P/1 – Bom, seu Lourival, primeiro bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Eu vou começar pedindo que o senhor fale o seu nome, local e data de nascimento.
R – Lourival Peixoto da Silva, nascido em 30 de março de 1951.
P/1 – E o senhor nasceu aqui em Pirenópolis?
R – Eu nasci na Fazenda Barro Branco, no município de Corumbá.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – José Peixoto da Luz e Gracina Ferreira da Silva.
P/1 – O senhor comentou que o senhor nasceu em Corumbá...
R – É, município de Corumbá.
P/1 – E o senhor nasceu na própria fazenda?
R – Foi, na própria fazenda.
P/1 – E tinha parteira? Conta pra gente como é que foi isso.
R – Tinha, tinha parteira. De primeiro mulher não ia pra hospital porque quase não existia hospital. Eu mesmo tive nove irmãos, e todos os nove nasceram tudo de parteira, minha mãe não ganhou nenhum filho no hospital.
P/1 – E o que os seus pais faziam nessa época, do que eles trabalhavam?
R – Trabalhavam na roça, agricultor.
P/1 – Na própria roça?
R – Na própria roça.
P/1 – E a fazenda era de vocês?
R – Era não, nós éramos agregados.
P/1 – Como era essa fazenda lá?
R – Eu nasci nessa fazenda mas eu mudei criança. Depois que eu mudei de lá eu morei na Fazenda Cobreiro no município de Corumbá também, foi onde eu fui criado.
P/1 – O senhor mudou muito jovem?
R – Eu tinha em torno de dois anos, não lembro assim da passagem pela fazenda onde eu nasci.
P/1 – E que lembranças você tem dessa outra fazenda? Como é que ela era? Aquela pra qual o senhor se mudou depois.
R – Essa fazenda era uma casa branca, pintada de cal , madeira do mato, dessa madeiras roliças, não era madeira serrada como é hoje. Era cercada de mata em volta. Tinha os gados, um pedacinho de pasto aqui, um pedacinho ali, não era como é hoje, que...
Continuar leituraP/1 – Bom, seu Lourival, primeiro bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Eu vou começar pedindo que o senhor fale o seu nome, local e data de nascimento.
R – Lourival Peixoto da Silva, nascido em 30 de março de 1951.
P/1 – E o senhor nasceu aqui em Pirenópolis?
R – Eu nasci na Fazenda Barro Branco, no município de Corumbá.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – José Peixoto da Luz e Gracina Ferreira da Silva.
P/1 – O senhor comentou que o senhor nasceu em Corumbá...
R – É, município de Corumbá.
P/1 – E o senhor nasceu na própria fazenda?
R – Foi, na própria fazenda.
P/1 – E tinha parteira? Conta pra gente como é que foi isso.
R – Tinha, tinha parteira. De primeiro mulher não ia pra hospital porque quase não existia hospital. Eu mesmo tive nove irmãos, e todos os nove nasceram tudo de parteira, minha mãe não ganhou nenhum filho no hospital.
P/1 – E o que os seus pais faziam nessa época, do que eles trabalhavam?
R – Trabalhavam na roça, agricultor.
P/1 – Na própria roça?
R – Na própria roça.
P/1 – E a fazenda era de vocês?
R – Era não, nós éramos agregados.
P/1 – Como era essa fazenda lá?
R – Eu nasci nessa fazenda mas eu mudei criança. Depois que eu mudei de lá eu morei na Fazenda Cobreiro no município de Corumbá também, foi onde eu fui criado.
P/1 – O senhor mudou muito jovem?
R – Eu tinha em torno de dois anos, não lembro assim da passagem pela fazenda onde eu nasci.
P/1 – E que lembranças você tem dessa outra fazenda? Como é que ela era? Aquela pra qual o senhor se mudou depois.
R – Essa fazenda era uma casa branca, pintada de cal , madeira do mato, dessa madeiras roliças, não era madeira serrada como é hoje. Era cercada de mata em volta. Tinha os gados, um pedacinho de pasto aqui, um pedacinho ali, não era como é hoje, que não vê mata.
P/1 – E o senhor já tinha todos os irmãos ou não?
R – Não, não tinha não. Inclusive, eu tenho umas irmãs e irmão que nasceram nessa fazenda.
P/1 – E você tem alguma lembrança especial dessa fazenda? Alguma coisa marcante de lá?
R – Tem muita lembrança de coisas que marcaram a vida da gente. A gente plantava roça, colhia milho, arroz, feijão, melancia. E também moíamos cana, fabricávamos rapadura. Levantava todo dia às três horas da manhã pra moer a cana, bebia aquela garapinha gelada , então, tudo isso marca a vida da gente, coisa que a gente não vê hoje. Não existe mais.
P/1 – Isso tudo foi ensinado pro senhor?
R – Ensinou pra mim. Eu fui vendo, fui aprendendo. A minha mãe também criou nove filhos, ainda sobrava espaço pra trabalhar, apanhar café. A gente ia pra olhar aquelas crianças mais novas pra minha mãe poder trabalhar. Isso tudo marca a vida da gente, sabe?
P/1 – E dos irmãos, das brincadeiras de infância, o senhor lembra de ter espaço nessa vida corrida pras brincadeiras? Como é que era?
R – Era nos domingos. Nos domingos a gente se reunia porque na roça não existia feriado, existia o dia santo. Então, cada domingo e dia santo a gente ia pra casa de um amigo, ali nós juntávamos dez, doze amigos, pra matar passarinho de estilingue , coisa que hoje não pode fazer mais. . Agora, almoço nós mesmos fazíamos nossa panelinha de comer, e os passarinhos que nós matavamos, nós comiamos .
P/1 – Do que você lembra desse almoço? O que tinha pra comer?
R – Era arroz.
P/1 – E reunia todo mundo?
R – Só as crianças.
P/1 – E os adultos, eles faziam o quê de domingo?
R – Os adultos passavam o domingo mais em casa, às vezes saiam pra visitar um amigo, esse era o dia a dia deles.
P/1 – E fora os domingos, como é que era o cotidiano nos outros dias? Era sempre trabalho, variava?
R – Era trabalho. A gente levantava de manhã cedo, seis horas tinha os porcos pra gente tratar, as galinhas. Às vezes, o milho do paiol tinha acabado e tinha que buscar o milho na roça pra vir tratar das criações ainda. A gente ia pra roça, trabalhava, quando eram oito horas a gente vinha em casa, pegava o almoço, levava pros pais no trabalho, ficava lá. Meio-dia a gente tornava a vir, pegava a merenda, levava pro pai, aí, trabalhava até às seis horas da tarde. Chegava, tomava banho, jantava, já tava cansado e não tinha onde sair. Era ficar em casa e dormir cedo .
P/1 – E tinha alguma festa de domingo, fora o almoço tinha alguma festa de dia santo, de celebração?
R – Tinha. Tinha as rezas, São João, São Pedro, Santo Antônio.
P/1 – E como eram essas festas? Vocês colocavam alguma roupa diferente, tinha alguma coisa especial?
R – As roupas era assim... A gente trabalhava na roça, só via dinheiro de ano em ano, era pouco. As roupas eram assim, o pai ia na cidade, comprava aqueles rolos de pano, era um paninho azul pra calça e um paninho branco pra camisa. Aquela roupa, cada um tinha o seu pareio, de sair aos domingos, nas rezas. O que tinha de calçado era botina. Aqueles que não tinham, a gente fazia a alpargata do couro da vaca, que chama couro cru. Os calçados que nós usavamos mais antigamente nas roças eram esses.
P/1 – E tinha roupa certinha, bonitinha, pra ir pra reza?
R – Tinha. Quer dizer, não era toda vez que tinha, porque aquela roupa comprava, quando ela tava nova, tava boa. Às vezes ficava velha, mas é que nossa mãe remendava todos. Às vezes você vestia uma roupa remendada, mas tava limpinha. Isso tudo traz recordação pra gente porque hoje a gente vive assim, as roupas que nós iamos nos bailes antigamente, hoje ela é jogada fora.
P/1 – E o que o senhor lembra das rezas? O que mais tinha nelas?
R – Tinha multirões de limpar as roças, roçar um pasto, tinha o baile. Antes do baile começar tinha as rezas, rezava um terço primeiro. Às vezes dançava umas duas ou três catiras pra depois poder começar o forró. E começa o forró e ia até o dia amanhecer .
P/1 – E pra quem não sabe o que é o multirão?
R – Ele é chamado de multirão, vamos fazer uma comparação: Eu tenho uma roça que tá precisando limpar porque o mato está cobrindo a planta e eu estou apertado em outro serviço, então, o multirão reúne os amigos, os parentes e falam assim: “Vamos dar um multirão pro Fulano e vamos limpar a roça dele”. Reúne, dali ali tem o almoço, a janta, o baile, o multirão é isso aí.
P/1 – E do baile, do forró, você lembra de algum episódio específico?
R – Ah, lembro .
P/1 – Conta pra gente .
R – . O baile era sanfona, violão, pandeiro e caixa. Então, não existiam essas músicas eletrônicas, ali o sanfoneiro pegava numa sanfona, se tivesse um pra substituir ele, substituía, se não tivesse ele tocava até amanhecer. Só forró mesmo. Tinha hora que o povo ia dançando, todo mundo cantava quando era uma música que eles achavam bom. Dançando e cantando, todo mundo animado.
P/1 – Todo tipo de música? Do que você lembra?
R – Todo tipo de música. Lembro de um bocado.
P/1 – Tem alguma que você lembra pra contar pra gente?
R – Tem .
P/1 – Conta pra gente um trechinho.
R – Eu sou meio ruim pra cantar. Uma musiquinha que eu dancei muito, sanfona era pé de boa, quase não existia essa sanfona grande como existe hoje. Tem uma música que fala assim: (cantando) “Eu casei com duas mulheres, eu casei com duas mulheres, não dei conta de tratar, uma queria farinha, outra queria fubá. Eu passei a mão no saco, e pra venda eu fui comprar, o vendeiro não estava, o caixeiro não quis fiar. Eu passei a mão na faca, fui pro mato, eu fui caçar. Eu cheguei no pé do pau, tinha um tamanduá”...e vai...
P/1 – Tinha de tudo, tinha um monte de música?
R – Tinha muito .
P/1 – E o que mais você lembra? De pessoas que você conheceu, os amigos? Porque esse era o espaço que vocês tinham pra se divertir mesmo, era aquele momento de descansar.
R – Tinha muitos amigos. Às vezes nós iamos jogar uma bola, pescar, tinha muito a vida de pescaria.
P/1 – O senhor comentou que cada família tinha sua própria roça.
R – Cada família tinha sua própria roça.
P/1 – Então, além do trabalho que vocês faziam na fazenda, vocês também trabalhavam na própria roça...
R – Cada um tinha sua roça. Eu mesmo e o meu pai, ele tinha roça de milho, ali no meio do milho plantava o feijão, uma parte plantava muda de fumo, que nós fabricavamos fumo também. Outra parte da roça nós plantávamos cana, também fomos produtores de rapadura. Ainda sobrava espaço pra trabalhar. Uma coisa que eu não esqueço era a minha mãe. A minha mãe foi uma mulher trabalhadora, honrada. Morreu nova, mas deixou saudades. E deixou exemplo. A minha mãe levantava cedo, não existia fogão caipira, ela acendia o fogo, fazia o café pra nós, socava o arroz no pilão. Hoje em dia pouca gente sabe o que é um pilão. Socava esse arroz no pilão, catava esse arroz, que nós chamavamos de maroto, aquele arroz que ficava inteiro com a casca, catava aquilo todinho, fazia o almoço. Nove horas o almoço tava pronto, meio-dia fazia a merenda e fazia a janta. Ainda fazia sabão. E nunca reclamou da vida, era uma mulher sorridente, satisfeita, tinha o prazer de viver. Isso deixou marcado na minha vida e é um exemplo.
P/1 – O que mais você lembra dela?
R – Eu lembro que ela também gostava muito de cantar, dançar. Gostava muito de baile, ela achava bom. Inclusive a música que ela gostava de cantar e dançar, eu não sei ela toda, mas eu sei qual que é, é de Luiz Gonzaga, Asa Branca .
P/1 – Não podia tocar Asa Branca que ela ficava feliz. Que bom. E ainda que ela trabalhasse, que ela fizesse tudo, cuidava de todos os filhos...
R – De todos os filhos. Todos.
P/1 – E o convívio em casa com toda essa gente, pra dormir, pra tomar banho, como é que era?
R – Ixi, era difícil. Porque o banho, nós banhava no rio, tinha um ribeirãozinho que passava lá, a água também era pegada no ribeirão. E dormir era difícil. Porque naquele tempo era muito pobre, a gente dormia, a gente nem fazia a cama da gente. Ia no mato, cortava forquilha, vara, fincava no chão porque as casas eram de chão. Fincava. Existia aqueles cocos indaiá. A gente ia, cortava umas folhas que ia rachar no meio, colocava assim. Jogava um forrinho, uma cobertinha ali . Era assim, parece que é diferente de hoje, mas era muuito mais saudável. Tem coisa que deixa saudades, sabe?
P/1 – E tudo isso ia aprendendo no dia a dia com sua mãe...
R – No dia a dia.
P/1 – Conta do processo da rapadura, como vocês faziam a rapadura?
R – Rapadura? A cana tem uma época que ela amadurece, aí, a gente ia, cortava ela, fazia os feixes, e deixava tudo no lugar do carro de boi pegar. O carro ia, a gente pegava os feixes nas costas, punha no carro. Chegava no engenho, falava pé de engenho. A gente amontoava ela ali e quando era três horas da madrugada a gente levantava e já ia no pasto pegar os bois e ia moer a cana. A cana é o engenho. Você conhece engenho?
P/1 – Não.
R – Pois é. Engenho é de madeira, hoje existe de ferro também, mas antigamente era madeira. São três moendas, ali tem os dentes, tudo contadinho, certinho. Um vai tocando o outro, o boi vai rodeando e o engenho também vai rodeando. A pia a gente punha a cana de um lado, tinha dois, um colocava a cana, o outro pegava de cá o bagaço e tornava a voltar aqui de novo e tal. Um punha a cana, pegava o bagaço e ia jogando fora. Aquela garapa já corria dali, tinha uma bica, já caía na tacha. A tacha é o tacho da gente ferver ela, apurar, aí, ela caía no tacho. A gente assistia, a hora que ela estivesse quase fervendo ela soltava uma escuma preta por cima. Ali existia a escumadeira, falava escumadeira. É assim, o tipo de uma peneira, a gente ia, tirava aquela escuma todinha e jogava fora. Aí, a garapa ficava apurada e ia apurando, fervendo, fervendo, fervendo, até dar o ponto, chamava pitá, antigamente chamava até pitar. E nós mudávamos a fervura, e ela tudo. Ali chegava um ponto, você tinha uma vasilha d’água, você jogava um pouquinho na mão e você sabia se tava o ponto de tirar. Aí tirava, punha numa masseira de madeira, era grande. Ali, punha aquele melado, a hora que ele esfriava um pouquinho, existia uma pá de bater o melado e fazer a rapadura, ali você vai batendo, vai batendo e ele vai embranquejando, sabe? Vai embranquejando, embranquejando, até chegar num ponto. Agora, aquele ponto você não pode deixar ele passar senão ele endurece na masseira. Tem um ponto de você parar com ele. Existiam as grades, era tudo de madeira também, tudo de quadrinho em quadrinho. Ali já tava no jeito, forrada de folha de banana e jogava por cima. Ali você já pegava com a cuia, já tava no ponto já, pegando e despejando ali, é onde as rapaduras saiam tudo quadradinha.
P/1 – E quem trabalhava nesses processos? Você trabalhava com os irmãos?
R – Era só os irmãos e o meu pai.
P/1 – Como era enquanto vocês trabalhavam? Era um momento sério, vocês conversavam, como é que era?
R – Não, não. Não tinha jeito de conversar. A gente conversava depois que o trabalho parava, porque, às vezes, dois estavam moendo e não tinha prazo, o outro tava olhando a tacha, pondo no fogo, fazendo a rapadura. O outro já ia pro canavial cortar a cana, outro já ia pegar uns bois pasto. A vida era essa, não tinha tempo. Outro já ia já com o machado amontoar uma lenha pra trazer. Era desse jeito. Nós não tivemos espaço, eu não tive infância, só os domingos e nos dias santos. Como eu falei, não existia feriado, só dia santo.
P/1 – E desse material que vocês produziam, vocês faziam só pra sua alimentação, vocês vendiam?
R – Vendia.
P/1 – E como era essa venda? Onde vocês vendiam?
R – Ah, era muito difícil. Porque nessa época, às vezes vendia, às vezes tinha gente que chegava lá e a gente vendia pra eles em troca de serviço. Ali o cara pegava de quatro, cinco rapaduras pra trabalhar um dia de serviço. Do contrário, ia moendo e guardando essas rapaduras. Aí, existia Corumbá que era a cidade mais perto e ficava em torno de uns 200 quilômetros. Aquela rapadura, até fazer as cargas certas, tinha os cavalos, as buracas que enchiam de rapadura, as cangaias, arriava os cavalos, punha as buracas cheias de rapadura, e levava pra Corumbá. Chegava lá vendia um pouco pra um, um pouco pra outro. Enquanto não acabava não ia embora . Era desse jeito .
P/1 – E a ida pra Corumbá, como era esse trajeto longo?
R – Ih, era difícil. Tinha que pousar umas duas noites na estrada pra poder chegar, duas ou três noites dormindo na estrada.
P/1 – E como era Corumbá? Chegar na cidade era bem diferente do campo?
R – Não, Corumbá era uma cidadezinha. Era cidade, mas não tinha muita população, era pouca gente. Existia só uma loja, pensão só existia uma, que era onde a gente dormia. Quase não existia nada. Hoje está tudo diferente, já tem várias modernidades, não é como era.
P/1 – E quando vocês sairam da fazenda, como é que foi essa saída? Porque com oito anos você saiu dessa fazenda. O senhor foi pra Pirenópolis, como é que foi?
R – Não, não. Com oito anos eu comecei a trabalhar. Nós ficamos 13 anos nessa fazenda, 13 anos. Eu sei que a saída nossa foi muito triste, sabe? Da gente deixar uma vida que a gente tinha, que a gente conhecia, pra gente viver assim uma coisa que a gente não sabia o que ia ser cada dia. Mas graças a Deus foi tudo bem. Nós mudamos pra cá porque nós fomos de uma família humilde, todo lugar que nós chegamos nós somos bem recebidos. Trabalho, nunca faltou trabalhou. Um chamava para ali, outro pra acolá. Então, foi esse o dia a dia da gente, atééé a gente inteirar a idade, eu arrumei meus documentos, aí, já comecei a trabalhar em uma firma aqui, e outra ali. E foi isso.
P/1 – Então, o senhor ficou 13 anos lá na fazenda.
R – Treze anos lá na Fazenda Cobreiro.
P/1 – E por que você saíram? Vocês resolveram vir pra cidade, como é que foi?
R – Olha, essa saída nossa foi porque a minha mãe ficou doente. Aí, tava muito difícil tratamento pra ela e nós viemos pra cidade porque tinha mais recurso pra ela. Foi o motivo pra nossa vinda pra cidade.
P/1 – E quando vocês saíram, saiu a família toda reunida?
R – Toda reunida. Viemos reunidos, moramos reunidos, até um casa daqui sai, outro casa sai. Mas até hoje nós somos unidos, sabe? Cada um tem sua casa, mas nós somos unidos.
P/1 – E como é que foi ver o primeiro irmão sair de casa?
R – Olha, é uma coisa assim que marca a vida da gente, porque a gente sabe que aquela vida que a gente tinha não volta mais, porque a pessoa depois que casa, ela já dedica a vida dela pra família. Já é bem diferente.
P/1 – E o senhor não é o irmão mais velho?
R – Não sou, não. Eu sou o terceiro.
P/1 – E os irmãos mais novos? E o convívio com os irmãos mais novos, todo um cuidado, como é que era?
R – Convivo, nós nos damos muito, acho que eles tem orgulho de mim por causa do que eu aprendi, eles não tiveram oportunidade de aprender porque eram mais novos . Então, muitas das coisas eu fico falando, explico pra eles, eles ficam assim, pensativos. A vida que nós viviamos, pela vida que eles tem hoje. Eu tenho um filho de 23 anos, eu conto a passagem da minha vida pra ele, ele fala: “É pai, essa vida do senhor é uma história, dá pra escrever um livro”. Ele para, senta, assunta, pra analisar o que eu falo. Porque hoje, por exemplo, igual eu fui criado no mato, eu entra numa mata aí, eu conheço o nome das árvores todinhas. Todinhas, sabe? Eu chego no cerrado, eu chego o nome das árvores todinhas, sei a fruta que pode comer e a que não pode. Então, isso pra mim, eu tenho orgulho. Eu tenho orgulho de saber, de eu ter aprendido essas coisas, sabe?
P/1 – E esse aprendizado, além do seu pai, da sua mãe, vem mais da onde? De observação?
R – Não, é curiosidade. De vontade mesmo de aprender as coisas. O que eu sou hoje, graças a Deus, é tudo de inteligência e vontade de ser, sabe? Eu fui pouco às aulas, porque primeiro era muuito difícil pra gente estudar, quase não estudei. E hoje, o diploma que eu tenho, que eu posso falar que sou diplomado, de árbitro de futebol. Eu fiz um curso da Federação Goiana, esse eu tenho. Mas não tenho diploma de mais nada, o meu diploma é minha carteira de trabalho, que conta nela o que eu faço, o que eu deixo de fazer, é isso aí. Mas de aula mesmo que eu estudei, o diploma meu é esse, de árbitro de futebol.
P/1 – Desses 13 anos que você passou na fazenda, teve alguma coisa que eu não te perguntei, você tem uma lembrança marcante que você queira dividir com a gente?
R – Tenho.
P/1 – Conta pra gente, então.
R – É a cantiga dos carros. Se você quisesse que o carro cantasse mais grosso, tinha jeito. Se você quisesse que ele cantasse mais fino você arrumava. Então, aquilo ali, tudo isso e tudo mais que a vida da gente hoje, a gente não vê quase canto de carro mais. Os bois. Se os bois fossem andando ligeiro o carro não canta. Quando eles começam a maneirar o carro começa a cantar e eles pegam a batida da cantiga do carro. Isso tudo deixa saudades. Pegar os bois, por a canga nos bois. Tudo deixa saudade.
P/1 – E por toda essa carga foi realmente dolorido sair pra cidade, mas você disse que quando vocês chegaram aqui foram muito bem vindos.
R – Fomos muito bem vindos.
P/1 – Como foi essa recepção? Como foi chegar num lugar tão diferente, ou tão estranho, a vocês?
R – Não. Nós saímos de lá de onde nós viemos, nós não viemos diretamente pra dentro da cidade, nós viemos pra uma chácara que fica a três quilômetros. Começamos a vida de novo, vida da roça. Mas porque aquilo ali já não tava dando, foi bem diferente, já não era como lá e nós resolvemos passar pra dentro da cidade mesmo. Foi onde mudamos, mudou todo o estilo de vida .
P/1 – E que aprendizado trouxe essa mudança toda?
R – Essa mudança, a cultura ficou de lado. Já não existia cultura mais, agora a gente vai resgatando de novo, vai sempre lembrando muitas coisinhas que ficaram. Então, hoje é assim mesmo.
P/1 – Ainda que vocês tivessem tanto trabalho naquela outra vida, tinha uma cultura, uma coisa que vocês tinham muito forte.
R – Tinha muito forte. Você viver com a natureza, levantar cedo, ver os macacos na árvore, na porta da sua casa. Você ver uma cotia ali, um tatu. Você vai pescar, você vê uma paca, uma capivara. Aquilo ali fez parte da vida da gente porque natureza é outra coisa.
P/1 – Então, o convívio com a natureza era muito intenso?
R – Era muito intenso.
P/1 – Que lembranças você tem, por exemplo, da primeira vez, ou algum primeiro contato. Esse nado no rio. Como era tudo isso, essa relação com a natureza?
R – Ahhh, era muito bom. Não tinha rio grande, tinha o ribeirão, mas tinham as cachoeiras. Eram também os lugares da gente brincar, sabe? Juntar os dias santos: “Vamos pra cachoeira tomar banho?” “Vamos”. Aí, nadava, brincava de sacaco, um pegar o outro . Foi muito marcante.
P/1 – E aqui na cidade vocês passam a fazer o quê?
R – Aqui na cidade o meu pai passou a trabalhar de pedreiro e eu, mesmo morando na cidade, não tinha parado de trabalhar na chácara, nas olarias, fazendo telha, tijolo, levantando às três horas da manhã. Até que chegou um pouco que eu falei: “Eu vou trabalhar pra mim, não vou trabalhar pros outros mais”. Foi onde eu fui trabalhar de pedreiro, de eletricista. Sempre fui curioso, aprendi mesmo de vontade de mudar a minha vida. Hoje eu trabalho de pedreiro, carpinteiro, eletricista, sou azulejista, pintor. É a vida, foi essa. O sofrimento me fez mudar .
P/1 – E os outros irmãos, seguiram o mesmo caminho? Você falou que os irmãos mais novos não são tão parecidos, como foi?
R – Seguiram. Eu tenho um irmão mais novo que fez dois anos que ele faleceu, era o caçula dos homens, ele também seguiu o mesmo exemplo meu, pedreiro. Agora eu tenho um outro irmão, esse aí já trabalha no Estado, já tá com 30 anos de trabalho. Eu tenho um outro que trabalha na prefeitura, aqui na cidade. Tenho uma outra irmã aqui também que ela trabalha assim, ela é doméstica, sabe? Trabalha pra um, pra outro. E tenho uma irmã também que já tem 30 anos que ela mora em Brasília, ela é gerente de uma loja lá. Então, a vida nossa foi essa.
P/1 – O senhor comentou que já tem filhos. Como o senhor conheçou a sua mulher, ou a sua primeira mulher?
R – Na fazenda .
P/1 – Ahhh, então, vamos voltar.
R – No baile de roça .
P/1 – Como é que foi isso?
R – Ela tinha 11 anos e eu tinha 17 quando nós começamos a namorar. Nessa época eu já morava aqui, mas trabalhava lá nessa fazenda. Aí, começamos a gostar um do outro, mas de menor de um lado, de menor do outro, namorando sempre mais escondido , até que chegou a idade e nós casamos. Tivemos quatro filhos, perdemos dois e tenho um casal, tenho um filho de 23 anos e uma menina de 21.
P/1 – E qual o nome dos seus filhos?
R – Chamam Uender e Uedna.
P/1 – E como foi todo esse tempo até casar, como é que é esse namoro escondido?
R – Olha, sempre na roça tem os passeios de vizinhos, a hora que ia passear na estrada era a hora do namoror .
P/1 – Até que o senhor se casou.
R – Até que eu casei.
P/1 – E como foi esse casamento, o que o senhor lembra dele?
R – Olha, esse casamento, eu acho que eu acho que eu tinha que passar por isso mesmo. Eu comecei a namorar ela tinha 11 anos, a gente ficou noivo, acabou com o casamento. Depois eu cheguei a pensar, eu não vou casar mais . Não vou. Com pouco ela entra no meu caminho de novo e a gente casou, sabe? E eu vivi 22 anos de casado. Mas sei lá, não sei se porque a família foi criada na roça, não teve estudo, nem nada, mas não deu certo, não. Aí, veio a separação, não teve jeito. Separei, e tenho orgulho de mim porque criei meus filhos todos, deixei eles criados. Quando eu saí de casa eles já não estavam dependendo de mim.
P/1 – E do casamento? Tinha festa, como é que era?
R – Tinha, sempre tem. Quando casa de manhã, às vezes tem almoço, se casa à tarde tem uma janta, tem o baile. O meu mesmo teve uns forrós, sabe? .
P/1 – E como foi ser pai pela primeira vez?
R – Olha, ser pai pela primeira vez é o motivo de onde eu falo que eu procurei trabalhar pra eu mesmo pra ficar mais em casa. Porque quando nasceu o meu primeiro filho eu estava trabalhando em Niquelândia, eu não acompanhei o nascimento do meu filho. Quando eu cheguei já tinha nascido, mas como tinha o meu pai aí, ele acompanhou tudo pra mim, deixei as coisas tudo no jeito, foi só levar pro hospital. Os meus filhos já foram todos ganhados no hospital, já não foi com parteira.
P/1 – E o senhor estava fazendo o que em Niquelândia?
R – Nessa época eu fui lá fazer um teste, foi a primeira vez que eu assinei a minha carteira de trabalho, de pedreiro. Fui lá fazer um teste em uma firma lá, na Encol, ela tava construindo lá um conjunto pra Codemia. Codemia é uma firma lá de níquel. Aí, eu fui lá fazer o teste e não teve jeito de eu vir, eu tive que completar os 30 primeiros dias pra poder vir, foi quando eu cheguei e meu filho já tinha nascido .
P/1 – E esse foi o primeiro trabalho de carteira assinada?
R – Não, de pedreiro. Esse foi o primeiro.
P/1 – O senhor comentou que quando vocês chegaram na cidade vocês tiraram documento pela primeira vez. Vocês não tinham documento?
R – Isso foi uma história que vou te contar, viu? Como eu era mais velho, eu peguei, chamei meus irmãos. Fui lá no cartório, fiz o meu registro e fiz o dos outros irmãos mais velhos . Depois quando chegou a idade dos mais novos já foi meu pai que fez. Tudo foi uma passagem, não porque meu pai descuidava de nós, mas porque nós morávamos na roça, era muito difícil, e tinha que pagar e não tinha condições pra pagar. Completamos a idade, eu fiz o meu e dos meus irmãos.
P/1 – E como o senhor ficou sabendo que tinha que tirar o documento e o senhor levou todos os irmãos?
R – Porque a gente vê nos outros, por exemplo, completou 18 anos e já não é de menor mais. E a vontade de ser homem , ser de maior logo, de por o documento no bolso, né . Aí, já fui, já fizemos o registro, a identidade, foi tudo de uma vez. Aí, eu virei brasileiro .
P/1 – E a casa que o senhor vivia aqui na cidade com os irmãos, como é que era essa casa?
R – Essa casa era alugada, hoje ela é um ponto de comércio.
P/1 – Mas ela ainda existe.
R – Existe.
P/1 – E tem a mesma cara de antes?
R – Não, mudou tudo. Hoje, se a gente passar lá e não prestar atenção a gente nem sabe que é ela, mudou tudo.
P/1 – Mas como ela era quando vocês moravam lá?
R – Olha, quando a gente morava lá, ela era uma casinha de quatro cômodos, não existia banheiro. Existia privada, pra banhar a gente banhava nas torneiras . Não existia asfalto, era chão. Hoje tá tudo mudado. Eu tenho a lembrança na memória, mas se chegar lá, eu por exemplo, que sei, falo qual que é, mas meus irmãos mais novos não sabem, por causa da mudança que teve.
P/1 – E como é que foi ver ela ao longo do tempo, ver chegar asfalto, ver chegar todas essas mudanças?
R – Olha, essas mudanças, por um lado ela veio boa e por outro lado acho que não veio boa, não. Porque foi prensando a população, inclusive eu morava no centro e eu fui obrigado a comprar um chão lá no Bonfim onde eu estou, quase não existia ninguém . Foi onde eu saí do centro pra morar na ponta de rua, mas sou feliz, graças a Deus. Sou.
P/1 – E como é que foi essa saída do centro? Vocês tiveram que sair? Como era isso?
R – Eu casei, tive que sair. Teve mais um irmão meu que casou e saiu, minha mãe já tinha falecido, e ficou meu pai, um irmão e duas irmãs minhas. Aí, teve que sair também porque o trem vai aumentando e a gente que é pobre, chega um ponto que a gente não tem condição de viver naquele ambiente, sabe? Aí, mudou e logo meu irmão comprou uma casinha também e eles foram morar na casinha deles. Cada um de nós, graças a Deus, tem o nosso ponto de morar.
P/1- Lá em Bonfins o senhor tem a sua casinha também?
R – Tenho.
P/1 – E como é que foi comprar esse terreno, você construiu a casa?
R – Primeiro era fácil comprar, sabe? Porque as coisas não tinham valor, eram baratinhas. Se a gente tivesse um rádio velho a gente trocava por um terreno . Se tivesse uma radiola a gente punha no negócio. Eu comprei a dinheiro, na época eu já tava trabalhando de pedreiro, ganhava um dinheirinho a mais, aí, a pessoa que vendeu pra mim deu condição e eu fui pagando mensalmente, onde eu tenho meu pedaço de chão. Só que o barraquinho que eu tenho não é qualquer um que tem, não. Ele é de adobe . Hoje quem tem uma casa de adobe tem orgulho Luciana? .
P/1- E foi o senhor que construiu a sua casa?
R – Fui eu que construi.
P/1 – E como é que foi construir cada tijolo?
R – A gente construir pra gente é a melhor coisa que tem, é uma alegria, sabe? A gente saber que aquilo é da gente. A gente faz do jeito que a gente quer. Pra mim foi uma coisa que marcou na minha vida, eu fazer pra mim do jeito que eu queria, que jeito que eu ia viver lá dentro.
P/1 – Nessa época o senhor ainda não tinha o primeiro filho?
R – Não tinha.
P/1 – Ele nasceu depois.
R – Foi depois.
P/1 – E depois que o seu filho nasceu que o senhor decidiu trabalhar pra você mesmo?
R – Foi.
P/1 – E como é que foi trabalhar pra si mesmo?
R – Esse trabalho pra mim, vou te contar. Eu não tinha praça de serviço como os mais velhos, que o povo só procurava eles pra trabalharem. Quando foi um dia um cara chegou em mim e falou pra mim: “Lourival, você não sabe fazer casa, não?”. Eu falei: “Eu sei, uai” “Eu vou empreitar uma casa pra você fazer”. Combinei com ele de fazer a casa pra ele morar, só que não era cerâmica, era cimento queimado. Aí, eu peguei, fiz essa casa pra ele, pintei ele, pintei porta, fiz o cimento queimado todinho. Na hora que o povo viu aquela casa e eu trabalhando e a casa ficou pronta, aí, não dei conta mais do serviço que apareceu pra mim. Esse serviço, quanto mais você vai fazendo, mais você vai aprendendo. Então, com o tempo a gente vai aprendendo.
P/1 – Seu Lourival, pra retomar. O senhor estava contando da primeira casa que o senhor construiu pra um empreiteiro, e o senhor começou a construir muitas casas. Eu queria saber qual é a diferença dessa sua casa, como é que era o seu serviço, o que ele tinha de diferente dos outros?
R – Ele não tinha diferença, a única diferença é que toda vida eu gostei do meu trabalho bem feito, sabe? Então, eu fazia os acabamentos bem acabadinhos e aquilo chamou a atenção, e foi onde eu fui muito procurado pra fazer esse tipo de serviço.
P/1 – Vou voltar um pouquinho. Durante a troca de fita o senhor comentou sobre o multirão das mulheres. Eu queria que o senhor contasse um pouco essa distinção dos multirões de homens e de mulheres, como era isso?
R – O multirão de mulher é porque antigamente era muito difícil comprar roupa, era mais roupa de algodão produzido nas fazendas mesmo. Então, plantava algodão, colhia, e fazia o multirão pra fiar a linha e levar pro tear pra tecer. Ali existiam aquelas mulheres, eu mesmo trabalhei no meio das mulheres, não são só elas, não. A gente punha o algodão no descaroçador, saía só o algodão do lado e a semente ficava do outro. Um ia pondo, tocando aquilo e o outro tocando do outro lado e pegando o algodão. Ali já tinham as pessoas, a calda pra desembaraçar o algodão, o outro já ia, fiava no fuso. O fuso, pra quem não sabe, é uma rodinha redonda na ponta com uma varinha, sabe? Ali vai fiando, vai rodeando, vai espichando a linha. Eu mesmo já fiei muito. O pedaço da ponta enrola ali, começa de novo. E na roda. Na rodas de pé. Ali, quando era de tarde tinha muita linha fiada. E as mulheres trabalhando, cantando, coisa que a gente não vê mais também.
P/1 – E vocês tinham uma vida coletiva muito intensa na fazenda. E aqui na cidade como era o convívio com os vizinhos, com comunidade? Era muito diferente
R – Era diferente. Porque aqui na cidade cada um vai olhar pra si. A gente sempre respeita o direito dos outros, os outros respeitam da gente, mas não tem aquela união como existia. De primeiro o povo era mais amoroso com o outro, tinha mais amor, trazia mais solidariedade pro outro. Hoje aqui na cidade é tão diferente, porque se um tá doente, nem visita o povo vai lá fazer. Morre, pessoal vai lá no velório, dá uma olhada e vai embora. Na roça, quando uma pessoa adoecia, a pessoa ia fazer a visita pra ele, às vezes acontecia de passar a noite, aquela pessoa passando mal e o povo visitando. Morria, passava a noite com aquele cadáver, no outro dia carregava o cadáver até o cemitério, que existia o cemitério na roça também, sabe? Depois que enterrava, voltava todo mundo na casa dele pra consolar a viúva ou o viúvo e poder ir embora. Hoje a gente só vê desumanidade.
P/1 – Mesmo depois da mudança pro Bonfins? Ou o senhor começou a cativar alguns amigos, ter uma comunidade mais reunida, como foi isso?
R – Teve. Fiz muito amigo, até hoje somos amigos. Através da bola , nós jogávamos bola quase todo dia, à tarde, à noite, aquilo vai trazendo mais amizade.
P/1 – E o senhor cometou que chegou até a se diplomar árbitro.
R – Diplomei.
P/1 – E o senhor sempre era o árbitro, como era?
R – Olha, árbitro eu sou até hoje, mas só porque a idade não ajuda mais, mas é bom. O que me levou a ser árbitro é porque toda vida eu gostei de esporte, sabe? Eu peguei e falei assim: “Vai chegar um ponto que eu não vou dar conta de jogar mais, mas eu tenho que estar junto”. Foi onde eu fiz esse curso e inclusive estou trabalhando no campeonato da cidade aqui.
P/1 – E como é esse curso de árbitro, onde é que foi feito?
R – Foi feito aqui mesmo. Veio um cara da Federação Goiana de Futebol, ele veio pra dar aula pra nós, deu a aula. No dia do diploma foi feito aqui mesmo, o presidente da Federação Goiana de Arbitragem veio, assinou o nosso diploma. Isso eu tenho como uma honra pra mim, sabe? .
P/1 – Então, vamos voltar um pouquinho pra construção das casas, onde a gente tava. Depois que o senhor construiu essa casa que ficou muito conhecida pelo visto, o senhor começou a ter muito serviço.
R – Muito serviço.
P/1 – E depois nasce a sua filha?
R – Nasceu minha filha.
P/1 – A sua filha você viu nascer.
R – Vi. A minha filha eu já tava presente .
P/1 – E como é que foi?
R – Olha, foi uma história, eu vou contar pra vocês. Meu primeiro filho é homem, depois vieram dois homens também e perdi. Aí, a mulher engravidou de novo e eu falei: Esse agora nós vamos ter que operar, não pode ter mais filho, não. Foi um projeto de vida que tivemos pra não termos filho e não dar conta de cuidar. A única diferença é que eu estava esperando homem e veio mulher, e foi uma alegria pra mim, de ter um casal. Pra mim foi muito bom, muito importante.
P/1 – E foi você que levou a sua mulher pro hospital?
R – Fui eu que levei.
P/1 – Como é que foi a surpresa quando...
R – A surpresa foi uma coisa que eu não tava esperando, não. Só que da hora que veio pra mim foi uma alegria, uma coisa do outro mundo . Foi muito bom!
P/1 – Então, o senhor não sabia que era mulher, ficou sabendo na hora do parto.
R – Na hora do parto, porque não existia esse ultrassom como existe hoje. A gente conhecia pela mulher, mas nesse tempo não tinha sentido nada, porque sempre a gravidez do homem é de um jeito e de menina mulher é outra, é diferente.
P/1 – E a sua filha nasceu, vocês voltaram pra casa, como é que foi daí em diante? Os dois filhos, o convívio.
R – Foi bem, foi bem. Foi uma vida saudável.
P/1 – E da sua infância pra infância dos seus filhos, quais diferenças você vê?
R – Ih, tem muita diferença, nossa. A diferença que tem é que eles não tem o lazer que eu tive na fazenda, porque todo lugar que eu ia era lazer pra mim, nas cachoeiras tomar banho, pescar, ir prum campo de bola jogar bola com os amigos, andar pelo mato, apanhar fruta no mato. Andar no cerrado, pegar caju, gabiroba, pequi. Então, eles não tem isso, eles não sabem nada disso porque vem pra cidade e a gente não tem a oportunidade de sair, passear nas matas, no cerrado, pra gente explicar pra eles. E outra, a influência deles não é como a nossa. Eles já cresceram em um outro padrão de vida. Foram criados diferente.
P/1 – E em casa foi mais fácil essa vida, apesar de não ter esse lazer, essa natureza, foi mais difícil? Como era o cotidiano?
R – Não. Só fez falta o lazer e a cultura que a gente vivia, mas a vida continuou a mesma, foi diferente mas...
P/1 – Depois o senhor se separou da sua mulher, o senhor foi morar em outra casa, o senhor saiu de lá? Mas o senhor nunca perdeu contato com os seus filhos.
R – Não, não. Eu moro sozinho hoje, mas todos os dias eu tenho contato com os meus filhos, minha netinha. Às vezes quando eu não vou lá, eles vão na minha casa, quando não vai a gente liga pra ver como é que tá.
P/1 – E como é que foi esse começo de vida nova, morar sozinho agora?
R – Olha, é uma coisa que a gente é obrigado. Pra mim não teve diferença, só que às vezes alguma coisa muda na vida da gente. Mas eu sempre fui um cara guerreiro, eu me considero guerreiro, de eu aprender a trabalhar. Eu sei fazer comida, eu sei lavar e passar roupa, eu faço um bolo, biscoito, eu faço um sabão. Então , mulher não fez falta pra mim.
P/1 – E o senhor continuava trabalhando como pedreiro nessa época ou já não trabalhava mais?
R – Trabalhava. Trabalhava como pedreiro.
P/1 – E durante muito tempo o senhor continuou?
R – Muito tempo, eu continuei trabalhando de pedreiro a mesma coisa.
P/1 – E com a idade o senhor parou de trabalhar como pedreiro, como é que foi?
R – Eu não parei de trabalhar de pedreiro, eu arrumei um serviço de olhar uma chácara aqui. Falo chácara porque é dentro da cidade, mas é como uma chácara, são 22 lotes. É um médico de Brasília, pessoa muito boa. Eu já não tava mais na idade de assinar carteira, ele assinou minha carteira. Tá com seis anos que eu estou com ele. Eu estou fazendo uns tratamentos e estou encostado desde o mês de dezembro, não estou trabalhando por esse motivo.
P/1 – O senhor falou do seu neto, que o senhor já tem até um neto.
R – Tenho uma neta.
P/1 – E como é que foi ser avô?
R – Olha, vou falar pra você, ser avô é melhor do que ter filho, muito melhor. Parece que o jeito deles tratarem a gente é diferente, é muito bom ter neto. Pra mim parece que é uma coisa que veio de Deus pra mim, sabe? . Eu posso estar deprimido às vezes, pensando em alguma coisa assim, sabe? Sabe como eu vou fazer aquilo, aquilo outro. A hora que eu vejo ela as coisas mudam. É bom demais.
P/1 – E você tenta ensinar quase tudo o que você sabe pros seus filhos?
R – Tem que ensinar. O jeito de viver, educação, o jeito de tratar os outros. Tudo isso eu passo pra eles.
P/1 – E qual a importância desses ensinamentos? Por que o senhor considera importante ensinar isso?
R – Olha, eu considerei os outros, respeitei os outros, porque acho que é dando que se recebe. Então, é onde eu passo pra eles respeitar e considerar. As vezes tem uma pessoa que é amiga, tem que preservar aquela amizade, respeitar. Tanto faz, não só amigo, mas qualquer um. O respeito cabe em qualquer lugar, porque eu mesmo, tem horas que a pessoa fala uma coisa que não agrada a gente, eu deixo pra lá, entra em um ouvido e sai pelo outro. Pra mim tudo isso é preservação. O que eu sei eu passo pra eles, e graças a Deus, até hoje vai bem.
P/1 – E o senhor trabalha hoje em um projeto cultural. Como é que foi entrar nesse projeto? Conta um pouco pra gente o que é o projeto.
R – Olha, esse projeto, eu vou contar como foi o início. Por ser tão conhecido, tão amigo, eu tirei a folia aqui da cidade várias e várias vezes, eu já fui presidente de bairro. Porque a folia, quando não quer tirar mais, passa pra outro. Inclusive, foi num pouso de folia que a gente tava que a gente conheceu Doraína, a Luciana. Você lembra Luciana do primeiro pouso lá no Duti, que a gente se viu? Aí, a gente virou amigo, eu sempre coordenei a catira. Nesse pouso lá eles gostam de catira, dançou a catira com nós. E de lá pra cá nós viramos amigos. Sempre assim, tem um pouso a gente convidava o outro, eu convidava e elas vão, dançam a catira. Foi onde, não sei, acho que me atraiu pro projeto delas. . Por a gente ser amigo e ter conhecimento, então, nós somos amigos e hoje é onde me levou a ajudar elas a levar aquilo do conhecimento meu. Porque eu entrei para eu aprender e ensinar.
P/1 – O senhor comentou agora sobre a folia. Conta pra gente o que era a folia, pra quem não conhece? Como é a folia, qual era a sua função dentro da folia?
R – A folia é o seguinte. Existe o alfere que é o que tira a folia, e através do alfere vem o regente, vem o procurador. Então, tirar a folia, o alfere carrega as bandeiras, tem os músicos. Ali a gente sai cantando de casa em casa e pedindo esmola. Essa esmola arrecadada vai pro festeiro pra ajudar a fazer a Festa do Divino que todo ano tem, que o povo chama de Festa das Cavalhadas. Fora daqui o povo fala Festa das Cavalhadas. Então, eu nunca deixei de contribuir com aquilo que eu sei. Eu era alfere, hoje eu sou regente. O regente é aquele que condena. Por exemplo, vai cantar aqui, às vezes está faltando um instrumento: “Ô Fulano, vem cá!” “Ô Fulano, você tá errado, não pode fazer isso, não”. Não deixa ter baderna. A gente é tipo de uma autoridade, é isso aí.
P/1 – E a catira?
R – Catira é uma coisa boa demais . Não é, Luciana? Catira é muito bom! Catira, a gente chega nos pousos de folia, primeiro a gente canta na chegada, aí, janta, reza. Depois que reza começa a catira. Enquanto o povo quiser dançar catira vai dançando, a hora que cansar e não quiser dançar mais, para. Se o dono quiser por o forró, ele põe, aí já é por conta dele, porque os convidados são deles. Nós foliões, depois que entregamos a folia e fizemos a nossa parte que é a catira, a maioria vai embora descansar pra voltar no outro dia, porque às cinco horas começa de novo, tem a alvorada e já começa a batalha. Aí, almoça e vai na luta de novo, até chegar no outro pouso .
P/1 – E o senhor cometou que entrou nesse projeto pra ensinar e pra aprender. E o que o senhor aprendeu?
R – O que eu aprendi. Por exemplo, eu não sabia que tinha, essas grioulas que tinham lá, eu não sabia que elas praticavam o que elas praticam. Então, a gente vai aprendendo com elas muitas coisas do passado. Por exemplo, como a reza mesmo, porque cada um reza um tomo, a gente vai aprendendo, e vai também ensinando. Nós somos como uma família, nós nos reunimos, discutimos as coisas. Se um vê que não tá certo diz: “Olha, vamos fazer desse jeito, vai dar mais certo”. A gente é uma família unida.
P/1 – A gente tá caminhando pro final da entrevista, e eu vejo pela sua trajetória de vida que, apesar de todas as dificuldades o senhor sempre superou.
R – Sempre superei, nunca deixei a tristeza tomar conta de mim, nunca deixei, sempre joguei ela fora .
P/1 – Eu queria que o senhor fizesse uma análise da sua trajetória, acho que o senhor tem uma opinião muito formada sobre sua vida, como é que foi, sobre tudo o que o senhor passou.
R – De tudo o que eu passei?
P/1 – É, da sua trajetória de vida.
R – Olha, a minha trajetória de vida tem altos e baixos, inclusive a gente foi de família pobre, às vezes a gente comia só feijão com mandioca, outro dia comia só mandioca. Tudo fez parte da minha vida. Então, eu acho que eu fui vencedor, porque pelo que eu passei e o que eu vivo hoje, eu saí da água pro vinho. Não da cultura, mas o tom de viver, do conforto. Mas se eu tivesse na fazenda que eu tava, eu tenho certeza que eu estaria bem melhor.
P/1 – E tem alguma coisa que eu não te perguntei e que o senhor gostaria de falar?
R – Não, no momento agora não estou recordando, não. Por exemplo, a tristeza, como eu falei da vida da gente de altos e baixos. É assim, a gente perde uma pessoa querida na vida da gente, como eu perdi minha mãe, perdi meu pai. A gente fica meio sem firmar o pensamento por um tempo, mas depois chega uma hora que a gente tem que ver que a vida tem que continuar, aquilo não vai voltar mais mesmo, não é só pra mim que vem umas coisas dessas, vai pra todo mundo. Então, é isso. Eu sempre supero as dificuldades.
P/1 – Legal. E como é que foi dar esse depoimento agora?
R – Foi bom, é uma coisa que eu acho que quanto mais a gente tenha coisas pra gente falar, mais a gente vai resgatando as coisas. Porque eu mesmo nunca tinha dado uma entrevista dessa sobre a minha vida, é a primeira vez. Pra mim, que fui criado na roça, como eu era, chegava na roça pra derrubar pau a machadada, plantar, capinar, nunca pensei que aquela vida minha fosse chegar a um ponto que fosse ser passada pros outros. Nunca pensei nisso. Então, pra mim é muito importante. Só acho ruim não ter as pessoas pra seguir o exemplo, não ter mais onde seguir o que a gente passou, o que a gente viveu. Mas mesmo assim eu sou feliz .
P/1 – Quero te agradecer, seu Lourival, muito obrigado pela entrevista!
R – De nada! Eu que agradeço pela oportunidade, e se precisar de mim, eu to sempre disponível. Às vezes assim, a gente tem um grupo de catira mesmo, a gente faz apresentação, se alguma dia vocês precisarem de nós, podem ligar que a gente vai onde vocês estiverem. É uma cultura que nós apresentamos.
P/1 – Tá ótimo. Obrigado, seu Lourival.
R – Reza. Não sei se você é católico.
P/1 – Praticante? Não.
R – Rezar pra eles Luciana? . Pois é, eu lhe agradeço, pra mim foi uma satisfação, foi muito bom.
P/1 – A gente que agradece de verdade, seu Lourival.
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