho jornais até hoje de notícias daquela época. Como eu mesmo produzia meus livros, comecei produzindo com esse “não” que eu recebi dos editores lá do prêmio no Recife, e de um editor que eu procurei lá no Recife. Como o prêmio não foi dado, eu procurei o editor lá e ele disse: “Não vou publicar seu livro”. Aquele “não” foi muito sintomático, porque pensei o seguinte: ele tem o direito de dizer não pra mim. Mas eu não tenho o direito de dizer não pra mim. A partir daquele momento eu não fui procurar, fui fazer. Vim pra São Paulo, que me atropelou. Mas quando eu resolvi, eu resolvi e fiz. E fui fazendo outro livro, outro. Uma persistência muito grande, uma teimosia que eu herdei muito dessa figura muito sintomática, muito forte, que é a minha mãe. Uma figura que pegou aquela família toda e foi embora, foi em frente. Eu percebo que tem isso. E acabo evidentemente sendo envolvido numa série de coisas, de produção. Quando eu conheci o pessoal do café, o Evandro – “Vamos fazer uma revista?” e eu consegui aquela revista e depois consegui a peça SP, uma revista que eu fiz com Nelson. Nunca coloquei que não tenho dinheiro pra fazer, não tenho tempo pra fazer. O que você tem pra fazer? Dinheiro nunca vou ter, tempo nunca vou ter. Então faça com o que você tem. O que você tem? Nesse sentido, uma coisa sintomática também: eu detesto, jamais eu quero ser o “autor da...” Eu jamais quero ser assim. “Eu agora publico pela Record, sou o autor da Record! Eu agora não preciso fazer mais nada.” Ou quando era o autor da Ateliê: “Agora sou autor da Ateliê. Alexandre Barbosa me indicou, vou sentar minha bundinha na cadeira”. Não. Eu disse essa mesma frase pra não me sentir o oficioso, oficializado, oficial. Eu fazia a coleção Cinco Minutinhos, que distribuía gratuitamente pela cidade. Eu não posso perder esse meu lado amador, não posso perder esse meu lado realizador, de querer fazer as coisas do zero. Eu não posso me institucionalizar. Tenho um medo horrível disso. Eu quero exercitar o começo, o zero de um projeto que está fazendo. Eu me envolvo na Balada Literária, me envolvo num programa de TV que não temos dinheiro, mas vamos fazer. Me envolvo no projeto de amigos, que eu acho talentosíssimos, e digo: “Pô, por que isso aqui não caminha?”. Vamos ver um exemplo disso ali na Fabiana Cozza, que é uma cantora fabulosa e que não tinha dinheiro pra fazer o primeiro CD. “Vamos fazer esse CD. Consigo ali na agência fazer a capa. Você vai conseguindo com teus amigos músicos o estúdio”. E fizemos esse Cd. Hoje ela é uma cantora que já cantou com o João Bosco. Se você for lá na capa do Cd da Fabiana está lá: Direção Artística – Marcelino e Fabiana. O que um escritor está fazendo ali? Estou fazendo a roda rodar. Estou fazendo... Ganhei o Prêmio Jabuti com os contos Negreiros. Vou me sentir um Jabuti agora? Não posso me sentir. Estou sempre envolvido em alguma coisa. Uma necessidade amadora. Uma necessidade de não ficar careta, de não ficar um escritor... Não sou isso.
P1 – Eu queria falar um pouquinho sobre Internet e literatura. Você tem um blog super conhecido. O pessoal da sua geração tem isso, enfim. Queria que você falasse um pouquinho sobre como se dá essa relação, se existe uma influência de linguagem? Como se dá essa relação?
R – Eu vou muito pra Internet com uma sede muito grande de não ficar velho. Quando eu começo a ouvir muitas expressões, tipo quando comecei a ouvir Blog, Orkut, Messenger, sei lá como é, eu digo: “Preciso ter um blog. Quero conhecer esse negócio”. Na época eu queria muito ter uma página, queira ter um site. As pessoas falavam que eu podia ter um site com essas frases do Era o Dito e divulgar também outros livros. Um amigo meu, Eduardo Foresti disse que o site na época tinha que mandar documento não sei pra onde. E eu detesto documento, detesto burocracia, detesto ter que estar respondendo pergunta. Sabe? Crediário, assim, respondendo pergunta que manda não sei pra onde, carimbo, detesto. Desisti do site. Quando veio a história do blog, ele falou: “Vamos fazer um Blog?”. Ele me explicou o que era e fez o Blog Era o Dito. Colocou o nome do primeiro livro lá. E aí era meio como um site, porque ele limpou a página e tal. Surgiu em 2002. Mas eu gosto muito de estar em contato com Internet, com o blog, com as pessoas que estão produzindo lá dentro. Porque estão produzindo lá dentro e produzindo fora. Eu gosto muito disso. De quando em quando encontrar você em um evento ou outro. Eu gosto de literatura, de escrever. Adoro saber o que as pessoas estão escrevendo, produzindo. Adoro saber o que aquele rapaz novo está fazendo em poesia, o que o outro está fazendo em prosa, o que cada um está pensando em literatura. E aí me jogar, interagir. E a Internet tem isso. Cada blog criativo, cada gente produzindo coisas... Você vai pra aquele fotoblog, cada coisa que abre, orkut com aquelas comunidades, aqueles nomes… Eu acho isso ótimo. E a divulgação que você faz, imediata, né? Meu blog, ele surgiu pra ser uma página pessoal minha, mas é aquela história: ficar só no pessoal? Eu tenho lá meus livros, claro. A pessoa que quer informação a meu respeito vai lá encontrar. Mas aquele miolo. Foi quando eu… O blog hoje tem mais um caráter jornalístico até. Tem agenda, lançamentos. Muita gente me informa coisa em primeira mão, porque sabe que ali tem um acesso de trezentos, trezentos e poucos por dia. O pessoal sabe que eles vão lá, como se fosse um público alvo, que vão ali pra saber o que está acontecendo em literatura. Não consigo fazer literatura no meu blog. Não consigo escrever um conto no meu blog, coisa muito longa, porque sei que as pessoas abrem e fecham páginas. “Texto muito longo, não leio.” Então, tem um formato dinâmico mesmo, de informar com certo humor.
P2 – Você que tem uma literatura bastante fincada na moralidade, com aquela influência nordestina, enfim, do teatro, muita leitura. Eu estava olhando algumas coisas no Youtube, alguns sites. Você acha que essa escrita atual, essa escrita impregnada de internet, por mais que você não faça literatura no seu blog, você acha que isso é mais uma fonte de influência no seu texto?
R – Ah, é uma fonte de influência. É o seguinte: escrevam do jeito que quiserem escrever. Sabe aquela linguagem de Internet, pq, cp, escrevendo pouco hoje. Sabe o que paralisa tudo? O medo, já como dizia Drummond. “A Internet veio pra acabar com o livro!” “Toda hora você recebe um vírus que vai acabar com a caixa...”. Eu quero que os vírus me ferrem, acabem com meu computador. Não quero ter essa neurose. Mandem vírus. Se eu abrir ali, “ferre-se”. Jogue isso pro esquecimento, mas não encham o saco. O tempo todo é medo. “A Internet vai acabar com o livro, você não acha?”. Eu acho que todo mundo tem que fazer o que quiser fazer e como quiser fazer. Quer fazer do seu blog um diário pessoal, faça. Não quer fazer, não faça. Aquela linguagem... O que eu não entendo, acho esquisito, eu gosto. Eu não entendo, acho esquisito, acho moderno uns blogs, pessoas produzindo umas coisas.. Eu gosto disso. Ia falar outra coisa, mas acabei esquecendo. Ah, você falou da questão da oralidade. Eu queria dizer o seguinte: o teatro, de fato, foi muito importante, porque eu comecei a fazer teatro aos nove anos, até os dezenove. Quando eu descobri que tinha muito pudor pra ser ator, eu desisti. Eu comecei fazendo teatro, escrevendo, mas queria ser ator. Eu via os atores, portentosos, nos festivais que aconteciam lá no Recife, na época áurea dos festivais, e disse: “Não vou conseguir ser esse ator. Vou ser um ator limitado, cheio de pudor. Não vou conseguir”. Desisti imediatamente, aos dezenove anos. “Não vou mais fazer teatro. Vou ver se escrevo”. Então, hoje, o lado ator, de ter escrito teatro, ele é muito presente quando eu leio. Por quê? Porque eu escrevo pensando como ator. Pensando cada vírgula, cada ponto. Eu escrevo pensando numa frase. Por quê? Porque tem muita oralidade e porque tem essa figura que sempre falo de minha mãe cantando Luiz Gonzaga, na cozinha. Isso me influenciou tanto quanto Guimarães Rosa e Graciliano. Minha mãe quando estava muito alegre, com dinheiro, ela cantava... Cantava desde às cinco da manhã. Imagine o que é um adolescente, dormindo e ela cantando e tal. Quando ela estava muito triste, batia na panela, chutava a galinha, essas coisas. Se eu escrevo hoje essas oralidades, esses personagens que dão vexames, personagens que eu chamo dessa ladainha mágica, se eu faço isso hoje é por essa influência. Eu escrevo porque quero bater panela no juízo de quem estiver dormindo, como minha mãe fazia. Meus personagens são “gasguitos”, eles falam, eles não se contém, têm uma urgência. E toda vez que eu escrevo, eu faço pensando num ator ou numa atriz falando aquilo. Pra dar um exemplo, uma mulher na televisão, uma vez – sempre dou esse exemplo pra dizer como vem a construção disso – ah, e desculpa, escrevo sempre pensando em Manoel Bandeira naquele primeiro poema que eu li dele. Aquele poema me desnorteou. Se o que eu leio não me desnorteia, não me tira do lugar, não serve. Se me dão promessa de felicidade, também não servem. Não estou preocupado com felicidade. Quem está preocupado com felicidade lê livro de autoajuda, que tem outra preocupação. Estou preocupado em olhar o beco, como diz Manoel Bandeira. Olhar o beco, o que está acontecendo. Hoje você vive num mundo desses em que abre o jornal e vê que o outro matou dezenove pessoas numa universidade, que no Rio de Janeiro não sei o quê, como estar alheio a isso? Eu não sou um escritor frígido. Eu escrevo porque dói. Escrevo porque quero divulgar, preciso divulgar. Então, quando eu escrevo isso, lembro do Bandeira, lembro do teatro e as coisas vêm com encanações, monólogos. Essa mulher, como exemplo, dizia na televisão, liguei a televisão e tinha uma senhora que olhava bem pra câmera, num desses programas sensacionalistas, ela dizia: “Dei, dei!”. E o cara: “Mas a senhora deu seu filho agora, a gente acabou de ver”. “Dei.” “Mas senhora...” “Dei.” (RISOS) Era um dei que aquela mulher dizia que eu queria muito fazer alguma coisa com aquele “dei” daquela mulher. Eu escrevo, porque eu escuto também. Eu escrevo não é porque quero falar, quero escutar. Escutar pra... Eu via naquele “dei” daquela mulher uma coisa também sexualmente. Vi o marido bêbado, chegando em casa e ela dando pra aquele marido. Tinha toda uma coisa naquele “dei” dela. O repórter ia indo e ela fugindo. Levei um tempão pra fazer um conto com esse “dei”. E quando faço, o que aparece? Eu vejo que é aquele personagem na primeira frase daquele conto, aquela primeira frase e eu me seguro nela e já estou vendo uma atriz. É um conto chamado Dar Luz no Balé Ralé. Ficou mais ou menos assim: “Dei José, dei Antônio, Maria. Dei, daria e dou. Quantos vierem, nem bem chorou, xô. Eu não posso criar. É feito gato, não tem mistério! Feito cachorro de rua, rato de esgoto. Moço, quem cria? É fácil pimenta no cu dos outros. E vem gente dizer: arranje um trabalho. Arranje você e me dê um trabalho agora. Não sei ler, não sei escrever, não sei fazer conta. Nos dedos da mão a gente conta Paulo, Antônio, José, só pra não me perder”. Ela diz assim: “filho é pra largar mesmo. Agora dizer que dá um peso no peito a consciência chumbada. Que nada! Vem você morar nesse buraco, vem você dar um jeito no mundo, repartir seu quarto. Olha, esse olho é irmão desse. Veja Maria: pôs Jesus no mundo, mas é filho do Espírito Santo. O Pai largou...” Ela vai falando. Isso é teatro, é poesia, é cordelizado, como falam que eu escrevo cordelizado.
P2 – Existe essa marca muito forte na sua poesia. Mas além dessa marca, queria falar um pouquinho que tem uma recorrência de algumas temáticas na sua obra. Temática sexual, muito forte e temática de violência. Você se acaba indo pra esses caminhos ou é meio intencional ir por esses caminhos?
R – Não, de repente eu quero me vingar e escrevo ali sobre aquilo. Não tem um “vou agora..” Eu gosto de pensar o livro enquanto projeto. Então, quando eu percebo que alguns livros meus, a partir de alguns textos que eu escrevi chamado Trabalhadores do Brasil, um conto e o Solar dos Príncipes, outro conto, que começava assim: “Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio...” e quando vi que em outros contos meus os negros estavam presentes, a sociedade toda estava discutindo a coisa de cópia e de não cópia, eu começo a dizer: “Isso aqui é como se fosse uma vingança minha, uma crônica daquele momento”. Eu começo a pensar num livro chamado Contos Negreiros e aí vou reler Castro Alves, Jorge de Lima, pra poder fazer um livro nesse sentido. Eu gosto de pensar o livro enquanto tema, homogêneo. O Balé Ralé é uma temática homossexual, porque eu tinha vários contos homossexuais e queria reuni-los num livro e fiz o Balé Ralé. Violência, já falam muito, que eu escrevo muito sobre violência. Eu escrevo sob violência, “sob”. Não há como eu escrever de outra maneira, não há. Tudo o que vem na minha frente ao vivo, por televisão, por jornal é muito pesado. Infelizmente, eu não tenho como escrever de outra maneira. Eu exorcizo isso, porque quero me vingar. Quero me vingar de uma sociedade, de um governo, quero me vingar, quero falar. É assim. Dizem que eu escrevo muito sobre gente mal sucedida. As pessoas bem sucedidas não me interessam. Outras pessoas façam, eu não faço. Eu não escrevo sobre gente bem sucedida, não escrevo. Escrevo sobre aquilo que dói, aquilo que me angustia. E sempre escrevo a partir de uma palavra. Não tenho uma história quando vou escrever um conto. É sempre de uma palavra. Eu tenho esse “dei” dessa mulher que eu queria fazer alguma coisa com ele. E ali vou descobrindo um conto a partir do que vou escrevendo. E descobrindo um livro a partir do que vou escrevendo. Meu próximo livro, que é pro ano que vem, ainda, no meu próximo livro, eu tenho um conto chamado Da Paz. Ele é muito sintomático, esse conto. É uma mulher, uma dessas personagens que diz: “Não sou da paz. Isso é coisa de rico...” e vai falando, vai falando. Eu achava muito sintomático esse conto da paz. Depois fui descobrir um texto que escrevi lá atrás, chamado Meu homem-bomba, sobre um cara que se apaixona por um homem-bomba e sempre encontra no mesmo ônibus, só que o cara está fazendo pesquisa de campo pra explodir logo mais, adiante. Tem um outro conto meu, que não vou lembrar agora, mas enfim, os contos todos têm um conflito individual, de casal ou mundial, e descobri que a guerra aí estaria presente no próximo conto, a partir do Da Paz. Descobri depois que Recife é um nome árabe, chamado Racif e digo: “Eta, porra! Tem aqui um deserto, uma ladainha, uma guerra qualquer”. Então, o próximo livro de contos vai se chamar “Racif, mar que se arrebenta” que significa Recife.
P1 – Marcelino, a gente tem só cinco minutos. Na entrevista toda você fala que não aceita “não”, que vai pra luta. Gostaria que você falasse alguma coisa nesse sentido. E alguma coisa sobre...
R – Você também tem perguntas, assim já junto tudo.
P2 – Eu queria saber quais livros você gosta de ler pra se divertir e se tem livros pra trabalhar.
R – Não posso deixar de dizer, foi bom você perguntar isso, porque não posso deixar de dizer do Júlio Cortázar. Quando eu descobri o Cortázar, tive um encantamento, um negócio... Descobri pelo Jogo da Amarelinha, depois foi sintomático, maravilhoso pra mim, que foi História de Cronópios e de Famas. Depois li aqueles contos dele todos. Aqueles livros todos. Octaedro, Bestiário, adorava aquele... Qualquer dia quero fazer um livro que é o meu bestiário. Adoro aquele universo do Cortázar, gosto muito de ler, continuo lendo Cortázar, bastante. Por incrível que pareça, digo isso porque me perguntam o que eu tenho a ver com Machado de Assis, mas adoro os contos do Machado. Gosto muito de ler os contos, porque o Machado me dá fôlego. Começo a ler e tenho vontade de escrever contos mais longos depois que leio Machado de Assis. Sempre estou lendo João Cabral. Gosto muito de ler poesia. Teve uma fase minha, de vida, quando comecei a ler esses poetas todos, que descobri García Lorca e fiquei completamente apaixonado pelo García Lorca e fui ler as coisas dele. Gosto muito também da biografia do escritor. Quando ele é muito bom e eu descubro que a biografia dele é melhor ainda, fico maravilhado. Teve a fase da minha vida, a fase gay, que foi assim de pegar Garcia Lorca, e descobre Genet, descobre Oscar Wilde, meu Jesus! Depois tem a fase do Glauco Mattoso, ainda no Recife, quando descobri a figura do Glauco. Quem mais? Agora a Adília Lopes, poeta portuguesa pela qual estou apaixonado agora. Tem o Fernando Pessoa, pelo qual continuo sofrendo...
P1 – Deixa eu pegar a deixa do Fernando Pessoa. O nosso programa tem um quadro chamado Museu do Pessoa. São pessoas, escritores ou qualquer outro tipo de pessoa falando sobre o Pessoa. Tem algum poema especial, alguma opinião? Coisa curtinha.
R – Tem um primeiro poema, quer dizer, não é o primeiro, é um poema muito famoso, mas pra mim é muito imediato o que ele diz. E eu gosto muito em qualquer arte das pessoas que dizem logo o que querem e vão embora. Não ficam ensebando. E eu gosto muito do Fernando Pessoa, aqueles poemas “discursivos”, poemas em linha reta. Quando ele diz: “Nunca conheci quem tenha levado porrada, todos são campeões em tudo”. Acho que é o Alberto Caeiro quem assina o poema em linha reta e que assina uma série de outros poemas que já dizem logo. Nesse sentido, eu gosto do Fernando Pessoa quando ele dá vexame.
P2 – Você lembra de algum poema?
R – Era esse em linha reta que eu estava tentando lembrar: “Nunca conheço quem tenha levado porrada. Meus amigos todos são campeões em tudo”. Como é que é rapaz?
P2 – Uma das perguntas desse bloquinho é o seu conselho, algum livro pra recomendar pra quem está começando, mesmo que seja como a que você pediu pra aquele autor, qual era?
R – Millôr Fernandes. Na verdade, eu não pedi pra Millôr Fernandes dar um conselho. Ele contou pra mim que haviam pedido pra ele dar um conselho e ele deu aquele conselho. Levante-se, aja. Pra que você não fique uma ameba, um poço de reclamação, de rancor. Faça! Você vai errar, mas você vai fazer. Você vai acertar, mas vai fazer. O importante é fazer, querer fazer. Isso é que move, isso é que move! Isso, repito é o que moveu minha mãe, quando saiu de onde saiu e que me move nessa trajetória toda. Você quer ser um escritor? Leia, faça, escreva, se movimente, acorde.
P2 – Pra finalizar, você tem alguma ambição ou alguma intenção de escrever algo mais longo, mais de fôlego?
R – Eu tenho dois romances parados. Tentei fazer dois, mas estão lá parados. Não tenho fôlego, sempre paro, não dou continuidade. O tempo sempre foi muito curto. Então estou voltando pros contos. Vou publicar o Racif. Literatura longa, por enquanto vai ficar ali. Tenho um fôlego muito curto, percebi que não sou um romancista. Quando percebo que estou macaqueando, que estou fazendo uma gambiarra pra poder escrever uma coisa maior, eu... Na verdade, eu sempre digo que o escritor é um corrupto da literatura. Ele tem que esconder as suas deficiências, as suas armas, tem que blefar, fazer uma gambiarra pra esconder suas deficiências, suas incapacidades. Então, no romance, quando eu estou criando, evidentemente que eu tenho muitas falhas apontadas por críticos ou por leitores, mas quando estou escrevendo um romance, não me convenço. Porque aquelas minhas armas, meus cacoetes estão todos à mostra, estão todos com pijama na sala. Então, não consigo no romance esconder as minhas deficiências, fico enrolando. E não consigo fazer assim e desisto deles.
P2 – Tem alguma coisa que a gente não perguntou e que você gostaria de complementar?
R – Que mais, hein?
P2 – A gente fez um painel bem legal, mas como a gente interrompeu, pode ter alguma coisa que não ficou...
R – Acho que é isso.
P1 – A gente queria agradecer demais.
R – Eu que agradeço. Desculpa esse atrapalho com...
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