Projeto Conte Sua História – Celebração do Sorriso
Depoimento de João Carlos Martins
Entrevistado por Karen Worcman e Lila Schnaider
São Paulo, 11/08/2017
Realização Museu da Pessoa
Projeto PCSH_HV576
Transcrito por Liliane Custódio
Revisado por Viviane Aguiar
P/1 – Bom, maestro, eu queria começar do início, ou seja, eu vou perguntar uma coisa muito simples, que é o seu nome, data e local de nascimento.
R – João Carlos Martins, 25 de junho de 1940.
P/1 – E onde o senhor nasceu?
R – Em São Paulo. Os primeiros três meses eu morei no bairro das Perdizes e depois me mudei para a Vila Mariana.
P/1 – Conte-me um pouquinho qual era o nome e quem eram seus pais. Então, o nome, de onde vieram os seus pais.
R – Meu pai, José da Silva Martins, nasceu em 1898, na cidade de Braga, no norte de Portugal, e faleceu aos 102 de puro acidente. E a minha mãe Alay Gandra Martins, de Ribeirão Preto, nasceu em 1907, no dia 16 de julho. E o meu pai, 11 de junho.
P/1 – E o seu pai veio para o Brasil, como foi que ele conheceu a sua mãe?
R – O meu pai veio para o Brasil inclusive por uma história de amor. Ele, aos 20 e poucos anos, se apaixonou por uma moça em Portugal, em Braga, que era da família mais rica de Braga. E o sogro deu a entender, o futuro sogro deu a entender, que, porque ele era de uma família muito humilde...
P/1 – Ah, ele era de uma família pobre, então?
R – Muito pobre. Eu sempre digo que a melhor mentira do mundo é a verdade. Em 1898, meu pai foi filho de uma mãe solteira. Imagine isso em 1898 em Portugal.
P/1 – Como? Como foi essa história?
R – Filho de mãe solteira. E ele, aos dez anos, resolveu que ele... Ele já sustentava a mãe, aos dez anos, trabalhando numa gráfica em Portugal. Quando ele passava a caminho da gráfica, ele via uma aula de piano. Olhava pra uma professora tocando, dando aula de piano, ele ficava parado diante da janela. Até que ela falou pra ele: “Se você quiser, eu lhe ensino a tocar piano”. E ele ficou eufórico. Três dias antes da primeira aula, ao colocar a mão na prensa, ele dormiu um pouco e a prensa decepou essa parte da mão dele e ele nunca pôde realizar o sonho de ser pianista.
P/1 – Nossa!
R – E ele se apaixonou, perto dos 20 anos, por uma moça, que era uma das moças mais ricas da cidade. Quando deu a entender, pra ele, que ele talvez estivesse se casando por interesse, ele foi pra Lisboa, tomou o navio, pegou o navio e nunca mais voltou a Portugal.
P/1 – E deixou a mãe lá?
R – A mãe, ele quis trazer para o Brasil, ele sustentou a mãe até os últimos dias. Ele quis trazer para o Brasil todos os anos, mas a mãe falou que ficaria lá. E foi um dia muito, que eu diria, um dia que eu jamais poderia esquecer na minha vida, porque minha mãe era médium, espírita, e uma tarde estava a família toda reunida depois do jantar, e a minha mãe falou: “José, aconteceu algo muito grave em Portugal com a sua mãe”. No dia seguinte, recebemos a notícia de que a mãe dele tinha falecido.
P/1 – Nossa! Interessante. Então, vamos voltar. Ele se sentiu rejeitado, pegou o navio...
R – Ele chegou aqui, começou como caixeiro viajante, naquela época viajando com as famosas jardineiras, ou seja, estradas de terra e bancos de madeira. Ele começou como represen... Não, primeiro ele trabalhou numa loja no Rio de Janeiro como vendedor e montando as vitrines da loja. Ele tinha muito bom gosto. Aí ele recebeu um convite pra vender aromas para farmácias, pequenas farmácias no Brasil. Ele tinha tanta dedicação que ele viajou por 500 cidades do Brasil inteiro, desde o Rio Grande do Sul até o Amapá. Mas, quando ele passou por Ribeirão Preto, ele conheceu a minha mãe. Quando ele conheceu a minha mãe, ele se apaixonou. E ele falou pra ela depois de um ano: “Eu quero ficar noivo de você”. E minha mãe era uma família de 16 irmãos, ou 15 irmãos, se não me falha a memória. E o pai dela era fazendeiro, mas perdeu tudo na geada, uma famosa geada dos anos 20 ou 30. E ele falou pra minha mãe: “A única coisa que eu peço é que você aprenda a tocar piano”. E ela começou a estudar piano. Mas, depois de uns dois, três anos, meu avô materno falou pra mãe: “Olha, todas as amigas estão falando que, pra casar, você tem que tocar piano”. Aí ela esperou que ele passasse por Ribeirão Preto novamente e ela falou: “Olha, se você quiser se casar comigo, é por minha causa, não por causa do piano. O máximo que eu posso aprender é tocar um violãozinho e olhe lá”. E os dois acabaram se casando. Ele veio morar em São Paulo e acabou se tornando o maior vendedor do mundo dessa empresa francesa.
P/1 – Essa de aromas?
R – De aroma. Chamava ___ na cidade de Grasse, que é a cidade mais importante na França a tudo que diz respeito a perfumaria, aromas e outras coisas mais. E ele ficou o maior vendedor do mundo, mas pouco depois de casado ele teve um, eu falei, um câncer violento. Um câncer violento. Tiraram três quartos do estômago, deram seis meses de vida aqui no Hospital Santa Catarina. Quando ele soube que deram seis meses de vida, ele falou: “É porque vocês não me conhecem”. E morreu aos 102, de acidente.
P/1 – Nossa, era uma figura. A sua mãe era uma família de fazendeiro, uma família tradicional de Ribeirão Preto? Qual era a origem da sua mãe?
R – Não, a família lá na Vila Bonfim era uma família importante, mas perderam tudo, praticamente, na grande geada que teve naqueles... Não sei se nos anos 20, ou nos anos 30. E o meu pai fez questão, desde que ele se casou, os pais dela é como se fossem os pais dele. E ele comprou uma casa para os pais e sustentou os pais até o último dia da vida. Aliás, o primeiro dia que eu o vi chorando foi o dia que morreu o meu avô materno. Eu nunca acreditava que o meu pai pudesse chorar. Ele era um homem muito firme, mas ele fazia de tudo pra não demonstrar emoção. Mas procurava que os filhos fossem inteiramente dedicados, na infância, a tudo aquilo que fosse relativo às artes. Em outras palavras, eu com oito anos tinha que ler livros e fazer resumos, assim como meus outros três irmãos. Íamos ao museu, ao Masp [Museu de Arte de São Paulo], que ficava na Rua Sete de Abril, do Assis Chateaubriand, pra ver obras de arte no campo de artes plásticas. Comprou um piano, três dos filhos começaram a estudar piano, mas, talvez, inicialmente, talvez eu tenha demonstrado uma predisposição maior, apesar de o meu irmão José Eduardo ser um pianista sensacional – ele foi crescendo aos poucos, embora ele queira uma vida reclusa. E eu, logo de cara, eu falei uma frase, seis meses depois, eu ganhei um concurso com oito anos. Seis meses depois, eu ganhei um concurso nacional de piano tocando obras de Bach. E perguntaram pra mim se piano era difícil, eu falei: “Ou é fácil, ou é impossível”. E meu pai falou pra mim: “Nunca mais repita essa frase, meu filho. Quantas pessoas gostariam de tocar piano? Você recebeu o dom de Deus e nunca mais repita essa frase”. Eu nunca mais repeti. Hoje eu conto por ser uma frase importante dele pra mim.
P/1 – Deixe-me só entender um pouco, então, da sua família. O seu pai se casou com a sua mãe, e eles tiveram três filhos?
R – Quatro.
P/1 – Quatro. Então, quem são?
R – O Ives, que, como tributarista, eu acho que é... O Ives Gandra, que, como tributarista, talvez seja, eu acho, que uma das maiores referências em nosso país, e constitucionalista também.
P/1 – Ele é o mais velho?
R – O mais velho. Um caráter incrível. O segundo irmão, um dos maiores colecionadores de arte no Brasil, mora no Rio de Janeiro e em Tiradentes. Lançou vários pintores, tem uma coleção que daria inveja a qualquer museu.
P/1 – Como ele se chama?
R – José Paulo. O José Eduardo, um pianista que foi crescendo aos poucos, toca um piano sensacional, mas gosta de uma vida reclusa. Mesmo assim, já gravou 23 CDs na Europa. Aqui no Brasil, ele é menos conhecido, mas, se fosse falar em termos do que saem nos jornais, o meu nome despontou muito mais do que o dele. Hoje eu não toco piano, e ele toca piano maravilhosamente. É dois anos mais velho, mas nunca teve a palavra inveja, da parte dele, pela, vamos dizer, a fama que eu consegui. E nunca teve a palavra inveja da minha parte pelo fato de hoje eu não poder tocar piano, e ele tocar piano muito bem.
P/1 – Então, são quatro e você é o mais novo de todos.
R – Eu sou o mais novo.
P/1 – O filho caçula.
R – Isso. Tudo em cinco anos aconteceu.
P/1 – Em cinco anos?
R – Isso.
P/1 – E como era essa... Já entendi que era uma infância muito voltada, vamos dizer, pra educação.
R – E para as artes.
P/1 – Como era a casa? Quem mandava mais? Vocês moravam todos no mesmo quarto? Tinha muita religião? Conte-me um pouco como era essa sua casa de infância. O que você lembra?
R – Não, não. O meu pai sempre defendeu a teoria de que todas as religiões conduzem você a Deus. Meu pai não era católico, não era espírita, não era budista, mas ele achava que todas as religiões conduziriam você a Deus. Mas cada filho podia tomar o seu destino. Ives é um católico fervoroso, o Zé Paulo menos, nós todos somos... Os outros três são católicos, assim como muito dos brasileiros. Mas meu pai dizia sempre uma frase pra nós, que ele adorava a frase de Jesus Cristo, que dizia: “Se bateram numa face, dê a outra face”. Ele dizia que a frase de Buda era uma frase mais romântica, porque, se o sândalo recebia uma machadada, ele respondia a machadada com perfume, com amor.
P/1 – Nossa, que lindo. E a sua mãe era espírita?
R – Minha mãe era espírita.
P/1 – E ela trouxe isso pra dentro de casa?
R – Trouxe. Tinha sessões espíritas em casa toda segunda-feira.
P/1 – Como era? Conte-me da sua lembrança.
R – Ah, vinham os vizinhos, minha mãe recebia médiuns. Ela mesma realizou operações espíritas e era uma pessoa muito dedicada à família. Agora, a liderança da casa realmente era do meu pai, sem dúvida alguma, mas com um respeito incrível pela mulher, pela mãe. Foram casados 67 anos.
P/1 – Então, vamos voltar agora um pouco pra sua história do piano. Ele tinha um desejo desde a infância, ele mesmo, de tocar piano e estimulou os filhos. Da sua vida, da sua lembrança, qual foi, vamos voltar um pouco, qual o seu primeiro contato com piano? Você tem essa lembrança, a primeira professora?
R – Tenho. Quando eu botei a mão no piano, se você pergunta: como foi a primeira aula? Eu não lembro.
P/1 – O que você lembra?
R – Eu lembro que 20 ou 30 dias depois eu estava tocando o primeiro movimento da Sonata ao Luar já em público. E no piano aconteceu uma coisa em que entra já a palavra sentimento. Eu botei a mão no piano e eu tinha bullying na escola porque eu tinha o meu pescoço aberto por causa de um tumor e vazava pus. Cada vez que eu me alimentava, eu tomava água. E eu sofria bullying na escola, e uma menina me protegia, falava: “Não se incomode”. Isso está relatado no filme da minha vida. Até que, quando eu estava no início dos estudos de piano, a mãe ligou o gás, se suicidou, e a filha também morreu.
P/1 – Essa...
R – Essa menina que me protegia. E eu lembro que eu estava chegando à casa, vi os dois caixões saindo. Deu uma rajada de vento, levantou o lençol, e eu vi o rosto da menina que me protegia. E aquilo, eu lembro que eu subi correndo para o quarto e eu me afundei no piano durante anos e isso fez com que eu, através da música, agradecesse àquela menina que me ajudou.
P/1 – Eu não entendi bem. Por que ela estava saindo da sua casa?
R – Não, da casa dela.
P/2 – Era vizinha.
P/1 – Ah, você estava chegando à casa dela.
R – Era vizinha minha. Praticamente vizinha, umas seis casas de distância.
P/1 – Isso foi aqui em São Paulo?
R – Foi em São Paulo, na Vila Mariana, na Avenida Rodrigues Alves.
P/1 – E ela se matou junto com a mãe?
R – Não, a mãe que se matou.
P/1 – E ela?
R – Ligou o gás, morreram as duas juntas. Deixou o gás ligado. Porque a mãe quis se suicidar, mas levou a filha junto. A mãe era separada.
P/1 – E isso foi o sentimento que deu...
R – Ah, isso marcou muito a minha vida.
P/1 – E o piano...
R – O piano foi praticamente um refúgio da dor que eu senti naquela época. Era uma história totalmente ingênua, de duas crianças. Ela tinha oito anos também, mas ela me protegia, ela falava: “Não dê bola. O pai desse menino bate nele”. Tudo isso está relatado no filme, porque as mesmas perguntas, o diretor do filme, Mauro Lima, perguntou pra mim.
P/1 – Então, vamos ver se eu consigo perguntar alguma coisa diferente (risos).
P/2 – Como era com os irmãos, quando vocês eram pequenos? Vocês brincavam? Do que vocês brincavam?
R – Muito. Jogávamos futebol. Eu ficava mais tempo no piano. Eu, com dez anos, eu ficava às vezes seis, sete horas estudando piano. Mas meu pai colocava long plays, e os filhos tinham que adivinhar qual era a música, depois do jantar, qual era o compositor. Porque tinha literatura, artes plásticas e música. Fazia parte da nossa vida.
P/1 – Era um currículo da...
R – É. Não, ele fazia questão que todos se dedicassem, tivessem as artes como elemento fundamental como evolução da vida.
P/1 – E, além do piano, vocês estudavam onde?
R – Estudava primeiro num colégio na Vila Mariana chamado Educandário Brasil, e fui estudar depois no Liceu Pasteur. No Liceu Pasteur, eu era um aluno muito bom, mas eu ia para o Liceu Pasteur das oito ao meio-dia. Eu chegava em casa, das duas até as oito, eu estudava umas seis horas de piano, com um intervalo de dez minutos em cada hora.
P/1 – E você tinha um professor marcante nessa época?
R – Tinha. Primeiro comecei com uma professora chamada Aida de Vuono. Depois passei pelo melhor professor que teve de piano na história do Brasil, da União Soviética futura, acho que era Lituânia, mas ele era chamado de professor Russo. Russo, judeu, chamado José Kliass, um professor genial.
P/1 – Então, esse período, quer dizer, da escola, com piano, o que mais foi marcante um pouco nesse seu período de...
R – Eu não estudava lições de escola, mas são coisas que eu conto, que todos os meus colegas de escola sabem. Eu não estudava porque eu ficava no piano. Aí, tinha prova de história, se eu, naquela época, até alguns anos atrás, você me desse uma página pra que eu lesse, eu lia a página, 30 segundos depois, eu escrevia a página inteira, se tivesse dois erros era muito. Então, abusava do poder da memória pra não precisar estudar na escola e me dedicar ao piano. Por isso, onde não tinha que decorar, Matemática, se eu pudesse ter uma colinha, era bom.
P/1 – (risos)
P/2 – E você se lembra de alguma situação de colar?
R – Lembro.
P/2 – Qual? Conta.
R – Eu na cola, colando, aí eu vejo o professor vindo andando, correndo, correndo. Eu falo: “Hummm”. Chegou, arrancou a minha prova. Tanto que, de Matemática, eu fui tão ruim, mas passava sempre, que depois, nos últimos dois anos, naquele tempo tinha o curso clássico, os últimos dois anos, pra me dedicar à música, meu pai me colocou num colégio que era chamado “Boate Azul”, Colégio Ipiranga. Era o colégio mais fácil do mundo. E nessa “Boate Azul”, eu fiz os dois últimos anos do clássico. E no Pasteur eu fui um ótimo aluno. Porque eu já estava com carreira aos 16 anos, tocando pelo Brasil inteiro. Eu não tinha condições, tinha que estar num colégio em que eu pudesse faltar, tudo. Mesmo assim, tinha um professor chamado Dirceu, de Matemática, e eu na prova final fui de casaca. Era oral, prova oral. “Professor...”, eu falei: “Como eu já estou saindo nos jornais, o professor vai saber que eu sou o pianista, porque eu saí em todos os jornais, fui fazer a prova de casaca”. O professor falou: “Poxa...” – o colégio era fácil – “Mas o que você faz? Você é mágico?”. Eu falei: “Não, não. Sou pianista. O senhor nunca viu nos jornais?” Ele falou: “Não, eu pensei que você fosse mágico.” Ele falou: “Por que você veio de casaca?” Eu falei: “Porque eu vou dar um concerto às nove horas, eu preciso fazer a prova rapidinho. Mas, professor, o senhor me desculpa.” Ele falou: “Mas como? Você faltou...” Eu falei: “O senhor me desculpa, mas eu já vou para os Estados Unidos daqui a dois meses começar uma carreira e eu preciso passar pelo terceiro clássico.” Ele olhou com um pouco de pena, falou: “Mas de que nota você precisa?” Eu falei: “Eu acho que nove e meio.” Ele falou: “O quê?” Eu falei: “Nove e meio, professor.” Ele falou: “É um absurdo. Nunca fiz isso na vida, mas, como você é pianista, você vai dar um concerto, eu vou dar os nove e meio.” Porque cada aluno entrava sozinho pra fazer a prova oral naquela época. Quando eu estou perto da porta, eu falei: “Professor Dirceu, mete um dez aí, porque eu sou tão ruim de Matemática”. Ele deu dez, eu passei.
P/1 – (risos) Nossa senhora. Vamos agora pegar um pouco, então, da sua carreira. Nesse momento, você já estava com uma carreira grande no Brasil.
R – Ah, com 13 anos, eu comecei uma carreira fulminante no Brasil. Mas, com 15 anos, ou 16, 15 anos, meu pai falou: “Eu gostaria que você tocasse...” – falou para o professor meu de piano – “Que ele tocasse O Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach, inteirinho” – que, contando os dois volumes, são 96 peças de Bach. E com, acho que antes de um ano, no Teatro Municipal, eu dei quatro concertos tocando O Cravo Bem Temperado de Bach inteirinho de cor, no Teatro Municipal.
P/1 – Conte-me um pouco como era essa facilidade. O que era? Vinha, era da memória, era do dedo? Tenta descrever pra mim.
R – Não. Eu sempre digo que o dom de Deus são 2%, e 98% são disciplina. Sem os 98%, nada acontece. Sem os 2%, também nada acontece.
P/1 – Mas isso era uma disciplina diária.
R – Uma disciplina, uma busca pelo perfeccionismo de tal forma que, com 15, 16 anos, eu fazia, numa escala, 21 notas por segundo. E, nisso, eu acabei destruindo aos poucos as minhas mãos, mas alcancei os meus objetivos.
P/1 – Que eram, então...?
R – Que era alcançar uma digitação que talvez poucas pessoas pudessem ter na obra de Johann Sebastian Bach. Se você me perguntar se eu era um grande intérprete de Chopin, eu digo não, eu falaria: “Vamos procurar o Arthur Moreira Lima”.
P/1 – O seu compositor predileto era Bach?
R – Ah, acabei me dedicando, acabei gravando a obra completa de Bach para teclado.
P/2 – E por quê? Como surgiu esse interesse por ele?
R – Não, talvez fosse o compositor que meu pai mais gostava também. E Bach foi a síntese de tudo e a profecia de tudo que aconteceu na música no mundo inteiro. Bach quer dizer rio, riacho, em alemão. E Beethoven dizia que Bach devia significar a palavra oceano.
P/1 – Que bonito isso. Então, essa carreira no Brasil, vamos voltar pra sua vida, essa sua carreira no Brasil...
R – Ah, corri o Brasil inteiro tocando. Eram os dois garotos: do Rio de Janeiro era o Arthur Moreira Lima, e eu em São Paulo. E meu pai falava: “Olha como ele está tocando”. A mãe dele falava: “Olha como o pianista de São Paulo está tocando”. E depois sempre ficamos muito amigos, nunca teve a palavra inveja de um para outro. Tanto é que... Aí eu fiz a carreira nos Estados Unidos, e ele na União Soviética. Quando ele soube que um pianista brasileiro ganhou o concurso de Vianna da Motta em Portugal, ele viu no Pravda, de Moscou, mas não falava o nome do pianista. Como o Nelson Freire tinha sido colega dele com a Lúcia Branco e era um jovem grande pianista, ele mandou um telegrama para o Nelson Freire falando: “Nelson, eu li aqui que um pianista brasileiro ganhou o concurso Vianna da Motta, se não foi você, você apaga o telegrama e manda para o João Carlos Martins”. Mas o Nelson que tinha ganhado. Eu fiz a minha carreira basicamente nos Estados Unidos, comecei, o Nelson na Europa e o Arthur na União Soviética.
P/1 – E a sua, então, lá nos Estados Unidos, como foi o começo dela e como foi a sua chegada?
R – Ah, isso aí não adianta você estudar e tudo, tem que ter... Eu fui para os Estados Unidos a primeira vez representando o governo da Argentina, porque o Festival Pablo Casals escolheu jovens das três Américas para participar do Festival Casals em Porto Rico. O que fosse em primeiro lugar no recital daria um recital prêmio e faria a sua estreia em Washington. E o Itamaraty falou que não tinha dinheiro pra pagar minha passagem. E saiu na United Press e o Frondizi falou para o embaixador da Argentina: “Como nenhum pianista argentino foi escolhido...” – porque o Barenboim e a Martha Argerich já moravam na Europa, e eles escolhiam no país – “então, o governo argentino patrocina a viagem do pianista brasileiro”. Fui lá, ganhei, dei o recital prêmio. No meu primeiro recital teve que ter a bandeira da Argentina e do Brasil.
P/1 – Olha que interessante. E, de lá, você ficou nos Estados Unidos, ou você voltava e ia?
R – Não, logo em seguida, o maior compositor argentino, que seria o Villa-Lobos do Brasil, chamado Ginastera, me convidou e eu fiz a minha estreia com orquestra. Primeiro eu fiz sozinho, com a Orquestra Sinfônica Nacional de Washington, a Eleanor Roosevelt até assistiu e ela falou: “Vou fazer a estreia dele no Carnegie Hall”. Então, aí é um golpe de sorte, que você não precisa passar por muitas fases pra iniciar uma carreira, ou ganhar outro concurso internacional, ou ter dinheiro, ou ter um empresário que se apaixonou pela forma que você tocasse. No momento que a Eleanor Roosevelt convidou pra fazer a minha estreia no Carnegie Hall, aos 20 anos, aí já estava deflagrada a carreira. Apareceu um dos maiores empresários, foi a vida dos sonhos durante uns seis anos.
P/1 – Bom, nessa época, então, dos 20 aos 26, virou uma carreira?
R – Ah, toquei com todas as grandes orquestras dos Estados Unidos, da Europa.
P/1 – E pessoalmente a sua vida estava como?
R – Ah, eu estava casado.
P/1 – Ah, você casou?
R – Estava casado. Eu casei uma semana antes do primeiro concerto no Carnegie Hall, mas talvez eu não estivesse preparado para, com 20 anos, me casar e entender o que era... No fundo, eu gostaria de ter sido casado como o meu pai, 67 anos com a mesma mulher. Minha primeira mulher é uma mulher com um caráter fantástico, mas uma pessoa muito rígida. E eu era uma pessoa muito aberta.
P/1 – Como ela chamava e onde vocês...
R – Sílvia.
P/1 – E ela era daqui?
R – Daqui de São Paulo, da família Segal. Mas uma pessoa muito rígida, e eu uma pessoa muito aberta, entende? Então, nunca foi um relacionamento, até que eu acabei, depois de sete anos, tive dois filhos com ela, dois filhos maravilhosos, acabei gostando de uma pessoa que tinha uma galeria de arte. Ela soube, aí ela pediu o divórcio. Quando a pessoa se separa a primeira vez, depois é fácil separar. A segunda, eu acabei não casando, mas numa viagem acabei tendo um filho com ela e aí vim para o Brasil. Mas teve uma cena interessante: ela, quando foi ter o filho, ela não queria que eu soubesse que ela ia ter o filho, que foi praticamente em umas viagens que nós fizemos juntos.
P/1 – Ah, então era um caso.
R – É. Praticamente. Nunca tivemos casa juntos. Se estava aqui no Brasil, podíamos estar juntos um mês, ou em Nova York. Mas aí não nos vimos mais, mas ela ficou grávida de um filho meu. Um amigo meu chinês falou que ela ia ter o meu filho cinco dias depois, em Nova York, mas não queria que eu soubesse, mas que ela iria criar. E aí eu tomei o avião e consegui chegar a Nova York na hora que ela estava entrando pra sala de parto, e eu, da janela, falei: “Olha, eu tô aqui pra registrar o garoto, que eu sei que é meu filho”. E dei a educação inteira pra esse jovem, nas melhores escolas. Hoje ele tem uma rádio, preside um instituto em Nova York.
P/1 – Ela era americana e cresceu lá?
R – Não, ela nasceu no Brasil, mas nunca morou no Brasil.
P/1 – E ele cresceu lá?
R – Ele cresceu lá, toda vida dele lá. Veio para o casamento dos irmãos e tudo, fomos para o casamento dele na Itália. Mas, então, eu estava separado. Aí eu conheci...
P/1 – Então, espere aí, me deixe voltar. Eu queria fazer uma perguntinha, posso? O que significa rígida?
R – É uma pessoa, por exemplo, se eu estivesse segurando o talher errado num jantar, por exemplo, da família Klabin, de uma forma não muito educada, estivesse sem a etiqueta, vamos supor, ela fazia críticas a mim. Eu não digo que eu fui um bom marido, mas ela foi uma pessoa muito digna, com um grande caráter, mas que tinha conflitos de atitudes perante a vida. Ela era ultrametódica, e eu só era metódico para o piano. No fundo, eu só pensava em estudar piano. Eu ficava em Nova York estudando oito horas de piano por dia.
P/1 – E os seus dois filhos com ela nasceram lá também?
R – Não. Nasceram aqui. Nasceram aqui. Ela acompanhou todo o meu drama das primeiras operações, a primeira fisioterapia, a minha embolia pulmonar, que eu fiquei em coma em Berlim.
P/1 – Mas tudo dos 20 aos 26?
R – Tudo dos 20 aos 26.
P/1 – Então, me conte um pouquinho dessas...
R – Ah, eu tive um acidente jogando futebol, uma pedra lesionou o meu nervo ulnar. Eu fui perdendo o movimento das mãos aos poucos. Aí fiz uma operação para a transposição do nervo ulnar.
P/1 – Isso o quê? Com 20 e...
R – Vinte e cinco anos, 24. Comecei a tocar com dedeiras de aço. Aí, quantos concertos eu dei, tinha sangue nas teclas. Eu me entusiasmava demais, forçava a dedeira de aço até que... Aí já tinha me separado dela. Até que eu toco em Nova York e tenho uma crítica ruim. Eu falo para o meu empresário: “Se o New York Times sempre me elogiou tanto, e criticou, ele está certo. Eu vou voltar para o Brasil e nunca mais vou olhar para um piano”.
P/1 – Por causa dessa crítica?
R – É. Por causa de uma crítica do New York Times.
P/1 – Por quê? Você sentiu o quê?
R – Porque eu falei que ele tinha razão. Eu acho que piano, você tem que mostrar emoção aliada ao perfeccionismo. Eu tinha emoção, mas perfeccionismo, não.
P/1 – Por causa do...
R – Do acidente.
P/1 – Aí você voltou para o Brasil?
R – Voltei para o Brasil. Aí fui trabalhar num banco.
P/1 – Ah, aí, nesse momento, você largou o piano mesmo?
R – Não, nem podia olhar pra um piano.
P/1 – Ficou com raiva.
R – Raiva. Nem podia ouvir falar.
P/1 – É isso o que você sentiu?
R – Nem podia ouvir música clássica.
P/1 – É? Mas sentiu o quê? Conte-me melhor. Nesse momento da crítica, o que deu no seu...
R – Ah, que música tem que ser feita com perfeccionismo. Um recital meu podia ser gravado, era um CD pronto.
R – Então, a sua raiva foi de você mesmo, do destino?
R – Foi a decepção comigo mesmo. Eu falei: “Dediquei dos oito aos 30 anos de idade, 22 anos agarrado no piano, e de repente eu não sou mais o pianista que eu queria ser”. Eu volto para o Brasil, vendo os meus pianos, vou morar na Alameda Lorena, aqui num apartamento, fico diretor de uma agência de turismo do próprio banco, da empresa de turismo.
P/1 – Quer dizer, espere aí, você voltou para o Brasil pra ir trabalhar num banco?
R – Isso.
P/1 – Como uma pessoa que faz uma carreira internacional, de piano, volta e entra pra um banco? Como foi esse processo?
R – Eu era famoso e eu falei: “Recomeço tudo de novo”. Fui morar num apartamento. O banco tinha um grande amigo, que era o presidente do banco, que era o Roberto Campos, eu falei: “De banco, eu não entendo, mas eu vou estudar. Mas, de turismo, eu entendo. Vocês têm uma empresa de turismo, eu acho que posso trabalhar nela, porque eu viajei o mundo inteiro”. Uns dois meses depois eu era o diretor da empresa de turismo do banco. Fiz a empresa crescer muito. Aí comecei a trazer artistas internacionais para o Brasil através da empresa: James Brown, Alice Cooper, Supreme e fui...
P/1 – O quê? Assim, virar empresário de música?
R – Aí, sim, era música popular, não tinha nada a ver com música clássica. Aí fui empresário de boxe. Eu encontrei o Eder Jofre e falei: “Eder, você tem que...”. Empresário não, patrocinador. Falei: “Você tem que recuperar o título mundial para o Brasil.” Ele falou: “Já tô velho.” Pra fazer uma história longa curta, um ano e meio depois, ele recuperou o título mundial para o Brasil e um ex-pianista era o patrocinador dessa luta. Quando eu vejo o juiz levantar o braço dele, eu falo: “Se o Eder recuperou o título mundial para o Brasil, eu também posso voltar ao piano”. Compro um teclado mudo que fazia um barulhão incrível, parecia que você estava batendo a máquina o tempo inteiro. Agora, eu ficava a madrugada inteira no teclado mudo, tacatacatacataca, que os vizinhos de cima e de baixo ouviam aquilo lá, parecia uma máquina de escrever antiga. Até que o zelador do prédio chega pra mim e fala pra mim: “Olha, os vizinhos estão reclamando que o senhor está incomodando, e a síndica do prédio pediu para o senhor não ficar a madrugada inteira batendo na máquina”. Eu fui novamente à loja onde eu tinha comprado o teclado mudo e comprei um piano e comecei a estudar meio baixinho. Mas aí eu já estava numa forma melhor do que eu tinha parado antes, do que todos os períodos melhores da minha vida.
P/1 – Por quê?
R – Ah, voltei. Consegui voltar. Fiz fisioterapia e a frase do Voltaire: “Diga-me qual a doença que eu digo qual o remédio”. Eu encontrei a fórmula. Aí, compro um piano e falo para o vendedor: “Bem, é melhor eu comprar um piano, porque, se os vizinhos reclamarem dessa vez, eles têm razão”. Comecei a estudar com pedal abafador, depois, quando eu achei que eu estava em forma, comecei a largar o pau no piano. Era um apartamento aqui, esse apartamento eu tenho há 45 anos, mas no divórcio ficou pra minha segunda mulher. Depois eu conto. Eu chego lá. E eu estava morando num apartamento na Alameda Lorena. Aí os vizinhos reclamaram, eu comprei o piano. E, três meses depois, eu estava triturando o piano, tocando melhor do que sempre. Bate novamente o zelador à porta do... Eu falo: “Oh, Abelardo, tô importunando de novo?” Ele falou: “Não, os vizinhos pediram se o senhor pode abrir a janela, que eles não estão ouvindo direito.” Eu abri a janela. Pego, fico tocando, telefono para o meu empresário, falo: “Eu quero a minha volta no mesmo Carnegie Hall, onde eu estreei, toquei tantas vezes”. Ele falou: “De jeito nenhum. São 2,8 mil lugares, o público já se esqueceu de você.” Eu falei: “Marca.” Ele marcou. No dia do concerto, tinha todas as estações de televisão, 2,8 mil pessoas na plateia e mais 300 cadeiras extras que tiveram que colocar no palco. E eu, pra relaxar a mão, porque eu tinha distonia desde os 18 anos, eu ficava deitado no chão no camarim durante uma ou duas horas antes do concerto, e dormia.
P/1 – Pra poder...
R – Entrar como se fosse de manhã. Porque a distonia começa a aparecer depois de duas horas que você está acordado. Meu empresário falou pra mim: “Se você não acabar esse concerto...”. E eu quis tocar um concerto de duas horas, O Cravo Bem Temperado inteiro, primeiro volume. Ele falou: “Eu te mato.” Quando acaba o concerto, o público ficou oito minutos de pé gritando. E foi uma emoção incrível.
P/1 – É uma emoção assim... Esse sentimento você...
R – Que me toca muito. Por que eu tive a lesão? Por causa da pedra que entrou no braço. Eu fiz 23 operações na minha vida para manter o sonho. Aí me convida um produtor alemão pra eu gravar a obra completa de Bach pra teclado. Ele falou: “Tem que ser Bach por um latino. Muita gente...” E eu fui comparado com o maior intérprete de Bach da história, um canadense chamado Glenn Gould, em todas as gravações. O produtor era um alemão, mas de uma rigidez incrível. Mas eu gravei durante quatro anos, metade da obra, mas a distonia se transformou em LER, Lesão por Esforços Repetitivos, e pela segunda vez eu tive que me afastar da música.
P/1 – Deixe-me recuperar, só pra eu entender. Nesse período que você volta, mais ou menos com uns 30 anos...
R – Que eu volto? Com 38 anos.
P/1 – Que você volta para o piano?
R – É. Que eu faço o Carnegie Hall, que tinha 2,8 mil pessoas.
P/1 – Com 38 anos, então.
R – É. Eu vou até os 43, 44 anos.
P/1 – Com essa distonia.
R – Não, tocando espetacularmente bem, mas me cuidando, por exemplo, gravações eu fazia às cinco da manhã, porque depois de uma noite inteira dormindo, no começo da manhã, a mão estava espetacular. E aí eu dava mais recitais do que concertos com orquestra.
P/1 – Porque de noite você já sentia que...
R – É. E, com orquestra, você tinha que seguir os padrões da orquestra. Era mais recital, onde eu ficava deitado no camarim as últimas duas horas e depois entrava no palco como um leão.
P/1 – Você tinha dor?
R – Sempre tive.
P/1 – A dor na mão?
R – Sempre tive, desde os 18 anos.
P/1 – E aí? Como era?
R – Mas fui sempre me adaptando, acostumei a viver com a dor. Estou falando com você e estou com dor.
P/1 – Na mão também?
R – Principalmente na mão, depois... Mas essa é outra história, que virá na sequência.
P/1 – Você fica eternamente com uma dor na mão?
R – A dor era muito pequena, mas agora vem outra história.
P/1 – Tá. Então, vamos voltar. Antes de você me contar essa história, vamos voltar um pouco. Você, então, está lá e...
R – Estou em Los Angeles, gravando e dando concertos.
P/1 – A mil.
R – A mil novamente.
P/1 – Descasado, casado?
R – Eu me casei a segunda vez com uma mulher fantástica.
P/1 – Essa depois da mãe do seu filho?
R – Da mãe do meu filho. Uma mulher fantástica que até hoje... Ainda bem que eu depois encontrei a Carmem, mas a Carmem, inclusive, e ela tem muito em comum, uma mulher fantástica. E novamente eu me destruí porque acabei me apaixonando, uns dez anos depois, por uma mulher que, no fundo, era muito bonita, mas que jamais a gente teria compatibilidade de gênios. Aí foram muitas brigas, aquela coisa toda, até que finalmente eu volto para o piano, mas morando mais nos Estados Unidos. E nos Estados Unidos... Não que eu esteja criticando a mulher, não tínhamos nada em comum, entende?
P/1 – Essa sua paixão?
R – É. Não tínhamos nada, era atração, uma atração muito grande, mas não tenho nenhuma crítica a ela, tenho crítica à incompatibilidade de gênios. Uma incompatibilidade diferente da minha primeira mulher. Era realmente uma incompatibilidade de gênios. Tensão, discussão e tudo mais, aquele negócio de amor e ódio andando o tempo inteiro. Aí eu finalmente gravo a segunda parte da obra de Bach, mas na Bulgária eu sofro um assalto, uma lesão cerebral, que atacou o hemisfério da fala.
P/1 – O hemisfério esquerdo?
R – O hemisfério da fala. Eu estou falando com você, a minha mão está fechando aos poucos, e vai fechando, com dor, agora com dor pra valer.
P/1 – Enquanto você está falando comigo?
R – Enquanto eu estou falando com você. Por isso que eu falava dois, três minutos com uma pessoa e parava, começava a chorar de dor. Mas isso na mão direita. Aí os médicos decidiram... E eu, com uma carreira fortíssima novamente, os médicos falaram: “Vamos ter que cortar...”. Porque a dor era de chorar. Hoje não é de chorar.
P/1 – Você pode me explicar esse assalto? Só dizer o que...
R – Ah, eu estava saindo de uma gravação...
P/1 – Na Bulgária?
R – No filme não está relatado da forma, está relatado baseado na minha vida. E eu caminhava para o hotel, e naquela noite... Mas eu estudava numa casa, às vezes acabava a gravação, ia estudar na casa de uma pianista da Bulgária, porque a segunda... Mas não tinha nada com ela, ia estudar lá, ficava estudando das... Acabava a gravação às dez, ia até meia-noite, estudava mais duas horas.
P/1 – De meia-noite às duas da manhã?
R – É. Às duas da manhã. Às duas da manhã, eu voltava para o Hotel Sheraton. Mas a casa dela era meio afastada, e eu andava mais ou menos uns 2 quilômetros pra voltar para o hotel e sempre passava por um bairro cigano. E aí os caras que me viram passar dez dias seguidos por um bairro cigano prepararam um assalto pra mim e atingiram com uma bala de ferro, que pegou o hemisfério da fala. Fiquei oito meses no hospital.
P/1 – Eles te largaram lá na hora do assalto?
R – Largaram. Pegaram, roubaram meu passaporte. Foi um motorista de táxi que me pegou, às quatro da madrugada. Isso foi no dia 25 de maio de 1995.
P/1 – De lá te levaram para o hospital?
R – Levaram-me para o hospital. Que engraçado, eu não tenho preconceito nenhum com nada na vida. Se uma pessoa... Eu nunca.... Se mostrarem uma maconha pra mim, eu não sei o que é uma maconha, mas não tenho preconceito de uma pessoa fumar maconha, não tenho preconceito. Detesto preconceito com homossexuais, racismo, tudo isso. A palavra “preconceito” não faz parte do meu dicionário, mas, quando me levam para o hospital, um hospital que o Hospital das Clínicas aqui seria o Einstein. Eu, quando começo a raciocinar, os olhos abertos, olho do lado, tinha várias pessoas também estiradas em colchonetes, com sangue, outro aqui. A primeira coisa que me passou na cabeça... Eu não tenho nada contra, mas não queria... Pô, eu, com fama de que era até mulherengo, qualquer coisa, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi: “Meu Deus do céu, se alguém encosta em mim, de repente...”. É que tinha aparecido a doença Aids e era só com homossexualismo. Falei: “Ainda vão falar que eu sou homossexual, isso eu não quero.” A primeira coisa que me passou na cabeça.
P/1 – Foi o que, na hora que você acordou, foi o que você pensou.
R – É. A primeira coisa que me passou na cabeça. Eu deitado lá no meio de tudo aquilo.
P/1 – Você achou que ia pegar Aids.
R – Eu falei: “Eu vou pegar Aids.” E Aids naquela época era a doença do momento, 1995, entende?
P/1 – E aí? O que aconteceu? Você ficou lá?
R – A embaixada americana me levou para o hospital dos diplomatas. Depois fui transferido para os Estados Unidos, onde eu fiquei em tratamento no Jackson Memorial Hospital em Miami. Mas aí afetou todo o lado direito também, fora o hemisfério da fala. Consegui recuperar o lado direito, mas cada palavra que eu falava, a cada dois minutos que eu falava, eu começava a chorar de dor, mas chorar de dor. Então, pra acabar a gravação completa da obra de Bach, eu fiquei trancado, praticamente, na minha casa nos Estados Unidos. Só tomava o café, e o piano no quarto, só saía pra tomar o avião, ir pra Bulgária, gravar e voltava. Não falava com ninguém. Até que os médicos falaram: “Pra você ter qualidade de vida, nós vamos ter que cortar o nervo da sua mão direita, mas você vai perder a mão para o piano”. Durante dois anos eu resisti, mas a dor era tão forte, que eu pego e falo para o meu empresário: “Eu quero dar meu último concerto em Londres, e no dia seguinte eu vou fazer a operação e perder a mão direita para o piano”. Faço o concerto em Londres, uma loucura, o público todo de pé gritando, eu beijo o piano, me despeço do piano, tomo o avião, no dia seguinte, vou para os Estados Unidos, faço a operação, corto o nervo. Porque, cortando o nervo, o espasmo continuaria, mas a dor não chegaria ao cérebro e eu teria qualidade de vida. Corta o nervo, perco a mão direita, não tem músculo mais, nada.
P/1 – Deixe-me entender. Essa sua mão, você cortou...
R – Cortou o nervo aqui.
P/1 – E aí...
R – Aí perde o músculo. Perde toda a musculatura.
P/1 – Então, você não faz nada com essa mão, na realidade?
R – Nada. Não posso fazer uma escala.
P/1 – E nem escrever, nada?
R – Nada. A minha assinatura mudou só pra um JC. Mas não tem a dor. O espasmo está lá, mas não tenho a dor, não chega ao cérebro. Aí começo uma carreira com a mão esquerda. Com a mão esquerda, rodo a Europa, Ásia.
P/1 – Tocando só com a mão esquerda?
R – Só com a mão esquerda.
P/1 – Aí você tem que mudar de música?
R – Tem vários concertos escritos pra mão esquerda. Toquei, fazendo sucesso, aí que eu fui novamente destruindo a minha mão. Eu estudava 12, 14 horas por dia com a mão esquerda. Foi quando eu conheci a Carmem, há 20 anos. Hoje tenho uma vida tranquila. Mas, depois de dois, três anos, quando eu passava por países de ponta, eu procurava médicos pra saber se podia reverter a mão direita, mas falaram que não tinha solução. Aí, estava com Mal de Dupuytren e o hemisfério da fala continuou. Devia só atacar a mão direita, mas ataca a mão esquerda também, por isso que ela vai fechando. A mão direita não fecha porque cortou o nervo.
P/1 – E isso é um reflexo da lesão que você teve?
R – Da lesão cerebral. Eu fiz uma operação no cérebro aqui com o Paulo Niemeyer, uma operação maravilhosa, ele conseguiu abrir a minha mão falando, e implantou aqui um... Como chama isso?
P/1 – Marca-passo? Stent?
R – Uma espécie de um marca-passo, mas que estimulava os músculos.
P/1 – Da mão?
R – Da mão esquerda, que eu só queria voltar a tocar com a mão esquerda. Só que o marca-passo... A operação foi fantástica, a lesão cerebral que ele fez, mas depois, pra manter, precisava de um marca-passo. Só que o marca-passo estimulava todos os músculos das mãos, não podia selecionar pra estimular somente os distensores, estimulava também os flexores. E aí eu tive que desligar o marca-passo. E foi quando, depois da décima nona operação, eu tive que abandonar o piano.
P/1 – Pela segunda, terceira...
R – Pela terceira vez.
P/1 – Pela terceira vez. O que passou pela cabeça então, ou pelo coração?
R – Se eu tivesse maturidade, talvez aos 26 anos eu já estivesse na regência. Mas, aos 64 anos, quando tudo parecia perdido, eu tive um sonho com o Eleazar de Carvalho, que falou: “João, vá estudar regência”. No dia seguinte, às sete horas da manhã, tomei a primeira aula de regência, com o Júlio Medaglia. Resolvi formar uma orquestra, trouxe 18 músicos aqui pra casa, ensaiávamos. Mas manter uma orquestra sem governo, aqui no Brasil, é praticamente impossível. E eu comecei... Nós viajávamos, os 19 músicos, íamos pra cidades pequenas, porque eu estava fora da mídia. E tomávamos o ônibus. E a orquestra indo com um pequeno patrocínio ou outro. Até nessa hora, uma das primeiras pessoas que deu uma força pra mim foi o Sérgio Aizemberg, que me levou pra algumas turnês no interior, com essa orquestra mais ou menos reduzida. E assim foi. Só que, pra manter a orquestra, com um ou outro patrocínio, era muito difícil. Então, o meu irmão Ives falou pra que eu procurasse os presidentes das federações, pra que cada um adotasse um. E o primeiro que eu procurei foi a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], o Skaf, e ele, eu falei: “Dá pra adotar um músico? Se você adotar, amanhã eu vou à Febraban [Federação Brasileira de Bancos], depois de amanhã eu vou à Federação do Comércio, depois de amanhã eu vou ao Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], e cada um adota um músico”. Ele falou que tinha que pensar. Eu saí de lá deprimido, falei: “Se ele tem que pensar, a Fiesp tem que pensar, é melhor abandonar a ideia”. Mas no dia seguinte ele me telefona e fala por telefone: “Olha, tenho uma má notícia: não dá pra adotar um músico da orquestra. Mas tenho uma boa notícia: dá pra adotar a orquestra inteirinha”. E aí surgiu a Bachiana Filarmônica Sesi-SP, que já deu mais de 1,5 mil concertos.
P/1 – Que é uma orquestra...
R – É a principal orquestra da iniciativa privada da América Latina.
P/1 – E ela é uma orquestra de corda, de...
R – Toda. Uma orquestra com 65, mas geralmente 72 músicos. Tem uma temporada enorme no Municipal, na Sala São Paulo. Na Sala São Paulo, já realizamos quase 200 concertos.
P/1 – E aí, então, você se tornou um maestro.
R – Maestro, mas, no final de todo concerto, eu toco piano com dois dedos da mão direita e dois da esquerda.
P/1 – E nesse momento você já está no seu último casamento?
R – É. Estou há 20 anos casado, tranquilo.
P/1 – João Carlos, eu queria fazer um retrospecto dessa vida cinematográfica.
R – Ah, e com a mulher que era extraordinária, que se chamava Jane, tive uma filha maravilhosa. E, como pai, eu sou um pai muito ligado aos meus filhos, apesar de separações, entende?
P/1 – Então, você tem dois do primeiro...
R – Dois do primeiro, um sem casamento, e uma do segundo casamento.
P/1 – São quatro filhos?
R – São quatro filhos.
P/1 – Quais os nomes?
R – E seis...
P/1 – O nome dos seus filhos.
R – O nome? João Carlos, Carlos Eduardo, Patrick e Daniela.
P/1 – E você teve mais algum outro ou não, só esses mesmo?
R – Não, não. Que eu saiba.
P/1 – (risos) Essa sua vida de fama de mulherengo, que acabou com dois casamentos seus, como foi isso na sua existência? O que te dava, qual era o seu interesse, a sua relação com as mulheres?
R – Acabava um concerto, sempre eu viajava muito sozinho pra dar os concertos, sempre acabava indo jantar com alguém, acabava... Mas nunca prometendo nada. Nunca prometi. Nunca teve nada que eu forcei na vida. O que aconteceu, aconteceu porque os dois lados queriam, nunca forcei nada na minha vida. Mas depois passei a ter uma vida ultratranquila. Hoje eu raramente saio. Eu saio de casa uma vez por semana. Só saio pra dar concerto ou ensaiar e uma vez por semana pra jantar. E dinheiro foi uma coisa que passou de... Não tem interesse pra mim. Eu achei que a Fundação tinha que ser rica e tinha que ser rigorosa e eu viver com o salário da Fundação. E tudo reverte pra Fundação e pra parte social da Fundação e para os concertos da orquestra.
P/1 – Quer dizer, e hoje é assim que você vive, com esse patrocínio.
R – É. Eu vivo com um salário praticamente ridículo. Um salário que é cinco vezes menor do que o salário que eu poderia ter como maestro em qualquer lugar.
P/1 – Mas isso é uma opção sua?
R – Hoje, o salário de um maestro é 150, 200 mil reais. Mas eu estou feliz, isso que importa.
P/1 – Vamos voltar, então. Agora, um olhar seu para sua vida, até pensando, uma pergunta engraçada: sua mãe, sendo espírita, não sei se você se tornou, como você interpreta essa sua briga permanente, ou paixão e briga, quer dizer, seus acidentes sempre com as suas mãos, com o piano? Como isso...
R – Um carma. Um carma. Eu acredito em reencarnação, isso ficou da minha mãe. Talvez na outra reencarnação eu aprontei muito, então, nessa eu tive que pagar por tudo pra manter meu sonho na música.
P/1 – O seu sonho...
R – Mas eu sei de uma coisa: o meu lado social é uma coisa muito forte na minha vida, talvez seja a coisa mais forte da minha vida depois da música. Tanto que eu não conto as coisas, porque eu detesto contar as coisas, mas eu te digo que eu tenho centenas ou milhares de casos de transformar a vida de pessoas, principalmente pessoas que estão lá no fim, prontas pra um suicídio.
P/1 – Você se lembra de alguma história?
R – Centenas ou milhares, tô te falando, mas não gosto de citar casos.
P/1 – É isso o que eu ia perguntar. Alguma história específica?
R – Por exemplo, aqui na portaria do prédio, alguns anos atrás, os garotos que eu já tinha tirado, que estavam com liberdade assistida, da Fundação Casa, deixaram uma carta escrita: “Tio maestro, feliz Natal, a música venceu o crime”. Tá aí uma historinha.
P/1 – E isso te move profundamente?
R – Ah, eu choro muito com cada história de pegar, transformar a vida mesmo de pessoas. Por exemplo, na Fundação, em frente à Fundação, tem uns 15 moradores de rua que moram, por isso que eu não preciso pagar segurança, eles não deixam ninguém encostar na Fundação. E todos me chamam de paizão e tudo. Agora, segunda-feira, eu estou mandando um já que está melhor, está saindo das drogas pra voltar com a família em Recife. Um eu consegui mandar para o Rio Grande do Sul, está morando com a família de novo. Eu converso com eles, chamo, às vezes, pra ver um pedaço de um ensaio. A prefeitura quis tirá-los da rua, e eu não deixei, eu falei: “Eles estão bem aqui”. Agora, também ninguém pode entrar na Fundação. De noite é proteção total.
P/1 – Essa sua vida está virando um filme, virou um filme.
R – Virou um filme.
P/1 – Eu sei que você também já tem outros filmes feitos sua vida, né? Dois documentários.
R – Já foram feitos dois documentários na Europa, um ganhou muitos prêmios e o outro foi para o Sistema Virtual Digital, pra DVD.
P/1 – É. E esse filme agora que vai ser lançado. Como foi ver a sua vida transformada primeiro num documentário...
R – Chorei muito.
P/1 – Chorou? Por que você chorou?
R – Porque eu vi todos os momentos que eu passei na vida. E não foi brincadeira tudo que eu passei.
P/1 – Mas o que ele...
R – Qualquer outra pessoa... Tanto que, com 26 anos, eu pensei em me suicidar, cheguei a entrar numa banheira com uma gilete. Aí tocou o telefone, era o meu professor, falou: “João, você teve esse acidente, mas fique firme”. Foi a única vez que esse sentimento passou. Hoje, eu digo o seguinte, o meu caso é só de um pianista que perdeu as mãos para o piano. É um problema muito menor do que uma pessoa que ficou tetraplégica, ou perdeu a visão. Mas, pela exposição na mídia, hoje eu tiro cerca de 40 mil fotos por ano. Pela exposição na mídia, não tem um aeroporto que eu entro que não chega uma pessoa, fala: “Olha, eu tinha câncer, mas vi a sua entrevista, comecei a acreditar na vida”. Quantas pessoas desistem por problemas muito menores? Então, acabei ficando como uma espécie de referência. E trato uma adversidade física com o humor. Por exemplo, na abertura da Paralimpíada, teve a mesa-redonda dos principais atletas comigo, que eu fiz a abertura, eu comecei a contar uma história verdadeira fazendo brincadeira com as minhas mãos. Então, eu contei a história que, quando eu perdi a mão direita, quando eu passava por países de ponta, eu procurava médicos pra ver se podia ter uma solução pra mão direita. Todos falavam: “Não tem músculo, não tem nada a fazer”. Aí comecei a ir à igreja, que eu acredito numa força superior e numa força interior. Mas o milagre não aconteceu. Finalmente, fui parar num pai de santo. O pai de santo me recebeu. Falou: “Qual a mão?” Eu falei: “A direita.” Ela falou: “Opa, a direita é mais fácil.” Eu falei: “Que bom.” Aí ele me deu uns 500 passes, depois de meia hora, ele falou: “Meu filho, Pai João nunca errou na vida, em um ano, a tua mão está igualzinha a outra”. Um ano depois, fechou a esquerda.
P/1 – (risos)
R – Acertou (risos). Acertou. E eu conto a história que a pessoa nunca deve desistir. Eu conto a história do saxofonista, que tudo dava errado pra ele, mas tudo dava errado. Aí ele subiu ao terceiro andar de um prédio e começou a tocar no saxofone: “Paaraarararara, paarara”. Over the Rainbow. E foi tocando e começou a juntar gente embaixo, na Quinta Avenida, ele falou: “Pô, meu Deus, nem tudo está perdido. Não é que pessoal gosta de mim? Todo mundo ouvindo”. Ele se esqueceu da segunda parte, e ele repetia a primeira: “Taaaraararararaa...”. E se esqueceu da segunda parte. Aí não aguentava mais, pulou, se estrebuchou todo embaixo, mas não morreu. Mas aí foi chegando a ambulância: “Tararara” – aquela segunda parte.
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – (risos) Eu digo que a pessoa nunca deve desistir, entende?
P/1 – Então, agora voltando. A gente viu os momentos dramáticos da sua vida, os momentos engraçados, mas, por dentro assim, lembrando um pouco dos momentos da sua vida...
R – O filme? Ah, eu chorei muito.
P/1 – E o que te fez por dentro sorrir? Não rir. Sorrir. O que te fez falar: “Nossa, aqui eu cheguei a algum lugar”? Quais são os momentos da sua vida?
R – Eu acho que, por exemplo, aonde eu cheguei realmente? Muita gente fala aqui no Brasil “maior intérprete de Bach”. Não. Não sou o maior intérprete de Bach. Mas, se fizer os top five de Bach no século XX, eu sei que eu estou no meio dos cinco. Muita gente pode considerar, isso eu tenho certeza, que foi importante a minha contribuição. Tanto que a maior revista alemã, Der Spiegel, fez uma reportagem de seis páginas a meu respeito, agradecendo o que eu tinha feito por Bach. E quando teve o... Tem, de quatro em quatro anos, é uma espécie de Copa do Mundo, o Bach International Competition, e os alemães convidaram pra que eu fosse o presidente do júri.
P/1 – Então, isso te faz...
R – Com os maiores especialistas de Bach no mundo.
P/1 – Isso te faz sorrir?
R – Faz-me falar “missão cumprida”. Agora, tudo isso, a orquestra, que hoje é uma orquestra extraordinária, o piano, que, quando eu fui pra palco, eu fiz mais de mil apresentações no exterior e aqui no Brasil, no total na minha vida. Contando a orquestra, contando apresentações no Brasil desde criança, na minha vida são cerca de seis mil apresentações. Contando tudo isso, eu digo, o filme... Como foi, por exemplo, o Carnaval, que, quando me convidaram para o Carnaval, eu falei: “Não. Esqueçam. Porque Carnaval, música clássica, a Vai-Vai vai para o segundo grupo”. Mas finalmente um amigo meu chamado Antônio Zimmerle falou: “João, aceita”. Eu chamei todo o pessoal de novo, falei: “Vocês já escolheram outro enredo?”. Eles falaram: “Não.” Mas eles todos chateados. Eu falei: “Então, rumo ao décimo quarto campeonato. Vamos em frente”. Só que o nosso horário caiu às seis horas da manhã. E seis horas é um horário horrível. Às 11 horas da noite... Mas no dia 5 de março. No dia 4 de março, às 11 horas da noite, já estávamos todos concentrados no Holiday Inn, e o presidente falou: “João, dê uma voz de incentivo, porque nós temos que ficar aqui seis horas esperando pra entrar, três horas pra concentração e duas horas na fila, depois pra entrar. Dê uma voz de incentivo”. Eu falei: “Olha, quero dizer, o nosso horário não é bom, seis horas da manhã, mas o dia é maravilhoso, porque nós estamos no dia 4, às 11 horas da noite, nós vamos desfilar dia 5. Querem saber de uma coisa? Desde o começo da minha vida, cinco foi o dia que eu ganhei meus concursos de música, é o meu dia de sorte”. Todo mundo aplaudiu. O presidente falou: “Que maravilha! E quando foi o primeiro concurso que o senhor ganhou dia 5?” Eu falei: “Amanhã.”
P/1 – (risos)
P/2 – (risos)
R – (risos) E ganhamos.
P/2 – E como você se sentiu quando soube do resultado?
R – Acabou o desfile, eu fui direto para o aeroporto, que eu tinha que dar uma entrevista nos Estados Unidos. Saí do desfile para o aeroporto. E a minha mulher telefona na terça-feira, fala: “Olha, parece que você está com chance de ganhar”. E não sei mexer em computador, aí eu desço lá no hotel, uma pessoa, um brasileiro ligou lá, junto com uma atendente também brasileira, ligaram e eu pude ver o último quesito. E aí o Tramontina fala: “Se a Vai-Vai tirar dez nessa última nota, é campeã. E, se tirar 9,75, a campeã é a Vila Maria”. E eu fico naquilo, a televisão mostrando, eu vendo na internet, e quando grita “dez”, aí eu chorei.
P/1 – Deixe-me te perguntar agora, eu sei também que você vai fazer um show no grande... Sobre os 90 anos do Tom Jobim. Você conviveu com o Tom Jobim? Como foi?
R – Tem uma época da vida, inclusive, que o meu apartamento era embaixo do apartamento dele. Eu acabava de estudar piano, ia conversar com ele.
P/1 – No Rio?
R – Não, em Nova York. E numa caminhada ele fala pra mim: “João, sabe que o brasileiro e o americano, nunca vi dois povos tão iguais”. Eu falei: “Como brasileiro e americano, Tom?” Ele falou: “Claro. O americano acorda de manhã e começa a criticar o sistema de transporte dele, pra melhorar o health care, o sistema tributário, porque o americano quer cada vez o país melhor. E o brasileiro também acorda e começa a meter o pau nos Estados Unidos.”
P/1 – (risos)
R – Então, são iguaizinhos. E o Tom, ele apresentou um programa meu, tem uma gravação minha com ele. O Tom foi o maior... Villa-Lobos na música clássica, e ele na MPB [Música Popular Brasileira]. O maior gênio da história da música brasileira, é um clássico.
P/1 – Mas você chegou em algum momento, quer dizer, eu sei que você tocava sempre clássica, algum momento a tocar alguma coisa do Tom?
R – Toco. Toco Luiza, Eu Sei Que Vou Te Amar.
P/1 – Ele conversava com você sobre essa composição? Como é a sua...
R – Não, ele era gênio. Gênio. Ele se inspirou em Villa-Lobos e Bach também.
P/1 – Você vê Bach nas composições de Tom?
R – Em tudo. Em tudo eu vejo Bach.
P/1 – Em quê? Em tudo você vê Bach? (risos)
R – É.
P/1 – Então, me conte. Onde você vê Bach? O que é Bach pra você?
R – Bach é a síntese de tudo e a profecia de tudo. É a origem do jazz, é a origem... Por exemplo, Villa-Lobos não poderia, “Mozartianas Brasileiras” não daria link, Bachianas Brasileiras dá link.
P/1 – O que mais? Tom. Por que tem Bach em Tom?
R – Ah, porque as progressões harmônicas dele são de um clássico. Não é um caminho fácil, não. Ele pega o caminho difícil nas progressões harmônicas dele.
P/1 – Eu queria voltar um pouquinho para o seu momento presente. E, daqui pra frente, o que te faria feliz, ou sorrir na sua...
R – Não, eu já virei a página. Pra mim, acabou tudo. O filme foi praticamente a cereja no bolo. E isso tudo que eu realizei na vida... Antes de o meu pai morrer, eu falei que ia deixar um legado no Brasil. Tudo que eu fiz, eu não considero um legado, eu considero um trabalho bem feito. Comecei em janeiro o trabalho da minha vida, esse vai ser o legado que eu vou deixar no Brasil.
P/1 – Qual é então? Conte-me.
R – Eu tô visitando, pra você ter uma ideia, eu vou dormir cerca de 50, 60 noites por ano em cidades de 40, 50 mil habitantes. Eu já comecei o trabalho, já comecei o trabalho com os maestros, e é juntando a banda local com músicos de cordas de igrejas evangélicas. E tô juntando, formando a orquestra. E quando a orquestra... Começa dia 15 já o curso a distância pra eles, e a minha visita, estando presente. E estou chamando esses regentes para reger a Bachiana em pleno Teatro Municipal. Porque maestro em cidade do interior dos Estados Unidos é tão importante quanto prefeito. Ninguém chama uma pessoa: médico Raul, advogado Ives. Agora, chama doutor Ives, doutor tal, doutor tal, mas ninguém chama engenheiro Samuel. Agora, maestro, ninguém chama pelo nome, só fala maestro. Então, a minha luta é fazer os maestros das cidades pequenas serem tão importantes como os prefeitos. E, depois que a orquestra ganha o selo de qualidade, passa a se chamar Orquestra Bachiana. Orquestra Bachiana de Cordeirópolis, Orquestra Bachiana de Goitacazes, Orquestra de Cataguá... Em Minas Gerais, é Cataguases?
P/1 – Cataguases.
R – Orquestra Bachiana de Belmiro Braga, Orquestra Bachiana de Taiuva, e assim por diante. Por exemplo, amanhã eu tô em Monte Alegre reunido com oito maestros, e daqui a cinco anos eu darei um sorriso Colgate falando: “Temos mil orquestras no Brasil, de qualidade”. Escreva que esse é o projeto da minha vida.
P/1 – Esse é o seu legado?
R – Tudo o que eu fiz até agora, pra mim, eu zerei o velocímetro. E agora eu comecei em janeiro o projeto da minha vida. Graças a Deus, eu zerei o velocímetro depois que o filme estava feito e conta toda a minha história. Mas agora que eu comecei o meu projeto, estou com 77 anos, você é jovem, daqui a uns cinco anos, você vai estar viva, você vai ver o meu projeto.
P/1 – Esse é o seu legado, então?
R – Esse vai ser o meu legado. Tenha certeza. Amanhã eu já tô viajando para as cidades. Já corri seis regiões, já me reuni com 40 maestros, depois vou estender. Chama Orquestrando São Paulo, que vai se transformar em Orquestrando Brasil. E Villa-Lobos tinha uma frase: “Não é um público inculto que vai julgar as artes, são as artes que mostram a cultura de um povo.” Então, o sonho de Villa-Lobos era fechar o Brasil em forma de coração através da música. Quem sou eu perto dele? Mas ele não tinha nem internet, nem TV. Eu digo pra você: eu vou realizar o sonho de Villa-Lobos.
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