Projeto Ponto de Cultura
Depoimento Zeila Ribeiro São João
Entrevistado por Simone Alcantara e Vanuza Ramos
São Paulo, 03/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV108_Zaïla Ribeiro São João
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Bom dia, Zeila.
R - Bom dia.
P/1 - É um prazer tê-la conosco.
R - Obrigada e igualmente, muito contente de estar aqui.
P/1 - Que bom. Gostaria de saber o seu nome completo, o local onde você nasceu e a data de nascimento.
R - Pois não. Meu nome completo é Zeila Ribeiro São João, mas eu só assinava Zeïla São João. Nasci em Guaratinguetá, cidade do Estado de São Paulo no dia 31 de janeiro de 1920.
P/1 - Você lembra o nome de seus pais e dos avós?
R - Sim, claro. Minha mãe, Helena Ribeiro São João, meu pai, Silvério São João, meus avós, Amélia Nogueira Ribeiro e meu avô, Gabriel Pinto Ribeiro Neto. Agora os avós por parte de pai eram italianos, San Giovanni. Então por isso meu nome foi abrasileirado, não é? Mas já eram falecidos, eu conheci muito pouco a vó, a Ana São João e o avô, não lembro bem o nome dele.
P/1 - Eles não vieram pro Brasil? Eles ficaram...
R - Sim, eles vieram pro Brasil...
P/1 - Vieram pro Brasil? Ah, então seus pais...
R - foi por isso que se naturalizam brasileiros.
P/1 - Certo. Eles mesmos...
R - A avó era uma simpatia, gostava muito dela, mas já conheci com bastante idade. E meu avô era doente na ocasião, nem tive contato, sabe? Não cheguei a encontrá-lo.
P/1 - E você lembra o que sua avó e os seus pais faziam aqui no Brasil? Quando ela chegou? Qual era a atividade deles?
R - Minha mãe e meu pai foram professores e papai trabalhou também em uma firma americana, General Eletrics. Mas ele se dedicou mais ao Magistério, era diretor de um grupo. Enfim, era um professor muito dedicado e mamãe mais ainda. Ela escreveu uma cartilha, tinha um sucesso enorme. Ela fazia os alunos fazerem no primeiro dia de aula assinarem o nome...
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Depoimento Zeila Ribeiro São João
Entrevistado por Simone Alcantara e Vanuza Ramos
São Paulo, 03/04/2008
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento PC_MA_HV108_Zaïla Ribeiro São João
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 - Bom dia, Zeila.
R - Bom dia.
P/1 - É um prazer tê-la conosco.
R - Obrigada e igualmente, muito contente de estar aqui.
P/1 - Que bom. Gostaria de saber o seu nome completo, o local onde você nasceu e a data de nascimento.
R - Pois não. Meu nome completo é Zeila Ribeiro São João, mas eu só assinava Zeïla São João. Nasci em Guaratinguetá, cidade do Estado de São Paulo no dia 31 de janeiro de 1920.
P/1 - Você lembra o nome de seus pais e dos avós?
R - Sim, claro. Minha mãe, Helena Ribeiro São João, meu pai, Silvério São João, meus avós, Amélia Nogueira Ribeiro e meu avô, Gabriel Pinto Ribeiro Neto. Agora os avós por parte de pai eram italianos, San Giovanni. Então por isso meu nome foi abrasileirado, não é? Mas já eram falecidos, eu conheci muito pouco a vó, a Ana São João e o avô, não lembro bem o nome dele.
P/1 - Eles não vieram pro Brasil? Eles ficaram...
R - Sim, eles vieram pro Brasil...
P/1 - Vieram pro Brasil? Ah, então seus pais...
R - foi por isso que se naturalizam brasileiros.
P/1 - Certo. Eles mesmos...
R - A avó era uma simpatia, gostava muito dela, mas já conheci com bastante idade. E meu avô era doente na ocasião, nem tive contato, sabe? Não cheguei a encontrá-lo.
P/1 - E você lembra o que sua avó e os seus pais faziam aqui no Brasil? Quando ela chegou? Qual era a atividade deles?
R - Minha mãe e meu pai foram professores e papai trabalhou também em uma firma americana, General Eletrics. Mas ele se dedicou mais ao Magistério, era diretor de um grupo. Enfim, era um professor muito dedicado e mamãe mais ainda. Ela escreveu uma cartilha, tinha um sucesso enorme. Ela fazia os alunos fazerem no primeiro dia de aula assinarem o nome pelo menos, ninguém sabia nem pegar no lápis e no último dia do ano era um ditado, impecável. Ela tinha 100% de aprovação dos alunos. Ela tinha muito sucesso, foi também diretora, mas professora sempre.
P/1 - E essa atividade de Magistério, com alunos, crianças, foi em Guaratinguetá ou outra cidade?
R - Não, aí já [é] em São Paulo por causa da minha paralisia infantil. Nessa ocasião os dois moravam em Bauru, meus pais, porque meus avós foram para lá, eram fazendeiros em Minas. Mas foram morar em Bauru que era uma cidade que parecia progressista, né? Então ficaram muito contentes de poder ter os filhos juntos, mas quando eu fiquei com poliomielite eles vieram para São Paulo para tratar. O médico que me atendia, o Doutor Rezende Poesher, era um homem fantástico, viu? Ele queria me deixar andando, porque eu fiquei completamente paralisada, braço também.
P/1 - E quando você ficou paralisada você tinha mais ou menos que idade?
R - Tinha dois anos.
P/1 - Você já tinha irmãos?
R - Como?
P/1 - Você já tinha irmãos?
R - Não, não, eu fui a primeira. Fui a primeira filha. Minha irmã nasceu um ano depois. Nós morávamos em Bauru e ficava muito difícil aqueles aparelhos todos que eu tive que usar, foi terrível. E esse médico foi muito dedicado, então nós viemos morar aqui por isso.
P/1 - Então, você começou seu tratamento aqui e os seus pais também davam aula aqui em São Paulo?
R - Aí sim, aí naturalmente ela pediu a remoção, ela podia fazer isso. Meu pai nessa hora também, porque ele trabalhou também nessa firma americana, foi muito bem. Mas a maior sorte minha, Simone, é que eu morei em frente à casa de uma grande pianista, uma grande professora de piano. Quando mamãe viu que eu estava completamente paralisada e comecei a recuperar ela me fez estudar piano e eu tive muito jeito, em trinta dias eu fiz o álbum completo para as primeiras notas. E essa professora, que morava em frente, era prima de Guiomar Novaes, o nome dela, Vitória Serra Pimenta, ela era a melhor professora daqui de São Paulo na ocasião. As famílias faziam os filhos estudarem, fazia parte da educação, não é? Então mamãe me levou lá para mostrar que eu tinha jeito, quem sabe, porque ela não aceitava criança, então...
P/1 - Ah certo, uma exceção...
R - Ela foi fantástica na minha vida, sabe? Até os dezenove anos eu estudei com ela.
P/1 - Que bairro que era aqui em São Paulo?
R - O bairro?
P/1 - É.
R - Como é que chama ali? Higienópolis praticamente. Não sei se ali é considerado ainda, Avenida Angélica.
P/1 - Ainda é Higienópolis.
R - Ainda é?
P/1 - É, ainda é chamado.
R - Ali era a Rua São Vicente de Paula.
P/1 - Sei, sei.
R - Sabe?
P - E aí você já tinha quantos anos? Porque você veio para cá pequenininha, né? Por causa da paralisia.
R - Vim pequenininha.
P/1 - E começou a fazer piano com essa professora...
R - Foi.
P/1 - Com quantos anos mais ou menos?
R - Eu comecei com quatro, cinco anos. E com cinco anos eu já toquei em público.
P/1 - É mesmo? Aonde?
R - Eu tenho aí no meu álbum, você vai ver. Mas aí a professora que me apresentou era uma professora do Rio, dona Zina Marin. Ela então me botou tocando como se fosse aluna dela, só para eu tocar, aparecer, né? Ela era muito amiga nossa, da família. E aí com seis anos já toquei em audição, já com essa professora de São Paulo.
P/1 - E você lembra do lugar onde você tocou para o público?
R - Muito bem, você não imagina, essas coisas não saem, né? A gente guarda. Elas tinham uma casa muito grande, uma sala muito boa. Ela tinha feito um elevado para botar os dois pianos que ela tinha, um de cauda e um de armário, a gente podia tocar até dois pianos, era fantástico. Então ali ela dava as audições. Nesse álbum, eu até pus lá o resumo, você sabe, o número de audições que eu toquei lá.
P/1 - Que maravilha
R - E depois, fantásticas oportunidades me apareceram.
P/1 - E quando você era pequena, você está contando que tinha o piano, que foi te envolvendo, te envolvendo. Você conseguia, por causa da paralisia, brincar um pouco também? Porque você era muito pequenininha, né? Você brincava, seus irmãos já tinham nascido?
R - Olha, você sabe que era tal dificuldade no começo para tocar piano, por causa do pedal. Não sei se você está sabendo, [mas] tem uma coisa muito importante pro pianista, né, saber dosar a sonoridade e aquela coisa. E eu não podia alcançar, não podia mexer a perna naquela... Usar as perninhas não, então foi feito um banquinho, uma espécie de um banquinho que eu tinha e quando começaram a me voltar as forças eu pude acompanhar. As minhas colegas de curso eram tão simpáticas, isso eu não me lembrava muito, enquanto eu tocava elas queriam botar o pedal para mim.
P/1 - Ah, que graça
R - Você pode imaginar?
P/1 - Incrível, né?
R - Então tem uma notícia justamente, a Hilda Senna vai por o pedal pra Zeïla, isso eu não lembrava muito.
P/1 - Sei.
R - Mas aí eu comecei a melhorar, melhorar, usando aqueles aparelhos terríveis, né, e massagem sueca minha mãe aprendeu, porque eram caríssimas as sessões, então ela aprendeu e fazia muito bem. Eu dormia de botinha, eu não podia dormir sem botinha.
P/1 - Sempre de botinha.
R - Sempre de botinha, sempre com a parte dos dedinhos de fora assim, mas com bota. Então...
P/1 - E você foi fazendo esse tratamento diariamente?
R - Foi, foi gradativamente melhorando. Sabe por que, Simone, foi muito longa a descoberta da doença. É como agora, certa doença que aparece a pessoa não sabe exatamente... Não fica fazendo o tratamento para aquilo, né? Então, pensando que era uma gripe, aí quando me botaram de pé que viram que as perninhas já não...
P/1 - Não aguentavam.
R - Não obedeciam, né?
P/1 - Então quer dizer que para brincar era muito difícil também para você?
R - Ah, muito difícil.
P/1 - E o que é que você podia fazer, brincar, além do piano?
R - Eu adorava boneca, por exemplo. Tive muitas, a minha mãe comprava. Minha mãe foi uma pessoa excepcional, uma coisa fantástica, porque ela teve a idéia de me fazer estudar piano, você não acha que isso já foi uma coisa...
P/1 - Eu acho.
R - ... fantástica?
P/1 - Eu acho.
R - Porque a minha vida era diferente, eu não tive bailinho, dança, piscina, nada, né? Até que um dia ela apareceu com um carrinho, chamava Tico-Tico, nem sei se existe hoje...
P/1 - O modelinho?
R - Espécie de um carrinho que eu podia fazer movimento assim, sabe?
P/1 - Pedalar?
R - É, pedalar.
P/1 - Eu lembro do Tico-Tico...
R - Você lembra, filha?
P/1 - Não sei se chama assim ainda, mas eu lembro que tinha o Tico-Tico para pedalar (risos).
R - Então a gente andava, minha irmã saía comigo, a gente andava ali na calçada, né? Na [Rua] São Vicente de Paula até a [Rua] Veiga Filho e voltava, sabe? Aí foi uma festa para mim, entende? Eu era...
P/1 - Então você conseguia já?
R - Tão ingênua, viu? Papai Noel eu só deixei de acreditar com doze anos, dez, onze anos, uma coisa assim. Então mamãe punha uma boneca perto da janela para mostrar, eu fui muito, muito, sabe, ingênua, muito sei lá, criança mesmo. Hoje já não são tanto, não é, porque televisão e tudo... Mas eu tive, muita, muita amizade nessa casa dessa professora, as meninas eram maravilhosas. Então, uma vez houve um concurso, dois concursos no mesmo dia, do Professorado Católico, Centro do Professorado, você já ouviu falar?
P/1 - Já ouvi falar.
R - Não sei se ainda existe. Eu ganhei os dois primeiros lugares.
P/1 - Nossa, e você era pequena ainda?
R - Eu era menina. Eu tenho tudo anotado lá no álbum, se você vai... Agora você está me perguntando eu não sei dizer exatamente, mas eu devia ter uns doze anos aí, sabe?
P/1 - E esses amigos que você foi fazendo, essas amizades lá na escola de piano, eram mais velhas que você? Porque você disse que...
R - Mas aí... Ela começou a admitir também alunas mais jovens, inclusive, ficaram grandes amigas mais tarde. Mas como eu fui para a Europa depois que eu ganhei essa bolsa, eu fui para passar dez meses e fiquei vinte anos.
P/1 - E você foi...
R - Porque olha, tive bolsa renovada. Depois eu encontrei um marido, assim, um rapaz maravilhoso, uma família ótima lá da Dinamarca. Ele quis me apresentar à família, cheguei lá já me casei. Quinze dias depois estava casada, porque ele tinha que vir ao Brasil pela firma. Ele foi diretor de uma firma internacional, não sei se existe ainda aqui no Brasil. E ele ficou diretor por cinco anos em Paris, naturalmente eu já com ele, brasileira, e ele aprendeu a falar português, porque nós viemos passar uma temporadinha no Brasil. Mas eu fiquei muitos anos fora, você sabe, a gente perde o contato com os amigos, né? E não havia muita correspondência, é difícil.
P/1 - Agora, voltando um pouquinho, quando você fez essas amizades você já tinha os seus irmãos já crescidos, os seus irmãos já tinham nascido ou é uma....
R - Irmã, só uma...
P/1 - Só?
R - É, tivemos uma terceira irmãzinha que morreu pequenininha, sabe? E eu só tive uma irmã. Mas tive uma família muito grande, muito. Meus avós tiveram sete filhos, sabe? Era uma família enorme.
P/1 - Sei. E como você conseguiu a bolsa para ir pra França?
R - Como?
P/1 - Como foi que você conseguiu o concurso da bolsa para ir pra França? Qual era o concurso?
R - Pois é. Quando eu estava terminando o curso, estava mais ou menos com dezenove anos, houve um boato de uma bolsa de estudo para Paris e minha mãe dizia: “Você está tão entusiasmada, eu acho que você não devia se entusiasmar tanto, porque é uma coisa tão impossível de acontecer”. Mas ela também não queria me dizer que não fosse. Ela achava que eu tinha que decidir exatamente o que eu achava bom pra minha vida, pro meu futuro, não é? Eu era uma pessoa muito tímida, sabe, Simone. Eu tinha medo de mar, por exemplo, viajar sozinha nunca, eu não ia até a esquina sozinha se você quer saber. Eu não saía do Municipal, tinha muitas amigas e tocava muito, mas eu não... Pensar em uma viagem assim era uma coisa fantástica, fora do comum. Então ela não queria sugestionar qualquer opinião, dizer: “você vai ou não vai”, mas eu resolvi ir, sabe?
P/1 - Ganhou a bolsa...
R - Se eu ganhasse, porque eu tive que apresentar o currículo, sabe, mas antes desse currículo eu preciso falar também de Magda Tagliaferro. Você sabe quem é Magda Tagliaferro?
P/1 - Sim, claro.
R - A Magda morava em Paris, morava na Europa, né? E com a guerra ela veio pro Brasil e daí abriu um curso na Gazeta, as primeiras aulas eram dadas no auditório da Gazeta. Eu fui admitida e minha irmã também, ela tocava muito bem. Mas depois ela deixou de tocar porque começou a trabalhar no Ministério da Fazenda, aí não dava, não é? Até que a Magda, acabou a guerra, ela pretendia passar seis meses em Paris, seis meses no Brasil e eu fiquei como assistente dela também. Aluna e assistente.
P/1 - Aqui no Brasil?
R - Aqui em São Paulo.
P/1 - Quando ela veio?
R - É.
P/1 - Tá.
R - E com esse currículo, naturalmente, assistente de Madalena, as críticas dos meus concertos... Eu toquei muito. Só notícias do Estadão, sabe quantas? 116
P/1 - Quanta coisa!
R - É... Das minhas apresentações. Eu toquei muito com os solistas da Sinfônica Brasileira, no Rio. Aqui toquei seis vezes com a Sinfônica do Municipal, toquei também na Gazeta com o Souza Lima, esse grande pianista. E aí, de repente essa chance incrível de receber uma carta da Embaixada, né, da França, dizendo que eu tinha sido contemplada com a bolsa. E fui a única, logo depois da guerra. Fui a única pianista, na ocasião, que ganhou a bolsa, por causa do meu currículo, sabe? Eu tive muita coisa, muitas críticas boas e eu me apresentei muito, foi muito bom. Agora, a minha professora era a minha madrinha também, fez questão de me crismar, ela tinha falecido. Ela dizia que tinha medo de morrer antes me ver, de me lançar como uma artista. E foi justamente nessa ocasião que ela morreu, então foi muito triste pra mim.
P/1 - Ela nem soube?
R - Eu ganhei, por exemplo, uma excursão pela instrução artística do Brasil, Helena de Magalhães Tarso, não sei se você conheceu. Ela ajudava muito os artistas que estavam começando. Eu fiz uma turnê pelo interior inteiro do Brasil, sabe? Foi muito bom.
P/1 - E qual era o repertório que você tocava nessa época?
R - Eu tocava de tudo. Bach era meu preferido.
P/1 - O Bach?
R - Bach, Beethoven, Chopin, Liszt, os brasileiros... Na Europa eu tocava muito brasileiro, porque lá também foi uma coisa muito, muito boa para mim. Sabe o que é? Às vezes é uma questão de oportunidades que me surgiram, uma coisa fantástica. Porque na hora da bolsa, devido a esse meu currículo, eu fui chamada, escolhida e aí eu tive que pensar na língua francesa, eu tinha, eu sou professora também, falei até pra Vanusa, professora, professora de música e professora de magistério. Mas eu não gostava, sabe? Eu dei uma aula só como substituta. Eu disse pra minha mãe: “Olha, nunca mais, eu não, não dá”. Eram uns meninos grandes, sabe? Estava substituindo a professora, horrível. Assim, violentos. Eu falei: “Isso aí não dá, não é para mim, eu gosto é de piano”. Aí comecei a dar aula de piano. Quando a Magda me chamou para assistente foi uma temporada feliz da minha vida, feliz e de responsabilidade. Você imagina? É pior uma aula de um aluno do que a minha, não é? Porque eu sabia se eu tinha estudado ou não. Mas os alunos, quando ela chegava aqui, ela ia dar aula para os alunos que ela deixava comigo.
P/1 - Sim.
R - Era muita...
P/1 - Substituía, né? A Madalena...
R - Responsabilidade. É, então, aí comecei a pensar no francês, porque na escola normal nós tínhamos curso de francês. Era Alzira Pujol a professora. E ela era ótima, nós tínhamos... Eu falo nós porque minha irmã estudou na mesma classe. Nós tínhamos notas ótimas, mas não tínhamos conversação. A gente só estudava gramática. Minha mãe achava o máximo a minha coragem de ir para um país, uma cidade, onde eu não soubesse me comunicar, não é? Mas olhe, tanta sorte, viu Simone, que eu entrei no navio francês.
P/1 - Sozinha?
R - Sozinha.
P/1 - E você já estava melhor da paralisia?
R - Não, aí já estava andando, umas botas horrorosas, sabe? Que me maltratavam, mas você não pode imaginar o que eu tinha, o que eu sofria com essas botas cheias de reforço de todo o lado, sabe? Era, aliás, um sapateiro muito competente, ele era um alemão, Max. E eu embarquei. Até eu tenho despedida no Fasano, estou lá eu com as minhas botas. Porque a gente até acostuma com tudo, né? Porque eu já me achava felicíssima de ficar livre daqueles... Sabe uns, não sei se você já viu aqueles aparelhos.
P/1 - Já.
R - Nós tivemos um coquetel de despedida no Rio, na embaixada. Porque naquele tempo tinha embaixada, agora é só consulado parece. Eu fiquei conhecendo, tinha um geólogo, tinha um... Umas pessoas que iam, uns estudantezinhos também, mas de música era só eu. Quando eu entrei no navio eu disse... Segunda classe, não dava nem para ver o mar, a gente via só o fundo do mar, uma coisa assim. E eu era tão medrosa de água, sabe? Então, tem uma amiga que diz, eu passava férias em São José dos Campos, até de passar na ponte do Rio Paraíba eu tinha medo. Sabe, porque sempre tive medo de água e de... Mas, você sabe, mais uma vez o piano foi fantástico, porque o comandante quando soube que eu tocava piano e que eu ia fazer curso de aperfeiçoamento em Paris, ele me convidou e aos meus amigos também. Então, nós passávamos todas as noites na primeira classe, no salão, eu tocando, a gente tomando champanhe, você não imagina.
P/1 - Uma longa viagem, né?
R - Comandante Ivan, nunca esqueci o nome dele, era uma simpatia com a gente. E ficou tão amigo meu e da minha mãe, da minha família. Ele levava encomenda se eu quisesse mandar pra mamãe. Ele não morava em Paris, era família lá do Havre, sabe? Lá do porto da França. Mas, eu fiquei tão corajosa que quando o navio passou no Golfo de Biscaia, é a costa da Espanha, as ondas, sabe o tamanho? Quinze metros. Havia uma tempestade...
P/1 - Nossa
R - Pois eu não tive o menor medo, subimos todos para ver lá da proa. Eu digo: “Isso aí seria inconcebível antes, né?” Mas, assim foi. Quando cheguei em Paris, porque de lá nós tivemos que tomar um trem, do Havre até Paris. Sabe o que eu notei? Isso eu até pus no meu diário: não havia nem um pedacinho de terra que não fosse plantado, que não fosse cultivado. A gente está acostumado a ver extensões nossas aqui, não é? Tanta terra, tanta coisa que a gente pode, não é, um dia... Tem muito mais terra. Dá essa impressão, eu fiquei lá, é tudo muito cultivadinho. Mas, quando eu me vi em Paris eu não acreditei, eu achei que estava sonhando, eu disse: “Eu acho que é sonho, não é possível”. Aí um rapaz que viajava, ele falava muito bem português, foi a sorte, porque eu fui com recomendação para morar... Estou falando muito depressa?
P/1 - Não, está ótimo. Estou adorando.
R - Para morar numa résidence, résidence era um hotel particular onde morava Colette Pujol, era uma pintora brasileira. Ela estava de volta ao Brasil, então, por recomendação de uns amigos meus, de um casal, pai de uma aluna francesinha minha que era um encanto e muito talentosa, eu fui encaminhada a essa vaga, essa résidence, né? Era muito bonito. Villa Saint Honoré de Ilo. Era uma igreja, uma praça com a igreja enorme. E só que eu tinha, naturalmente tinha havido correspondência com a gerente, aquela coisa. Você acredita, filha, eu chego lá com a minha bagagem, uma mala enorme, com todas as minhas partituras, minha mãe fez um verdadeiro enxoval, eu era chamada a manequim do hotel, de... Porque depois da guerra ninguém tinha nada, filha, não tinha roupa, não tinha, sabe? Comida era uma batata que você comprava, uma cenoura, uma banana, era tudo racionado. Não havia café, entende? Era tudo muito racionado. Eu chego com a minha bagagem toda e sabe o que diz a gerente? “Mudei de idéia, não quero você aqui”.
P/1 - Ela disse por quê?
R - Porque ia ter piano no quarto. Aliás, era uma coisa muito difícil de conseguir mesmo, não é? Mas ela estava de acordo e tinha me dado um quarto logo pegado à recepção. Não dava para tocar piano ali. Eu mesmo acho que isso era uma imprudência dela ter dado esse quarto pra mim, não é? Mas como tinha outra dependência e tudo, eu disse: “Quem sabe...”, não é? Mas, eu comecei a chorar, sabe? E o que me salvou foi esse rapaz, ele disse: “Mas ela está, depois de tudo tão acertado”. Ela disse: “Bom, então desembarca agora no táxi com tudo” com toda a minha bagagem e ela deixou eu ficar. Você acredita que depois ela mudou de idéia, ela ficou minha amiga e as filhas também, sabe? Arranjaram um quartinho bem escondido, mais ou menos num outro pavilhão e ali eu pude estudar à vontade, uma coisa fantástica. Tinha minha cama, o piano, o lugarzinho da pia, um guarda-roupa.
P - Como era o seu cotidiano lá? Você chegou já nesse quartinho com o piano, você estudava quantas horas por dia?
R - Cinco horas por dia.
P/1 - Tinha que ir a algum lugar? Alguma escola?
R - Eu pretendia sempre tocar cinco horas, mas não foi bem assim porque eu saía muito para estudar fora, sabe?
P/1 - Você tinha que ir até uma escola?
R - Tem tanta coisa pra contar. Olha, não vai dar tempo, viu?
P/1 - Não tem importância, a gente marca mais horas (risos).
R - Olha, deixa eu dizer a você: quando eu cheguei, a nossa chegada, aliás, dos estudantes, eram três meninas e quatro rapazes. As meninas ficaram no mesmo quarto de um hotel em Montparnasse. Você já esteve em Paris?
P/1 - Não, mas eu já ouvi falar em Montparnasse.
R - Há coisa muito interessante, perto de Saint-Germain-des-Prés. Nós ficamos em um quarto juntas. Você sabe que no Rio faziam 36 graus, lá três abaixo de zero. Então...
P/1 - Você tinha levado roupa para esse inverno?
R - Não. Para esse...
P/1 - E como você fez?
R - ... inverno assim rigoroso, não. Eu tinha ganhado dinheiro para comprar um casaquinho de pele, mas eu não tinha botas, por exemplo.
P/1 - Do frio, né? Que você chegou lá, aquela outra temperatura.
R - É. E era um hotel baratinho para estudante, não tinha nem o café da manhã, nós tínhamos de sair para tomar o café da manhã.Você imagina sair com esse frio? E olha, parece que a gente não podia nem falar. Nós três então resolvemos fazer comida. Compramos uma espiriteira, um álcool sólido e no quartinho... Nós passamos a fazer, comprava de véspera leite, como a gente faz, né, umas comprinhas, e aí tomávamos o nosso café e já era melhor e tudo. Até que eu pude procurar essa senhora que de repente não podia me aceitar, mas fiquei lá algum tempo, sabe? Agora, acontece que eu logo fui ficando com muitos amigos, você entende?
P/1 - Quem eram os amigos?
R - Inclusive do consulado. O cônsul geral e a senhora dele moravam mais ou menos perto e me ofereciam o piano para estudar. Eu tinha uma amiga também, uma pianista, Maria Antônia o nome dela, ela também me oferecia o piano. Eu tinha que alugar um piano, porque o piano que tive lá era alugado. Você sabe a ironia, Simone, eu antes de embarcar eu tinha recebido meu piano de cauda, eu tinha sonhado com esse piano. Era de um casal de Bauru, o nome dele agora eu esqueci. Ele era um engenheiro de Bauru com a senhora, e ela não estudava mais, então ele ia vender o piano. Eu falei: “Então o senhor vai vender para mim, se eu puder pagar parcelado”. Pois na hora que eu acabei de pagar o piano eu fui para Paris. E lá tinha que alugar um pianinho, sabe? Ah, meu Deus, eu achava incrível a coincidência. E o piano...
P/1 - Seu piano ficou em São Paulo?
R - ...era tão bom, assim, na minha casa, esse piano de cauda. Oscar Guimarães era o nome dele, desse engenheiro. Era tão bom que a Magda Tagliaferro continuou dando aulas lá na minha casa. Olha, era um piano muito bom. Aí, em Paris, eu achava tudo maravilhoso, concertos lindos.
P/1 - Então você tinha tempo...
R - Eu tinha tudo.
P - ... para assistir. Essa bolsa, ela permitia que você estudasse. Você tinha aulas também com outros professores lá?
R - Pois é, mas a minha chegada a essa Escola Normal de Música foi decepção.
P/1 - Por quê?
R - Porque minha vontade seria estudar com Marguerite Long, que era a melhor professora de Paris. E Magda Tagliaferro, como ela ficava lá seis meses, ela queria que eu estudasse com ela, podia estudar na Escola Normal de Música, e com ela, mas eu achei que uma vez que estava lá eu tinha que aproveitar, ter aulas com a que era considerada a melhor pianista, a melhor pianista não, a melhor professora da Europa. Então eu fiquei tão entusiasmada, mas eu tive que me apresentar à escola, tive uma aula com Costeau, que era um grande pianista, mas minha vontade não era ficar lá. Eu também... Nessa hora não sabia falar ainda muito francês, foi uma situação muito desagradável.
P/1 - Fez um pouco de aula com esse professor mesmo assim?
R - É. Eu tive um pouco de aula com ela, tanto que um rapaz, que foi depois estudar, um rapaz do Rio, chamava Homero Magalhães, ele deixou de frequentar porque ele também não gostou do sistema dessa escola, sabe? A gente chegando com uma dificuldade de falar, tinha que haver um outro acolhimento, nós achávamos, né? Porque era muito difícil no começo você entender, mas três meses depois, você sabe, eu entendia tudo, falava e fui tendo tantos amigos tão bons, olha, esse cônsul com a senhora, por exemplo, eu estudava lá, ele telefonava dizendo: “Zeila, tem um pratinho gostoso hoje, você vem almoçar conosco”, sabe? Eles tinham um apartamento que era lindíssimo, pertinho. A minha moradia... Porque eu achava aquilo um paraíso, né, de estar em Paris, já pensou, assistindo tudo. Até que um dia telefonam da portaria dizendo que um pianista russo, Borowski, não Brailowsky, Borovsky era o maior intérprete de Bach, estava se hospedando lá e que ele ficou muito entusiasmado em saber que tinha um piano. Aí me apresentaram a ele, naturalmente, e ele ia estudar no meu piano. Ele me fazia sair para tomar chá com as amigas dele, umas senhoras simpáticas e nobres, sabe?
P/1 - Eram russas ou francesas?
R - No apartamento delas.
P/1 - Mas eram francesas?
R - Russas.
P/1 – Russas mesmo?
R - Russas também. Então, quando eu voltava tinha um buquêzinho de tulipas em cima do meu piano, tinha uma fotografia autografada dele... Ele tinha mais de oitenta anos, sabe? Eu fui com ele almoçar diversas vezes, me convidava para almoçar, pros recitais dele, ele deu nem sei quantos em Paris, sempre com entradas para mim. Porque ele adorou poder tocar lá no meu piano e, sabe, uma pessoa incrível. Aí eu comecei a estudar com Marguerite Long, houve um concurso internacional, mas aí o consulado me ajudou. Eu também participei, mas era um ortopedista, era o melhor da Europa na ocasião e ele disse que com uma pequena cirurgia eu ia melhorar muito, sabe? Dito e feito. Foi ótimo, eu pude até calçar sapato comum.
P/1 - Que maravilha
R - Sabe, com saltinho, porque o sapateiro era suíço, fantástico. Então eu pude melhorar muito.
P/1 - Andar melhor...
R - Subia muita escada de metrô, você pensa, tudo o que eu fazia era com metrô. E era pertinho de onde eu morava, a Praça Victor Hugo, Avenida Victor Hugo, que é uma das avenidas que sai do Arco do Triunfo. Muito bem situada. Já os meus colegas, os meus amiguinhos, eles moraram na Cidade Universitária, o Brasil não tinha pavilhão, mas eles ficaram no pavilhão americano, mas como eu ia muito a concerto eu não queria enfrentar sozinha aqueles corredores de metrô à meia-noite, eu tinha... Não daria certo, não é, pras pernas também, de andar muito, muita escada. E assim foi, fiquei ali, e ali houve esse concurso, eram 52 países, você precisava ver o júri, incrível. E eu estudei, mas não pude me preparar muito por causa da cirurgia.
P/1 - Você estava se recuperando?
R - E na ocasião de ficar no gesso, teve um casal polonês, a senhora Marila, ela foi uma mãe para mim. O sobrenome era Voidat. Foi como uma mãe para mim, mas ela fez o que pode, ela tinha uma casa onde ela recebia pessoas sozinhas que iam estudar, mas só rapazes. Estudar ou então trabalhar em Paris. Pois ela arrumou no pavilhão de ginástica, fora da casa, o meu quartinho com aquecimento e foi lá que eu recebi Guiomar Novaes para eu tocar Appassionata para ela. Me ligou um dia, você imagina minha emoção, “Aqui é Guiomar”, eu não podia acreditar nas coisas incríveis que apareciam, né?
P - Ela estava na França nessa época, né?
R - Já, ela estava lá, ela foi, e aí me convidou para jantar com ela e os filhos, né? O filho e a nora na Avenue Champs-Élysées, foi uma coisa inesquecível na minha vida. Ela fez questão de me ouvir tocar a Appassionata, eu ia tocar no concurso, entende? Então foram umas coisas assim, eu toquei muito, mas muito mesmo.
P/1 - Dos professores que você teve na França, quais mais marcantes para você, pra sua carreira de pianista?
R - A minha o quê?
P/1 - Dos professores que você teve na França, quais deles foram os mais marcantes ou um que tenha te marcado muito como professor, para você?
R - Olha, a que mais me marcou foi Marguerite Long, essa senhora, ela tinha cem anos quase, ela dava aula de chapéu.
P/1 - E ela dava aula?
R - Você não imagina a vitalidade dessa criatura. Humana, boa. E ela me encantava. Eu tenho nesse álbum justamente uma apreciação dela, porque ela me considerava, além de talentosa, a aluna mais encantadora, charmant. A gente quando está fora, sobretudo num país que você não tem parentes, você não tem ninguém, então um pouco mais de carinho faz um efeito muito bom. Ela tinha um curso fora da casa dela. A casa dela era um museu lindo, muita coisa boa. Todos os pianistas, todos os artistas que passavam em Paris iam visitá-la, faziam questão. Ela era uma personalidade mesmo, conhecida no mundo. Hoje não se fala muito nela, ela esteve no Brasil, tocou até aqui também, sabe? Ela era muito querida e muito apreciada, muito respeitada, né? Então ela dava um concurso, Concurso Marguerite Long, e logo a seguir o nome de Jacques Dibot, era um violinista, um ano era piano e o outro ano era violino, sabe? Ou nem sei se no mesmo ano. Eu tirei a terceira nota apesar disso, na prova principal que era na de confronto, tem sempre uma prova, tocada por 52 países. Então acharam que foi uma vitória porque eu não tinha me preparado e ela me disse na ocasião que se eu tivesse ido um ano antes eu teria ganho o concurso, porque eu toquei Tchaikovsky, entendeu? Eu estava muito preparada se tivesse tido mais tempo de estudo. Então eu fiquei muito orgulhosa.
P/1 - Como foi que você conheceu o seu marido?
R - Foi uma coisa também fora de você acreditar que pudesse acontecer. Esse casal polonês que eu fiquei conhecendo, eles tinham um restaurante popular no próprio local onde moravam, era um verdadeiro palácio, sabe? Uma beleza de local. E eles tinham esse restaurantezinho e as acomodações, o apartamento, luxuosos, mas para os rapazes que moravam sozinhos, que estudavam, que trabalhavam em Paris, não é? Então, e foi aí que ela botou fora da casa um... Quando eu estava operada...
P/1 - Com gesso?
R - Eu estava no gesso, não é? Ela, para ficar perto dela, para facilitar, porque ela queria tomar conta de mim, foi uma verdadeira mãe que eu tive. Então, você imagina que não tinha elevador, era no primeiro andar, tinha que descer sentada, né, pelos degraus, porque como é que havia de poder sair? E tinha um jardinzinho, aí tinha o bloco da casa dela, lindos, tanto que dei recital lá também. Mas ela era tão amiga, e eu tocava, nessa ocasião eu estava estudando um concerto de Tchaikovsky para orquestra, sabe? E houve um rapaz que ouvia tocar e ficou intrigado: “quem é que tocava tão bem?” E eu, uma vez que eu tinha descido, já estava melhor, já estava podendo andar um pouquinho melhor, não sei se já tinha tirado o gesso, mas tinha que andar de bengala e tudo, eu estava tocando no pianinho, ela tinha também embaixo uma espécie de um bar, barzinho, pras pessoas que trabalhavam à tarde, mas era durante o dia, não tinha ninguém e eu estava tocando lá quando apareceu um rapaz alto, louro, de olhos azuis, sabe, um metro e oitenta: “Ah, então é você que toca?” Porque ele me ouvia tocar lá do quartinho também, né? E ouvia, eu tocava muita coisa, sabe? O meu programa de concertos, eu estudei, foi estudado lá. Aí eu disse: “Pois é, eu toco” e ele quis muito que eu saísse para jantar, e eu falei: “Olha, infelizmente você vê que estou mal podendo andar” e tudo, mas olha, foi uma amizade, uma coisa assim, namoro logo em seguida, e ele ia indo pra Dinamarca para passar férias, ele quis me levar para conhecer a mãe dele, a família dele, sabe? Porque ele tinha um contrato de trabalho aqui em São Paulo, se não é coincidência também, não é filha?
P/1 - Muita.
R - Tinha coincidência, é muita coincidência porque a firma tinha filial aqui em São Paulo, não é? No Rio e em São Paulo, tanto que a firma construiu o Maracanã. Era uma firma muito, muito grande, muito boa. Então, aí começamos a sair. Eu já fui melhorando e tudo. Vi que era...
P - Onde vocês iam?
R - Hein?
P - Onde vocês iam passear?
R - Nós íamos muito a restaurantes, porque lá era uma coisa incrível de bom, não era caro, você podia escolher, você tinha comida de todas as partes do mundo, como está São Paulo agora, né? São Paulo está fantástico. E a gente ia a concertos, a gente ia à boate. Me lembro tão bem, ele até me fez dançar, disse: “Não, você vai dançar”. Você acredita?
P/1 - Você conseguiu dançar?
R - Consegui dançar. Podia parecer nada isso, né, mas tinha muita importância para mim, numa situação tão difícil... Era difícil de dar qualquer passo, né? Até pro meu piano. Como foi difícil o começo.
P/1 - Você se lembra que tipo de ritmo vocês dançaram?
R - É, ele tinha muito ritmo, ele tinha sido noivo da primeira bailarina do Teatro da Ópera de Paris. Pois olha, o oposto, né? Vem pegar uma que mal podia andar. Nós ficamos tão amigos, amorosos e como você quiser. Lá na Dinamarca a mãe dele, uma senhora muito boa, um apartamento lindíssimo, mas muito difícil. Ele me dizia: “Eu puxei minha mãe, não sei se você vai ter paciência comigo”, mas ela se encantou comigo. Sabe o que ela me disse, as primeiras palavras? “Você vai me chamar de mamãe”. Foi uma coisa que meio que eu gravei, porque uma terra diferente, uma língua mais ainda, porque o francês três meses depois eu já dominava, entendia, podia falar, era obrigada a ir ao restaurante ao lado pra tomar uma sopinha... E quando eu recebia o café daqui então? Porque eu tinha direito a dez quilos de mantimento. Você não acha que isso é importante falar?
P/1 - Claro.
R - Com o café, o café verde. Eu arranjei uma torrefação, então eu levava o café. Olha, isso aí valia ouro lá.
P/ 1 – Quem dava era o consulado, por causa da bolsa?
R - Eu recebia do Brasil.
P/1 - Era do Brasil diretamente?
R - Do Brasil.
P/1 - Certo.
R - Eu recebia.
P/1 - Então tinha essa alimentação?
R - O café. Essa época, queria dar presente, dava café. Porque lá não existia café depois da guerra, era horrível, era uma bebida verde escuro, não tinha nem sombra de gosto de café. Então eu fiz muito sucesso com aquele meu cafezinho. Eu sozinha não, os outros estudantes também tinham direito, sabe? Foi uma boa medida naquela ocasião. Agora, eu recebia arroz, feijão, macarrão, coisas assim. Então eu disse à minha mãe, não vinha café nessa época, eu disse a ela: “Olha, você podia me mandar...” porque cozinhar como? Não tinha cozinha, era minha pia com uma espiriteirinha que eu fazia às vezes um macarrãozinho, um ovo, mas não era para fazer feijão, arroz, essas coisas não dava, né?
P/1 - Você cozinhava no seu quartinho?
R - Muito mal, né?
P/1 - Se virava, né? (risos).
R - Vamos dizer, porque minha mãe não me deixava, aqui no Brasil, nunca entrar na cozinha. “Olha, vai cortar a mão, não vai poder tocar”, aquela coisa. E lá não, sabe? Eu tive que...
P/1 - Não cortou a mão? (risos)
R - Não. Bem, bem, sabe? E foi isso que me ajudou muito também, sabe por quê? Quando eu mudei lá para essa casa do casal polonês e que encontrei o meu marido, ele foi nomeado diretor da firma em Paris, aí eu tinha que... Mas, deixa eu contar do casamento.
P/1 - Sim, conte.
R - Também é uma coisa que não dá para acreditar. Você sabe, ela me chamou: “Você vai me chamar de mamãe”, quinze dias depois eu já estava casada. E eu fiquei hospedada com ela, e aí, não é, porque os papéis foram rapidíssimos na prefeitura, o casamento foi numa... Como é que se chama a igreja?
P/1 - Em uma capela?
R - Não é igreja católica, protestante. Não existia igreja católica.
P/1 - Em Paris mesmo?
R - Não, em Copenhague.
P/1 - Foi na Dinamarca?
R - Ela morava em Copenhague.
P/1 - Ah, então vocês casaram lá?
R - Lá. Aí a família reunida, tenho fotos aí também para mostrar para você, viu? Então, uma família muito bonita, muito, sabe? O buquêzinho meu, não deu para ter vestido de noiva, né? Porque foi tudo em quinze dias, porque ele tinha que assumir o lugar dele aqui em São Paulo. E eu fiquei sozinha em Paris, mas fizemos a viagem de núpcias pelo Norte da Europa inteiro com um conversível E no dia do casamento eu com um buquêzinho com as cores da bandeira brasileira.
P/1 - Ah, que lindo.
R - E o tio dele fez tudo para falar em francês, fez um discurso em francês para eu poder entender, porque eu não sabia uma palavra de dinamarquês, mas foi muito emocionante. Antes de embarcar ele me fez visitar o túmulo do pai dele para mostrar que ele estava feliz. Olha, não é uma coisa tocante também?
P/1 - É. E esse buquê, quem teve a idéia de fazer um buquê com cores do Brasil?
R - Pois é, para me agradar.
P/1 - Foi ele?
R - Hein?
P/1 - Ele que fez?
R - Não sei, não fiquei sabendo.
P/1 - Foi uma surpresa?
R - Eu sei que o casamento foi em um hotel à beira-mar. Coisa mais bonita que você possa imaginar. A família toda ali reunida me agradando, nunca tinha ninguém me visto em quinze dias, podiam pensar que estivesse sendo forçada a um casamento, e nada, uma coisa assim fantástica e de amizade e tudo, né? Aí fizemos a viagem, ele me deixou em Paris e embarcou pro Brasil, para assumir aqui. E eu tinha dito a ele que eu não vinha antes de dar um recital, era uma dívida que eu tinha com a minha mãe, porque ela tinha feito tanto sacrifício, ela me mandava dinheirinho, dólar, o que ela podia para me ajudar. Só o meu enxoval para quando eu fui para Paris, todo mundo dizia: “Não é possível”. Além de tudo, ainda ganhei dinheiro da família para comprar casaco de pele, radinho, tinha que ter muito agasalho porque o frio não era brincadeira, não. Aí eu dei o meu recital e vim encontrar com ele, mas daí voltamos outra vez pra Europa. Porque ele foi assumir mais cinco anos em Paris.
P/1 - E no Brasil ele ficou muito tempo?
R - Não, fiquei pouco tempo.
P/1 - Vocês ficaram juntos?
R - Aí nasceu a Beatriz. A Beatriz nasceu dois anos depois do meu casamento, e foi umas férias que nós viemos passar aqui no Brasil e ela... Eu dei graças a Deus de ter a Beatriz aqui, porque lá sozinha sem empregada, você sabe, nós moramos com o diretor da firma, um homem que não soube o que fazer para nos agradar, sabe? Ele tinha um apartamento com mordomo em Paris, ele ofereceu o mordomo para nós, uma ocasião para ter férias, para descansar.
P/1 - E quando nasceu a Beatriz aqui no Brasil, você tocava ainda, você continuava tocando ou parou um pouquinho?
R - Ah, filha… Mas, daí eu vou dizer uma coisa, já não estava me dedicando tanto depois do casamento. Eu tinha muita visita de dinamarqueses que vinham a São Paulo, tinha que oferecer recepções, entendeu? E sozinha, sem empregada. Eu tinha umas meninas que vinham estudar a língua em Paris, e elas não eram propriamente uma empregada, né?
P/1 - Para ajudar...
R - Eu achei tão válido todo esse tempo, sabe? Uma vez a Beatriz estava na cama com sarampo, o marido com garganta, com febre, passando mal e ele sofria de sinusite, então às vezes tinha uma crise com garganta junto. Aí tocou a campainha, Simone, era uma freira e disse assim: “Por que é que você não tem tocado piano?” Você pode imaginar? Ou seja, ela perguntou pra recepção lá embaixo, que era um apartamento de sonho, você tinha Paris em frente, você via até o Arco do Triunfo. Ela queria saber por que é que eu não estava tocando piano. Eu disse: “Olha, mas a senhora...” aí ela disse: “Eu sou aqui do convento ao lado” e era um convento, uma casa bonita com muito jardim. “Eu vou mandar uma noviça para ajudar você”, quando eu falei: “Vai lá olhar no quarto”, Beatriz com sarampo de um lado e ele na cama dele passando mal com febre, mas são coisas da vida, né?
P/1 - Vocês voltaram para Paris com a Beatriz ainda bebê ou ela já estava maiorzinha?
R - Não, a Beatriz nasceu no Brasil.
P/1 - Então, aí vocês foram para Paris?
R - Ah, ela tinha dois anos. Não, um ano e pouco.
P/1 - Ah, pequenininha.
R - Aí nós ficamos justamente em um apartamento na expectativa desse outro que estava sendo acabado de construir. Ah, mas ela foi muito levada, viu? Era primeiro andar, mas era quase térreo. Uma noite eu dei um beijinho nela na cama, tal, daqui a pouco ela: “Maman” ela falava mamãe em francês porque com ela ficou uma confusão de língua, né? Ela fala cinco línguas, ela não esqueceu o dinamarquês, fala correntemente. Eu falei: “Parece que a Beatriz está chamando lá de fora”, tinha caído da janela. Você pode imaginar?
P/1 - (risos) De noite, né?
R - De noite. Meu marido correu, foi aquele choque, né? Não aconteceu nada porque não era muito alto, não machucou. Mas era assim.
P/1 - E como foi ser mãe? Você estava parando um pouquinho de tocar piano, nasceu a Beatriz, como era?
R - Eu levei muito a sério, sempre eu dizia: “Prioridade é o piano”, porque eu tive muitas oportunidades de sair, mas eu dizia: “Não, antes do meu piano eu não vou fazer nada”, porque era uma tentação também, não é? Compras, tive muita visita do Brasil. Até está lá na listinha, Luiz Dumont Villares, não tem uma rua? Foi meu grande amigo, era meu grande amigo aqui em São Paulo de frequentar concerto. Ele foi me visitar. Ah, aquele professor Koellreutter também...
P/ 1 – Hum, sei, o maestro.
R - Eu tinha tido aulas com ele aqui de composição. O Osni Silveira era um político até, não sei se era vereador naquela ocasião, sei lá. Eu tive muitos amigos, eu tenho toda uma listinha lá que eu mostrei, sabe, eu anotei, se você quiser ver depois.
P/1 - Voltando um pouquinho, quando que você começou a tocar os brasileiros, Villa-Lobos, lá na Europa?
R - Bom, eu quando toquei Villa-Lobos foi aqui em São Paulo...
P/1 - Antes de ir?
R - Eu estava hospedada num hotel. Mas aí eu estudei muito música brasileira. Eu tocava muito “A Dança de Negros”, essa era a que tinha mais sucesso. E “Dança Brasileira de Camargo Guarnieri” também. “Maré Encheu”, “Rosa Amarela” de Villa-Lobos, eu toquei muito, toquei até num concerto meu, num recital.
P/ 1 – E lá em Paris, você tocava bastante os brasileiros que você comentou?
R - Muito, muito música brasileira, sabe?
P/1 - Era você que escolhia o seu repertório?
R - Eu que escolhia.
P/1 - Você escolhia.
R - Eu toquei na Maison de L'amérique Latine, era só para os americanos do sul. Foi organizado pelo vice-cônsul do Brasil, Doutor Jaime de Barros, ele e a senhora dele foram amigos demais meus. Ela, nem bem cheguei ela me deu um casaco de pele com regalo, sabe? Um amor de pessoa. E ele que organizou esse recital, dois eu dei nessa Maison de L'amérique Latine. Naturalmente eu não toquei só brasileiro, mas toquei muito brasileiro. Tenho o programa no meu álbum aí. Você vai ver.
P/1 - Quando você chegou lá em Paris você era uma estudante, né?
R - Era.
P/1 - Quando você começou a receber cachê, que virou profissional mesmo, pianista profissional, que já não era mais estudante?
R - Cachê?
P/1 - É.
R - Olha, eu vou dizer uma coisa a você, não houve cachê.
P/1 - Não houve cachê?
R - Muito pouco na minha vida.
P/1 - Mesmo profissional?
R - Esses concertos, por exemplo, da Amérique Latine, foi o consulado que organizou, não é? O meu de despedida fui eu que tive que pagar, entendeu? Eu que tive que pagar uma pessoa que se incumbiu dos, como se diz, dos convites, dos ingressos, do aluguel da sala, era Sala Chopin. Porque a Sala Chopin já era mais acessível para o número de pessoas que iam comparecer, naturalmente.
P/1 - E os ingressos eram cobrados ou eram gratuitos?
R - Minha mãe até colou no meu álbum o ingresso, para você ter uma idéia.
P/1 - E eram cobrados ou eram gratuitos os ingressos?
R - Não, cobrados.
P/1 - Todos cobrados. E aí você recebia esse dinheiro?
R - Não.
P/1 - Ia para quem alugou a sala?
R - Exatamente. E aí eu fiquei admirada porque esse recital que eu dei foi organizado por essa senhora polonesa. Eu não fiquei sabendo que ela tinha feito em benefício dos poloneses. Eu achei uma coisa bonita que ela fez, porque não é possível uma pessoa ser mais amiga do que ela foi pra mim, não é? E ela fez um preço muito, muito pequeno dos ingressos, a sala ficou cheinha e eu não estava sabendo que ela tinha feito assim, pago, não sei bem dizer exatamente.
P/1 - Então quer dizer, pós-guerra era difícil o profissional de música...
R - Exatamente.
P/1 - ... ter um cachê.
R - Muito difícil, é. Você sabe que a coisa que eu mais ficava admirada, eu tenho um albinho, que está aí, que eu trouxe para mostrar para você. Os autógrafos que eu tenho nele, sabe? São artistas que eu tive autógrafo antes de eu ir pra Europa, alguns já foram depois, mas a maioria eu nem sabia dizer uma palavra com eles, não é, ia ali só para pedir o autógrafo e lá eu podia conversar em francês e era muito bom.
P/1 - Fora do Brasil?
R - Olha, um dos concertos mais marcantes da minha vida: Furtwängler foi o maior regente do mundo. Depois você vê lá na... Eu tenho até o autógrafo dele com a “Ópera de Viena”, “A Flauta Mágica de Mozart”. Isso aí, olha, nunca, nunca você pode imaginar uma coisa mais perfeita, mais emotiva, mas uma coisa fantástica. E ele regendo, sabe? Acho que ele não chegou a vir ao Brasil, o Furtwängler. Ele deu muitos recitais na... Eu penso que aliás, não era recital, ele regia a orquestra, né? De Viena, de Berlim não sei se ele chegou a reger, mas ele morreu e não ficou muito conhecido aqui no Brasil, né? Você lembra desse nome?
P/1 - Não, não.
R - Não lembra aqui se você falar...
P/1 - Pois é.
R - ... mas lá se você falar, ele era muito, muito adorado. Era um homem incrível. Essa ópera era a coisa mais perfeita. Porque eu assisti todas as óperas aqui no Brasil. Eu tinha um primo que era do jornal e ele não ia, então ele me dava esses ingressos e eu e minha irmã assistíamos tudo, ballet, ballet russo, era ótimo.
P/1 - E a Beatriz foi crescendo lá em Paris e...
R - É, a Beatriz foi crescendo, eu quis até que ela estudasse piano, ela mostrou um pouco de vontade, mas não tinha, era difícil. Você vê, uma arte não é fácil. Aí meu marido foi trabalhar em diversos lugares, quer dizer, depois que saiu de Paris nós tivemos um estágio em Lisboa, na Cidade do Porto, em Portugal. Um ano e meio. Passamos dois anos e meio em Copenhague, quer dizer, eu morei em diversos lugares, inclusive em Mônaco, um ano e meio. Mas isso depois que ele pediu dispensa da firma. Estava para se aposentar, então foi uma coisa que eu acho que ele fez mal, porque não ficou muito de acordo lá com a direção da firma. E morei em Nice, cidade de Nice, em Cannes...
P/1 - E nessas cidades você tocava piano ainda?
R - Toquei, claro.
P/1 - Sempre tinha um piano na sua casa ou em algum lugar?
R - Não, mas eu toquei para um crítico em Mônaco, eu toquei para um crítico de Nice, que foi convidado para me ouvir, sabe? Mas depois esse casal que nos recebeu, que era muito simpático, se divorciou, aí nós perdemos contato. Mas eu ia muito a concertos, a orquestra de Mônaco, a Grace Kelly, a gente via tudo no camarote deles.
P/1 - E a Beatriz foi criada lá em Paris. Ela fala a língua mais por isso também, porque como criança aprendeu, né?
R - Não esquece, viu?
P/1 - Ela ia pra escola... Em todos os lugares que vocês moravam ela ia para uma nova escola?
R - Em Mônaco o ônibus ia buscá-la, um motorista de luvas brancas, mas ela não gostava de lá porque era uma vida meio artificial para quem não frequenta o Grand Monde como eles falam, aquela coisa. Chegava nas férias, você via as janelas abertas, do contrário, tudo meio triste, meio abandonado, né?
P/1 - Isso em Paris?
R - Não, Mônaco.
P/1 - Mônaco, desculpe.
R - Paris foi uma maravilha sempre.
P/1 - Ah tá. E aí depois ela fez faculdade lá fora também ou vocês já tinham voltado?
R - Não, ela fez em São Francisco. Olha, porque quando nós voltamos, mamãe morava ali na Alameda Tietê, esquina com Padre João Manoel. Sabe aquele externato, como é que chama, Meira, Externato Meira? Ali ela começou a aprender o português direito, entende? Aí fez o vestibular para cinco faculdades e entrou nas cinco. Aí, claro que deu preferência a São Francisco, né? Ela é formada pela São Francisco.
P/1 - Ela é advogada?
R - Então, mas aí nós já estávamos aqui definitivamente, ele tinha se aposentado, quer dizer, aposentado não, deixado de trabalhar. Mas nós fomos morar dois anos e meio em Copenhague. Foi uma vida linda, linda, linda.
P/1 - Era diferente? Como era cotidiano lá? Por que é que era tão bom?
R - Olha, para começo de história era um frio, umas coisa fantástica. Quando meu marido quis voltar para lá eu disse: “Olha, eu não vou acabar minha vida lá, adorei o país, acho ma....”, olha, jardim, é um país de jardim, entende? Tudo bem cuidado, tudo impecável, agora o inverno, meu marido sofria mais no inverno aqui do que lá, porque tudo aquecido, né? Sabe, não tinha coisa de... Até táxi aquecido, supermercado, você chegava e já tirava o casaco de pele. Quer dizer, você não sofria muito. Quer dizer, se você andasse na rua, é claro. Foi muito bom também. Muito bom, muito positivo, cada coisa, eu não tenho do que me queixar, eu acho que a vida, de repente, ela toma um rumo assim inesperado.
P/1 - E hoje a senhora ainda... Desculpe. Hoje a senhora ainda assiste concertos, vai a concertos, gosta de ir?
R - Agora, atualmente?
P/1 - É, é.
R - Não, vou dizer a você. Primeiro porque ninguém tem coragem de sair à noite, né? Ainda está com esse problema. E como temos televisão também, não é? Tem os CDS, ótimos. Então, eu acho que não houve um... Houve um decréscimo de pessoas que frequentam concertos. Eu tenho duas amigas, por exemplo, que me convidavam muito agora onde eu estou, mas eu... Elas também foram ficando com medo de sair, não é?
P/1 - E hoje você mora sozinha?
R - Moro sozinha.
P/1 - E tem um piano onde você mora ou não?
R - De cauda. O meu, maravilha que eu sempre sonhei ter, ele continua comigo.
P/1 - O mesmo piano?
R - O que ele viajou de navio para cá, para lá, não é?
P/1 - O mesmo piano que ficou aqui?
R - O mesmo piano.
P/1 - É seu companheiro ainda?
R - Eu tinha medo da viagem, eu fiz umas onze viagens de navio, né? Agora, com ele não, com ele só mudanças, não é? De Paris pra Dinamarca, da Dinamarca pro Porto, do Porto para Nice, de Nice para cá, e assim foi, viu? Mas é um piano... Foi importado antes da guerra, da Alemanha, Big Stein, sabe?
P/1 - Sei.
R - Porque tem Steinway e Big Stein. Agora, Big Stein, dizem que os rapazes que construíram, que trabalhavam na fábrica, morreram na guerra. A maior parte, os técnicos, enfim, que cuidavam da fábrica. De modo que não se ouve mais falar de Big Stein. Não sei.
P/1 - E você ainda toca?
R - Ah, mas isso é indispensável, sabe? Eu comecei a ter problemas por causa do andador, de estar forçando muito, eu fiquei apavorada porque foi uma coisa que eu não queria que acontecesse na minha vida. Você acredita que eu consegui superar? Porque piano, os meus vizinhos dizem, tem um que diz: “Eu saio, volto mais cedo para casa porque sei que é hora de você tocar”, eu toco meia hora, uma hora por dia, mas já me sinto bem reconfortada com isso, viu?
P/1 - E só para a gente encerrar, você comentou antes que você fez uma segunda cirurgia aqui no Brasil.
R - Fiz. Aqui no Brasil.
P/1 - E essa segunda cirurgia te ajudou mais ainda?
R - Muito bem, foi um resultado fantástico, sabe? Porque naturalmente, com uma deficiência em uma perna, a que não tem vai procurar suprir o que está faltando na outra, né? E foi por isso que foi feita, mas tem muita coisa lá, se você vai ler depois, muita coisa que a gente... Se for para falar, não vou parar de falar nunca.
P/1 - (risos) Isso é muito bom.
R - Mas, olha, eu estou muito contente.
P/1 - Agora nós estamos encerrando, então a gente gostaria de agradecer a sua presença. Zeila, você é muito bem vinda aqui no Museu da Pessoa.
R - Obrigada.
P/1 - Nós vamos ver as suas fotos, tudo o que você trouxe. Muito obrigada. Você gostaria de contar mais alguma coisa, comentar mais alguma coisa?
R - Não, está certo. Olha, eu tenho até vontade um dia de escrever para você um resumo, entendeu? Vou escrever isso para mim, não precisa que eu diga, tá?
P/1 - Vai ser um prazer ler, claro.
R - Eu estou muito orgulhosa, viu, de vocês me convidarem, porque a volta ao Brasil, eu posso dizer a você, o Brasil é um paraíso. Eu morei em muitos lugares, eu conheço treze países da Europa, eu morei em diversos deles, a gente pode saber exatamente o valor quando você mora, você pode avaliar, não é? Mas eu posso dizer a você que o nosso país é um paraíso. Essa amizade que você tem... Não tem em lugar nenhum como aqui. Aqui você se sente tão bem, então lá fica difícil você se ambientar, não é? A língua também dificulta. Mas não é só isso, é questão também dessa hospitalidade brasileira, você não acha fora do Brasil, você não acha não. Tá bom?
P/1 - Muito obrigada, Zeila.
R - Nada, obrigada você.
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