Programa Conte Sua História
Depoimento de Margarida Bulhões Pedreira Genevois _ PT1
Entrevistada por Rosana Miziara e Sônia London
São Paulo, 12/03/2019
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Margarida, você pode falar o seu nome completo?
R – Margarida Bulhões Pedreira Genevois. Bulhões Pedreira é de solteira e Genevois é o nome do meu marido.
P/1 – Qual a data e o local do seu nascimento?
R – Eu nasci no Rio de Janeiro, aliás, toda a família do meu pai era do Rio. Em dez de março de 1923.
P/1 – Seus pais são do Rio de Janeiro - seu pai e sua mãe?
R – A família do meu pai era do Rio, desde os fundadores do Rio, em 1530. Eu sei porque tem uma estátua lá em frente à Baía de Botafogo, que tem o nome do ancestral que chegou naquela época; e aí, eles fundaram a cidade em 1530. Mas a família da minha mãe é do Maranhão. Naquela época, no século XIX, as pessoas do interior que queriam fazer curso superior, em geral, iam para o Rio, não é? Que era o Centro, onde tinha Faculdades, porque lá em São Luiz não tinha Faculdades. Era Costa Rodrigues a família da minha mãe. Ela nasceu lá, mas com dois anos já foi para o Rio. E aí, se conheceram e ficaram lá, não é? Era muito comum, as pessoas vinham do interior e se fixavam… Acabavam se fixando no Rio, não é?
P/1 – Como é o nome da sua mãe?
R – Carmem Costa Rodrigues.
P/1 – E o seu avô fazia o quê? O pai dela.
R – O meu avô materno era advogado, ele era desembargador. Aliás, o meu avô paterno também, eram todos da área jurídica. Os meus tios, tanto de um lado, quanto de outro, eram todos advogados. Tinha um que, como exceção, era médico. Mas a maioria era advogado. Eu fui criada muito nesse meio, em que Direito era uma coisa sagrada, não é? Justiça. Eu acho que hoje em dia não se fala muito nisso não, não é? Mas era assim, uma coisa… Fazia parte intrínseca da gente esse respeito ao outro, respeito alheio, à democracia, enfim. Quando eu vejo hoje em dia, aqueles valores mudaram bastante, não é? Mas foi interessante que nunca passou pela cabeça fazer outra coisa que não fosse Direito, não é?
P/1 – A sua mãe foi para o Rio de Janeiro quando ela tinha dois anos?
R – É.
P/1 – Mas o pai dela veio a trabalho?
R – Ele era do Maranhão, ele era também… Fazia política, foi senador, tanto que quando eu estive em São Luiz, que eu fui há alguns anos atrás, eu fui ver a rua com o nome dele, é rua Senador Costa Rodrigues. E o interessante é que parece que é a rua mais comprida de São Luiz. Eu até fotografei, Senador Costa Rodrigues. Mas além disso, pouco eu sei dele, sabe? Porque ele nunca veio para o Rio.
P/1 – Você chegou a conviver com ele?
R – Não, não conheci.
P/1 – Não conheceu?
R – Não.
P/1 – E a sua avó, mulher dele, a mãe da sua mãe?
R – Não, também não conheci. Só a primeira geração acima.
P/1 – E a sua mãe fez Faculdade de quê? A sua mãe foi fazer Faculdade no Rio?
R – Não, a mamãe não fez Faculdade.
P/1 – Não fez Faculdade?
R – Não. Naquela época, havia um certo preconceito, eu me lembro. Moça de família não era bom frequentar Faculdade, sabe? Acho que tinha muitos rapazes, era assim meio… Os hábitos livres eram mal vistos quase, uma coisa absurda, não é? Tanto que quando eu acabei o… Eu fiz o colégio francês, o Sacre Coeur, no Rio, eram freiras só francesas, eu fui alfabetizada em Francês e fiz o primário lá. Depois, quando chegou a hora de fazer o Ginásio, o Colégio… Essas coisas absurdas, eu acho interessante para a gente entender a época. Colégio, achavam que era bobagem ser oficial: “Para quê? Vocês são de famílias classe média, classe alta, não precisam trabalhar. Então, para quê? Não precisam de diploma oficial”. Mas mamãe, que era uma pessoa mais esclarecida, ela disse: “Não, hoje a gente não precisa, mas amanhã pode precisar”. Então ela me mudou de colégio e eu fui para o Sion. O Sion eram freiras mais brasileiras e, enfim, mais arejadas - era conhecido como tal. Então eu fui para o Sion e fiz o Ginásio lá. Na época, era o Ginásio e me dei muito melhor também, sabe? Porque era uma mentalidade bem diferente. A gente olha para trás e acha engraçado, não é? Porque, afinal, não fazia muita diferença de nível social, não é? Mas para vocês terem uma ideia, a Bibi Ferreira, que era mais ou menos da minha idade - acho que ela é da minha idade - ela quis entrar no colégio e as freiras não aceitaram, porque era uma moça de teatro. Teatro era um meio muito estranho, muito livre para a família… Para moça de família. Você vê que absurdo. Mas tinha essas coisas que definem a época. Eu sei que não aceitaram a Bibi como aluna. Mas depois isso mudou, felizmente.
P/1 – Margarida, e seu pai, o que ele fazia?
R – Papai era advogado. Era advogado criminalista. Era considerado um grande advogado, aliás, tem estátua dele no Tribunal de Júri. Ele, realmente, era um orador assim, excepcional, e eles eram chamados ‘a patotinha do Rio’, sabe? Enfim, eu tinha muita admiração pelo meu pai. Ele era especial. Infelizmente, morreu muito cedo, então não deu para se desenvolver.
P/1 – Quando eles casaram, você sabe onde eles moravam? Foi a casa onde você nasceu?
R – Não. Assim... Dessa época de infância…
P/1 – Em que bairro que você passou a sua infância? Por quais bairros você passou lá no Rio?
R – Copacabana, Tijuca, que era o bairro que era, enfim, mais cotado na época, não é? Tijuca, depois Copacabana e depois que abriram o túnel, não é? E depois, a minha infância eu passei em Botafogo, na rua Macedo Sobrinho. Aliás, o Antônio Cândido, sabe que eu me dava muito? Ele conhecia bem o Rio; ele, mais de uma vez, me disse: “Passei na Macedo Sobrinho”. Ele tinha uma memória incrível, não é? Eu tinha dito a ele que tinha vivido lá e ele disse: “Passei na sua rua, está diferente” (risos). Esses detalhezinhos, não é? Realmente, hoje o Rio é outra coisa, em relação ao que era.
P/1 – Era em casa que você morava lá?
R – Era.
P/1 – Você lembra como é que era essa casa?
R – A casa... Uma casa antiga, bem estilo antigo, aquele pé direito alto, as peças grandes, mas não era uma casa enorme, não. Era uma casa normal, com três quartos e o jardim era mais ou menos pequeno, mas tinha muita samambaia, cheio de samambaia, aquelas imensas, que agora a gente não vê muito, não é? Parece que saíram de moda. Mas eu ia de lá, da Macedo Sobrinho, eu tinha que tomar duas conduções para ir ao Sion, que era nas Laranjeiras. Mas não era longe, a gente fazia normal. E eu fiz todo o Ginásio, que eram cinco anos na época. No Sion. E gostava muito, sabe, do Sion. Eu acho que era… Eu aprendi muito lá (risos).
P/1 – Vocês eram quantos irmãos?
R – Nós éramos três. Dois irmãos, os dois eram advogados…
P/1 – Quem são os mais velhos, como é que era?
R – São mais moços e eu era a mais velha.
P/1 – Você é a mais velha e aí, depois de você?
R – Depois tinha o Zé Luiz, que também era advogado - mais essa parte com nomes - os dois faleceram. O outro, João Carlos, também era advogado. E todos no Rio, não é? E tenho os primos também, a maioria advogados.
P/1 – E você brincava com os seus irmãos? Como é que era? Com quem você brincava na infância?
R – Olha, o pessoal dizia que eu era muito mandona, sabe? E eu acho que era mesmo (risos). Mas, enfim, não se queixava disso. Como eu era a única mulher, sabe, tinha os meus irmãos e os primos, eles eram educados para serem gentis com mulher, não é? Aquela história de que em mulher não se bate nem com uma flor, não é? Na época, isso ficou ali. Agora, parece que está bem diferente. Então, eu me dava bem, sabe? Quando eles ficaram mais fortes do que eu e podiam se impor, aí eu passei a reivindicar: “Sou mulher, vocês não podem fazer isso” (risos). Enfim, quando crescemos a coisa mudou, não é?
Tem muita diferença de idade?
R – Pouca diferença, dois anos. É pouco, não é? Mas sempre faz diferença quando são pequenos. Mas foi bom. Eu acho uma infância numa cidade normal, não é?
P/1 – Você lembra das suas brincadeiras de infância?
R – Olha, eu me lembro de uma casinha que nós fizemos… Tinha uma árvore - eu .;acho que era mangueira - no jardim, nós resolvemos fazer uma casa de caixote, porque naquela época as compras de armazém vinham em caixotes, mais ou menos grandes. E aí, a gente pôs a casa em cima do galho da mangueira. Nós mesmos que construímos. E era uma delicia aquilo. Acabamos brigando, ai destruímos a casa, mas eu me lembro da casa na mangueira. E eu jogava futebol com os meninos, porque só eu de mulher, então eu ficava no gol com uma vassoura (risos), porque era mais… Enfim, não tinha mesmo jeito para aquilo. Depois de um certo tempo, larguei, mas eu me lembro... E eu no gol… A garagem era o gol, não é? E eu ficava ali na frente, com uma vassoura, aquela de piaçava, sabe? Mas não durou muito não, porque logo eles ficaram mais fortes do que eu, aí eu desisti. Foi uma infância, adolescência normais, não é?
P/1 – Como é que eram os costumes na sua casa? Quem exercia a autoridade? Seu pai, sua mãe?
R – Eles se entendiam bem, não havia esse problema. Sempre as coisas normais, do dia a dia. Papai trabalhava muito, mamãe era a dona de casa, ótima dona de casa, caprichosa e, enfim, naquela época se exigia, e a gente, como todo mundo, eu tinha empregadas, nós tínhamos até um garçom que eu me lembro que é engraçado, servia de roupa de garçom, com aquele paletó branco, calça preta; não tinha todo dia no almoço e jantar, era só para as visitas. Mamãe era muito exigente nos protocolos sociais. Mas mamãe gostava muito de receber. Aliás, eu herdei, também adoro receber os amigos. Eu acho que é muito mais agradável a gente conversar em casa do que numa mesa de restaurante, não é? Tem barulho, tem dispersão, não fica tão próximo. Tanto que eu sempre recebi muito. Na Justiça e Paz, eu convidava os amigos e fiquei muito mais próxima e amiga do que se tivesse tido uma relação só no exterior. Eu acho que isso é importante. Até hoje, eu… A gente não faz como antigamente, mas eu acho importante. Também você escolhe mais, não é? Eu acho que só convida para casa pessoas das quais você gosta, tem afinidade, não é? Enfim, mas isso é outra história (risos).
P/1 – Como você descreveria o seu pai? Como ele era em casa? O jeito dele?
R – Meu pai era um homem brilhante, sabe? Ele tinha uma inteligência fora do comum, eu tinha muito orgulho dele, sabe? Ele era muito admirado pelos colegas, pelas pessoas. Ele tinha um vozeirão, numa sala grande, cheia de gente, logo se sabia onde ele estava, porque a voz dele era diferente, sabe? Era, realmente, uma… A gente distinguia de longe. Ele era uma pessoa alegre, muito positiva, assim, muito otimista, não é? Mamãe já era mais… Não digo pessimista, mas via mais as coisas do lado que podia ser negativo, não é? Mas, enfim, davam certo. Foi pena que papai morreu muito cedo, com cinquenta e dois anos. É cedo, não é? Naquela época, eu considerava ele mais velho, mas eu olho para trás e digo: “Cinquenta e dois anos é mocíssimo hoje em dia”, não é? Mas foi assim…
P/2 – E aí, como foi a vida de vocês sem ele, depois que ele morreu? Você ainda morava com eles?
R – Eu já tinha me casado. Eu me casei uns dois anos antes. Então, não mudou muito não, sabe? Só ficou diferente porque ele, realmente, fez muita falta pelo bom humor e astral em geral. Mas minha mãe era mais introvertida, sabe, muito séria assim nas coisas. ____00:16:56____, mesmo, sabe? Mas ela também foi muito… Já tinha uma visão social, sabe? Ela, depois que o papai morreu, ela ficou... Quase que desmoronou. Aí, foi trabalhar como voluntária da Santa Casa. Naquela época, todo mundo que tinha tempo trabalhava como voluntária. Agora, parece que acabou o voluntário. E ela foi para a Santa Casa e ficou impressionadíssima lá, porque ela lidava na maternidade e as moças que apareciam lá eram mães solteiras, não tinham… Em geral, gente pobre na Santa Casa, e ela ficou impressionada porque as moças tinham bebê e iam para a rua, literalmente, para a rua. Porque, naquela época, era uma vergonha horrorosa você ter filhos sem ter casado. Então, os pais expulsavam de casa, não queriam mais saber. E mamãe tinha assim, diariamente, moças que estavam com a criança nos braços e não sabiam para onde ir. Então, ela criou uma obra - “Obra da Mãe sem Lar”. Começou pequenininho, foi crescendo, crescendo, primeiro era na Tijuca, depois foi para Botafogo e até hoje existe, sabe? As mães, as meninas - em geral eram meninas, quinze, dezesseis anos - já a maioria não tinha profissão, evidente, não é? E não tinham ninguém, literalmente, ninguém. Então, elas ficavam lá, essas que estavam nessa situação, ficavam lá. Era pequeno, tinha umas trinta moças só. Aí, elas aprendiam uma profissão e depois, quando começavam a trabalhar, elas procuravam emprego, tinha lá algumas pessoas para isso, e a criança ficava lá, era uma creche. E, de noite, elas vinham e se ocupavam dos filhos. Na época, foi assim originalíssima, fez muito sucesso. E até morrer, mamãe se ocupou com isso. E ajudou a reagir, que ela estava numa fossa horrível com a morte de papai. Hoje em dia, está diferente, hoje é só uma escola, é uma creche escola, modificou. Mas tem que ser, não é? Conforme a época, as necessidades…
P/2 – E você tinha liberdade de sair, de namorar? Como era com…
R – Tinha relativamente, quer dizer, por exemplo, festa eu nunca ia sozinha, quer dizer, podia ir, mas eu tinha uma governanta especial. Ai meu Deus, era uma chateação, sabe? Mas eu tive sorte, algumas foram bem simpáticas. Mas eu ia a festas, ia sempre com alguém. Quem tinha irmão era fácil, mas os meus eram mais moços, então não adiantava. E eu gostava muito de dançar, sabe? Na época, todo mundo dava festinha em casa, hoje ninguém fala disso. Mas era o comum, as casas eram maiores, sempre tinha uma sala maior e aí a gente convidava um grupo, em geral os irmãos das amigas, das colegas, não é? E festinhas bem animadas. Eu acho que eram melhores do que hoje (risos).
P/1 – Que música que tocava, você lembra?
R – Ah, não me lembro. Essas músicas clássicas. Não tinha assim nenhuma especial. Blues, muito blues, americana, a influência americana já era grande. Mas nada de especial.
P/1 – E na sua casa, vocês comemoravam datas, assim, Natal, Páscoa? Que datas vocês comemoravam?
R – Ah sim! Todas as datas cristãs, Natal era sagrado, tinha que ter o presépio, coisa que eu reparo, outro dia estava comentando com Bento: “Bento, cadê os presépios? Nem nas igrejas tem mais presépio”. Tem árvore de natal, tem aqueles enfeites de shopping, coisa horrorosa, em geral, pesados, não é? Mas é o quê? É um veadinho, é o Papai Noel vermelho e de barba, trenó, neve de algodão. E o presépio, que é a razão de ser do Natal? Ninguém se lembra. Eu acho uma pena, não é? A gente fazia… Eu me lembro, ia nas igrejas, saía de casa para visitar as igrejas e ver os presépios, uma igreja fazia concorrência com a outra, com as figurinhas. Quando tinha mais figuras, mais interessantes eram, não é? E algumas tinham os presépios napolitanos, que eram os mais variados, cheios de figuras, de todas as idades, carneirinhos e bichinhos. Era, realmente, um acontecimento, não é? E depois, Carnaval evidente, de que a gente participava, e Páscoa…
P/1 – Como que era o Carnaval naquela época?
R – O Carnaval, a gente fazia o corso, corso carnaval. Automóveis abaixavam a capota para trás e a gente sentava ali e ficava dançando em volta do carro. E tinha o desfile da Avenida Rio Branco, sabe? Eu tinha algumas fotos…
P/1 – Você gostava?
R – Você viu umas de portuguesa, não é? Mamãe mandou vir a fantasia de Portugal, autêntica. E tinha uma de marinheiro também. Então, com as amigas, a gente fazia um grupo e ia pular na Avenida Rio Branco, que era o chique da época.
P/1 – Você gostava? Esperava o Carnaval?
R – Eu era tímida, sabe? Então, esse negócio não me entusiasmava muito, não. Mas gostava de ver os outros. Tinha lança perfume, que era a Rhodia que fazia, que foi a razão de ser da… A Rhodia começou com o lança perfume. Quem ia adivinhar que tinha a ver depois comigo, não é? E depois tinha também São João, tinha… Hoje em dia também não se faz mais, muita coisa se perdeu. As festas de São João, e as fantasias sempre, chapéu de palha, aquelas roupas vistosas.
P/1 – Onde eram essas festas a que você ia? Na sua casa ou em algum outro lugar?
R – Olha, a gente fazia em casa, mas tinha os clubes e existia muita vida de clube. Então, os clubes tinham, faziam cada um, tinha um dia especial, e havia concursos de quadrilhas de São João. Era outro tipo de diversão, não é? Bem familiar sempre, comparando com hoje, mas a gente achava bom. Também não conhecia outra coisa.
P/1 – Margarida, qual é a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Da escola? Olha, eu sendo uma pessoa tímida, eu tinha quase que medo do desconhecido, mas nunca foi uma coisa assim, marcante. O ambiente era muito positivo e eu acho que isso foi uma sorte. Meu pai sempre dizia: “Infância feliz é um alicerce bom para o resto da vida. Quem é infeliz na infância, custa depois a superar as impressões”. Eu acho que eu tive uma infância muito boa. Eu sempre tive muita sorte na vida e, sobretudo, depois que a gente conhece, em volta, tanta desgraça, tanta coisa acontecendo, não é?
P/1 – Como era na escola? A primeira escola que você começou a ir?
R – Olha, eu fui no Sacre Coeur, não é? Porque a gente aprendia tudo em Francês, e aliás, mamãe também sempre dizia... Ela aprendeu a ler em Francês e aprendeu a rezar em Francês. Ela sempre rezava em Francês porque sempre foi habituada, não é? Na minha geração já não era tanto, mas era assim... Rezava em Francês. E eu, por exemplo, aprendi muito mais a História da França, literatura francesa, do que brasileira, não é? Porque a gente… Aula de História, passava dois anos com a história da França e depois, vinha o resto. E quando tinha o programa, já no Ginásio, o Programa Oficial, sempre começava pelos gregos antigos, etc., tudo mais ou menos, Idade Média. Depois, estava no fim do ano e o programa atrasado, sempre atrasado. Então, passava depressa. Resultado? História do Brasil e História das Américas pessimamente levados, em duas, três semanas… Então, só era valorizado tudo que era europeu. Os Estados Unidos vieram depois, mas antes era França, sobretudo sendo em colégio francês. Então, a gente tinha assim uma admiração por tudo que era francês e a literatura, não é? E eu conhecia muito, muito, sei lá quantos pontos a mais a literatura francesa do que brasileira. Eu só vim conhecer a literatura brasileira, na verdade, no curso de Biblioteconomia. Mas a diferença era enorme. Mas era assim, o normal era todo mundo… Bom, isso me ajudou porque, depois, eu me casei com um francês, então francês é muito orgulhoso da sua cultura, da sua… Tem uma certa empáfia, é meio antipático, se acham os tais, não é? Mas, apesar de ser brasileira, apesar de... Porque isso é importante, eu falava para ele... Sabia falar a língua dele e conhecia, às vezes, melhor do que eles a literatura e a História, sabe? isso me deu uma vantagem no casamento, porque, naquela época, havia muito mais diferença do pensamento universal como é agora, não é? As coisas eram mais localizadas. Mas eu sei que as coisas… Isso me ajudou muito, sabe? O que foi um defeito numa certa época, depois foi uma vantagem.
P/1 – Por que era um defeito?
R – Defeito porque é ridículo você conhecer mais outro país do que o seu, não é? Mas eu me lembro de quando eu me casei e fui para a fazenda, e lá era plantação de cana - tinha café também - enfim, era uma situação original. Então, o embaixador, às vezes, pedia que nós recebêssemos as visitas importantes que vinham da França. E eu me lembro que uma vez, vários deles, ministros que nós recebemos e literários, vinha o André Roussin - nunca tinha ouvido falar no autor - da Academia de Letras. Aí ele pediu que nós o recebêssemos, porque ele queria ver de perto a plantação de cana, uma usina. Tudo bem. Então, eu preparei a recepção, eu me divertia, mas eu sabia fazer na época, nós montamos um almoço dentro da floresta, limpamos o chão, ficaram as copas e eu fiz uma mesa com todas as plantas, folhas, folhagens brasileiras na decoração, em volta assim tinha papagaios, araras pelas copas das árvores, ficou realmente bonito e recebemos esse… Estava também o primeiro-ministro, como é que ele chamava? Oh, meu Deus, o primeiro-ministro da França, o que endireitou as finanças, era muito cotado na época. Daqui a pouco me lembro. Recebemos para um almoço dentro desse esquema, e as moças que serviam estavam vestidas de baianas, ficou muito bonito - eu tenho até as fotos. Então, no fim do almoço, eu disse: [fala em francês]... E apareceram as meninas vestidas de índias, roupas de estopa, cheias de plumas na cabeça, vieram e fizeram uma dança. Tudo isso eu tinha organizado, e leram mão. Um cumprimento para ela, por sorte, a filha do jardineiro, ele era francês, ela leu um discurso em francês, você sabe que o homem ficou tão emocionado que chorava assim, eu me lembro das lágrimas escorrendo. Bom, mas isso era… Eu também me realizava muito com essas coisas, eu gostava muito. Mas o André Roussin, voltando a ele, quando o embaixador falou isso, eu me preparei, não é? Então, fui depressa na livraria francesa, comprei meia-dúzia de livros do André Roussin, que eu nunca tinha ouvido falar, li os livros depressa, de modo que quando ele chegou, eu trouxe os livros, ele ficou admiradíssimo, veio para o Brasil, um país que para eles era subdesenvolvido, no cafundó, tem um brasileira que conhece as minhas obras, ele ficou espantado. Mas, enfim, tinha essas ocasiões. Eu sei que eu fiquei conhecendo, porque com certeza, ele não era assim um escritor famoso, mas, de todo jeito, era da Academia, não é? E muitos assim, sabe, pessoas importantes que passavam na época, não era tão fácil como agora é e eles achavam interessante ver o canavial e o resto da fazenda. Realmente, foi uma experiência sui generis a fazenda.
P/1 – Deixa eu voltar só um pouquinho. Quando você conheceu o seu marido?
R – Meu marido veio da França, contratado pela Rhodia para montar a usina de Santo André, onde eles começaram. Era a Rhône-Poulenc, ele era bem mocinho. Era por dois anos o contrato, aí passaram os dois anos, ele voltou para a França. Acabou a Engenharia que ele estava fazendo e aí foi mandado de novo para cá, por mais dois anos. E de dois em dois, foi ficando. No fim, ele se baseou aqui e preferia morar aqui do que lá.
P/2 – Mas onde vocês se conheceram?
R – Justamente, eu tinha acabado o curso e apareceu uma excursão, coisa que não era comum…
P/1 – O…
R – Meu curso no Rio. E veio o programa, mamãe viu no jornal uma excursão a Ouro Preto, cidades antigas. E disse: “Você devia ir, é interessante”. Então, me dispus a ir, também precisava acompanhante, porque eu não podia ir sozinha. Daí, eu fui com uma tia que era viúva e nós tomamos o trem lá no Rio e paramos em Cruzeiro do Sul. E aí juntaram os vagões que vinham de São Paulo. E nesse vagão estava o meu marido com os colegas da Rhône-Poulenc que eram quatro ou cinco, também queriam conhecer. E como era uma excursão do Automóvel Clube, a gente se conheceu e depois visitamos as cidades e voltamos. São coisas que eu costumo dizer que é destino. Na volta… Ah, tem um detalhe: quando eu vi o meu marido passar assim, eu disse: “Poxa, que homem interessante, com um homem assim que eu gostaria de me casar, mas ele é muito mais velho”. Porque ele era bem mais velho do que eu. Mas sabe, o tipo físico, sei lá o quê, as pessoas têm uma aura que você gosta ou não gosta, não é? Não liguei. Acontece que, na volta, a gente vinha de trem, aconteceu não sei o que lá dentro da estrada e não pudemos seguir viagem. Então, os outros companheiros dele, que estavam no grupo, tiveram que voltar porque eles, enfim, faziam falta na usina e não se sabia quantos dias íamos ficar lá. Então eles voltaram de avião. Mas o meu marido, que já tinha um posto mais alto, não tinha necessidade de ir, ele disse: “Vou continuar”. E ficamos. Então, ficamos vinte e quatro horas conversando (risos). Eu disse: “Puxa, primeiro rapaz que eu converso e não me chateia” (risos). E aí, começou. Enfim, depois ele foi para o Rio, a família se assustou…
P/1 – Mas ele estava em São Paulo? Santo André? E aí, ele foi te visitar no Rio?
R – Ah sim, aí foi me visitar lá.
P/1 – Aí vocês começaram a namorar?
R – É.
P/1 – E ele ficava indo para o Rio para te…
R – Ficava indo, sempre ia, todo mês ele ia.
P/1 – E seus pais?
R – Olha, no começo, teve uma certa resistência. Primeiro, por ser estrangeiro, não é? “Quem é? De onde vem? O que faz?” Sabe, aquelas coisas antigas. E depois também, era mais velho, achavam que era muito ruim. Enfim, as qualidades dele foram maiores e no fim, eles gostaram muito e estavam sempre… Enfim, não foi problema, sabe? Eles se deram muito bem.
P/2 – E vocês namoraram quanto tempo?
R – Ah, pouco tempo. Não chegou a um ano.
P/2 – Ah, é?
R – É.
P/2 – Já casou?
R – Casamos. Mas o engraçado é que a gente fica… Parece que é o destino, mesmo, não é? Essa excursão que não estava no programa, depois o acidente que impediu que… Os outros foram embora e ficamos sozinhos. E aí, deu certo.
P/1 – E a sua tia na excursão (risos)?
R – A minha tia aprovava. Coitada, ela foi muito simpática. Mas isso tudo eu digo para dizer que o ambiente era diferente.
P/1 – Quantos anos você tinha nessa época?
R – Tinha vinte, vinte e um.
P/1 – Aí, você não tinha feito a Faculdade ainda, a primeira, de Biblioteconomia?
R – Não. Já tinha feito Biblioteconomia.
P/1 – Lá no Rio você já tinha feito?
R – É, porque eu fiz Sociologia bem mais tarde, junto com as minhas filhas.
P/1 – E por que você escolheu fazer Biblioteconomia?
R – Bom, porque era… É a tal história que eu disse: mamãe achava que, para moça de família, Faculdade não era lá muito bom, porque havia muito rapaz, uma certa promiscuidade, não é? Coisa de… Não era assim... Comum, sabe? Tinha que ser… Não era de prendas domésticas não, era mais do que isso, mas tinha uma restrição, sabe? Biblioteconomia era considerado bem, com um nível bom, era mais tranquilo. E foi interessante, realmente. Eu gostei de ter feito. Arrumar livro eu não sei, mas aprendi muita literatura, que era a tônica do curso, não é?
P/1 – Onde você cursou? Que Faculdade?
R – Faculdade da Biblioteca Nacional, no Rio, no comecinho da Rio Branco. Foi um curso bem interessante, sabe? Aí que eu aprendi bastante literatura brasileira e sul-americana também. Porque na minha geração - isso você deve encontrar - não havia interesse e nem conhecimento do resto da América Latina. A gente estava voltada para a Europa e para os Estados Unidos, mas o resto... Argentina, Bolívia, Peru, Quito, imagina, o quê que era? Mal sabia qual era a Capital, não é? Mas o resto não interessava muito, era país secundário, era um absurdo! Era realmente de costas para a América e de frente para a Europa. Eu acho que a minha geração foi assim. Depois foi mudando, felizmente não é mais isso. Mas é uma característica dessa fase.
P/2 – E você chegou a trabalhar como bibliotecária?
R – Não. Eu vim a trabalhar depois, na Febem. Eu trabalhei cinco anos, eu trabalhava aqui nas Perdizes, no sanatório lá. Organizei um trabalho voluntário, sabe, gostei muito. Foi uma boa experiência.
P/1 – Só voltando... Aí o seu marido… Vocês namoraram e ele a pediu em casamento?
R – É. E depois, casamos e fomos morar na fazenda, não é?
P/1 – Onde foi o casamento?
R – Nossa Senhora da Glória, lá no Outeiro da Glória, que vocês vão ver no vídeo, CD.
P/2 – Você tinha quantos anos?
R – Vinte e um.
P/2 – Vinte e um? Casou com vinte e um?
R – Isso. Um mês depois.
P/1 – Como é que foram os preparativos? O vestido? A festa?
R – Eu acho que como todo mundo na época, não é? Aquilo tinha todo um ritual. Mas foi bom, eu acho que foi um casamento realmente muito bonito. Sempre iam em casa, que hoje não se faz mais, a casa não era grande, mas foi transformada para receber bastante gente, sabe? Foi bem animada. Então, a gente tinha já especialistas, eles faziam, punham arrumações adaptadas, porque a casa não foi feita para isso. Mas foi muito bonito o casamento, vocês vão ver no vídeo, no CD. Foi ótimo. Naquela época, foi uma coisa assim meio diferente filmar o casamento, acho que estavam começando a fazer e foi uma sorte. É uma pena que depois, a gente enfia na gaveta e esquece, não é? E um belo dia, com o apelo como o de vocês, eu fui tirar, que eu nem me lembrava mais que eu tinha essa… E assim os outros também, não é? Mas enfim…
P/1 – E a família dele veio da França para cá?
R – Não, a família dele não veio. Era pouca, a mãe já tinha morrido e ele só tinha os sobrinhos e eram modestos, eram bem modestos e não conseguiam vir, sabe? Mas foi bom, porque eles não iam entender nada. Se a gente não entendia, eles não tinham ideia do que era o Brasil, sabe? Quando eu ia lá, de dois em dois anos, eu já de férias para a Europa, evidente estava com a família e era chato, porque eles não entendiam nada de Brasil. Então, ficavam cheio de dedos, eles achavam que era assim, um lugar… Sabe como a gente vê esses filmes da África, o fundo da África, aquela miséria horrorosa, tudo de pé no chão, etc.? Eu acho que eles pensavam que o Brasil era um pouco isso. Não tinha… Isso não foi comigo, mas o meu marido me disse que as primeiras vezes que ele voltou, quando ele… Antes de se casar, perguntavam: “Escuta, galinha é igual aqui? Tem pelo e duas pernas? Vocês comem as coisas que a gente come?” Era como se fosse outro mundo à parte. Era estranho. Bom, isso as pessoas modestas. Acredito que os mais instruídos não pensassem assim. Mas em geral, tinha uma ideia… E, para eles, ficava um pouco assim… Inesperado, não é? Primeiro, eu falar a língua deles e depois eu entender mais da história e literatura deles do que eles mesmos. Eu acho que dava um nó na cabeça, mas enfim, graças a Deus, eu ficava pouco. Porque senão, ia ser duro.
P/1 – E como é que foi mudar do Rio de Janeiro para Santo André?
R – Eu não fui para Santo André, eu fui para Campinas.
P/1 – Para Campinas, desculpa.
R – Porque o meu marido foi designado para montar a fábrica, não é? E foi o seguinte: era o tempo de Guerra, não é? E a base dos produtos da Rhodia era álcool, eles tinham a Rhodia Seta, Valisère e produtos químicos brutos, porque foi para isso que vieram para cá; inclusive, lança perfume, não é? Mas com a Guerra, os navios que vinham do Nordeste com o álcool, vários foram bombardeados pelos alemães, então eles estavam sem álcool. Enfim, resumo, resolveram fabricar álcool eles mesmos. Então, compraram essa fazenda, que era uma fazenda abandonada em Campinas, relativamente perto, e plantaram a cana para isso. Meu marido foi designado para lá, ele era o diretor e foi uma experiência fantástica. Sabe, é a tal história: o destino leva a gente para coisas boas inesperadas. E nós fomos encarregados de montar uma cidade, não é? E eu acho que, para mim, foi muito importante, uma experiência única, eu fiquei vinte e dois anos lá, não é? Mas era mato mesmo, tudo… Antigamente, se usava isso. O pessoal comprava terra grande, largava o gado ali, daí os tempos, ia buscar o gado gordo, mas nunca se ocupava de nada, como vacas, nada disso, cresciam como Deus queria, não é? Era assim. Então, não tinha incremento nenhum na fábrica, sabe, era mato. Foi preciso arar terra, criar uma cidadezinha, realmente tinha o centro da fazenda, onde tinha a Vila Lutécia, eram quatrocentas e tantas casas, uma gracinha as casas lá, com varandinha, muito bem construídas e tinha tudo. A igreja, que vocês vão ver depois nas fotos - a Igreja Nossa Senhora de Lourdes - e a vila se chamava Vila Lutécia. Até foi o Roberto quem deu o nome. Lutécia era pretensão, não é? Mas é muito simpática a cidade. E tinha o clube, tinha a parte de armazém, que hoje seria o supermercado, pequeno, não é? E nós fomos para lá, também construímos a casa. Mas eu não tinha essa intenção, de partida. Mas eu comecei a perceber, depois que eu estava lá, que morria muita criança. E eu disse: “Não é possível morrer desse jeito!” Fui indagar e então descobri que os recém-nascidos morriam de infecção, tétano. Você imagina que a enfermeira fazia um parto e fazia tudo que precisava fazer, com tudo esterilizado. Mal a enfermeira saía de casa, a mãe tirava tudo e punha excremento de vaca, teia de aranha e outras coisas do gênero, que lá no cafundó onde ela morava, se usava para cicatrizar. Resultado: uma semana depois a criança estava com tétano e ia embora. Um negócio absurdo, porque você vê... A gente fala: “Deve-se ajudar, dar…”. A questão não é só dar coisas, a verdadeira ajuda às pessoas é educação, porque eles tinham casas, a maioria era gente que vinha muito pobre do Nordeste, uma trouxinha, literalmente, uma trouxinha e mais nada. Mas chegavam lá, tinham casa, com água, com tudo de essencial, e luz também de graça. E tinham empregos, salários, não é? E mesmo assim, era uma mortalidade desse tipo, assim, absurda! Então, eu digo: “Isso não é possível, tem que mudar”. Então comecei… No começo, eu atendia às crianças, começou uma semana, depois duas, depois era todo dia, atendia às crianças que estavam doentes, arranjei uma menina para me ajudar e eu que dava as consultas. Era gozado.
P/1 – Você que dava a consulta?
R – Eu que dava a consulta. Bom, quando a coisa estava feia, eu punha no meu carro e levava para o pediatra da cidade, mas eu que dava. Me lembro, ousada que eu era, que era o bê-á-bá, você ensinar como põe uma fralda, como é que faz mamadeira, sabe, coisa que eu fazia em prol das minhas filhas. E aí, foi crescendo, crescendo e eu me lembro, sabe… Realmente, é isso que eu digo, são caminhos… O destino leva a gente... Parece que a gente não escolhe, é empurrada. Uma vez, uma criança… Estava chovendo, mas uma chuva torrencial, ficamos isolados, sabe? Não tinha luz, não tinha… A estrada estava impossível de passar, porque estava tudo enlameado, como a gente vê aqui, mas lá era pior porque eram dezoito quilômetros de Campinas, não é? E veio, desceu do carro cavalariço, o ‘seu’ Aparecido, com a criança recém-nascida, e disse: “O que eu faço?”. Eu olhei e vi e fiquei horrorizada, porque a gente conseguia ver os ritos da criança morrendo, não é? Fica aqui o olho fundo, preto assim, de olheira, enfim, com a prática, você já está vendo que a criança está morrendo. E ele disse: “O que eu faço?” “Bom, para levar daqui não dá”. Então, eu mesmo tratei, dei uma injeção, me lembro, uma criança pequenininha, pele e osso, dei injeção que se usava, agora não se usa mais, mas naquela época… E dei tudo que eu sabia, os remédios todos e tal. E a criança foi embora para casa. No dia seguinte, eu levantei, a primeira coisa... Aparecido chamava: “Cadê o Aparecido?” Pensei que já tivesse morrido. “Não morreu”. Aí, eu fui ver, peguei a criança, chamei o meu carro e fui, levei para a cidade para o meu médico, e a criança daquele jeito: morre, não morre. O médico pôs na mesa, até hoje eu me lembro dessa cena, pôs na mesa a criança, examinou assim em silêncio, depois olhou para mim e disse assim: “A senhora salvou a vida dessa criança”. Isso é uma coisa que poucas mulheres ouvem, você sabe que eu nunca mais esqueci? Ele disse: ‘Se tivesse esperado até hoje, ela teria morrido”. Quer dizer, o pouco que eu fiz aguentou um pouco, não é? Evidente que depois ele tratou como deveria e a criança animou. Até hoje eu não tenho notícia deles. Mas essa cena, que é uma coisa boba, afinal, mas foi muito importante para mim, sabe? Eu percebi que com pouco esforço, a gente pode fazer muito. E a gente tem um capital social, quer seja destino, quer seja um dom de Deus, o que quer que seja, que você tem que usar para o bem dos outros, não só para si. Eu achei que tinha uma responsabilidade, sabe, diante daquela comunidade pequena, que não podia deixar de lado, não é? Mas para mim, marcou, foi muito importante, sabe? Essa frase do médico, porque foi tão espontâneo, eu não tinha noção do que eu estava… Que era importante o que eu estava fazendo. Daí, eu me animei mais, criei o posto, a creche, sabe? As crianças chegavam quase morrendo, não digo como essa, mas quase, já bem debilitadas, a gente então alimentava como devia, nós mesmos fazíamos a sopa, a mamadeira e eles ficavam durante o dia, de noite iam para casa. Quando ficavam com o peso normal, deixavam de ir, davam lugar para os outros.
P/1 – Onde era a creche? Na fazenda mesmo?
R – Era na Vila Lutécia, porque eu esqueci de dizer, a fazenda tinha o núcleo, que era a Vila Lutécia, a casa do chefe dos operários. E havia várias colônias, que a gente chamava de colônias, eram grupos de casas mais simples, onde moravam os colonos, os que trabalhavam no canavial e os que trabalhavam na usina. Eram cinco pequenas colônias. Eu tinha uma casa, que era a creche, onde eles ficavam durante o dia. Isso durou muitos anos. Depois…
P/1 – Mas você já tinha… Antes disso, você já tinha tido filhos, como é que foi?
R – Já tinha três filhos.
P/1 – Logo quando você chegou, você já teve filho? Quanto tempo depois?
R – Um ano depois eu já tive.
P/1 – Então, você teve a primeira com vinte e dois?
R – É, vinte e dois.
P/2 – No Rio ou aqui, já?
R – No Rio. Eu ia ter os filhos no Rio. Eu morava em Campinas, mas eu ia ter os partos lá no Rio, junto de mamãe, família, etc., dava mais confiança, não é?
P/2 – Então... Como foi criar seus filhos, assim, longe da família, num lugar estranho, numa fazenda? Como foi isso?
R – Olha, tinha vantagens, porque tinha um jardim enorme, uma casinha de boneca, uma gracinha, com varanda e dois quartos, pequena, sabe, jardinzinho, elas tiveram uma infância ideal para crianças nesse sentido, não é? Faltou um pouco de relacionamento social. Bom, mas, realmente, ela achou ótimo. Depois também, alimentação, você comia os legumes tirados da terra no dia, entre outras coisas. Esse lado foi muito bom, mas depois eu sempre debati Educação, que é o maior bem que se pode fazer socialmente - educar, educar em todos os níveis. Tanto que nós, depois, fizemos um jornal, vou mostrar para vocês, deve estar aí, ali em cima estão encadernados, aparece no vídeo, vocês viram, sessenta números, foram cinco anos. Hoje, eu olho para trás e penso: como é que eu aguentei? Porque tinha que fazer praticamente, sozinha. Eu tinha… O médico ajudava, mas, enfim, para educar, sempre educando, sabe? Em todos os níveis, tanto no nível da mulher como pessoa e como intelectualmente, na prática tinha que criar os filhos, não é? E a gente fazia concurso de beleza. Você sabe que era um dos pontos onde morria mais criança, que também era concentrado ali, quando nós começamos? Depois, ficou um lugar modelo, sabe, para criar crianças, fazíamos concurso, tinham as crianças, você viu ali no álbum, tudo isso está no álbum, vocês podem rever. Tínhamos um clube também, era um verdadeiro… Uma mini…
P/1 – O clube da Rhodia?
R – É, o clube da Rhodia. Uma sala grande, eles faziam festa, era uma pequena comunidade, uma ilhazinha.
P/2 – Os seus filhos vinham para a cidade para estudar?
R – Os meus filhos fizeram Primário na cidade.
P/2 – Mas eles participavam dessa vida também?
R – Participavam, desde pequenos. Desde pequenos andavam junto, iam na quermesse ajudar em tudo. Engraçado que eu fazia questão de todo mundo de uniforme, as minhas filhas também. Pessoal adorava. Vestia tudo igual, não é? As filhas do diretor e fazia questão... Elas serviam na quermesse, etc. Tudo isso eu acho informativo. Criar um ambiente muito simpático, porque a gente tratava os outros como iguais, sempre foi uma característica e eles sentiam isso. Então, eu acho o ambiente muito especial. Aliás, todo mundo apreciava, como vocês veem aí nas fotos, era um ambiente muito positivo. Quando a gente fazia quermesse, até os pobres vinham trazer alguma coisa para ajudar na quermesse. Eu me lembro de que veio uma que ela chegou com um ovo, ela disse: “É a única coisa que eu posso ajudar na quermesse, trouxe um ovo”. Você sabe que eu chorei de emoção?! São essas coisas, essa parte humana… É por isso que eu digo: foi uma sorte grande, sabe? Ter essas experiências. Eu me lembro, no jornal, que eu escrevia sempre o assunto de fundo. Uma vez, a mulher me disse: “Escuta, como é que a senhora entende a gente? A senhora tem uma vida tão diferente e a senhora fala coisas que a gente sente, a gente vive” “Mas por que não? Você é uma mulher igualzinha a mim”. Ela ficou tão emocionada, porque nunca passou pela cabeça dela… Por isso que eu sou socióloga, por essas e outras. Mas foi… Eu acho que ter tido essa experiência na fazenda foi uma experiência única que pouca gente, poucas mulheres na cidade têm ocasião. Realmente, nós formamos, desenvolvemos uma pequena cidade, não é? Enfim, tinham outros detalhes todos…
P/1 – Como é que era a relação com o seu marido? Ele apoiava, ele participava disso tudo?
R – Ele apoiava, ele entendia que aquilo era bom para ele também, não é? Porque nós tínhamos um ambiente positivo, não havia greves e era uma posição difícil; às vezes ele achava que eu exagerava, mas sempre ajudou. Se não fosse ele, eu não teria feito a metade. Mas ele também entendia, não é? Afinal, ele que era o responsável, não era uma posição muito fácil, não. Mas, nesse ponto, sempre ajudou. Depois que eu virei diferente, as coisas mudaram.
P/1 – Como era a sua relação com ele?
R – Foi muito positiva, até certo ponto. Agora, a gente… Problemas sociais depois que veio a ditadura e tudo o mais, as coisas… Eu entrei na Comissão de Justiça e Paz, a coisa ficou um pouco diferente, não é? Ele vivia dizendo: “Qualquer hora você vai ser presa e vou também ser preso e ser expulso, porque eu sou estrangeiro. Você está me prejudicando”. Enfim, a gente discutiu um pouco esse ponto, mas eu continuava fazendo debaixo do pano (risos). Mas, enfim, coitado, sofreu também com isso. Sofreu bastante até. Olha, fiquei trinta e cinco anos casada, a única vez que eu vi meu marido chorar foi no dia em que a minha filha foi presa. Que isso, olha, faz tempo, não é? Isso foi em 40… Quando foi? Sei lá, datas eu preciso pensar duas vezes, porque eu não guardo. Mas a minha filha fez parte daquela coisa de Ibiúna, lembra-se?
P/1 – Congresso de Ibiúna.
R – É, e foram presos vários e tudo, e ela foi presa e ficou lá depois da clivagem que fizeram, ela ficou presa junto com umas amigas, era uma meia-dúzia, eu acho. Para o meu marido foi uma vergonha assim sem tamanho, porque para ele era a mesma coisa que um ladrão ser preso. Não entendia que política era diferente, não é? Olha, minha mãe veio do Rio também pensando como ele, eu que era a culpada disso tudo, que punha ideia na cabeça deles, enfim… Foi um período difícil.
P/2 – E para você, como foi? Como é que você lidou com isso?
R – Olha, eu fiquei muito orgulhosa das minhas filhas. Tanto que, depois, ficaram poucos dias, uma semana, não foi mais do que isso. O meu irmão, que tinha uma posição no Rio, era muito amigo do Delfim, eu sei que veio ordem para soltar a minha filha, ordem expressa e tal. Nós fomos lá na prisão do DOPS e ela estava lá. Aí o delegado chamou e ela veio. Eu disse: “Olha, você pode sair”. “E minhas companheiras?” “Só você que vai embora”. ‘Então, eu não vou. Se elas não forem, eu também não vou”. e bateu o pé. Você sabe que o delegado olhou para mim: “O que a senhora acha?” “Eu fico muito orgulhosa da minha filha falar isso”. “Se é assim, não adianta. Desisto”. Então ela só saiu quando as outras saíram. Não queria ter esse privilégio. Aí, minha mãe e o meu marido caíram em cima, sabe? Eu era culpada, enfim… “Que vergonha, não tenho mais coragem de sair e olhar as pessoas na rua”. E eu era a culpada. Foi duro, sabe? Ser coerente nessas horas é muito… Mas, enfim, graças a Deus, podia ter sido pior, não é? Porque elas não tinham feito nada. Ela tinha só participado de movimento estudantil, nunca fez parte de… E se fizesse, não é? Mas não fez. Eram só passeatas e coisas assim, passeatas também eu fui a várias, não é? A gente, na época, foi muito movimentada.
P/1 – Mas aí, voltando... Lá na fazenda você ficou vinte e dois anos?
R – Vinte e dois anos eu morei na fazenda. Depois, elas vieram para estudar aqui. Porque elas estavam… A minha ideia era elas fazerem Primário e Ginásio em Campinas e depois, vir para a Faculdade aqui. Mas, naquela época, o melhor colégio de Campinas era de umas freiras atrasadíssimas, eu não aguentei. Eu disse: “Olha, vamos criar com o espírito deturpado. O importante é se o uniforme está bem engomado”. Uma vez, a minha filha voltou: “Mamãe, levei um pito porque o meu chapéu – porque tinha chapéu, não é? – não estava engomado como ela queria”. Aí eu fiquei tão revoltada, eu disse: “Não fica aqui, não vale a pena, isso vai só marcar as meninas”. Então, nós alugamos um apartamento aqui em Higienópolis, Goitacás, e elas ficaram com uma governanta, acabaram o Primário e fizeram o Ginásio, o que correspondia ao Ginásio, não é? Mas eu dou graças a Deus, sabe por quê?
P/2 – Mas em que colégio?
R – No Sion. Lá eram umas freiras espanholas, mas olha, parecem anedotas as coisas lá como eram com elas, coisas mirabolantes. Eu disse: “Deus me livre, fica assim, depois não conserta” (risos).
P/1 – E aí, aqui você vinha para São Paulo com elas? Você vinha visitar?
R – Eu vinha.
P/1 – Que lugares você frequentava? O que você fazia quando vinha aqui?
R – Bom, tinha que ocupar com as coisas de casa, estudo, não é? Eu era muito ligada ao Sion, que era onde eu tinha estudado. Eu ficava só um dia ou dois, então não dava para muita coisa. Eu não conhecia ninguém em São Paulo. Realmente, não tinha vida nenhuma em São Paulo, nem nada. Mas é a tal história: o destino leva a gente, eu sou muito assim de acreditar nisso. Eu sei que conheci umas pessoas da Santa Terezinha e lá tinha um grupo - a Leonor Barros Barreto, família muito conhecida aqui, Leonor tinha um grupo de ação católica de senhoras do bairro que se reuniam regularmente, era mais para uma coisa de religião e uma vez, eu não sei como eu me encontrei com ela e ela disse: “Eu soube que você tem uma ação social na fazenda, você podia vir contar o que você faz, porque a gente tem muitas donas de fazenda aqui, mas que não fazem nada para os colonos. Você podia mostrar como é possível fazer e tal”. “Está bom, então”. Eu me lembro de que fiquei em pane... Falar para um pessoal que eu não conhecia. Mas aceitei porque achei que podia ser bom. Me preparei, e foi na Santa Terezinha, ali atrás da igreja. E tinham umas trinta, cinquenta pessoas. E preparei as fotos, expliquei o que eu fazia e gostaram muito, sabe? E a Leonor disse: “Que interessante, você devia vir para o nosso grupo”. Era um grupo de ação católica. Eu não tinha nada com isso, mas achei interessante, elas eram muito simpáticas, então comecei - quando vinha a São Paulo - a frequentá-las. E assim fiquei, fiz amizades e começou a minha entrada na sociedade paulistana, não é? Depois, a gente ficou muito ligada à Teologia da Libertação, aos dominicanos, não é?
P/1 – Como é que foi sair desse grupo para a Teologia da Libertação?
R – Nós começamos na ação católica, os grupos têm uma espécie de diretora… Como é que chamava? Eu não me lembro, mas um padre encarregado. A gente se reunia, discutia aqueles temas e tal, e os dominicanos eram à frente, a cidade realmente modificou a igreja em São Paulo e no Brasil. Eles… Domingo, na missas das onze, eles tinham… Vocês conhecem a igreja, não é? Que é enorme, transbordava pelas portas gente em pé, não cabia. Realmente, eles revolucionaram uma geração. E eu me entusiasmei e fiquei muito ligada. E assim, depois, Dom Paulo me convidou para a Comissão de Justiça e Paz. Aí, esquentou (risos).
P/1 – Deixa eu só voltar um pouco. Mas aí, as meninas se formaram e você mudou de Campinas para cá?
R – É, depois meu marido se aposentou. Então, viemos para São Paulo. Morávamos ali ao lado da igreja Santa Terezinha, naquele prédio que tem um apartamento grande assim, uma varanda. É um bom apartamento, era maior que esse, mas era muito gostoso. Tinha o sino da igreja que acordava a gente às seis horas, mas era só isso. Eu não conhecia ninguém, foi através desse grupo que foi se expandindo.
P/1 – E aí que você foi fazer faculdade de Sociologia?
R – Não. Antes de eu entrar na Comissão, eu já tinha começado. Aliás, já tinha começado o Veritas, o primeiro passo foi o Veritas, que foi muito importante também para a minha formação. Porque, na verdade, eu fazia parte dos grupos da Ação Católica, mas era uma época revolucionária, ditadura, aqueles momentos todos e o pessoal não… O espírito da Ação Católica, para o meu ponto de vista, era muito limitado, muito fechado, só se discutia religião. Eu disse: “Como é que pode discutir religião? Tem que ser fingida! Você tem que ser coerente, você ficar só discutindo orações, tem que agir”. É mais complicado do que isso. Mas então, junto com a Zita, eu propus: “Zita, vamos fazer alguma coisa diferente porque assim não dá”. A Zita topou logo, ela é animadíssima, porque ela é muito despachada, enquanto eu sempre fui tímida…
P/2 – Ela estava na Ação Católica também?
R – Também. Do mesmo grupo.
P/2 – Você conheceu lá?
R – Foi lá que eu a conheci. E ela… Era bem diferente a história dela. Então, nós começamos no Veritas, que deu certo e depois aí…
P/1 – O que era o Veritas?
R – Veritas é um grupo… Como é que eu vou explicar? Era como se a gente quisesse fazer um mini curso universitário, bem mal comparando, mas que desse um outro espírito, sobretudo para os problemas sociais. Porque eu, por exemplo, tinha estudado razoavelmente literatura e tudo mais, mas a parte de Sociologia, Antropologia, mesmo Filosofia, a gente não teve, não tinha isso, fazia falta para entender o que estava se passando, não é? Então, a gente criou esse grupo que eram aulas, conferências - não era especialmente para mulheres, mas pelas circunstâncias, elas eram mais numerosas - para estudar programas nesse campo social. Economia, por exemplo: quem da minha geração estudou Economia? Pouquíssimas, não é? Antropologia. Sociologia. Você ouvia falar, mas… Então, a gente criou essas conferências, era uma vez por semana, eu vou mostrar o álbum ali que está bem ilustrado e essas moças vinham. A gente comprava baratíssimo, porque nós não ganhávamos nada, evidente, era só para o gasto, que era pouco, era menos de dez reais, imagine, era mesmo… E escolhíamos assim o máximo de pessoas do momento, os grandes nomes da literatura, da diversidade. Nós tínhamos... Por exemplo, na área de Filosofia, escolhemos os maiores professores da USP. E das outras áreas também. O pessoal do CEBRAP todo, não é? Fernando Henrique foi várias vezes fazer conferência para nós, ele mal era conhecido na época, já era uma pessoa do meio, já era da USP…
P/2 – Mas então, como vocês chegavam até essas pessoas?
R – A gente chegava, dizia: “Queremos mudar a mentalidade das pessoas”. Durante a ditadura, não é? Eles acabavam entendendo e…
P/2 – Mas você já conhecia alguém desse grupo deles? Como que foi?
R – Não, a gente… Um foi puxando o outro. Mas, no fundo, a gente convidava, só dizia o nosso projeto qual era para abrir a cabeça das mulheres de classe média (risos). E eles entendiam, evidente que eles não diziam assim, mas eles entendiam e eu me lembro do Paul Singer... Eu falei, expliquei e tal, ele me contou depois: “Olha, eu aceitei porque eu queria ganhar um dinheirinho”. A gente pagava, evidente “Na época, eu estava precisando, mas pensei que ia perder o meu tempo”. E ele me disse: “Eu fui e fiquei encantado. Eu não sabia que as mulheres eram assim, tão inteligentes, participaram, fizeram perguntas e tiveram atitudes que eu não tenho nos meus alunos”. Paul Singer. Eu sei que ele foi, foi várias vezes, vocês vão ver pela lista, nós tínhamos a fina flor da USP. Depois, sabe, fica mais fácil porque um já comenta com o outro…
P/1 – E foi aí que você conheceu vários deles? Ficou conhecendo várias dessas pessoas?
R – Ah, sim, uma coisa puxa a outra. Sobretudo, na área social. Então, a gente tinha nossa técnica de chamar um problema para o exterior. Por exemplo, problema econômico, a parte toda histórica, não é? Você falava de problemas similares, alguns iguais aos nossos, só que em outro país, demonstrando o que era, o que acontecia. Realmente, o modo funcionou, porque o DOPS mandou várias vezes pessoas para assistir e quase sempre, homens. E eles chegavam assim, desconfiados, sabe? A gente os recebia muito bem, fazia questão, não podia achar ruim, estava falando de um problema num país lá no interior da Europa, mas as pessoas entendiam. E olha, o pessoal, no fim, gostava de ir.
P/1 – Onde é que acontecia? Tinha um espaço?
R – Era variado. Nós fizemos… E era de propósito para poder pegar vários grupos, facilitar. Nós fizemos no Sion, fizemos no Sedes, fizemos ali na… Como é que chama aquele… Ai, meu Deus, um famoso que tem ali no… Gabriel…
P/2 – Des Oiseaux.
R – Des Oiseaux. Fizemos assim, durante um ano, dois. Fizemos. E variava sempre. Fizemos ali na FAAP também, fizemos lá, mas o Sion foi o que demorou mais, que elas sempre me apoiaram literalmente. Depois, a gente cobrava os dez reais… cruzeiros, mas fazia questão de não ter nenhum ganho com isso. Então, o dinheiro que sobrava - apesar dos dez, sobrava - a gente pagava os professores. Evidente que não era uma fortuna, mas pagava. E então, o que fazer com o dinheiro? Então nós criamos cursos noturnos para as empregadas e operários do bairro, sabe aqui, do… O Sion nos deu um local de graça, evidente, e arranjamos professores que eram estudantes no geral, na época, que dava alfabetização, porque naquela época, as empregadas domésticas, todas empetecadas, arrumadas, aqui do bairro, eram analfabetas. Então, frequentavam. Soubemos que uma chegou até à Faculdade. Uma só que fosse, já estava bom. Mas foi uma experiência interessante. Durou só uns dois anos, porque era um trabalho... Pessoal bem disciplinado foi muito trabalhoso, mas deu certo. Tivemos Lazi, um professor que foi muito dedicado, enfim… Sabe, as coisas vão se ramificando. No início, havia essa intenção, mas depois deu certo, não é?
P/2 – E foi nessa época que a Sociologia entrou?
R – É.
P/2 – Como que foi isso?
R – Aí, as minhas filhas entraram na Faculdade. A Rose foi fazer Sociologia na USP e eu estava com a ideia de fazer também. Primeiro: “Eu estou muito velha, vai ser ridículo, junto com os outros jovens, vou me sentir mal”. Sabe, estava assim, meio complexada, mas a Rose entrou na USP. Mas eu digo: “Não vou ficar na mesma classe, isso não vai dar certo”. Então eu entrei aqui na Sociologia e Política da General Jardim e foi bom, foi uma boa experiência.
P/1 – E você trocava experiências com a sua filha? Vocês discutiam?
R – Você sabe, nessa época não é assim tão fácil a relação mãe e filha, não é? É a época da contestação. Mas eu me dei bem, sabe, eu estava meio preocupada, mas no fim eles me aceitaram e eu fiquei assim, amiga. E como eu tinha mais meios do que os estudantes, tudo que o professor mandava ali, eu ia comprar os livros, era a única na classe, tinha uma batelada, que aliás, muitos tenho até hoje, e depois, emprestava. Então, ficava assim… Estudávamos juntas, sabe? As coisas, eu levava até para o sítio para estudar com elas; enfim, foi mais fácil do que eu pensava. Mas também era um mundo pequeno, a Escola de Sociologia era mais modesta do que o grupo da USP, não é? O Perseu Abramo foi meu primeiro professor. Depois, ele foi ao Veritas e, para mim, era ótimo. Eu ia a pé, aqui pertinho. Foi uma boa coisa.
P/1 – Qual foi a grande descoberta sua?
R – Assim... Lógico, naquele mundinho fechado em que eu vivia, isso tudo foi abrindo, são as circunstâncias. Se a gente sabe aproveitar, vai em frente, não é? Eu sempre acho que a gente é feito das circunstâncias e, de repente, saber aproveitá-las ou não, não é? E eu tive sorte de ter circunstâncias ótimas. Depois então, que eu fui para a Comissão, realmente…
Programa Conte Sua História
Depoimento de Margarida Bulhões Pedreira Genevois _ PT2
Entrevistada por Rosana Miziara e Sônia London
São Paulo, 19/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV731 _ Margarida Bulhões Pedreira Genevois _ PT2
Transcrito por Mariana Wolff
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Margarida, na última entrevista você estava falando da formação do Veritas. Como é que você falava com as mulheres? Como é que você reuniu esse grupo? Como é que você as chamava para participar? Quem eram essas mulheres?
R – Olha, nada assim muito específico. Eram conhecidos. Começou com as mais próximas, que iam falando com as amigas. Então, eu ia criando uma bola de neve. Eram pessoas mais ou menos do mesmo nível, que frequentavam as mesmas pessoas, então não foi difícil. Num instante se propagou.
P/1 – Quem eram essas mulheres? Quais os nomes delas?
R – Olha, ___00:01:06___, em geral eram donas de casa, digamos, na faixa de quarenta, setenta, por aí. Eu tenho umas fotos aí, você, acho, tem ideia do que… Enfim, de como elas eram. Classe média, classe média alta, depende muito da classificação sociológica, mas era mais ou menos. Em geral, não trabalhavam, porque como era à tarde, isso dificultava. Naquela época, as mulheres… Agora, seria mais difícil fazer isso, porque eu acho que muito mais mulheres trabalham hoje em dia, mesmo de classe média, não é? Trabalham com gosto, o que precisa, o que eu acho ótimo. Mas, em geral, elas vinham por uma curiosidade de entender o momento que a gente estava vivendo, sabe? Porque quase todas tinham boa formação intelectual, mas como na minha geração - mesmo a outra geração mais moça - a gente não estudava muito Sociologia, Economia, Antropologia. Eram assuntos, assim, que não interessavam. E precisava um pouco disso para entender que nós estávamos vivendo uma ditadura, e então era aquele choque de ideias em relação ao que a gente tinha tido na formação e o momento que estava vivendo. Então, a gente por mais que ouvisse falar de economia, desenvolvimento, subdesenvolvimento e guerra-fria, queríamos entender melhor tudo isso. Então, o Veritas queria abrir a cabeça das mulheres para participarem melhor do dia a dia. E, ao mesmo tempo, a gente tinha uma intenção de abrir as cabeças para o mundo inteiro. O nosso ideal era que elas participassem mais da vida política, da vida do país, não ficassem à parte, como dondocas, dentro de casa. No fundo, o que a gente queria era isso. Era, sobretudo... Era muito isso, sabe? Era uma espécie de apostolado para nós, a palavra é um pouco… Tem conotação religiosa, mas era um pouco isso, nós queríamos que as pessoas melhorassem, crescessem e participassem do desenvolvimento do país. Era… Tanto que a gente não cobrava. No Veritas, eu era voluntária, sempre fui, nunca trabalhei por dinheiro, não ter salário hoje em dia seria um absurdo, mas na época foi assim, não é? E cobrávamos pouquíssimo, era simbólico, só dez cruzeiros, mas assim mesmo, você sabe que dava lucro? Nós pagávamos os professores, mas dava lucro. E, com isso, como eu disse da outra vez, nós voltamos o curso de alfabetização para as empregadas domésticas e os operários do bairro. Incrível como tinham empregadas e operários, sabe? Num instante... Ficamos até com duas turmas certa ocasião, de tanta… Elas vinham todas alinhadas, as empregadas. Para nós foi uma surpresa ver com perucas, maquiadas, analfabetas. A gente achava aquilo absurdo. Enfim, eu sei que durante algum… Não o tempo todo, mas alguns anos, tivemos esses cursos no Sion. Lá, o pessoal do Sion era muito amigo e eles cediam uma sala, duas, até três salas. E muitas continuaram a estudar. Até soubemos que uma fez Universidade. Infelizmente, eu perdi a pista dela, mas eu fiquei tão contente... Compensa o trabalho todo, não é?
P/2 – E quem dava aula para elas?
R – Olha, quem se encarregava era o _____00:05:44____, que era o professor aposentado, muito nosso amigo, que se dedicou, foi formidável. E tinha outros rapazes do Objetivo. O Objetivo era um curso muito cotado para as Universidades e alguns professores davam aula. Não foi difícil encontrar, não. Mas depois, não soubemos… A gente vai para a frente, outras ocupações vêm, não sei como acabou depois… Não sei se elas continuaram.
P/1 – E as palestras, os palestrantes para esses cursos, para as mulheres, quem foram esses palestrantes?
R – Olha, nós éramos meio ousados na época, porque a Zita e eu, nós tínhamos, enfim, tínhamos assim, muitos relacionamentos na área da USP; mas um puxa o outro, não é? Então, nós fomos convidando as pessoas, os grandes nomes da USP, a gente ia procurar e dizia o que a gente queria e eles… Alguns se entusiasmavam, outros ficavam assim, meio com o pé atrás: “O que eu vou fazer com essas burguesas?” (risos). Mas depois eles gostaram. Alguns ficaram encantados: “Nunca pensei que elas fossem tão interessantes, mulheres inteligentes, faziam perguntas melhores do que meus alunos na Universidade”.
P/1 – Quem eram esses nomes? Você lembra desses nomes?
R – Olha, é difícil, são tantos, que eu preciso pegar a lista. Nós tínhamos o Silva Telles, que no começo foi o grande ajudante; depois o pessoal do CEBRAP, todos eles passaram; o Procópio Ferreira de Camargo, que era muito meu amigo, e todos os outros. Fernando Henrique deu várias aulas, o Paul Singer também. Paul Singer, que eu já mostrei para vocês, ele disse: “Você me convidou, eu fiquei meio de pé atrás, pensei: ‘vai ser chato esse pessoal, o que eu vou falar? Elas não devem ser nada interessante’’”. E qual surpresa, ele disse que ficou encantado com as senhoras que estavam ali, sabe? “Que senhoras inteligentes, querendo mesmo aprender”. Eu sei que ele deu várias aulas sobre Economia, porque tinha o programa geral, que era bem variado, começamos assim. Era uma ideia geral do mundo de hoje e a gente falava dos grandes problemas que estavam acontecendo. E depois, fomos, aos poucos, concentrando. Nós tínhamos três cursos, durou pouco porque deu um trabalho louco, eram três cursos diferentes: Antropologia, Sociologia e Economia, que eram os grandes temas. Então, professores daquelas áreas, não é? E eu indicava outros, eu sei que não foi muito difícil isso. Nós trouxemos professores de outras cidades, Clarice Lispector veio especialmente, almoçou conosco, tem até uma foto. Amauri Sanches, que era um professor ótimo de Literatura. Então, vinha um professor e, naturalmente, a gente incitava as pessoas a lerem. Depois, tinha comentários sobre os livros. Olha, eu mesma aprendi tanto (risos). Eu acho que foi realmente mais importante que um curso universitário. Os problemas eram problemas que interessavam, eram teorias, não é? Nós focamos muito na América Latina, era a época da… A ditadura não fazia questão nenhuma, pelo contrário. Nós acentuamos a América Latina e, com isso, aprendemos muito, porque eu tenho certeza de que a maioria dali nunca tinha estudado História da Argentina, do Chile, do Equador. Então, foi uma descoberta de um outro mundo. Às vezes, eu fico pensando que seria ótimo se a gente fizesse de novo esse curso, teria muita coisa para falar. Você pega assim, por exemplo, os problemas do Oriente, Israel, Líbano, a Síria, você lê os jornais, mas é difícil entender você lendo o jornal, é muito superficial, você quer entender as causas das guerras, porque isso… Se aprofundar com um profissional da História ia ser bem melhor, não é? E os outros problemas. Agora eu fiquei pensando, essas questões tão sérias que estão discutindo da Previdência, que eu acho que seria ótimo ter umas aulas para explicar um pouco, quais são os problemas e o que tem que ser feito. Porque qualquer coisa, tira de um e dá para outro, é normal, não é? Fazer isso de um modo equitativo e justo. Então, você vê pessoas, às vezes bem intencionadas, dizendo absurdos sobre problemas sérios porque não tiveram nenhuma informação, sabe? Os jornais dão a notícia do momento, mas a raiz dos problemas, em geral, não. Então, eu acho que isso é sempre útil. A Escola de Governo, do Fábio Comparato e da Maria Vitória fazia muito isso e é uma pena ter acabado. E ainda outro dia, o ____00:12:07___, que ultimamente se encarregava, ele disse: “O sonho de governo foi continuação do velho, aprofundado”. E, realmente, a ideia era a mesma, não é? Então, eu acho que isso… As pessoas pensam muito no estudo como um meio de vida, porque é normal, as pessoas precisam. Mas como enriquecimento pessoal, sem interesse, são poucas; infelizmente, são poucas. Se não serve para alguma coisa, não interessa. Ou interessa menos, não é?
P/1 – E naquele momento, quer dizer, você saiu do Veritas e o Veritas continuou? Como é que foi?
R – Não, depois acabou. Nessa altura, eu já estava na Comissão de Justiça e Paz, que me absorveu cada vez mais. No fim, eram vinte e quatro horas por dia e as coisas esquentaram também, então aí, realmente, não dava. Porque a gente tinha que escolher um pouco as pessoas que organizavam, ter afinidade de ideias, porque senão, se a gente não tinha a intenção de pregar o militarismo em espécie nenhuma, então precisava escolher as pessoas que pensassem igual.
P/2 – Então, saiu algum grupo, algumas pessoas que se destacaram e foram para esse grupo que organizava, não sei o quê?
R – Não sei, não posso te dizer assim, exatamente. Eu sei que muitas que frequentaram o Veritas, voltaram para a Universidade, que tinham largado por algum motivo, ou entraram na Universidade. Eu mesma fui fazer Sociologia e Política. Eu acho que não teria feito, se não fosse o Veritas. Por que eu senti necessidade de saber melhor aquilo tudo que a gente estava falando. Realmente, foi uma boa coisa. Abriu para mim, pessoalmente. Foi assim um crescimento imenso, em todos os pontos de vista. Eu digo: as circunstâncias fazem a vida ou a gente faz as circunstâncias, eu não sei, eu sei que uma coisa está ligada intensamente. eu não teria, talvez, feito Faculdade se não fosse o Veritas. Não sei, se as circunstâncias fossem outras, não é? Mas eu acredito que foi importante. Eu gostaria muito de ter contato hoje com algumas delas. Eu estive vendo as fichas, agora mexendo nesses papéis antigos e tem os nomes. E eu disse: “Qualquer hora que eu tiver tempo, vou tentar encontrar com algumas para conversar com elas”. Acho que seria interessante para vocês, também.
P/1 – Vamos, vamos marcar. A gente ajuda a entrar em contato. Margarida, e como é que se deu a sua entrada na Comissão Justiça e Paz? Você conhecia o Dom Paulo antes? Como é que foi?
R – Olha, foi… Eu morava em Campinas. Vim para cá com as meninas para elas estudarem no Sion e então passei a frequentar mais e eu disse a vocês que uma amiga que estava lá… Daqui de Santa Terezinha, da paróquia - eles dirigiam um grupo da paróquia - e ela soube do meu trabalho na fazenda e disse: “Aqui, nós temos tantas fazendeiras que não fazem nada para o pessoal das fazendas, vem contar um pouco o que você faz, o que você conseguiu”. Eu sou tímida, sou tímida disfarçada, mas eu fui com muito esforço, me preparei, eu me lembro que eu fiz os cartazes, tremendo, sabe, por dentro. E expliquei lá para umas pessoas - havia um pessoal da Santa Terezinha - o que eu fazia. E, enfim, conversa vai, o grupo que organizava disse: “Puxa, você pensa como a gente, nós temos um grupo de ação católica, você deve vir para nós”. Eu não conhecia ninguém aqui em São Paulo, achei ótimo, não é? Aí eu entrei para o grupo delas, era gente ótima, pessoal muito simpático. A Gilda Mellilo, que era de uma capacidade... Era teóloga, tinha a Leonor Barros Barreto, a Zita - aí que eu conheci a Zita e fiquei mais… Enfim, tinha um grupo muito simpático. E passei a frequentá-las. Depois, o que aconteceu? Conheci o Fábio… Como é que eu conheci o Fábio? Nem me lembro. O Fábio Comparato, a mulher dele, a Monique, era francesa. E a gente se entendia muito bem, porque ela gostava de falar comigo, eu sentia muita afinidade. Infelizmente, ela morreu tão cedo. Mas aí, Dom Paulo formou a Comissão. Aliás, foi um problema. Precisou pedir licença especial ao Papa, não é? Porque só podia ter Comissão de Justiça e Paz na sede da CNBB, que era no Rio na época. Mas ele… Enfim, em plena ditadura, no pior período. E ele convidou várias pessoas. Já tinha o José Carlos Dias, o Dalmo Dallari, que foi o primeiro presidente, Mário Simas, tinha dois operários e não sei por quê, Dom Paulo não conseguia mulheres. Porque, pelo Estatuto, tinha que ter pelo menos um operário e uma mulher. Então, parece que não sei por que as mulheres não quiseram, era muito arriscado. Aí, o Fábio falou com ele e ele disse: “Convida a Margarida”. Então, o Fábio me telefonou e disse: “Olha, eu estou te convidando porque Dom Paulo pediu para você vir para a Comissão”. “Mas o que é isso?”, eu não conhecia Dom Paulo (risos), “Me explica o que é, como é que…”. “É muito complicado, você vai lá e vê como é que é”. Aí eu fui a uma reunião. Voltei tão chocada que nem dormi direito essa noite, porque nós fazíamos a reunião fechada, eu me lembro, na casa de Dom Paulo, uma casinha modesta, lá na Mooca. E nós fazíamos a reunião na cozinha, porque era uma casinha pequena, tinha um pequeno jardinzinho e o muro baixo, sabe, para a rua. Então, ficava perigoso a gente fazer a reunião na sala que dava para a frente, fazíamos na cozinha, que era no fundo, sabe? Então, você via que era precária a coisa, mas eu fiquei horrorizada de saber das torturas, das prisões, das arbitrariedades que nós, como pessoas comuns, não tínhamos ideia, não é? Então, aí, eu me lembro, das primeiras vezes eu ficava chocadíssima. E o pior é que eu contava para o pessoal em volta, familiares e amigos, ninguém acreditava, porque havia... Parecia comum, ninguém sabia direito do que se tratava. Enfim, aí eu fui entrosando, entrosando, e dom Paulo disse: “Eu não estou dando conta dos apelos para as pessoas que estão perseguidas e fugindo, e querem um apoio. Eu preciso de alguém que receba”. Aí eu me apresentei. Como os outros eram advogados, trabalhavam e tudo, e eu não estava trabalhando naquela época, eu passei a vir aqui na Cúria, em Higienópolis, na Avenida Higienópolis, 890. No começo, eu ficava até na sala de Dom Paulo, sabe, e sentava lá. E então, recebia as pessoas que procuravam, pedindo socorro. Foi muito emocionante. A gente vê de perto aqueles dramas todos e ninguém em volta tinha ideia, a pessoa não acreditava, familiares, amigos, ninguém acreditava que fosse possível, sabe? A censura e tudo mais… Enfim, a gente vai descobrindo um outro mundo, não é? E doído, foi muito doído; às vezes, a gente chorava junto, sabe por quê? Os dramas eram variados. Eu me lembro da primeira vez que um rapaz contando de uma prisão, ele suspendeu a camisa e mostrou as pancadas nas costas, as marcas das pancadas que ele tinha recebido, eu fiquei com vontade de levantar e abraçar, sabe por quê? Uma coisa tão absurda, tão injusta, sabe? As coisas assim, participação estudantil, um ajudar o outro dava prisões de vários dias, aquelas torturas que a gente sabia... Pau-de-arara, aquele afogamento das pessoas, sem contar as pancadas e a pressão psicológica. Eram dramas terríveis, sabe? Realmente, eu descobri outra faceta dessa sociedade. E enfim, é uma coisa muito complicada, mas Dom Paulo sempre firme, não importava o Partido, para nós também, eu nunca perguntei a alguém que vinha pedir auxílio: “De que Partido você é?” Não importava, era alguém que estava em perigo de vida, que estava precisando de apoio. Era uma coisa profundamente cristã, solidária, e era Dom Paulo quem tinha a coragem de enfrentar. Porque ele não era bem visto, pelos militares muito menos. Mas era de uma coragem incrível.
P/2 – E como é que vocês davam esse apoio? O que era esse apoio?
R – Esse apoio... Primeiro, a gente arranjava um advogado. Tinha um grupo de simpatizantes, de pessoas, em geral católicas, vindo de igrejas, mas também não tinha importância, nós tínhamos muito contato… O Reverendo Wright, muito amigo de Dom Paulo, era protestante. O rabino Sobel também, todos eles também davam muito apoio. Então, eu tinha que dar um jeito, além do processo que era muitas vezes uma farsa, mas pelo menos evitava novas torturas; às vezes, quando o caso era muito grave, tinha que mandar embora, não podia ficar no Brasil. Então, tinha cadastro para fazer sair pelo Sul, em geral pelo Paraguai, ou, conforme o caso, andava de avião para a Europa, onde fosse, não é? Sempre para a Europa, infelizmente, Estados Unidos nunca deu apoio. O Chile e a Argentina em situação igual ou pior que a nossa, mas assim mesmo, antes da queda do Allende, muitos brasileiros iam para o Chile e a gente ajudava a ir para o Chile. Enfim, é outra história muito complexa e muito triste. E, ao mesmo tempo, bonita, porque muita gente ajudava anonimamente, sabe? Por exemplo, às vezes havia pessoas doentes, uma pessoa que era perseguida, que estava fugindo da polícia ficava doente. Como é que ia para o hospital? Não podia dizer o nome, ou então mesmo estava machucada pelas torturas ou algum entrevero qualquer, aí nós tínhamos uma equipe de médicos que se arriscava, e inclusive a carreira, atendendo essa gente, sabe? Olha, tem casos... Coisas que davam romances complicados de como foram operados clandestinamente, operações graves, você imagina como era difícil, porque no hospital não pode contar com… Enfim, eu sempre digo para não esquecermos os que apoiaram arriscando a vida e a profissão. Dessas pessoas ninguém lembra, nem se sabe os nomes, mas, naquela época, eu quase sempre tinha nome, o codinome, sabe? Eu mesma, quando recebia alguém, eu dizia: “Eu prefiro que você não me diga o seu nome, diga um codinome”. Eu tinha pavor de ser torturada e contar.
P/1 – E você se identificava? Você tinha um codinome ou…?
R – Não, eu preferia que desse codinome, mas eram pessoas conhecidas…
P/1 – E você mesma?
R – Ah, sim, eu fazia papel de burguesa reformada (risos). Daí eu digo sempre: olha, eu nunca me fantasiei de pobre, eu usava meu status a serviço dos mais pobres, isso eu me orgulho de ter feito. E por exemplo, eu ia a uma delegacia com uma mulher pobre que vinha se queixar de um problema, ou fosse lá o que fosse, eu fazia questão de ir arrumadíssima, sabe? De braço com ela. você não imagina como isso mudava o modo de ser recebida. Não precisava dizer muita coisa: “Eu vim para…”, viam que eu estava apoiando, não é? Então, funcionava. Porque eu acho que a gente fazer uma coisa que não é, soa falso, não é? E se quiserem me aceitar como eu sou, tudo bem, senão, sinto muito. Enfim, eu acho que, realmente, a posição política... Porque a gente era de esquerda assumida, sem extremos nenhum, eu nunca fui de Partido nenhum, Deus me livre ser de Partido, tem que seguir regras impostas, não, eu era por opção de Justiça, não é? Então, eu me sentia muito livre. Eu me lembro do Zé Carlos dizendo: “Você está se arriscando muito. Nós, advogados, se formos presos, temos a OAB… Tem isso, tem aquilo. Você não tem ninguém”. “O que vai fazer? O único apoio é Dom Paulo”. Dom Paulo, realmente, foi uma grande sorte, trabalhei vinte e cinco anos com ele. É alguma coisa. Mas, olha, era realmente diferente. Um homem diferente, uma calma, sempre sabia a solução; às vezes, a gente discutindo e ele quieto durante um tempo - ele fumava cachimbo, depois largou. Mas ele nunca… Ele ficava ouvindo. De repente, todo mundo discutindo, não chegava a uma solução, ele começava a falar. Pronto, resolvia tudo (risos). Muita coragem! Ele foi várias vezes às prisões, quando sabia que alguém estava preso, sendo torturado. Ele foi à prisão e depois às manifestações - a morte do Herzog, não é? Dizem que foi aí que começou a ditadura a cair. E ele foi de uma coragem... A missa, na Catedral, foi um acontecimento histórico, não é? Ele foi, juntamente com o Reverendo Wright e o rabino, eles fizeram uma missa na Catedral, mas encheu ali a praça de gente, e em volta também. Foi um dia memorável. E assim... Quantas vezes ele ia a Brasília e falava com o ____00:29:59_____, ele conseguia diálogo, mas era difícil o diálogo também com os generais. Mas alguns… Ele salvou muita gente, com certeza, sabe? E sempre discreto, não é? Eu acho que… Não fizeram bastante justiça para ele, sabe? Eu sei que ele era candidato ao Prêmio Nobel, mas os militares fizeram tudo e conseguiram boicotar. Eu conhecia o holandês que se ocupou disso e ele me deu os detalhes; realmente, eles estavam quase conseguindo, ele tinha preparado… Esse detalhe eu me lembro, ele tinha preparado uma grande recepção lá no Movimento dele, na Holanda, comemorando a nomeação de Dom Paulo, mas em cima da hora os militares conseguiram cortar isso. Bom, tudo isso não é oficial, mas é a igreja mesmo. Sabe, a igreja mesmo… Então, é uma pena, eu acho que a Igreja seria outra com o espírito daquela época, era um espírito altamente cristão. Pelo menos, eu acredito que era o espírito que nós todos ali... Apesar da maioria não ser praticante, eram católicos, mas sobretudo cristãos e com tudo o que isso significa. Mas era uma Igreja que estava se renovando e, infelizmente, de repente, murchou. O que vai fazer? Final dos tempos. Mas foi bonito, sabe, eu acho que foi… Todos nós que participamos desse movimento de renovação... Fez muito bem moralmente, parece que nós crescemos, não é? E depois, criamos uma espécie de uma comunidade moral, que eu acho que foi uma ocasião especial, assim. Mais tarde talvez se reúna. A Maria Vitória escreveu um livro sobre a Comissão, você conhece? E o Antônio Carlos também. Eu acho que tenho aí, vou lhe dar. Pelo menos cita alguns episódios, mas…
P/1 – Que episódios que você lembra assim, de que você participou e que, de vez em quando, você lembra?
R – Olha, não sei. Eu viajei muito com a Comissão. Não só para o exterior, porque eu ia todo ano à Europa buscar… passar o chapéu, não é? Porque a gente, para qualquer coisa, precisa de dinheiro para fazer. Bom, e conseguimos. Fazíamos um projeto, levávamos para lá, Dom Paulo assinava, eu chegava lá e era muito bem recebida, não é? E já tinha a freguesia (risos)…
P/1 – Quem era? Para quem você passava o chapéu?
R – Olha, tinha na França - Comissão de Justiça e Paz de lá. Tínhamos a ___00:33:32___ na Alemanha e na Holanda, ____00:33:36____. Eram os três grandes pontos de apoio. E tinha alguns projetos que conseguimos na Inglaterra. Na Itália não, na Itália nunca tivemos. Na Suíça sim, alguns. Mas eu me lembro de que logo no começo eu fui falar com Dom Paulo e ele disse: ‘Eu estou aborrecido porque fui convidado para fazer uma conferência sobre a cidade de São Paulo, mas eu me dei conta de que não tem dados atualizados. Então eu recusei, porque não tinha sentido”. Eu achei um absurdo. Imagine o cardeal de São Paulo não ter dados sobre a cidade! Então, eu estava acabando o meu curso de Sociologia, muito pretensiosamente eu disse: “Olha, eu vou fazer isso, vou procurar dados”. Aí fui falar com o Procópio, do CEBRAP - que era muito meu amigo. Contei para ele e ele disse: “Nós, do CEBRAP, nos interessaríamos muito em fazer um estudo sobre a cidade de São Paulo, mas precisaria um projeto, e isso tem um custo”. “Faça esse projeto”. Ele fez o projeto e eu fui para a Europa. Eu consegui dinheiro em Londres - foi, em Londres - no Comitè Catholic, da França e o terceiro eu acho que foi na Suíça - três entidades diferentes, porque tudo saía caro. Aí eu vim e eles assumiram - o CEBRAP assumiu e foi um sucesso - o livro São Paulo [1975] Crescimento e Pobreza. Na época em que a gente vivia, não é? Era uma época de proibições, de tudo. Tanto que os militares jogaram a bomba no CEBRAP, não é? A famosa bomba que destruiu a frente do jardim da casa dele. Mas, enfim, esse livro foi traduzido em Inglês, esse livro fez um sucesso louco na época. São Paulo [1975] Crescimento e Pobreza. Até foi engraçado, porque quando ele ficou pronto, o Procópio chegou e deu o livro: “Toma que o filho é seu” (risos). Eu fiquei muito honrada porque, realmente, ajudou. Ajudou na época, para aqui e no exterior, o pessoal entender. O livro tem artigos sobre São Paulo, de todos os membros do CEBRAP na época, que era o máximo de intelectuais da área social. Enfim, foi um trabalho que deu muita satisfação. Isso que eu digo, as circunstâncias são… Ou sorte, lá como queira dizer, a gente dá um empurrãozinho, mas as circunstâncias também contam muito, porque muitas outras pessoas seriam capazes de fazer igual ou melhor mas aconteceu que fui eu. Então, eu aproveitei as circunstâncias, não é? E me acho assim, uma pessoa muito gratificada, sabe, por tudo isso. Doeu, às vezes era difícil, criou problemas pessoais, mas isso é normal, nada é fácil na vida.
P/1 – Como é que era aqui na sua casa? Você na Faculdade de Sociologia, na Comissão…
R – Meu marido estava em Campinas, não é? Então, era… Eu tinha um estilo de vida um pouco especial, porque ele… O meu marido estava lá, tinha que estar, ele era diretor da Rhodia e vinha aqui a São Paulo às quartas-feiras. E eu ficava com as minhas filhas, elas estavam aqui pertinho, no Sion. E depois, no fim de semana, nós íamos para Campinas, para a casa, não é? Então era uma família assim, meio dividida, metade e metade. E eu ocupadíssima e ele ocupadíssimo, então… Mas ele, apesar de ser uma pessoa reta, muito justa, não entendia nada, sabe, das coisas, ficava apavorado, dizia: “Você vai presa daqui a pouco e eu sou estrangeiro, vou ficar mal”. Olha, não foi fácil. Mas ele também não sabia onde é que eu me metia, não é?
P/1 – Não tinha dimensão?
R – É. Mas não foi fácil para ele também, eu reconheço. Mas, sabe, é uma questão de ter que escolher. Você não pode ser ao mesmo tempo, duas coisas.
P/1 – Você chegou a ser abordada pelo DOPS, pela…?
R – Não. Eu tive vários telefonemas de ameaça. Dom Paulo dizia: “Não sai sozinha”. Uma certa… Porque houve épocas mais ou menos pretas as coisas. Ele dizia em certas épocas: “Não sai sozinha”. Na verdade, não sei se foi uma inconsciência ou não, eu não ligava muito não, sabe? Mas não tive não. Não tive… A minha filha foi presa por uma questão que eu já te contei, uma questão estudantil, mas também foi uma coisa pouca, porque não era grave, ela saiu logo. Depois ela… Aliás, as duas foram para Paris e a outra foi para o Chile. Já estava lá em Santiago na época do Allende e foi outro período muito preocupante, mas, graças a Deus, conseguiu sair. Ela e o marido. Naquela época, também ele era muito engajado. Mas ela não era nada assim de grave... Porque havia uma turma barra pesada. Mas isso, a gente não tinha. A gente ajudou pessoas de todo tipo e, como eu disse, eu não perguntava o nome, só o essencial para poder ajudá-los…
P/1 – Mas eles eram militantes de organizações? ALN, AP…
R – É. Aqueles chefes maiores, evidente, não vinham para nós, porque era… O nosso trabalho era público, não era… Mas havia pessoas de todo tipo, não é? Mas, em geral, eu não perguntava e nem queria saber, sabe? Eu ouvia tanta coisa sobre as torturas que eu dizia: “Eu não vou resistir a isso”. Deus me livre, aperta aí…Aliás, muita gente dizia isso e havia… Na verdade, eu acho que quem delatou, mesmo, foram poucos, não é? Porque o que o pessoal sofria! Uma coragem fantástica, eu admirava muito. Mas o que eu acompanhei mais de perto foi o sofrimento das famílias. Eu acho que isso era duro, porque eles não sabiam para onde ir. Sumia. Por exemplo, um que eu me lembro que eu segui, uma certa época, muito de perto, a Rosalina Santa Cruz, que vocês conhecem, não é? A Rosalina foi muito lá em casa, porque o irmão dela, o Fernando Santa Cruz e o outro, eles, sábado, na hora do almoço, saíram para ir até a esquina para buscar pão para o almoço e nunca mais voltaram. Nunca mais a família soube nada, nada, nada. Então, eram desesperadas. A Rosalina, eu me lembro, a cunhada, a mulher do Fernando, com uma criancinha no braço, indo lá na Cúria, sabe? Você viu aquele disquete? Tem uma cena… Nós fizemos um filme depois e, desesperada, querendo saber. Batiam nos quartéis. Brasília. Todo lugar e até hoje não sabem. Outro também, como é que ele chama? Ana Rosa e o marido foram presos também, sumiram feito fumaça. E o pai da Ana Rosa, ‘tadinho’ do senhor, eles eram judeus, coitado do Kucinski, ele estava toda semana quase, em uma época em que ele ia à Cúria. Ele disse: “Eu sei que você não pode fazer grande coisa, mas aqui pelo menos eu posso falar da minha filha. Eu não sei para onde ir, não sei…”. Olha, era um drama, sabe? E chorava, coitado do velhinho. Você conhece o Bernardo, não é? O Bernardo Kucinski continua hoje, escreveu até um livro lindo, K, aquele livro é comovente. Aquilo tudo a gente acompanhou. Até hoje… Parece que tem uma pista, agora, a semana passada, sobre… Eles foram levados para fora, eu li uma notinha no jornal. O Bernardo continua na luta, não é? A gente sempre se encontra, de vez em quando, nas manifestações. Mas, enfim, foi um período muito duro, sofrido, mas também com essas coisas diferentes. Será que a gente vai recomeçar tudo agora? Me dá medo, sabe? Dá muito medo. Mas, enfim, esse é um outro problemão.
P/1 – Margarida, e naquele momento depois, com a ditadura, depois havia as greves no ABC, depois veio Diretas Já, qual era a relação? A Comissão participava desses momentos? Vocês eram chamados?
R – Não, assim... Oficialmente, jamais a gente participou de políticas. A gente defendia pessoas humanas e para que houvesse justiça. Porque a pessoa está presa, se cometeu um erro vai ser julgada e vai cumprir a sua sentença, mas não… Primeiro tem que ter um processo justo e que tenha o castigo, mas também justo. Porque a gente era contra tudo que fosse fora da lei, enquanto direitos de todos. O problema sempre era contra os Direitos Humanos, não é? Mas a gente… Era difícil, sabe? Porque, pessoalmente, alguns da Comissão faziam parte de Partidos. Partidos de esquerda ou de centro, mas era bem variado. Mas isso não pesava. Todos ali atuavam em defesa da pessoa, e no sentido cristão, de caridade, de amor ao próximo, enfim, Dom Paulo era o nosso chefe, não é? O Antonio Cândido, por exemplo, dizia: “Mas eu sou agnóstico, Dom Paulo, você não vai me aceitar”. Dom Paulo falava: “Não tem importância, você acredita no Homem, você acredita na Justiça”. E tudo era assim, sabe? Eu tenho a impressão de que a metade não era católico praticante. Com certeza, sabe? Mas todos tinham aquele espírito; senão, não estariam ali. Isso que Dom Paulo conseguiu. Mesmo politicamente. A gente não tinha ninguém de Direita ali, mas também havia ____00:46:37___ enormes, não é? Não tinha extremistas, eram pessoas de bom senso e com esse espírito cristão, era essencialmente espírito cristão. Isso foi graças a Dom Paulo, eu acho, porque era, realmente... Ele tinha essa compreensão humana. É uma pena ele ter ido tão cedo. Bom, é outra história.
P/2 – Então... E aí acaba a ditadura e assim... Como foi a sua…
R – Acaba a ditadura, a Comissão tinha crescido muito e ficou um pouco dispersiva. Dom Paulo se aposentou e já fez falta, enormemente. E depois faltou… Tinha muita gente bem intencionada, mas, digamos, cada um muito interessado no seu problema próximo. Quer dizer, uma pessoa que trabalhava com pobres de rua, ou mulheres abandonadas, então estava sempre querendo puxar para aquele seu problema. Aí, não deu certo, sabe? No tempo da ditadura, era todo mundo contra os excessos da ditadura. Isso não impediu que fizéssemos pesquisa e até publicássemos livros sobre outros assuntos. O trabalho contra a pena de morte. Fizemos uma campanha grande contra a pena de morte. Aliás, é meio chato eu contar, mas tem alguns momentos importantes. Nós estávamos fazendo uma grande campanha contra a pena de morte e aconteceu que, lá em Cuba, eles condenaram à morte dois grandes lideres lá. E todo mundo dizia que Dom Paulo era amigo do Fidel; enfim, que era ligado aos comunistas, aquela história. Aí veio essa condenação e nós estávamos numa reunião no Rio, estava com o Marco Antônio Barbosa, Frei Beto, quando vimos no jornal. Eu me lembro, era um domingo até, estava no campo de futebol, numa reunião lá. Aí, nós dissemos: “Mas Dom Paulo tem que se manifestar, porque senão… Congruência, não é? Porque dizem que ele é amigo, não vai protestar? Vai ser péssimo”. Bom, aí tentamos chamar o Dom Paulo, estava viajando, estava no exterior, e agora? Então, naquela época, eu era presidente e o Marco Antônio era vice. Aí, ele disse: “Temos que mandar uma notícia, não é possível. Mas não podemos mandar uma notícia sem falar com Dom Paulo. Mas é uma coisa muito grave, temos que mandar”. Então, redigimos uma notícia e eu mandei, em nome de Dom Paulo. O pessoal ficou meio assustado porque eu fui meio ousada. “Mas eu conheço Dom Paulo, eu sei como ele é”. Mandei. Bom, saiu, a nota era pequena, no Jornal do Brasil, saiu a notinha - que era contra. Depois, quando chegou Dom Paulo, eu fui lá assim, meio inibida, e disse: “Dom Paulo, me desculpe, mas eu achei que, politicamente, era um absurdo o senhor não se manifestar; iriam dizer que era amigo do Fidel, aí fecha os olhos sobre uma coisa dessas, não é?” “Eu vi no jornal a notícia, fez muito bem. E quando você quiser, você pode falar em meu nome. Só me avise depois”. Isso tem preço? Não tem. Todo mundo ficou com inveja (risos). Mas, evidente, eu nunca mais fiz isso, não foi necessário. Mas mostra como ele era. Eu acho que isso eu conto para mostrar a personalidade dele, sabe? Porque ele tinha uma confiança nas pessoas - não era só comigo não, com várias outras. Quando ele conhecia a pessoa, sabia que podia ter confiança, ele tinha… Na igreja ou outros que fazem isso, não sei se existe muito não. Mas era o temperamento dele, não é? Então, você ouve um negócio desses, você tem que agir de outro jeito, não pode ser uma coisa medíocre. E, com certeza, fez com outras pessoas também... Mas eu digo para mostrar a personalidade dele. A gente crescia com Dom Paulo, trabalhava com ele e crescia, se tornava melhor. Mais corajoso. Aquilo era contagioso, não é? Mas foi uma época em que essas coisas aconteciam. Hoje em dia, são outras coisas. Enfim, a Comissão continua, mas eu não tenho participado mais, eu dei para outras Comissões, depois eu criei o Movimento por Educação…
P/1 – Aí, você decidiu sair e foi criar essa Comissão de Educação?
R – É. Rede Brasileira de Educação e Direitos Humanos. Porque eu cheguei à conclusão... Acho que todo mundo, quando mexe um pouco com essas questões, não adianta nada fazer da coisa, promover... Tudo bem, é preciso... Porque quando a pessoa está morrendo, tem que dar de comer, mas não resolve o problema dela, tem que dar Educação, capacidade de se virar, não é? E eu acho que é educando. Todo trabalho realmente importante tem que ser baseado na Educação, na mudança das ideias, da disposição. E se a pessoa não muda de dentro para fora, o trabalho vai ser muito superficial, porque você pode dar mil coisas para comer, a pessoa melhora um pouco a vida. Dá uma mesada, ótimo, melhorou - está comendo melhor, está morando melhor, mas e o resto? Se ela não melhora o jeito de ser, de agir, de pensar, a vida dela não vai mudar muito, não é? Então, eu acho que Educação e Direitos Humanos como a gente entende, é uma coisa que mexe com a pessoa por dentro, sabe? E é isso que a gente quer. Que encare o outro como um igual, no Direito é igual para todos, tem que ser para todos. Se eu tenho, o outro tem que ter igual. Poder chegar a isso, se quiser. E eu acho que, se a pessoa não olha para o outro como igual, nunca se vai ter uma sociedade justa. Porque por mais que o outro seja diferente, mas é um ser humano, que tem a mesma dignidade. Enfim, é complicado mas é por aí, no essencial. E a experiência que eu tive, olha, eu me convenci de que não tem outra solução, tem que ser Educação. Porque as coisas só vão melhorar, realmente, com Educação. Educação nessa formação de ser gente, ser uma pessoa positiva, que se ocupa com os outros, que não é egoísta. Isso não é entendido. Eu não sei… Eu gosto de citar exemplos, porque eu acho que coisa vivida é melhor, não é? Por exemplo, quando o José Gregori foi presidente da Comissão - era muito meu amigo, era Ministro - nós organizamos, em Brasília, um curso para… Eu não sei se existe ainda, era uma entidade que organizava cursos rápidos para o excesso do serviço militar. Porque tem aqueles que são chamados... Com dezesseis, dezessete anos são chamados para o serviço militar, mas um contingente enorme fica fora, porque não tem espaço, não tem condições, são recusados, e eles estão... Esses rapazes ficam sem ter o que fazer, porque não têm idade, não têm carteira de trabalho ainda, então, não têm trabalho. O que ficam fazendo? Já acabaram o curso Primário, então eles… A maioria dos delinquentes está nessa faixa. Então, é um problema sério. Esse departamento, não sei se existe ainda, organiza um curso para esses rapazes, é um curso de formação - não só complementa o Primário deles, que em geral é fraquíssimo, mas dão uma ideia de civilidade, e na formação moral sobretudo, não é? Muito interessante. Eu fiquei apaixonada pelo programa. E, nessa época, nós fomos dar o curso para os professores desse curso, que eram recém-formados em Universidades, os rapazes que tinham mais informes, também todos moços, não é? E foi muito interessante, uma semana intensiva, de manhã e de tarde. Olha, deu um trabalho monstro, foi uma das coisas que mais trabalho eu tive. Fiz as apostilas, projeções, enfim, foi bem caprichado. E os professores iam daqui - esses do Veritas, muitos deles - outros lá de Brasília; mas a maioria era de São Paulo. E logo depois conversavam com eles, enfim, um programa bem interessante. E demorou só uma semana. E, no fim, fizemos a avaliação, que eu tenho aí até hoje, porque de vez em quando a moral está baixa, a gente vai olhar uma coisa dessas, fica mais contente. Eu me lembro até hoje do que um rapaz disse: “Esse curso vai mudar a minha vida, eu não vejo mais as coisas do mesmo jeito, até deixei de brigar com a minha mulher. Eu acho que, realmente, agora eu vou agir diferente”. Mas ele pôs isso em outras palavras, por escrito. Eu tenho acho que três ou quatro. Isso não compensa o trabalho, não é? Então eu digo: “É por aí”. A gente tem que procurar… A nossa intenção era mudar a pessoa por dentro, dar valores, uma razão de viver. Porque as pessoas não têm mais razão de viver. Está viva, vai continuando, joga para frente. Mas tem, assim, um ideal de ser melhor, fazer os outros serem melhores, ter o mínimo. Esse ideal precisa ser transmitido, não é? E eu acho que isso compensa qualquer trabalho. Por isso que, apesar de eu estar com esta idade, eu ainda espero continuar até o último dia, morrer em pé, trabalhando, porque isso me faz muito bem, me dá muita alegria. Se o resultado não é o que eu queria, sinto muito que não fui capaz de fazer melhor, mas me esforço, e eu acho que compensa. Eu me sinto bem quando a gente… Quando aquela criança... Quando o médico disse: “Você salvou a vida dessa criança”. Isso para mim foi um negócio que marcou assim a vida. Você fazendo um pouquinho é capaz… Porque, realmente, o que eu fiz foi quase nada, salvar uma vida. E em outros níveis, é a mesma coisa. Você falando, explicando… Olha que eu não sou muito de falar não, não sei falar em público, não sei fazer grandes preleções, mas pelo menos… Mas eu acho que vale a pena, quem sabe fica alguma coisinha e daí para diante vai modificar, não é? Você diz uma coisa que parece pequena e tem um efeito enorme. Porque bate na outra no momento preciso, numa necessidade que ela tem, não é? A vida é bem complicada, mas é apaixonante. As pessoas... Eu acho que as pessoas são sempre interessantes. E a gente precisa descobrir, entrar em sintonia. Não é fácil, mas acho que pode tentar. É uma pena, eu fico tão deprimida quando eu vejo essas ondas de ódio que têm agora nos jornais, em toda parte, em todos os meios de comunicação, que triste. Brasileiro não era assim, como é que ficou, meu Deus? As coisas bobas, as famílias divididas por questões bobas, superficiais, não é? Então, como a gente faz? Precisa se unir, partir para outra campanha.
P/1 – Margarida, voltando um pouco, essa Comissão Nacional de Ensino, de Direitos Humanos, o que foi? Qual era a politica dela? Era para ser ensino nas escolas?
R – A ideia é você ter, em todas as escolas, professores que pensassem isso também, que isso - Direitos Humanos - não se ensina numa aula. Direitos Humanos, você dizer... “das dez às onze horas vocês têm aula de Direitos Humanos...” não dá, não é? Não é isso que a gente quer. A gente quer transformar os professores, para que primeiro eles vivam os Direitos Humanos, na sua prática, e transmitam. Porque nós temos vários artigos e o livro uruguaio sobre isso. Direitos Humanos é o dia-a- dia que a gente vive, não é? A prática, a vivência. Ensinar o menino a tratar o colega com respeito, quer dizer, sem raiva, emprestar uma borracha, um lápis, se ele estiver precisando. E, por exemplo, não ter esse bullying que hoje prejudica tanto as escolas, é justamente o contrário. Se o menino tem uma deficiência, que as professoras se preocupem em fazer com que os outros entendam que aquela deficiência não é culpa, vão ajudar o menino, sabe? É nesse sentido de universalidade. A gente está ensinando o cristianismo, de certo modo, na verdade, que são os Direitos Humanos. Os direitos, o que são? São o respeito ao próximo, a dignidade dessa pessoa, que é igualzinha a mim - as circunstâncias podem ser diferentes, mas eu sou igualzinha a outro que eu encontro - e nós temos sempre algumas… Eu sempre volto na prática, porque o que vier da prática sempre é diferente. Mas algumas escolas que mudaram têm uma…
P/1 – Mas era um programa o quê? Era um programa nacional?
R – Era. Nós começamos... Mas acontece que foi assim... Nós temos até material, não sei se eu dei para você. Começamos aqui em São Paulo, depois criamos uns vínculos afins, criamos a Comissão Brasileira de Educação e Direitos Humanos e estávamos fazendo Encontros. Fomos a Recife, Natal, Salvador, Rio, Porto Alegre, organizamos cursos em geral - ligados a Universidades - tinha mais uma organização... E, nesses cursos, íamos crescendo justamente com o pessoal de Costa Rica, que tem o Instituto Latino-Americano de Direitos Humanos e é mais ou menos crescendo, mas modestamente, porque havia uma dificuldade monetária enorme, porque para ir para outro lugar assim, sai caro, não é? Então, nós não tínhamos verba. Íamos… Mas foi crescendo devagarzinho. Aí veio o governo do Lula e o… Quem era o ministro? Não era o José Gregori. Mário Miranda, e foi… Ele nem entrou, Secretário de Direitos Humanos, e eu lembro que eu estava em Brasília, almoçando com ele, e ele disse: “Escuta, o que você acha que deve ser minha prioridade de ação?” Eu disse, sem hesitar: “Educação e Direitos Humanos”. “Interessante…”. Conversamos e passou. Pouco depois, ele telefona e diz: “Vou criar uma Comissão aqui, de Educação e Direitos Humanos”. E assim foi feito. Aí, pediu o nome dos meus companheiros que já estavam trabalhando nisso e eu estava... A rede quase que inteira passou a fazer parte da Comissão, em Brasília. Então, tinha o Solon, do Rio Grande do Sul; tinha a Ana Nazaré, de João Pessoa; tinha a Aída Monteiro, do Recife. Que eram assim, pessoas entusiasmadas com o programa, e o pessoal do... A Vera Candau também, que tem vários livros sobre o assunto. Todo mundo foi para lá, e aí resultou que a rede quase morreu, porque não dava para a gente fazer. Eu achei que era muito mais importante você participar de uma coisa a nível nacional do que nós aqui, com tanta dificuldade. Então, eu acho que morreu de morte morrida, sabe, porque…
P/1 – Morreu, mas renasceu à frente…
R – Pois é, ficou e hoje, não vai assim, 100% não, mas tem. Aqui mesmo em São Paulo, nós tivemos muito apoio do Sottili, tem gente que entendeu o que é, e acredita e apoia, sabe? Mas está um pouco parado, ultimamente. Então, vamos esperar que melhore. Mas, ultimamente, era o que eu fazia. Agora, essa Comissão Arns... Aliás, ontem tivemos uma reunião. Vamos ver o que vai dar. É um pouco na mesma linha da Comissão de Justiça e Paz…
P/1 – Por que se constituiu? Como é que as pessoas se organizaram para fazer essa Comissão?
R – A Comissão foi organizada pelo Paulo Sérgio Pinheiro, que sempre foi da turma, embora cheio de iniciativas. Ele que formou a Comissão e convidou. Tem cinco ex-ministros, uma Comissão chique, não é?
P/1 – Quem são?
R – Tem o José Gregori, tem o Bresser Pereira, José Carlos Dias, Paulo Sergio, quatro e falta um. Quem é? Não me lembro. Mas, enfim, eu sei que são cinco; dos vinte, são cinco. Vai fazer um pouco isso, primeira reunião de trabalho se deu…
P/1 – Por que se formou, neste momento, essa Comissão? Por que ela foi…?
R – Ela vai defender os Direitos Humanos - pessoa humana - um pouco a mesma ideia da Comissão, mas com outros poderes, porque não tem o apoio de Dom Paulo.
P/1 – Mas por que ela se forma neste momento?
R – Porque o momento é difícil, não é? E a perspectiva é que vamos ter muitos problemas em Direitos Humanos. Então, já estamos nos preparando e uma Comissão oficial tem mais peso do que uma pessoa… Então, a gente tem contatos e há todo um movimento, digamos, várias entidades estão se mexendo. Por exemplo, se houver tortura, se houver perseguições, já tem um grupo grande de advogados que se dispõe a defender essas pessoas. Se, por exemplo... A gente tem um problema seríssimo com os índios no Nordeste, e se está pensando em encarar isso, como ajudar. Houve esse menino que foi morto lá no supermercado, também é um caso que talvez a gente assuma. Foi morto estupidamente pelo segurança. Então, levanta problemas seríssimos, não é? O caso em si que foi… O homem diz que foi em defesa, foi nada, foi pelo desprezo que ele tem pelos outros, esse segurança, então vai estudar o que é segurança… Enfim, sabe, você puxa assim uma coisa, vêm mil outras coisas a propósito. Essas enchentes também, tem a parte jurídica e de justiça. Enfim, mas isso tem os especialistas. Isso eu não vou me ocupar não, não entendo de Direito, mas eu sempre… Cada um tem um papel, não é? O meu, por enquanto, não dá. Sabe, eu já… noventa e seis anos pesam, eu fico tão cansada (risos). Eu gostava muito de… Por exemplo, tinha um problema no Norte - Araguaia - aqueles problemas, matavam padre, matavam uma pessoa, a gente ia lá. É a tal história: você indo lá já dá outro peso para os defensores. Alguém de São Paulo, seja lá quem for... Dá mais… A mando de Dom Paulo, não é? Quer dizer, eu me lembro do Padre Josimo. Ninguém sabe quem é Padre Josimo aqui, não é? Mas foi um padre que era negro, rapaz moço, ainda de uma dedicação... Uma coisa incrível. O pessoal pobre de lá... Foi assassinado. Aí, eu fui lá. Corria todas as casas, que eram humildes, em chão de terra, o retrato dele - o homem era assim, um santo. Aliás, eu acho que ele era santo mesmo. Ele se dedicou àquilo, você vê, o fato da gente ir apoiar, mesmo que a gente não fizesse grandes coisas. E outras ocasiões assim.
P/1 – Margarida, e você também fez parte da Comissão Teotônio Vilela. Como foi esse convite? Como é que você entrou na Comissão?
R – Olha, eu entrei sempre pelo convite do Paulo Sérgio. Paulo Sérgio sempre foi de iniciativas. Fiquei o tempo todo lá. Também era outro mundo. Nós íamos muito nas prisões, sabe? Eu digo sempre que as pessoas deviam, pelo menos uma vez na vida, visitar uma prisão. Não esquece nunca mais. O cheiro, sabe? Para mim, ficou um cheiro... Tenho a impressão de que durante uma semana eu tinha na narina aquele cheiro de fezes com urina, com mofo, com suor - é um negócio indescritível. E as pessoas tratadas feito bichos, jogadas ali, olha... Mexe com a gente. E há advogados que nunca pisaram... Juízes sobretudo, que nunca pisaram numa prisão. Devia ser obrigatório, porque os direitos têm que passar pelo menos… Basta visitar, já tem noção, não é? Não é possível mandar uma pessoa para aquilo ali. E estão querendo fazer mais, idêntica. É um problema seríssimo. Querem mandar fazer outras iguaizinhas e… Aliás, é mundial. Ninguém sabe a solução. Como fazer prisão, prisão que recupere a pessoa. Não adianta só ficar lá, sai pior. São escolas de ladrões, eles aprendem a roubar melhor, a matar mais rápido. É uma escola, a prisão, não é? Dizem que é a Universidade do crime. Bom, isso é outra história.
P/1 – Você ficou todo o tempo de duração da Comissão Teotônio Vilela?
R – Fiquei desde a fundação. Severo Gomes, o Hélio Pellegrino, que é uma das criaturas mais maravilhosas que eu já conheci. O Hélio Pellegrino é do Rio. Quem que tinha mais? Severo Gomes também, que era ótimo, dedicadíssimo. João Batista, era outro tipo de… Outras pessoas. O Suplicy, evidente, não é? Suplicy, diziam brincando: “Quando você tiver a sua mãe que foi presa, quando você chegar lá para ver um problema, o Suplicy já chegou e já está lá resolvendo”. Ele é de uma eficiência, sabe? Muito especial. Ele é dedicadíssimo! Até hoje, está sempre… Tem um problema, já está ele lá ajudando. Mas esse trabalho me fez conhecer gente tão interessante, das quais eu fiquei amiga. Que hoje, em sua maioria, são amigos pessoais, da gente se frequentar e tudo. Mas conheci pelo trabalho. Então, eu digo que foi uma riqueza enorme, não é?
P/1 – Você sempre, quando você fala dos nomes, você fala muito nome de homens. Como é que é? Como é que está a participação aí das mulheres?
R – Realmente, sempre teve mulheres ótimas, muito dedicadas também, na Comissão. Nós tínhamos a Márcia Jaime, a Ligia Bove, que eram oriundas daquele núcleo lá da Ação Católica também, sabe? Muitas vieram dos dominicanos. Mas a maioria sempre foi de homens. E a maioria foi sempre de advogados. Porque eles que tinham… Mas tivemos também o Antonio Cândido, por exemplo, ele era muito a fim. Mas, quem mais que tínhamos como mulher? Realmente, agora você tocou num ponto que era… Tinha a Lígia, que era muito minha amiga. Também a Ivi, que foi dedicada, morava aqui pertinho também. Não tinha assim uma discriminação, mas acontecia… É isso.
P/1 – Você teve uma participação ativa no Massacre do Carandiru, uma atuação através da Comissão.
R – Não, propriamente. Explicitamente, não. Eu fui lá, até tem uma foto aí, não sei se você viu, tem a foto de um rapaz com a barriga aberta, de tiro, que eu tirei, da cela. Nós fomos lá depois que aconteceu, evidente, não é? Para constatar. E depois, para fazer parte do grupo que contestou e aquela coisa toda, não é? Mas eu não vi, não. Só vi o filme, que é de arrepiar. Vocês viram o filme?
P/1 – Mas você foi para o Carandiru logo na sequência? Vocês entraram na…
R – Fomos sim, fomos. Mas assim... Já depois de enxugar o sangue que estava correndo, porque não era previsto aquilo. E foi um negócio triste, horrível aquilo. Mas não tivemos um… O que se podia fazer naquela época? Só protestar. E aquele julgamento absurdo, deles serem todos anistiados, praticamente. Mas esse não foi o único caso, teve mais. A Justiça, no Brasil, é muito especial. Mas aquele caso foi terrível! Pela Comissão, nós estivemos também em Taubaté, estivemos em outros presídios.
P/1 – Qual foi? Em Taubaté?
R – Taubaté tinha um presídio lá. A primeira vez que nós fomos, não nos deixaram entrar - tem até uma foto que saiu no jornal. Depois, qual era o problema? Eu não me lembro, tinha uns presos lá especiais, que estavam reclamando dos maus-tratos, a gente tentou ir e não conseguiu. Mas, sabe, esse campo aí é um campo minado; é dificílimo trabalhar no campo dos presos. Eu confesso para você que aquilo é doído demais, sabe? A gente fica dividida, porque as pessoas são tratadas feito bichos, não é? E aquilo incomoda, eles também são tão… Um aspecto assim... Tão asqueroso, você fica chocada. É complicado. Precisa ter um temperamento muito especial para trabalhar… Eu não… Ia me fazer... Fisicamente, ia me fazer mal, sabe? Você sabe que é um tipo de miséria, de problema, que vai além dos seus limites. Eu acho heróico. Uma pessoa como o padre… Que se dedica muito a isso, o padre… Tinha um padre que se ocupava... Agora está em Ribeirão Preto, fazia parte da Comissão, ele se chamava… Ai, meu Deus, daqui a pouco eu me lembro, mas é uma vocação especial. Eu acho que cada um dá para uma coisa. É tanto problema, a gente começa a mexer nos problemas sociais, você puxa um fio, é uma meada complicada, porque é tudo interligado. Agora por exemplo, você vê esse massacre lá desses meninos, quanto problema tem por trás. A situação pessoal deles, a situação da escola, na relação do ensino, desse clima de ódio. Vão haver outras, com certeza vão acontecer outros incidentes iguais. Com certeza, e não só a nível de… Mas eu tenho muito medo dos pequenos crimes, sabe? Esse negócio de ter arma, você já imaginou, um briga com o outro, a arma está ali, é só pegar, instintivamente, e pode até dar um tiro, não é? Eu acho seríssimo! E tudo isso por trás, o interesse das fábricas de armas, não é? Mas você diz isso, fica tudo com raiva.
P/1 – Podemos voltar só um pouquinho na Comissão Teotônio Vilela? Qual foi o papel dela? O grande papel dela na sua opinião, naquele momento?
R – Olha, foi primeiro chamar a atenção, porque ninguém se ocupa, nem pensa na situação. Tem que prender e depois esquece como fica, como é tratado, se é recuperado, ninguém se pergunta. Eu acho que a Comissão veio chamar a atenção sobre o problema. E, não sei, alguma coisa eu acho que adiantou. Mas o problema é tão grande, tão numeroso, que foi uma gota d’água. Paulo Sérgio foi quem nomeou, a gente se esforçou, e muito. Sobre tudo, não é? Mas eu acho que até uma reforma... Os problemas têm vários níveis, desde o pessoal até o intermediário, e até os responsáveis, os governos. Então, para ser mudada a essência, uma mudança que valha é muito difícil. O que eu acho: mudar as pessoas aqui na base para elas mudarem o modo de agir e, aos poucos, influenciarem, não é? Isso aí é muito difícil, só com Educação e Direitos Humanos. Eu acredito muito nisso, sabe? Eu acho que é por aí. Eu fiquei contente, que o Mário entendeu bem, ele ajudou, ele foi ótimo, foi muito eficiente. Mas foi uma gota d’água, como tudo aqui no Brasil é tão grande. Quando a gente compara com os outros países, é demais. Será que dá jeito? Mas, vamos tentando.
P/1 – Margarida, e na sua vida assim, na criação das suas filhas... Aí elas cresceram, como é que foi se dando isso? Você nesse trabalho todo com Direitos Humanos, sua relação com as filhas…
R – Evidente que elas têm… Muita coisa elas pensam igual. Agora, você tem uma diferença de geração, não é? Eu digo sempre que a pior fase na minha vida pessoal foi na época da adolescência delas, porque tudo é contestado, tudo que você faz é errado, tudo é mal feito, tudo devia ser de outro jeito, você é quase que uma inimiga. Isso não sou eu, só. Eu sei que os outros também passam por isso, mas é duro. Então, é muita coisa junta, sabe? Mas elas, no fundo, pensam igual, graças a Deus. Porque tem casos tristes, como uma reação aos pais, ficam do outro lado, isso eu acho que deve ser um sofrimento horrível. Mas não, minhas filhas são ótimas. Sempre me apoiaram, vamos ver como que é... Estão firmes. E, pessoalmente, têm as suas ideias pessoais. A gente… É muito difícil criar filhos hoje em dia, sobretudo adolescentes. Eu tenho pena de mãe…
P/1 – Elas são ligadas aos Direitos Humanos também? Defesa dos Direitos Humanos?
R – São. São ligadas, sim. São muito interessadas, me ajudam muito. Agora está tudo um pouco disperso, mas me ajudam muito. E, felizmente, não é? E faziam a parte crítica, que é importante, acho importante a gente ter críticas, porque nem sempre vemos as coisas como são. Mas, graças a Deus, elas são ótimas.
P/1 – E você tem algum hobby? O que você gosta de fazer? Ler…
P/2 – Como é que é a sua vida?
R – Eu gosto muito de cuidar de casa e gosto muito de ler. Realmente, eu acho que se eu tenho um momentinho, eu vou ler. E sempre gostei muito de ler, sinto pena de não ter mais tempo. Então, a gente lê os livros, certos livros eu gostaria de reler, porque não deu para absorver bem, não é? A mesinha de cabeceira está ‘assim’ de livros, que algum dia talvez eu possa ler, mas não dá. Mas eu gosto muito de casa, adoro receber. Por exemplo, eu combino com alguém: “Vamos almoçar fora?” “Não, vem para casa, é melhor”. Eu prefiro, sabe? No dia a dia, eu como a coisa mais simples possível, mas se tem visita, eu tento fazer alguma coisinha melhor. Então, já é uma ocupação, porque dá trabalho, não adianta dizer que não dá trabalho. E hoje a gente tem menos auxiliares, isso tudo, a qualidade nem sempre… Antigamente, era mais fácil, dizia: “Faz isso, faz aquilo”. E aparecia feito. Agora, se você não vai ajudar, não dá, não é? Os profissionais estão em outros lados, mas eu tive empregadas assim... Tem uma que ficou vinte anos; outra ficou sete; a última cozinheira ficou seis anos, até que teve bebê, quer dizer, você fica… Quer dizer que é parte da família, não é uma imagem só, é na prática. Ela já sabe como a gente pensa, o que a gente gosta, facilita muito, não é? E a gente tem que reconhecer que facilita muito a vida. Se você tem uma infraestrutura, não é? E se ainda tem marido para reclamar e para exigir, ainda piora. Mas eu aprecio, eu gosto de reconhecer, elas merecem. Porque sem elas, muita coisa não poderia ser feita. E isso a gente não pode esquecer.
P/2 – E você tem um grupo de amigos? Amigas? Como é?
R – Eu tenho muitos amigos, aqui no Rio. É bacana. Mas a maioria já morreu, também. E mesmo família já diminuiu, está reduzidíssima. Eu tenho uma cunhada, que é viúva do meu irmão, em Brasília, com os filhos que também estão lá, então a gente se vê pouco. E as amigas... Aí, antigamente, tinha muitas amigas na Europa, quando eu ia, ficava na casa delas, era gostoso, porque era conhecer outro tipo de vida. Mas também a maioria já se foi. Então, vai ficando assim, triste. Evidente, eu não vou mais à Europa agora, mas tenho saudades daqueles tempos. A gente conhecer outro mundo, faz bem. Mas eu tive essa sorte. Tinha os amigos internacionais, que deixaram saudades. Depois, é outra época, sabe? Quando eu olho para cinquenta anos atrás, isso aqui era outro planeta, superficialmente pode ser igual, mas o dia a dia, era outro planeta. Mas é bom ter experimentado tudo isso. Eu acho que tive muita sorte na vida, muita sorte mesmo, porque essas experiências variadas, e vários lugares, a vida se dividiu entre Rio, Campinas - fazenda, e São Paulo: três tipos de vidas diferentes, três tipos de pessoas diferentes, não é? Então, isso é bom. Chega no fim eu digo que, poxa, eu vivi, não passei só pela vida feito… Como diz Manuel Bandeira: “Passou pela vida como uma nuvem e não viveu” (risos). Então, eu digo que não passei pela vida só, não, graças a Deus. Acho que vivi bastante, vivi coisas maravilhosas, que talvez pouca gente tenha tido essa sorte. Eu sou consciente disso. E devo muito a essas pessoas todas que eu conheci, as várias etapas. A gente é muito o resultado dos contatos, das amizades; enfim, eu acho que os outros sempre enriquecem a gente muito. É preciso estar aberto a isso e eu espero fazer isso até morrer.
P/1 – Margarida, o que você achou da experiência de contar a sua história e deixar registrado no Museu da Pessoa?
R – Eu achei uma coisa… Não sabia que existia o Museu da Pessoa, eu fiquei encantada com o trabalho de vocês, porque a gente, em Sociologia, a gente está sempre atenta a como é que estão as coisas, como é que vão, o quê significa e ali, vocês estão condensando. Porque você esquece as coisas que viveu, no seu plano pessoal, muito mais no plano grande, social, as coisas passam, esquecem. E você vê, eu acho que a história, você pega no livro o século passado, o século XIX, parece tão estranho. É tudo mais ou menos do mesmo jeito - viveu assim, assado, se vestiu, fez isso ou aquilo. Mas por dentro das pessoas, como é que elas eram, como pensavam? O que adianta… Eu sempre digo que não adianta saber que o avô chamava assim ou assado, a minha avó, dona Cotinha, que eu achava graça no nome, que era uma pessoa interessante, eu sei tão pouco sobre ela; meu bisavô então, nem se fala! Mas sabe o nome. O interessante seria a história, se você pudesse saber como era aquela pessoa, como sentia, como pensava, como gostava, não é? Como participou. E vocês estão fazendo isso, que eu acho que é fantástico, porque isso que é história de vida. Porque você compara a vida de uma pessoa qualquer no século XIX, é outra coisa, não é? Você lembra daquele estereótipo da mulher toda babadinhas, das roupas clássicas, chapeuzinho e tal, lacinhos, e aquelas anedotas dos homens para as mulheres que faziam, aconteciam. Mas não é isso, e como é que elas pensavam? Minha avó, por exemplo, como é que ela pensava? Quais eram os valores dela? Como é que ela se relacionava com os filhos, com o marido? Eu teria uma curiosidade enorme de conhecer. Não adianta você pegar álbum de família e ver fotos. Vocês fazem o contrário disso; isso que eu acho fantástico. Eu acho muito interessante. Para você conhecer uma época, você vai ver essas pessoas como viveram, o que pensavam, e assim mesmo, ainda fica faltando muito. Mas eu acho o trabalho de vocês apaixonante. Eu acho que vale a pena. E quantos vocês já têm?
P/1 – Ah, tem uma equipe de umas trinta pessoas.
P/2 – Não, quantas histórias?
P/1 – Ah, histórias? Dezoito mil pessoas. Dezoito mil e um com a sua.
R – Por exemplo, se quiser saber como era o dia a dia de uma certa época, você vai ter detalhes daquilo que eu contei, uma ou outra coisa vai ser importante para vocês terem. Junta isso tudo, é uma impressão muito mais verídica do que você pegar o livro de História, ano tal, aconteceu isso, aquilo, foi para lá… Não quer dizer nada. Eu sei que vocês aí entram mais profundo na pessoa.
P/1 – Margarida, a gente pegou um pedacinho da sua história, você tem uma história maravilhosa, a gente pode voltar aqui quantas vezes for necessário. Tem alguma coisa que hoje lhe ocorre, assim, que você gostaria de deixar registrado, que a gente não tenha tocado? Alguma lembrança que lhe vem, ou de família, ou do seu trabalho? Ou do filho, da casa, do Paulo, da Comissão? O que você gostaria de deixar mais registrado?
R – Olha, é difícil. Precisava pensar um pouco. Eu não sei. Realmente, não sei. Eu sei que a gente sempre pode fazer melhor do que fez. Isso é uma constatação normal, e acho que a gente tem que aproveitar o melhor possível do momento presente, não sempre desejando culturas diferentes, que aí perde o presente, não é? Mas sempre vai fazer errado, podia fazer melhor também, mas aproveitar as circunstâncias. Eu acho que nós somos feitos de circunstâncias, que soubemos ou não aproveitar e tirar partido, seja para um lado ou para o outro. Mas eu acho que dar mais valor ao relacionamento humano, porque a sociedade hoje está dispersando, a gente se encontra muito, mas tão superficialmente... E isso é uma dimensão que perde. Então, a gente consegue mais quando está mais velho, mas aí já perde também muita coisa, porque já está mais velho, não pode ou não dá. Mas viver é interessante, sabe, vale a pena. Eu, pelo menos, estou tranquila, fiz o que pude, podia ter feito muito mais, mas dá a impressão de que eu me esforcei. Eu peço a Deus que conte isso, eu me esforcei, acertei ou não, algumas coisas sim, outras deixei de fazer, mas é normal, não é? Mas eu gostaria de transmitir aos outros essa confiança. Confiança em Deus. Eu tenho, na minha formação, essa fé em Deus, que sempre foi o impulso de… Evoluiu, evidente, evoluiu muito, graças a Deus, espero que evolua até morrer, mas vale a pena viver quando a gente tira partido das circunstâncias, não é? Isso é o que eu acho.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa, a gente quer lhe agradecer. Privilégio estar aqui com você.
P/2 – Um presente.
R – Eu não sei, como eu disse, eu sou tímida, gostaria de me expressar melhor, mas não dá. É só assim, paciência. Eu já me aborreci com os meus defeitos, agora aceito como eles são. Se quiser gostar assim, tudo bem; senão, paciência. Eu acho que fui uma pessoa de sorte. Vocês que ouviram tanta gente, não acham que eu fui uma pessoa de sorte?
P/2 – Foi.
P/1 – Você criou a sua sorte.
P/2 – Você construiu também, não é?
R – Ajudei, mas enfim… Não cabe a nós medir, não é? Só Deus que pode fazer isso. Eu estava lendo ultimamente, sobretudo depois da morte da minha filha, Elisabeth Kübler Ross, vocês já leram?
P/2 – Não.
R – É uma psiquiatra, era suíça e depois foi para os Estados Unidos, mas ela passou a vida estudando as pessoas que estão morrendo, a agonia final das pessoas. É muito interessante, sabe? E me fez muito bem agora que eu perdi minha filha, que foi duro. E ela estudava as reações. E, em uma circunstância, eu tive uma oclusão intestinal há muitos anos atrás, uns quarenta ou cinquenta anos, quase morri. Então, eu vivi aquele momento que você está mais para lá do que para cá. Você entra assim, primeiro parece que você sumiu assim, de si mesmo, o corpo ficou lá e você está aqui. Depois, você vê as pessoas - pelo menos para mim foi assim - as pessoas que já morreram, que foram próximas de você, estão olhando assim. Depois tem um túnel, com uma luz linda, uma coisa nunca vista, entre luz amarela, uma luz branca, diferente. Aquilo, a gente vai andando para aquela luz, para mim foi até aí. Agora, ela fez essa experiência com acho que oito mil pessoas, ela escreve vários livros sobre… Todos falam isso, somem, vêm e voltam, e depois a luz, a luz… Essas oito mil pessoas viram esse túnel com a luz e muito mais coisas, porque eu não passei para outro estado. Então, dá o que pensar, não é?
P/1 – Você via isso? Você estava nesse estado? Você chegou nesse estado?
R – Eu cheguei só até o túnel com a luz no fundo, mas tem pessoas que viram mais… Mas eu não. Tem muita coisa parecida sobre esse…
P/1 – E quando é que foi? Quando você recuperou, que você voltou e viu que você não estava lá?
R – Depois eu voltei a mim. E depois, me lembrei de ter passado por isso, mas eu não liguei. Se eu tivesse lido o livro antes, eu iria dizer que foi influência, mas foram dez anos antes, pelo menos, que eu tive isso. Com a operação. Porque eu fiquei mal. Então, aquele livro dá muita paz, sabe? Porque a gente vê que, realmente… enfim, quem quiser acreditar acredita, não é? Tem outra coisa, outra coisa boa, interessante. Se vocês tiverem ocasião, é o Vida Após a Morte, Elisabeth Kübler Ross.
P/1 – Vou ler.
R – Vale a pena, tem vários, mas esse é o melhor, sabe? Mas ela é… Bom, tem mais coisas meio infantis, como… Apesar de ser suíça, é muito americanizada, porque viveu lá, mas é uma experiência interessante, porque para ela é uma coisa boa, é uma passagem para uma coisa melhor. Isso que fica. Eu acho que ajuda a gente. Sobretudo, quando perdeu alguém. Isso é outra história. Gente, vocês devem estar com fome, e nem café tomaram.
Recolher