P/1 – Então primeiro, Francisco, fala pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Francisco José Araújo Carvalho.
P/1 – E data e local de nascimento.
R – Nasci em 21 de outubro de 1945, em Muzambinho, Minas Gerais.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe.
R – Do meu pai, Francisco Carvalho; da minha mãe, Rute Moura Araújo Carvalho.
P/1 – A data e o local de nascimento dos dois você lembra?
R – Dos dois.
P/1 – Isso.
R – Do meu pai em Águas Quentes, na época se chamava... É Águas Quentes, que fica em São Sebastião do Paraíso. São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais. Ele nasceu em Águas Quentes, que hoje se chama Termópolis. Termópolis é uma pequena estância termal lá no município de São Sebastião do Paraíso, que fica ali perto.
P/1 – E a sua mãe?
R – Muzambinho. Muzambinho, Minas Gerais.
P/1 – O que seus pais faziam profissionalmente, Francisco?
R – O que eles faziam?
P/1 – É.
R – O meu pai, ele tinha um cartório em Monte Santo, que fica ali perto. Ele tinha um cartório em Monte... Um cartório em Monte Santo.
P/1 – E a sua mãe?
R – Desculpa. Quando ele era mais moço, ele tinha um cartório, depois ele trabalhava na... Quando nós conhecemos, nós os filhos, na Coletoria Estadual de Minas Gerais, que recolhe os impostos. Coletoria Estadual de Minas Gerais, ele trabalhava ali.
P/1 – E a sua mãe?
R – Professora do colégio estadual de Muzambinho.
P/1 – E como eles eram, os seus pais? Descreve um pouco pra gente assim.
R – Como eram?
P/1 – É. O jeito deles, a personalidade.
R – O jeito e a personalidade? O jeito e a personalidade?
P/1 – É. Isso. Isso.
R – O meu pai, infelizmente, bebia muito. Bebia muito. Bebia muito, infelizmente, isso é uma coisa horrível. Horrível. Nós nem sabíamos, nós os filhos, nem sabíamos disso, porque na nossa infância ele já tinha superado esse problema, estava bem comportado, foi um bom pai na infância. Mas quando ele era moço, bebia demais, então a minha mãe teve que resolver esse problema, teve que conviver com uma pessoa assim e domesticá-lo. A minha mãe conseguiu domesticá-lo, aí ele parou de beber. Mas foi horrível, é uma coisa horrível. Horrível. Horrível.
P/1 – E a sua mãe, como ela era?
R – Pois é, a minha mãe é de uma família tradicional aqui do estado de São Paulo, presbiteriana desde 1870, mais ou menos. A mãe dela saiu daqui e foi para o sul de Minas, pra Muzambinho, por causa do café da época. Em 1900, mais ou menos, 1900 e pouco, por causa do café, porque o café era a grande riqueza do Brasil, e as pessoas evidentemente correm atrás da riqueza e as pessoas iam atrás do café na época da república do café com leite, da República Velha. Então a mãe dela saiu daqui, foi morar em Muzambinho, conheceu um fazendeiro lá, o meu avô, casou com ele. É isso. E o meu avô, ele era um fazendeiro típico ali da região ali. Era um fazendeiro daquela época, típico daquela época, e um fazendeiro durão assim, violento. Muito violento, muito durão. Era um coronel. Era um coronel da política. Naquela época as pessoas eram assim. Coronel não do Exército, coronel da política, e as pessoas tinham medo dele, isso é importante que seja dito. As pessoas tinham muito medo dele, é verdade isso. E eu não sabia disso. Essas coisas, muito tempo depois eu fiquei sabendo disso, que o meu avô era assim.
P/1 – Você conheceu o seu avô?
R – É gozado isso. Conheci. Eu tinha fotos quando eu tinha quatro anos de idade, ou menos, ou mais, tinha diversas fotos que foram tiradas a foto dele assim e eu... E ele em pé, e eu ali. E ele gostava muito dos netos, gostava muito de mim, aparecem as fotos lá e tal.
P/1 – Francisco... Pode falar.
R – Então você sabe, essas coisas são transmitidas para os filhos e para os netos. O jeito de ser do meu avô, quer dizer, ele era um fazendeiro violento e todo mundo tinha medo dele, tal, e é verdade isso. Isso é transmitido para as pessoas, as pessoas tinham medo dele, tal. E, por exemplo, eu fiquei sabendo depois, fiquei sabendo que eram diversas filhas e um filho. Diversos. E a outra minha tia que morava aqui no interior me falou que a minha mãe era a única pessoa, a única filha e tal que não tinha medo do meu avô. Por exemplo, são pequenas coisas que a gente fica sabendo. Ela não tinha. Eu acho isso ótimo que ela não tinha mesmo. Uma maravilha. Então essas coisas são transmitidas. E aí a gente começa a entender por que os netos se comportam assim, ou assado, por causa da herança. E outra coisa que foi transmitida foi a educação presbiteriana pra minha mãe, por exemplo. É outro componente.
P/1 – Francisco, você sabe qual a origem da sua família, de onde vieram seus antepassados?
R – Tudo de Portugal. A família da minha mãe evidentemente veio de Portugal, família tradicional. Existe um livro que fala isso, até posso dizer aqui, que foi escrito pelo Américo de Moura, que era um historiador antigo, que era tio da minha mãe, ele escreveu um livro: A família Antunes Maciel. Então ele escreveu a família, que é a árvore genealógica, A família Antunes Maciel. Então através desse livro nós ficamos sabendo de tudo, desde 1640 e não sei o quê, até agora. A gente está tudo documentado, árvore genealógica, então a gente sabe. E essa família, por sua vez, veio lá de Portugal, de... Outra tia me falou o lugar lá, eu não consigo lembrar... Lá de Portugal. Não lembro. Antes de 1500. Muito antigo. Muito antigo. Lá de Portugal. E a família do meu pai também veio de Portugal. Agora veio de Portugal em 1900, mais ou menos. Agora.
P/1 – É mais recente.
R – Recente. Bastante... 1900.
P/1 – E você sabe por que eles vieram, a família do seu pai?
R – Eu acho que eles foram expulsos de lá (risos). Eu acho que a família do meu pai foi expulsa de Portugal, porque eles eram persona non grata, gente bêbada, esse tipo de gente, que não se adaptou lá, aí falou: “Ah, vai para o Brasil. Não queremos vocês aqui”. E infelizmente ela foi se casar com ele.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram, os seus pais?
R – Não sei. Como eles se conheceram? Não sei. Não sei.
P/1 – E a história do seu nome, Francisco? Você sabe por que você se chama Francisco, quem escolheu e por que desse nome?
R – Sei. Aí entra o aspecto humorístico. Aliás, eu acho que o humor é muito importante, aqui nessa conversa, como em tudo na vida, é muito importante. E pela primeira vez está entrando o lado humorístico. Por exemplo, um professor que eu tive, o Radio, que foi um excelente professor, um argentino, Andres Romulo Radio, quando ele leu meu nome na lista de presença, lá nos anos 60, Francisco José, ele comentou que eu tinha um nome imperial. Ele falou: “Francisco José é nome...”. Ele associou com o imperador austro-húngaro que chamava Francisco José. É brincadeira dele, um nome imperial. O meu nome não tem absolutamente nada a ver com o Francisco José, o imperador da Áustria, do império austro-húngaro. Não tem nada a ver. Quando a minha mãe escolheu esse nome Francisco José foi porque meu pai se chamava Francisco, aí eles colocaram o José, que não tem nada a ver. É engraçado isso. Eu achei cômico. Engraçado.
P/1 – E você tem irmãos, Francisco?
R – O Samuel, que é meu irmão, e a Amélia, os dois. Os dois. E Amélia. Que moram aqui em São Paulo.
P/1 – Você se lembra da casa em que você passou a infância?
R – Claro. Claro. Lógico. As casas, diversos... Claro. Claro. Lógico. Isso é muito importante.
P/1 – Conta um pouco pra gente como eram essas casas.
R – Casa? Eu nasci em Muzambinho, o meu avô tinha a fazenda lá, meu avô tinha a fazenda lá em Muzambinho assim, começava na periferia da cidade e ia até mais pra lá. Uma fazenda estrategicamente localizada, o avô. E tinha a casa da fazenda, uma casa grande da fazenda. Eu nasci nessa casa e eu passei a minha infância nessa casa lá em Muzambinho, casa que não existe mais, no lugar dela foi construída outra. Eu passei a primeira infância nessa casa, casa essa que ficou para o outro tio, a tia Maria, a irmã da minha mãe, foi morar ali com um tio e eles ficaram morando muito tempo ali, tal. Mas eu passei a minha infância ali nessa casa antiga.
P/1 – E como era essa casa?
R – Era casa antiga de fazenda. Uma casa antiga grande de fazenda, tal. O meu avô, minha avó, moravam ali, a minha mãe, meu pai e os filhos, nós morávamos ali. Aquela casa e dali pra lá era a fazenda, fazenda essa que foi... Como se diz? O governo federal foi tomar aquilo. Como se chama isso? Desapropriada? Desapropriação. Fazenda essa que foi desapropriada no finzinho dos anos 50. Foi desapropriada porque o governo queria construir ali a Escola Agrotécnica Federal de Muzambinho, então desapropriou, pagou, indenizou e construiu ali a Escola Agrotécnica Federal. Foi isso.
P/1 – Até que idade você morou nessa casa?
R – Até 1950, 51, nós moramos ali. Até 50, 51, nós moramos ali. Eu, de 45 a 50 ou 51. A 50, desculpa. De 45 a 50.
P/1 – E depois você se mudou pra onde?
R – Nós nos mudamos pra Monte Santo, que fica um pouco mais pra lá, depois de Guaxupé. Depois de Guaxupé e antes de Paraiso, São Sebastião do Paraíso. Nós fomos morar em Monte Santo, que era a cidade onde morava o meu pai, ele morava em Monte Santo. Então a segunda parte da minha infância foi em Monte Santo, onde eu fiz o curso primário, e conheci outros parentes lá.
P/1 – Conta um pouco quais eram as brincadeiras na época da sua infância, Francisco. Do que você brincava? Com quem você brincava?
R – As brincadeiras?
P/1 – É. Na sua infância, com quem você brincava e quais eram as brincadeiras? Na fazenda, e depois na cidade, você lembra?
R – São brincadeiras típicas de quem vive em cidade pequena do interior, que ali só tem fazenda, e por acaso pode ter alguma indústria ou agroindústria pequena. Não tem indústria. Ali em Monte Santo tinha uma fábrica de guaraná. Eu lembro, tinha uma fábrica de guaraná. Será que tinha? Acho que não. Eu não sei. Muita fazenda de café. Naquela região, acho que vocês sabem muito bem, naquela região, no sul de Minas, só tem café. Café, café, café. Tudo ali girava em torno do café. E até hoje ainda é mais ou menos assim, tudo ali é café. Então nós nos acostumamos com isso. Agora as brincadeiras, brincadeira típica de quem vive no interior assim, tal, jogar futebol, estava em contato direto com a natureza. Isso é interessante, porque eu acho que vocês aqui, suponho que vocês nasceram aqui na capital, isso é interessante, talvez vocês não conheçam o que é viver numa cidade pequena do interior, que a pessoa está sempre em contato com a natureza. Isso é interessante, estar em contato com a natureza. É muito diferente da vida na cidade grande. Muito diferente.
P/1 – E como era essa vida em contato com a natureza?
R – Às vezes tem coisas desagradáveis e ruins. Às vezes. Às vezes. É muito boa. Isso é muito bom. Isso é muito bom. Mas tem algumas coisinhas que são desagradáveis assim. Às vezes tem coisinhas que são típicas do interior, podem acontecer acidentes, a pessoa pode ser mordida por uma cobra, ou por um escorpião, enfim, essas hipóteses existem. Tem aquelas coisas típicas do interior.
P/1 – E você passou por alguma situação assim na infância?
R – A gente corre esse risco. Uma vez aconteceu uma coisa engraçada, eu estava num lugar ali em Monte Santo, lá em cima assim, e embaixo tinha um morrinho assim, não é um morrinho, um terreno pra baixo, e um cachorro correu atrás de mim e eu caí. Eu tive que correr e fui rolando lá embaixo assim, um pedaço grande fui rolando, porque o cachorro... Isso aí, por exemplo. Mas não aconteceu nada, me machuquei, não aconteceu... É típico de quem vive no interior, não me machuquei. E outra vez também. Aí era, como eles dizem, cachorro louco, eles chamam de cachorro louco, acho que tem hidrofobia, não sei, e um cachorro veio querendo me morder e tal. Eu ia pra escola, estava com aquela pasta de couro que a gente leva o... O aluno vai pra escola com aquela pasta. Coisa de criança, o cachorro querendo me morder e eu coloquei a pasta assim, aí o cachorro mordeu a pasta e tal. Também não aconteceu nada. Também não aconteceu nada. Então eu estou tentando lembrar algumas coisinhas. Outras coisas mais...
P/1 – Além do futebol, do que mais você brincava? Jogava futebol, e quais eram as outras brincadeiras mais comuns?
R – Jogava futebol... Outras brincadeiras?
P/1 – Não se lembra de nada agora assim?
R – Lembro. Sabe o que é? Lembro, lembro, lembro. Porque nós vivíamos... O meu pai comprou um sítio na saída da cidade de Monte Santo, muito bom lá, e nós morávamos ali. Era muito agradável a gente viver ali. Foi uma infância muito boa. Foi uma infância muito boa, sem dúvida. Sabe o que é? Já na minha infância, no curso primário já ficou muito claro, vai ficando muito claro uma coisa muito importante. Lá no curso primário, o seguinte, eu sou uma pessoa que... Eu nasci para estudar. O tipo da pessoa que só gosta de estudar, estudar, estudar, então no fundo, no fundo, o que eu gostava mesmo era da escola, do curso primário, e os meus amigos da escola, os meus amiguinhos da escola. O que eu gostava era disso, gostava de estudar. E não tinha muito contato com essas coisas. Por exemplo, eu não ia ao rio pra nadar no rio. Esse exemplo é bom, eu não tinha nenhuma vontade de nadar no rio, inclusive porque se você vai na água, você pode morrer afogado, por exemplo. Pode. O meu irmão alguns anos depois quase morreu afogado aqui no interior de São Paulo. Alguém foi lá e salvou, senão ele ia morrer afogado. O meu irmão não tinha medo dessas coisas, ele quase morreu afogado. Eu como tenho medo de morrer afogado, então eu não brinco com essas coisas. Então eu preferia o tempo todo estudar, estudar, estudar. Então eu lembro muito bem dos meus amigos que também só gostavam de estudar.
P/1 – E quais são as primeiras lembranças que você tem da escola, Francisco?
R – Muitas lembranças. Muitas lembranças: a minha primeira professora, a minha primeira professora no curso primário foi a professora Iolanda, me lembro dela, me lembro do nome dela. Iolanda foi a minha primeira professora. E a segunda foi a minha tia, lá em Monte Santo, tia de segundo grau, a tia Tereza, Tereza de Pádua Cerqueira, foi minha professora, que eu gostava muito dela e ela também gostava muito de mim. Conheço a família dela, toda a família dela. Ela foi minha segunda professora. A minha mãe também era professora e a minha mãe foi minha professora depois, alguns anos depois, lá quando nós voltamos pra Muzambinho. Ela foi minha professora, deu duas aulas pra mim só, a minha mãe. Então no começo era isso, a Iolanda, a Tereza e tal. E outros professores também. Lembro-me de tudo. Lembro-me de tudo.
P/1 – E a escola? Como era a escola?
R – Gostava. Gostava. Gostava. Sentia-me muito bem ali, a gente faz muitas amizades e tal.
P/1 – Como você ia e voltava da escola?
R – A pé. Ali tudo é pertinho, a pé. Eu não gostava de Monte Santo, sabe? Entendeu? Essa cidade aí. Não, eu não gostava, não. Uma cidade muito atrasada, não gostava, não. Agora, Muzambinho é bom. Onde eu nasci em Muzambinho é bom. São duas cidades diferentes.
P/1 – E você tinha uma disciplina preferida na escola? Uma matéria, uma disciplina?
R – Disciplina? Português. Português. Dissertação, escrever. Dissertação. Essa sempre foi a minha. Sempre foi a minha predileção. Sempre foi. E acho que continua sendo até hoje. Entendeu? Mas não era só essa, não. Não era só essa, não. Eu gostava de tudo. Eu gostava de tudo. Eu só não gostava de Educação Física. Não gostava. Mas eu fazia. Hoje eu gosto. Hoje eu gosto de Educação Física. Hoje eu gosto. Mas naquela época não.
P/1 – Você gostava de ler, Francisco, criança?
R – Sim. Sim. Pois é, toda a minha vida girou em torno de livros. Livros, livros, lendo, lendo, e continua até hoje, eu passo a maior parte do tempo lendo, lendo, lendo. Continua até hoje.
P/1 – Você se lembra de algum livro que tenha te marcado na infância?
R – Na infância?
P/1 – É.
R – Não. Não. Não. Na infância não. Na infância não. Naquela época, eu não... Naquela época eu só queria brincar, gostava de brincar. Brincar, jogar futebol, essas coisas, naquela época. Essa coisa de estudar sério e ler, isso apareceu bem depois. Bem depois.
P/1 – Você lembra nessa fase...
R – As coisas mudam, estão sempre mudando. Gostava de uma coisa e estão sempre mudando. Agora já estou gostando de outras coisas. Elas estão sempre mudando.
P/1 – E nessa fase da infância assim, Francisco, você lembra o que você queria ser quando crescesse? A primeira vez que você pensou numa profissão, criança ainda.
R – Sim. Lembro. Lembro. Ali não. Na infância? Não. Não. Não. Não. Na infância? Não. Não. Não. Não. Na infância eu era totalmente despreocupado. Totalmente... O mundo pra mim era aquilo ali, era aquela cidade pequena do interior. Eu era absolutamente incapaz de olhar pra frente, me preocupar. Eu vivia fora da realidade. Meu mundo era aquele mundo pequenininho ali.
P/1 – E você lembra...
R – Não pensava. Esse negócio de pensar em estudar apareceu muito depois. Quando eu cheguei a São Paulo, quando eu cheguei a São Paulo, eu cheguei aqui com 16 anos, com 16 ou 17 anos eu comecei a pensar: “Ah, eu vou querer estudar isso”. Muito depois.
P/1 – E nessa fase de infância, você se lembra de alguma história marcante assim, alguma coisa que tenha te marcado, que você tenha vivido? Um episódio, uma história?
R – Na infância?
P/1 – É.
R – Um episódio?
P/1 – É. Um momento, uma história de infância que tenha te marcado, que tenha ficado na memória.
R – Para o bem ou para o mal?
P/1 – Tanto faz. Uma coisa que tenha sido marcante, pode ser uma coisa boa ou pode ser uma coisa que não seja tão boa.
R – Uma coisa que a gente gosta de lembrar foi uma colega do curso primário, no último ano do curso primário, que gostava de mim, lá em Monte Santo. Isso aí é uma coisa que sempre... Isso é sempre a coisa mais importante tanto para os meninos, quanto para as meninas. Seria a primeira namorada. Sempre isso é o que é mais importante. Não foi a primeira namorada, mas deveria ser, poderia ser. A Zilá, o nome dela é Zilá. É, ela gostava de mim, exteriorizava isso, mas eu era uma criança boba e não soube aproveitar isso. Não que eu fosse tímido, não é isso. Eu não sei explicar, eu não sou psicólogo. Não que eu fosse tímido, eu não soube reagir.
P/1 – E você lembra como...
R – E poderia ser a minha primeira namorada. Entendeu? Isso lá em Monte Santo.
P/1 – E como ela demonstrava que gostava de você? Você se lembra de alguma situação?
R – No Carnaval. No Carnaval. Na época do Carnaval lá em Monte Santo. Lembro-me muito bem, no Carnaval lá em Monte Santo. Foi na primeira vez que eu fui ao Carnaval lá em Monte... Lembro muitíssimo bem disso aí, do Carnaval. Apesar de a minha mãe ser presbiteriana, tal, essas coisas assim, ela era uma pessoa liberal, então ela: “Se vocês querem ir ao Carnaval, vão”. Porque esse tipo de gente, presbiteriano, muitas vezes eles nem deixam os filhos irem ao Carnaval, por exemplo. Mas ela não, falou: “Tudo bem”. Lembro muito bem disso. Lembro-me muito bem.
P/1 – Como foi esse Carnaval, Francisco? Conta um pouco pra gente.
R – Gostei. Gostei. Gostava. Gostava. Gostei do Carnaval lá.
P/1 – E como era o Carnaval na época?
R – Não, normal. Normal. O Carnaval acontecia dentro do cinema. Eles alugavam o cinema lá de Monte Santo. Carnaval infantil, né? Muito gostoso. Muito bom isso aí.
P/1 – Você se lembra das músicas, das fantasias?
R – Claro. Claro. É o que eu mais lembro. Como era? Todas aquelas músicas daquela época. Todo mundo lembra as músicas do Carnaval nesse caso aí.
P/1 – Marchinhas.
R – É, marchinha. Marchinha. Marchinha. 57. 56, 57, nessa época. Todo mundo lembra aquelas músicas lá. O Carnaval carioca. O Carnaval carioca, tal, aquelas músicas lá.
P/1 – Você ia fantasiado?
R – Claro. Ia.
P/1 – Do quê?
R – A gente usava lança-perfume. Naquela época se usava lança-perfume. Eu nem sabia o que era aquilo, por que a gente usava lança-perfume. Muito interessante pra uma criança ver aquela coisa, a gente não entendia: “O que é lança-perfume?”. Gozado. Aquelas músicas, eu adorava aquelas músicas cariocas lá, aquilo lá.
P/1 – E essa sua amiga que você comentou que gostava de você, como ela demonstrou? O que ela fez no Carnaval?
R – Não, ela ficava cantando uma música lá, acho que do Dorival Caymmi: “Ah, que saudade eu tenho da Bahia. Ah, que saudade eu tenho da Bahia”. Isso aí. Eu lembro claramente disso, parece que ela está cantando aqui agora assim, tal, sabe? E sempre olhando pra mim, tal. Coisa de criança.
P/1 – Quanto tempo você morou em Monte Santo?
R – Depois essa pessoa, ela foi estudar em Ribeirão Preto, que fica ali perto, Ribeirão Preto, e ela ficou sempre ali na região. Foi estudar em Ribeirão Preto, casou com alguém lá e vive lá até hoje, trabalha lá, vive lá em Ribeirão Preto.
P/1 – Você chegou a encontrá-la depois?
R – Ribeirão Preto, depois que eu fiquei sabendo dessas coisas. Ela estudou Biologia lá em Ribeirão Preto, continuou estudando, e foi estudar na Alemanha, fazer pós-graduação na Alemanha, genética de abelhas, e voltou e está lá em Ribeirão Preto até hoje. Acho que em Ribeirão Preto até hoje. É isso aí, entendeu? E depois, quando eu entrei no primeiro ano da faculdade aqui em São Paulo, eu voltei lá e tal, aí eu fui visitá-la lá em Monte Santo, ela me reconheceu, lógico. Reconheceu-me, entendeu? Eu tinha o quê? Vinte anos, encontrei-a. Foi a única vez. Eu tinha 20 anos, ela também tinha 20, na casa dela lá em Monte Santo. É só isso.
P/1 – Como foi esse encontro?
R – Normal. Ela se lembrou de mim, meu nome. É isso aí. Gozado, interessante. É muito interessante isso. Muito interessante.
P/1 – Quanto tempo você morou em Monte Santo?
R – Tudo é passageiro. Isso é muito passageiro. Tudo é passageiro. Você tem que viver o momento, aquele momento, se você não aproveitar, passou, passou e agora você tem que olhar pra frente. Você tem que olhar o momento agora, não pode ficar olhando pra trás.
P/1 – Francisco, quanto tempo você morou em Monte Santo?
R – Pois é, de 50, de 1950 até 58. De 1950 até 58, exatamente na Copa da Suécia, quando estava acontecendo a Copa do Mundo da Suécia, e foi aí que o meu pai morreu, na Copa do Mundo da Suécia, no começo. Aí meu pai morreu, nós voltamos pra Muzambinho, entendeu? A minha mãe, nós, a família, voltamos pra Muzambinho. Quer dizer, a Copa do Suécia pra nós começou em Monte Santo e terminou em Muzambinho. É isso. Então a comemoração foi lá em Muzambinho.
P/1 – O seu pai adoeceu?
R – Ele tinha um problema grave nos rins, que eu não sei o que era, e ele morreu foi disso. Problema renal sério. Não sei o que era.
P/1 – E você lembra como foi...
R – E acho que foi em decorrência da bebida, porque ele bebia muito quando era moço, e acabou provocando isso aí e as consequências apareceram quando ele tinha 52 anos.
P/1 – E você lembra como foi essa perda pra você e para os seus irmãos e como foi a volta pra Muzambinho? Como você se sentia?
R – Eu, infelizmente... Isso é grave, é chato falar isso. Eu, infelizmente, não tive emoções, viu, quando ele morreu. Eu não me emocionei, sabe? Não sei por que. Eu não sei por que. Não houve dramaticidade, sabe? Não sei por que. É chato falar isso. É isso aí.
P/1 – E como foi voltar pra Muzambinho pra você assim?
R – Normal. Não, normal. Normal. Normal. Nós voltamos pra lá. Normal. Nós ficamos mais pobres. Depois que ele morreu, nós ficamos mais pobres, aí a nossa vida... Enquanto ele estava vivo, a nossa infância era muito boa. Era. Depois que ele morreu, aí nós voltamos a viver em Muzambinho, nós ficamos mais pobres, a nossa vida ficou mais difícil. Mais difícil. A minha mãe passou a lutar com dificuldades financeiras e tal, lá em Muzambinho. Aí ela colocou os dois filhos, eu e meu irmão, na Escola Agrotécnica Federal, porque lá é de graça, é internato, é de graça e lá tem tudo, pra economizar. Então nós ficamos lá já fazendo economia. E a minha irmã não foi pra lá porque a escola é só pra homens, então a minha irmã ficou com a minha mãe lá. É isso.
P/1 – E como foi a escola agrotécnica pra você?
R – Bom. Bom. Bom. Uma época boa. Gostei. Gostei. Uma época boa.
P/1 – Como era a escola?
R – Uma escola pequena, mais ou menos 200 alunos, todo mundo se conhece. Ali todo mundo se conhece, inclusive alguns funcionários da escola eram parentes, nossos parentes. O João, por exemplo, nosso parente, o Huguinho foi meu professor, ele é meu primo. Meu primo foi meu professor, o Huguinho etc. Então todo mundo se conhece e...
P/1 – Você foi morar na escola? Foi viver na escola?
R – Morar, claro. Claro. Durante três anos, eu morava na escola agrotécnica ali. Claro. Claro.
P/1 – E como foi essa experiência de deixar a sua casa e viver na escola agrotécnica?
R – Bom. Gostoso, agradável. Bom. Bom. Muito bom isso. Muito bom. Eu não tinha naquela época, eu não tinha absolutamente nenhuma vocação pra ser engenheiro agrônomo, pra estudar... Porque as pessoas ali, teoricamente, pensavam: “Eu vou terminar isso aqui, depois vou fazer o Técnico Agrícola, depois eu vou estudar Agronomia ou Veterinária”. As pessoas pensavam assim. E realmente alguns estudaram isso. Eu não tinha absolutamente nenhuma vocação pra agrônomo e muito menos pra veterinário. Não tinha mesmo, naquela época. Não tinha mesmo. Como já falei aqui, eu gostava de escrever. Escrever e tal, essas coisas. É isso.
P/1 – Quais eram seus interesses na época? O que você lia?
R – Futebol. Eu só pensava em futebol naquela época. Futebol.
P/1 – Pra que time você torce?
R – Eu torço pelo Fluminense. Fluminense. Porque ali em Minas, a gente era muito influenciado pelo Rio, coisas do Rio, e torcia também. Eu torcia pelo São Paulo na época. Primeiro o Fluminense, e no ano seguinte... Em 58, o Fluminense, em 1959 pelo São Paulo, pra esses dois times aí, Fluminense e São Paulo. E torcia pelo América de Belo Horizonte, porque eu sou mineiro, então a gente torce por um time de Minas. Lá em Minas eu torcia pelo América de Belo Horizonte, e torço até hoje pelo América de Belo Horizonte. E eu parei de torcer pelo São Paulo. Quase 20 anos depois eu desisti, falei: “Eu não torço mais pelo São Paulo. A partir de agora eu torço contra o São Paulo”.
P/1 – E por que isso?
R – Por causa da política. Por causa da política. Porque é politização. Eu era uma pessoa absolutamente despolitizada, a gente vai se politizando, de repente a gente acorda, cai a ficha, fala assim: “Ah, quer dizer que eu torço pelo time do Laudo Natel?”. Foi assim que aconteceu. “Quer dizer que eu torço pelo time do Laudo Natel? De jeito nenhum, eu não vou torcer pelo time do Laudo Natel em hipótese alguma.” Foi assim que eu... “Eu não vou... A partir de agora eu torço contra o São Paulo.” E eu ia muito ao Morumbi. Eu ia muito ao Morumbi assistir aos jogos do São Paulo. Ao Morumbi, ao Pacaembu e tal. Eu lembro muito bem disso. Isso foi só lá atrás, até os anos 70.
P/1 – E na sua adolescência e juventude, você falou que gostava muito de futebol...
R – Gostava. Gostava.
P/1 – Você acompanha o futebol como? Vocês tinham rádio em casa?
R – Rádio. Rádio. Somente por rádio. Somente por rádio. Só rádio, a gente não assistia na televisão, só rádio. Conhecíamos profundamente o rádio. A Rádio Bandeirantes, todos aqueles locutores da rádio, a gente conhecia todos pelo nome, da Rádio Bandeirantes. E não somente da Bandeirantes, diversas rádios aqui de São Paulo. Diversas rádios. Conhecia todo mundo pelo nome. Não conhecia a cara dele, só o nome, a voz e o nome, principalmente a Bandeirantes.
P/1 – E além de futebol, você escutava outras coisas no rádio? Outros programas?
R – Eu diria que só futebol. Só futebol. Só futebol.
P/1 – E você tinha algum interesse em cinema, em música, nessa fase de adolescência?
R – Sim. Claro. Claro. Lá em Muzambinho, o cinema de Muzambinho era do meu tio, o tio Hugo, ele era dono do cinema de Muzambinho, então tem tudo a ver com a gente lá.
P/1 – Qual era o cinema?
R – Sinceramente, eu não lembro o nome. Nesse momento não estou me lembrando do nome. Nesse momento não.
P/1 – E você frequentava?
R – Sim. Claro. Claro. Claro.
P/1 – Você se lembra de algum filme que você tenha ido assistir lá?
R – Todos aqueles filmes americanos. Filmes americanos de bang-bang... Não somente filme de bang-bang, filmes americanos e outros daquela época. A gente ia muito. A gente gostava.
P/1 – E, Francisco, quando você se formou na escola agrotécnica, você veio pra São Paulo, foi isso?
R – Pois é, eu formei o ginasial da escola agrotécnica, e pra continuar, eu entrei no Colégio Estadual de Muzambinho já no primeiro ano clássico. Clássico. Clássico. E iria continuar estudando ali, aí que a grande mudança aconteceu ali. Agora é a hora de falar coisas interessantes, mais importantes. E aconteceram duas coisas ali, dois acidentes. Gozado é que essas coisas parecem que acontecem num certo momento da vida da gente ali. Com 16 anos acontece... Qual o nome pra isso? Um trauma. Um trauma acontece, uma coisa que não estava prevista acontece. Aconteceu. Eu tinha um professor, eu até não vou dizer o nome dele. Poderia dizer o nome dele, não vou dizer o nome dele, isso é muito interessante. Muito interessante. Um professor lá no primeiro ano do curso no colegial, no curso clássico, então você veja, eu já falei aqui que eu gostava muito de Português, de escrever, escrever... Aliás, eu vou acrescentar uma pequena coisa: quando eu estudava na escola agrotécnica ali, os três anos, um dos professores que eu tive, professor de Português, ele era de São João del Rei. São João del Rei é a cidade do Otto Lara Resende, todo mundo conhece o Otto Lara Resende, todo mundo sabe quem é o Otto Lara Resende, todo mundo lá em São João del Rei conhece a família Resente, Lara Resende, a família dele, todo mundo sabe. E então eu tive um professor de Português ali que se chamava José de Resende Lara, José de Resende Lara, ele era de lá. Ora, é óbvio que ele era parente do Otto Lara Resente, porque ele era da mesma cidade, tal. José de Resende Lara, que nós o conhecíamos não pelo nome, mas pelo apelido dele, Bucão. Bucão. O apelido era Bucão. Excelente pessoa, excelente professor. Então eu era o aluno predileto do Bucão, do José de Resende Lara. Sempre tirava ali as maiores notas com ele em português, em redação. Sempre tirava as maiores notas. A minha nota com ele sempre era nove, dez, nove e meio, no mínimo oito. Então muitas vezes, eu fiquei lá três anos, muitas vezes eu fiz muitas provas e as notas sempre variavam de oito a dez, sempre, oito a dez em redação. Sempre fui o melhor aluno dele. Então quando eu fui estudar ali no clássico, no colégio estadual, aconteceu exatamente o inverso. O professor de Português, que eu prefiro não mencionar o nome, ele me deu as seguintes notas lá em março, abril e maio, notas assim: dois e meio, três e meio, três. Nos três meses do primeiro semestre. Não lembro as notas. Dois e meio, três, três e meio. É isso. Pra uma pessoa como eu, que estava acostumado a tirar nota dez, dez e nove, com um excelente professor, que é o Lara, agora de repente tirar notas baixíssimas assim, uma depois da outra: “O que está acontecendo? O que é isso?”. Eu percebi claramente, ele não lia. Esse professor português lá, ele não lia as minhas dissertações. Ele não lia. Ele pegava assim, via o nome lá assim: “Não conheço”. E ele dava notas baixíssimas pra mim. E por essa razão que eu vim pra São Paulo, sabe? Eu praticamente fugi de lá. Quer dizer, eu fiquei absolutamente traumatizado, muito traumatizado com isso aí. E vou mais além, vou mais além, desde o primeiro ano primário até ali as minhas notas em Português sempre foram dez, dez, nove, com o Bucão, notas altíssimas, agora notas baixíssimas porque o cara não lia. Não sei se ele fazia isso com os outros alunos também. Então eu acho que vocês já perceberam uma coisa, esse professor era louco, era um psicopata. É isso que eu estou querendo dizer, ele era um psicopata. Ele não lia o que o aluno escrevia e dava a nota que ele queria. Ele era um psicopata, um cara profundamente narcisista. Narcisista. Ele era louco. Isso a gente estuda em psiquiatria forense, essas coisas. Por que o que acontece? Eu vim pra São Paulo, fiquei traumatizado. Falei pra minha mãe: “Eu vou pra São Paulo, não vou ficar morando aqui”. E ela deixou. Eu vim pra São Paulo com 16 anos. E cheguei aqui com 16 anos pra trabalhar como office boy. Bom, o que eu queria dizer é o seguinte, então ele dava notas baixíssimas. E depois, muito tempo depois, em 1976, eu fiz um concurso público pra trabalhar no Ministério da Educação, no MEC, Ministério da Educação e Cultura, pra ser o inspetor do MEC. Fiz o concurso ali em 76. E nesse concurso aí, além das provas óbvias, como chamam essas provas de... Como chamam essas provas de marcar A, B, C, D?
P/1 – Múltipla escolha.
R – Múltipla escolha. O assunto era planejamento da educação, 80 questões sobre planejamento da educação pra marcar A, B, C ou D, e marca. Tá, isso aí. E, além disso, tem a dissertação. Depois que você faz isso, você tem que fazer a dissertação. Depois que você faz isso, você tem que fazer dissertação sobre um assunto, sociologia da educação, você tem que dissertar sobre aquilo ali. E eu fiz a dissertação. E nessa dissertação eu tirei a maior nota, eu tirei 90.0, 90,0, que foi a maior nota da dissertação pra trabalhar no MEC. O que você acha? Uma pessoa que com... Nem lembro, tem que fazer as contas. Com 30 anos de idade, 31, com 31 anos de idade faz esse concurso do MEC e tira a primeira nota na dissertação, como entender que lá quando ele tinha 16 anos o professor lá do colégio de Muzambinho dava nota dois e meio, três, e três e meio? Dá pra entender? Esse é um assunto muito interessante. Muito interessante. Aliás, eu vou abordar isso com outras pessoas aí. Muito interessante.
P/1 – E, Francisco, quando você veio pra São Paulo, você veio sozinho?
R – Mudei sozinho. Sozinho pra cá. Eu vim pra cá por dois motivos: por causa desse professor, dessa coisa que me deixou completamente... Porque uma criança de 16 anos não está preparada pra esses traumas. E também dois colegas meus lá, que eu não vou citar o nome também, dois colegas meus, desses de futebol, que só pensava em futebol, desse tipo de gente que só pensa em futebol, eles protagonizaram um bullying comigo. Bullying, os dois. É bullying. Naquela época eu não sabia que aquilo ali era bullying, eu não sabia. Então eu fui vítima de bullying ali. Então essas duas coisas somadas, esse professor e esse bullying dos dois amigos, tudo isso somado mais do que suficiente pra eu me decidir mudar pra São Paulo fugindo de lá. Eu vim pra cá sozinho, com 16 anos, vim trabalhar como office boy aqui e morar aqui sozinho na casa da minha tia, no Tucuruvi.
P/1 – E como foi essa mudança pra São Paulo pra você? O que você achou quando chegou a São Paulo?
R – Foi uma maravilha. Foi uma maravilha. Foi uma maravilha. Muito bom isso. Maravilha. Eu fugi daquilo lá. Eu percebi que aquele ambiente lá é muito atrasado, e era mesmo muito atrasado, que eu não merecia ter que aguentar esses desaforos, essas coisas, falei: “Não, eu vou pra São Paulo, vou trabalhar em São Paulo e tal”. Com 16 anos. Eu pensava em trabalhar e ganhar dinheiro. Eu não pensava nem em estudar, só em trabalhar e ganhar dinheiro e tal, e viver em São Paulo. E foi isso. Morando ali na casa da minha tia no Tucuruvi e tal. É isso.
P/1 – E onde você trabalhava?
R – E eu gostei muito então disso aí.
P/1 – Onde você trabalhava como office boy?
R – Eternity. Eternity do Brasil Cimento e Amianto.
P/1 – Foi o seu primeiro trabalho?
R – Primeiro trabalho. Primeiro trabalho. Trabalhei apenas seis meses ali como office boy.
P/1 – Você lembra como você gastou os seus primeiros salários, Francisco?
R – Claro.
P/1 – Como foi? Com que você gastou? Você comprou alguma coisa que queria?
R – Não, o dinheiro era muito pouco. Dezesseis anos, ganhava muito pouco. Morava na casa... Então comprava pequenas coisas. Muito pouco. E eu tentava guardar o dinheiro. Eu economizava muito naquela época. Não, nada de importante. Essa coisa de dinheiro, eu demorei muito tempo pra ganhar dinheiro, sabe? Demorei muito. Eu só comecei a ganhar um salário decente, bom, quando eu comecei a trabalhar no Ministério da Educação. Foi somente aí que eu comecei. Aí sim. E mesmo assim, o salário não era bom, não. Não era bom.
P/1 – E depois desse emprego de office boy, com que você foi trabalhar? Ou você voltou a estudar?
R – Não, não, eu voltei a estudar sim. Demorou um pouquinho, eu perdi um ano. Perdi um ano. Perdi um ano.
P/1 – E quando você voltou a estudar, onde você foi estudar?
R – Eu fui estudar no Roosevelt. Colégio Estadual Presidente Roosevelt, na Rua São Joaquim da Liberdade, que é um excelente colégio.
P/1 – E como foi a experiência nesse colégio?
R – Excelente. Excelente. Excelente. Eu conheci pessoas muito boas, grandes amigos, excelentes pessoas. Conheci gente muito boa. A minha vida começou a mudar ali. Minha vida começou a mudar exatamente ali, mudar pra melhor exatamente ali no Roosevelt. Fiz os três anos de curso clássico ali no Roosevelt.
P/1 – Teve algum acontecimento marcante nessa época?
R – Eu conheci uma colega lá, que eu não vou citar o nome dela aqui, que gostava de mim, e a gente saía muito, ia ao cinema. Uma pessoa extraordinária, uma pessoa que gostava muito de arte, conhecia profundamente. Artes, artes plásticas, artes em geral. E foi uma maravilha, porque naquele momento eu não sabia absolutamente nada de arte, então eu aprendi tudo de repente assim. De repente. Então foi muito bom isso. Muito bom. Maravilha.
P/1 – Você se lembra de algum filme ou alguma exposição que tenha te marcado naquela época?
R – Muitos filmes. Muito. A gente ia muito, isso é muito bom, agora a conversa aqui está ficando melhor, vamos dizer assim. A gente ia muito ao Cine Bijou, na Praça Roosevelt. Na Praça Roosevelt, no Cine Bijou, que existe até hoje o Cine Bijou, que naquela... O Cine Bijou daquela época é completamente diferente desse hoje. Está no mesmo lugar, o mesmo nome, o mesmo lugar, mas naquela época era bem melhor do que é hoje. O Cine Bijou daquela época é muito melhor do que esse que é hoje. Muito melhor. Era um excelente cinema, maravilhoso cineminha de arte, um cinema de arte. Passava principalmente filme francês, filmes franceses, italianos, mais franceses, filmes europeus, mais franceses. E que eu saiba, nenhum filme americano passava ali. Que eu saiba. Que eu me lembre. A gente ia muito lá ao Cine Bijou, sem dúvida. E nós íamos também ao Cine Picolino, na Rua Augusta, no Cine Picolino, que hoje é o Itaú, o Itaú ali. O Picolino mudou de nome, depois mudou de nome e de dono, agora virou o Itaú ali. O Picolino também. Também.
P/1 – Nessa época você já pensava o que você queria fazer profissionalmente?
R – Pois é, a primeira coisa que eu pensei quando eu era bem moço, quando comecei a fazer o curso clássico no Roosevelt, que eu tinha 17 anos, a primeira coisa que eu pensei, queria estudar Jornalismo. A primeira coisa: eu vou estudar Jornalismo. Mas eu mudei. E quando eu comecei a fazer o clássico no Roosevelt, aí começaram as aulas, a primeira aula que eu tive de Filosofia lá com o Pinheiro, o Paulo Benedito Pinheiro, a primeira aula de Filosofia eu já mudei, eu falei: “Não, eu vou estudar Filosofia”. Eu já mudei. Eu me esqueci do Jornalismo, falei: “Não, eu vou estudar Filosofia”. Foi isso. Aí eu decidi. Ficou decidido. Eu fiz o cursinho quando eu terminei, no cursinho do grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, cursinho do grêmio. Fiz o cursinho, fiz vestibular, passei, tal. Esse cursinho do grêmio depois mudou de nome, mudou de endereço, mudou de nome, tal, passou a se chamar Equipe Vestibulares. Mudou de nome para Equipe Vestibulares, mudou de endereço algumas vezes. E mudou de endereço novamente, agora está ali em Higienópolis, na Rua São Vicente de... Acho que é na Rua São Vicente de Paula, em Higienópolis. O Equipe está ali, se não me engano.
P/1 – E essa aula de Filosofia no colegial que te fez decidir assim pela Filosofia, você lembra por quê? O que era o conteúdo da aula, o que te chamou atenção?
R – Claro. Claro. Tudo muda, tudo está sempre mudando. Eu era muito jovem, muito jovem, e eu gostava de metafísica. Filosofia pra mim era metafísica naquele momento quando eu tinha 17 anos, 17 ou 18. Era metafísica, então por essa razão eu queria estudar Filosofia, por essa razão. Depois muda. Depois muda. Quando você entra ali, ali as pessoas só falavam em política, política, política, então você se esquece da metafísica e começa a se interessar por política e tal. E está sempre mudando e tal.
P/1 – Onde você fez faculdade, Francisco?
R – Na Rua Maria Antônia. Na USP, na Rua Maria Antônia.
P/1 – E como era a faculdade naquela época? Como foi a experiência da faculdade pra você?
R – Melhor coisa, impossível. Melhor, impossível. Melhor experiência que eu tive, em todos os aspectos: os professores, os alunos, os colegas, todos os meus colegas, os meus colegas. Excelentes amizades, professores também. E a gente faz muita amizade com todo mundo, com os outros alunos também, com todo o ambiente estudantil, com todo mundo, é muita gente, com todos aqueles alunos ali. Que ali na Rua Maria Antônia funcionava Filosofia, Ciências Sociais e Letras, esses três cursos ali. E na Rua Doutor Vila Nova, Economia. Então também faz parte, tudo faz parte. Economia na Doutor Vila Nova, e um pouquinho mais pra lá, Arquitetura, da Rua Maranhão. E muitos cursos. Tem a escola de Sociologia e Política um pouco mais pra lá, o Mackenzie em frente, e tem outros aí que eu não estou me lembrando. Tinha o Sedes Sapientiae, que ficava na Marquês de Paranaguá, a Santa Casa, a Faculdade Santa Casa... Estou tentando lembrar mais alguma coisa. Então é isso. Então é muita gente, então a gente faz amizade com todo mundo, e isso é muito bom. Eu gostava muito de tomar cerveja, então ficava... E esse negócio de tomar cerveja e ficar no bar, a gente faz amizade com todo mundo. Então era uma maravilha. Naquela época eu era assim, gostava de tomar. Naquela época eu era assim. A minha vida mudou de tal maneira que eu não... Mudou radicalmente. Eu não sou mais assim, eu não frequento mais esses lugares. Eu fiquei 14 anos sem tomar uma gota de álcool, que eu parei de beber, por exemplo.
P/1 – Por que você tomou essa decisão de parar de beber?
R – Porque eu fiquei doente. Porque eu fiquei doente, né? Porque eu fiquei doente, fiquei mal. Fiquei mal, fiquei mal mesmo. Tive que me internar em hospital psiquiátrico. Fiquei mal mesmo, fiquei internado em hospital psiquiátrico e tal. Quer dizer, não era nada grave. Não era nada grave, mas eu fiquei muito assustado, eu pensava que era grave. Aí eu parei de... Eu tive que tomar Gardenal, fiquei sete anos tomando Gardenal. E uma pessoa que toma isso aí não pode tomar álcool. Não pode tomar álcool. Por essa razão eu parei de beber, fiquei sem tomar bebida alcoólica. Gardenal, Rivotril, tal, tal. Eu pensava que... E não era nada grave, mas eu demorei muito. E me recuperei, fiquei bom. A gente demora muito pra superar essas coisas. Eu demorei muito pra superar tudo isso. Entendeu?
P/1 – Em que época foi isso, Francisco?
R – Isso aí começou em novembro de 73. Em novembro de 73, que eu fiquei doente. Então eu fiquei sem beber, usar bebida alcoólica, 14 anos, quer dizer, de 74 a 88. De 74 a 88. Isso aí.
P/1 – Que ano você entrou na faculdade?
R – Em 66. Em 66.
P/1 – E como era o clima na faculdade nessa época que estava bem na fase da ditadura?
R – É. Exatamente. É.
P/1 – E como foi pra você? Como você vê isso?
R – Maravilha. E é uma época muito boa. Muito bom. Maravilha isso aí. Ditadura e tal, uma época muito boa. E nós assim, pessoas com 18 anos, 18, 19, 18, 19, 20 anos, evidentemente que não estão preparadas pra entender essas coisas. Nós não estamos preparados pra entender, assimilar as coisas muito sérias como ditadura militar. Eu não estava nem um pouquinho preparado pra entender essas coisas. Eu demorei muito tempo pra entender o que aconteceu. Eu demorei muito tempo. Eu era uma pessoa totalmente despolitizada.
P/1 – Na época da faculdade você trabalhava também, Francisco?
R – Claro. Claro.
P/1 – E com que você trabalhava?
R – Claro que eu trabalhava.
P/1 – Com que você trabalhava enquanto você estudava na faculdade?
R – Não, eu cheguei a trabalhar, cheguei a trabalhar no cursinho. Onde eu fiz o cursinho pré-vestibular, eu trabalhei no cursinho do grêmio, lá na Rua Albuquerque Lins, trabalhei no cursinho do grêmio. Não foi muito tempo, não. Trabalhei lá.
P/1 – Você dava aula no cursinho?
R – Não. Não. Eu não dava aula, não. Não. Não. Trabalhava na gráfica do cursinho do grêmio. Muito bem. Perdi esse emprego, aí eu fui trabalhar no Banco do Estado da Guanabara. Trabalhei três anos no Banco do Estado da Guanabara, na Avenida Ipiranga.
P/1 – Com que você trabalhava no banco?
R – Era escriturário do banco. Trabalhei três anos lá.
P/1 – Quando você se formou, você trabalhava no banco?
R – Sim. Exatamente. No fim do curso eu estava trabalhando no banco. Aí eu perdi esse emprego também. Exatamente. Foi uma época muito difícil. Essa época foi muito difícil, muito difícil mesmo. Muito difícil. Foi uma época terrível. Aliás, eu fiquei doente por causa disso, principalmente por causa disso.
P/1 – Por causa de quê, exatamente?
R – Por causa da ditadura militar, da luta armada, essas coisas. Isso é muito interessante pelo seguinte, porque eu tinha diversos colegas, diversos colegas que eu tinha, eles, esses colegas, eles estavam preparados pra essas coisas, porque eles tinham uma boa família, os pais, uma boa família, uma educação de berço diferente, educação de berço diferente da minha, os pais eram politizados, eles eram politizados, portanto, quando as coisas foram aparecendo e tal, eles se adaptaram muito bem a tudo que estava acontecendo e não ficaram muito traumatizados, digamos assim. Comigo não aconteceu isso. Comigo não aconteceu isso. Os meus pais não eram politizados, entendeu? Então eu não recebi nenhuma educação política de berço, eu era bem alienado, então tudo pra mim era mais complicado. É isso.
P/1 – Mas o que foi traumatizando, exatamente? Teve alguma experiência?
R – Luta armada, essa coisa chamada... Eu detesto isso aí. Luta armada. Detesto isso, não gosto disso. Eu sou pacifista. Eu sou absolutamente pacifista. Eu demorei muito pra perceber isso. Em política eu me identifico com o Gandhi, Mahatma Gandhi. Eu me identifico com ele. O Gandhi e o Tolstói, que são dois pacifistas. Então eu devia ficar longe dessas coisas, é isso. Mas eu demorei muito tempo pra perceber isso.
P/1 – Mas você tinha contato? Viveu alguma situação de conflito? Você tinha algum contato com a militância?
R – Indiretamente, sim. Indiretamente, sim. Indiretamente. Diretamente, não.
P/1 – Indiretamente de que maneira?
R – Porque as pessoas... Eu conhecia todo tipo de gente, alguns gostavam de ação, eram pessoas de ação, outros não. Eu me lembro de tudo. Eu tenho a memória muito... Lembro-me de tudo, eu fico refletindo. Eu gostaria de conversar, como vocês estão conversando, conversar. Eu gostaria apenas de conversar, entrevistar: “Por que você é assim? Por que você não se envolveu? E por que você se envolveu? Por que você não...”. Gostaria de... Porque eu sou curioso. Por que as pessoas são tão diferentes assim? Porque eu converso com a psicóloga, por exemplo, ela fala assim: “Porque as pessoas são diferentes, são pessoas viventes, uma vai pra um lado, outra vai para o outro, uma é de ação, a outra é mais contemplativa, a outra é mística, digamos assim, a outra tem medo, uma é violenta, a outra não é nem um pouquinho violenta”. É isso.
P/1 – Você acha que ficou doente muito por causa disso, né? Um pouco por causa disso.
R – Eu fiquei doente, digamos, 80% por causa disso, 20% porque eu briguei com a namorada lá, com 19 anos, eu briguei com ela. Essa é uma das causas. E a outra causa importante é a ditadura militar, luta armada.
P/1 – Teve algum episódio marcante pra você?
R – Mas eu acho... Eu não sei qual dos dois é mais determinante, a briga com a namorada, ou... Eu não sei qual dos dois é mais importante. As duas coisas.
P/1 – Nessa relação com a ditadura tem alguma coisa que tenha te marcado? Uma coisa que tenha ficado mais forte pra você?
R – Com a ditadura?
P/1 – É. Nesse processo assim.
R – Pois a violência. A violência. O totalitarismo. O totalitarismo, a violência, a radicalização. A radicalização, a violência e a falta de liberdade, tal.
P/1 – Mas como você vivenciou isso? Você teve alguma experiência em relação a isso?
R – Muitas. Muitas experiências.
P/1 – E tem algum episódio que você se lembra?
R – Mesmo eu permanecendo longe, não sendo... Já me causou um impacto forte. Imagine então se... É tudo muito relativo, muito subjetivo, muito relativo. Imagine se eu tivesse lá... Entende? É muito relativo, é muito subjetivo. E tem gente que está tão preparada pra essas coisas, que essas pessoas não piram, não piram de jeito nenhum, sabe? Que está muito preparado. E são características individuais, também isso. E outras que estão longe, não têm nenhum envolvimento direto e piram. Então eu conheço pessoas que se tornaram alcoólatras, gente que se suicidou, por exemplo. É porque as pessoas são diferentes, são mais sensíveis. São mais sensíveis, não estavam preparadas, a pessoa se suicida e... Diversas pessoas. Lembro muitíssimo bem, claro. Claro. Lógico. Lógico.
P/1 – E, Francisco...
R – Eu não gosto de falar desse assunto. Gostar, eu gosto, eu gosto de falar com um psicólogo, com um psiquiatra. Com essas pessoas, eu gosto de falar desse assunto, mas eu não gosto de falar, entende?
P/1 – Entendo. Claro.
R – Não gosto. Não gosto. Inclusive porque às vezes eu não confio no interlocutor. A gente não confia no interlocutor. Porque a gente aprende a desconfiar. Porque já teve experiências tão desagradáveis, que a gente começa a desconfiar. Não que eu seja paranoico, não é, mas a gente começa a desconfiar.
P/1 – Não, claro. Claro.
R – Eu conversei com um psiquiatra, o doutor Henrique, tal, era uma pessoa absolutamente extraordinária, ele até falou certas coisas, comentou certas coisas. É muito complicado. É uma coisa muito complicada. Como a gente tem experiências muito desagradáveis, muito chatas, a gente começa a desconfiar das pessoas. Eu não desconfiava. No começo eu era muito ingênuo. Aí a gente começa a desconfiar. Não posso confiar em ninguém. Seria mais ou menos assim.
P/1 – Claro. Mas a gente...
R – É difícil ficar confiando nas pessoas. É complicado.
P/1 – Não, a gente não precisa conversar sobre isso, não. Eu sei que é um assunto delicado. Eu queria te perguntar se você quer falar um pouco sobre esse tempo difícil que você vivenciou dessa doença, ou se não, se a gente não conversa sobre isso também?
R – Eu posso resolver da seguinte... Não, tranquilo.
P/1 – Só se você quiser falar. Se você não quiser...
R – Não, não, tranquilo. Não, isso é fácil. Isso é fácil. Isso aí é fácil.
P/1 – Assim, como foi pra você...
R – Isso é fácil. Isso é muito fácil. Isso é muito bom. Aliás, eu vim aqui pra isso, digamos assim, pra falar sobre isso aqui, um lugar adequado. Falar sobre a doença e tal, né?
P/1 – É, como foi a sua experiência.
R – Isso pra mim é muito fácil pelo seguinte, isso eu posso dizer solenemente, solenemente. Muito fácil pelo seguinte, eu enfrentei situações muito difíceis, muito difíceis. Eu tive que me internar em hospital psiquiátrico três vezes, tal, numa época muito difícil, tal, muito difícil, tal, então eu posso dizer solenemente o seguinte: eu superei tudo isso. Primeiro lugar: eu superei tudo isso. Superei tudo. Foi muito difícil, muito difícil mesmo, muito duro, muito difícil. Em primeiro lugar, superei tudo isso; em segundo lugar, a gente não supera essas coisas em uma semana, em um mês, em um ano, eu demorei muito tempo. Eu demorei 30 anos pra superar isso. Teria que fazer a conta. Demorei décadas pra superar isso. É um processo muito lento, demora muito. E agora, eu acho que a parte mais importante vem agora, eu superei tudo isso sozinho. Isso que é importante, eu superei isso sozinho. Alguém pode pensar: “Ah, porque alguém te ajudou”. Não, ninguém me ajudou, não. Ninguém me ajudou, não. Eu superei tudo isso sozinho. Isso se chama resiliência. É isso, resiliência. Eu percebi, constatei que eu tenho uma resiliência realmente admirável, muita resiliência, porque eu superei sozinho. Superei sozinho. Não teve ninguém que me... A única pessoa que me ajudou mesmo, em minha opinião, que me ajudou mesmo, que me ajudaria, é o doutor Henrique, que é um psiquiatra, um psiquiatra que faleceu esse ano, acho que foi em janeiro desse ano, ele devia ter uns 95 anos, mais ou menos, e ele vivia numa clínica de repouso pra idosos. Já fazia tempo que ele morava ali na clínica de repouso, doutor Henrique, psiquiatra, professor de psiquiatria forense. E eu fiz tratamento com ele, acabei me tornando amigo dele, eu sou profundo admirador dele. Ele sim é uma pessoa que direta ou indiretamente me ajudou sim. Esse tipo de gente me ajuda sim, me ajuda muito. Eu gosto de falar sempre isso, se ele estivesse vivo e fosse um pouco mais moço, um pouco mais moço, tivesse 87 anos, suponhamos, e continuasse trabalhando ali como psiquiatra, eu iria uma ou duas vezes por mês lá ao consultório dele, pagando, lógico, pagando as consultas lá sempre regularmente. Iria lá só pra ficar conversando com ele, entendeu? Pagando as consultas só pra ficar conversando sobre religião e política, religião e política, que são assuntos que ele gosta, que eu o acho excelente. Religião, política, e também psiquiatria, psicologia, essas coisas. Mas principalmente espiritualidade e política. Mas ele já era muito velho e já se aposentou faz tempo, então eu não conseguia nem sequer conversar. Eu até gostaria de ir lá visitá-lo na clínica de repouso, mas ele estava muito velhinho, então eu acho que era fora de propósito.
P/1 – Francisco, como você percebeu que você não estava bem? Eu queria que você contasse um pouco quando...
R – Como assim? Percebeu como?
R – Como você foi percebendo que você não estava bem? Como foi o começo desse processo com a doença? E queria que você contasse, você falou que você superou sozinho, como você...
R – Eu superei. Isso é verdade. Por que eu superei? Porque ninguém me ajudou, ora essa.
P/1 – Sim. Sim. E como você fez pra superar então? Como você percebeu que estava ficando doente e como você fez pra superar?
R – É difícil explicar, viu... É uma coisa de solidão. É um processo de solidão. Muitas coisas na nossa vida, na vida de todos vocês, muitas coisas a gente vivencia num processo de pura solidão. Tem gente que tem facilidade, tem jeito pra lidar com a solidão e consegue resolver tudo na solidão, outros não conseguem. É um problema complicado. Eu percebo que eu me sinto bem na solidão. A gente improvisa na solidão e a gente se adapta às coisas na solidão e tal.
P/1 – Teve alguma leitura que tenha te ajudado?
R – Muitas. Muitas. Muitas. Muitas.
P/1 – Você se lembra de algum exemplo agora?
R – Mas uma coisa muito importante está acontecendo agora, agora de... Uma coisa muito importante. Depois que eu já estava bom, tranquilo, aposentado, com a vida estabilizada, aconteceu uma coisa muito importante... Tem que fazer as contas aqui. De oito anos pra cá, eu não sei, faz uns oito anos, sete anos, de sete anos pra cá eu descobri ioga. Eu não sabia o que era isso. Faz sete anos. Descobri ioga. Essa foi uma das descobertas mais importantes da minha vida. Ioga. Depois que eu me aprofundei um pouco na ioga, eu percebi que o que eu gosto mesmo não é a ioga, é a meditação. Primeiro a ioga, porque a meditação faz parte da ioga. Então dentro da minha ingenuidade, eu pensei que era a ioga, tal. Aí eu que eu aprofundei, eu falei: “Não, o que eu gosto mesmo é de meditação”. Então ioga, meditação, essas coisas da Índia, hinduísmo, budismo, todas essas leituras que a gente faz de coisas da Índia, todas elas. Isso que é importante pra mim. Eu gosto, me identifico. O Gandhi, não violência, a cultura da Índia, tal. Pouca gente sabe, existe o Centro Cultural da Índia aqui em São Paulo, que foi inaugurado faz pouco tempo. Eu acho que pouca gente sabe disso, entende? E é uma coisa importante o Centro Cultural da Índia, eu gosto. Então é isso. Eu gosto muito de meditação. Resumindo: meditação. A meditação é que mudou a minha vida pra... Fez-me melhorar mil por cento, a meditação. E essa meditação, eu só vim conhecer agora quando eu já não precisava mais. Eu deveria ter conhecido a meditação quando eu fiquei doente lá no começo dos anos 70. No começo dos anos 70. Eu deveria ter entrado em contato com a meditação quando eu era bem moço, que a minha vida teria sido outra. Infelizmente, a meditação entrou na minha vida somente agora, eu lamento isso. Lamento. A meditação é algo muito importante. E com todo mundo que eu converso, eu procuro dizer isso: “Olha, você precisa reservar algumas horas do seu dia para meditar”. Eu falo assim pra todo mundo.
P/1 – Como você descobriu a ioga e a meditação?
R – Que eu tava... Assim, eu fiquei com um sério problema de saúde por outro motivo, que não tem nada a ver com essas coisas do passado, uma coisa desagradabilíssima que aconteceu, muito desagradável que aconteceu aí, acontece com todo mundo. Eu fiquei doente, mal, aí eu percebi que eu poderia fazer ioga. Fazer ioga. E eu tenho direito pra ser atendido ali na Escola Paulista de Medicina, na Unifesp, porque a Unifesp é do MEC, é ligada ao MEC, faz parte do Ministério da Educação, a Unifesp. E os funcionários do MEC, que eu trabalhava lá, tinham direito a serem atendidos lá na Unifesp. Então eu ia lá sempre, não pagava nada e tal, tal. E lá na Unifesp tinha lá no PQV, o Programa Qualidade de Vida, tinha ioga lá e tal. Olha que maravilha. E eu sabia que tinha. Eu sabia, não sei como, que tinha ioga lá. Eu pensei assim: “Eu vou procurar o Programa Qualidade de Vida lá na Unifesp e eu vou fazer ioga lá. E eu acho que isso vai ser bom pra mim”. Porque eu estava com um problema de saúde, hipertensão. Que aconteceu uma coisa na minha vida e o patamar da minha pressão, que era baixíssimo, subiu. Coisas que acontecem. Quem sabe a ioga vai ser boa e tal. Quem sabe? Eu fui lá, procurei, consegui rapidamente, tive sorte. “Olha, você vai começar a fazer ioga, tal, uma ou duas vezes por semana, é de graça, tal, ali, tal.” E eu fui. Mas foi uma coisa mais importante da minha vida. Eu adorei lá, aquele professor lá, aquele ambiente, um espaço grande, as alunas. Gozado que parece que quem gosta disso aí é mulher. Não tinha nenhum homem. Homem, só eu. Só tinha mulher, moças ali nas aulas de ioga, e aquele professor lá, muito simpático, muito interessante. Eu adorei. No primeiro dia, no primeiro momento, eu falei: “Não, isso aqui é tudo que eu queria. É tudo que eu queria. É amor à primeira vista”. Eu adorei aquilo. Tudo. O professor, tudo aquele ambiente. E também lá no finzinho depois ele coloca aquela música lá, eu gostava muito daquela música, adorava aquele tipo de música lá no fim, a música. E gostava muito das brincadeiras do professor de ioga. Eu gostava. Ele era muito brincalhão. Melhor, impossível. Mas eu demorei um pouco pra perceber, mas o que eu gosto muito mesmo não é de ioga, eu gosto mesmo é de meditação. É meditação que eu gosto. Foi isso. E fazendo isso, a minha saúde melhorou de tal maneira, a hipertensão, de tal maneira, nossa, mas é inacreditável. Eu fiquei ótimo, ótimo, ótimo. Então eu estou ótimo hoje, em grande parte por causa disso, por causa da meditação. E eu continuo fazendo aulas de ioga uma vez por semana, com outro professor, com o Ricardo, que é meu grande amigo. Entendeu? É isso aí. Então vocês sabem, devem saber, essa semana nas bancas de jornal apareceu lá A neurociência da medita... Não viu lá? Neurociência da meditação? Aquilo lá é ótimo. A revista no site, Neurociência, excelente a edição daquilo ali. Então isso aí eu recomendo pra todo mundo. Se eu fosse rico, eu compraria mil exemplares daquilo ali e distribuiria para as pessoas, pra todo mundo: “Olha, vai ter que ler isso aqui. Isso aqui é muito importante”.
P/1 – Francisco, deixe-me voltar um pouquinho, eu queria saber como foi a sua experiência no MEC. Com que você trabalhava?
R – Uma experiência desagradável. Tem os dois lados. Tem os dois lados. Desagradável, porque aquilo era ditadura militar, desagradável.
P/1 – Qual era o seu trabalho no MEC?
R – Desagradável. Desagradável. Por um lado, ruim. Por um lado. Mas por outro lado, a minha vida entrou no eixo ali. A minha vida melhorou muito depois que eu comecei a trabalhar. E melhorou muito. O lado bom e o lado ruim. A minha vida entrou no eixo ali sob todos os aspectos, eu melhorei. E também porque ali é... E eu percebi que eu sou uma pessoa que eu teria que ser funcionário público mesmo. Eu não sirvo pra trabalhar no mercado. O mercado, competição, eu não sirvo pra isso. Eu nasci pra ser funcionário público. Fazer um concurso público, ser funcionário e trabalhar a vida inteira como funcionário público concursado. Eu prefiro assim, sabe? É isso.
P/1 – Qual era o seu trabalho no MEC?
R – Não vou falar. Trabalho burocrático. Trabalho burocrático. Mas eu aprendi a gostar das pessoas. A gente aprende a gostar. Com o passar do tempo, eu fiquei gostando das pessoas e as pessoas também gostavam de mim, então eu tenho saudade disso aí, apesar de eu ficar decepcionado com muitas coisas, muitas coisas. A gente fica decepcionado. Trabalho burocrático e tal.
P/1 – Quando você se aposentou, Francisco?
R – 96. 96. 96.
P/1 – E depois que você se aposentou, como é seu cotidiano assim? Quais são suas atividades? O que você gosta de fazer?
R – Pois é. De depois?
P/1 – É. Depois da aposentadoria.
R – Pois é. Pois é. Aí eu constatei que eu sou uma pessoa da terceira idade, então a gente tem que se adaptar a isso aí. Espero que todos vocês cheguem à terceira idade. E quando chegar lá, vocês têm que saber como é a terceira idade, que é diferente do passado. E eu estou muitíssimo bem adaptado na terceira idade. Eu cuido muito bem da minha saúde. Uma coisa que eu percebi é essa, eu sei cuidar muito bem da minha saúde. A minha saúde está muito boa. E à medida que os problemas vão acontecendo, seja lá o que for, eu consigo superar isso com muito bom humor. A minha saúde está ótimo, porque eu tenho as características, eu só pró-ativo e tal, gosto muito de medicina. Pois é, por isso que eu falo, quando eu era moço, eu gostava de filosofia. Hoje eu não gosto mais de filosofia, hoje eu gosto de medicina. Quando eu vou a esses lugares aí pra ficar lendo, lendo, lendo, eu não vou ler livro de filosofia, eu fico lendo livro de medicina. Eu leio livros, muito livro de medicina. Por isso que a minha saúde está ótima, porque eu me interesse por medicina, eu adoro medicina, sabe? Qualquer evento de medicina eu frequento. Eu vou dar um exemplo, recentemente agora, no dia 27 de novembro, agora numa quinta-feira, eu fui a Ribeirão Preto participar do Congresso de Bioética. Congresso de Bioética de Ribeirão Preto. Bioética. É isso. E ali todo mundo que estava ali, pouca gente, todo mundo era tudo médico. A única pessoa que tava ali que não era médico era eu. Eu fui lá porque fui convidado pelo psiquiatra, doutor Ibiracy Barros de Camargo, ele me convidou, disse que tinha um congresso e tal, que eu poderia ir, eu fui lá e tal. E eu aprendi a gostar de bioética e gosto, por exemplo, por causa do meu irmão. Por causa do meu irmão. Meu irmão tem um problema gravíssimo de alcoolismo e não somente alcoolismo, e eu tenho que cuidar dele, tenho que ficar cuidando dele, porque não há nenhuma pessoa no mundo, ou na minha família, que possa cuidar dele. Ele tem uma pessoa no mundo que pode cuidar, que sou eu. Se eu não tomar conta dele, não cuidar dele, ele vai morar na cracolândia, porque ele é um alcoólico crônico. E ele tem outra doença também, que é o transtorno de personalidade esquizotípica, que é um transtorno de personalidade um pouquinho parecido com esquizofrenia. Um pouco parecido. Um pouquinho esquizofrênico, digamos assim. E isso é mais grave do que o alcoolismo. Então alguém tem que cuidar dele e eu estou cuidando dele, é muito grave. Aí que eu percebi que o assunto dele é de bioética. São cuidados paliativos, porque não há tratamento pra ele. Não há tratamento. Cuidados paliativos. Então eu frequento ali o Conselho Regional de Medicina, na Rua da Consolação. Que número que é ali?
P/1 – Não sei.
R – Rua da Consolação, pertinho da Maria Antônia, quase esquina com a Caio Prado, por causa disso. Frequento a biblioteca, que eles são especializados em bioética etc. E eu vou lá e gosto, e assim a gente vai conhecendo as pessoas. E eu fui ao Congresso de Bioética de Ribeirão Preto, só pra dar um exemplo.
P/1 – E, Francisco, você comentou comigo lá fora que você é casado, né?
R – Sim.
P/1 – Eu queria saber como você conheceu a sua esposa.
R – Isso é outro assunto muito complicado. Isso é um assunto muito complicado. Um assunto bastante complicado.
P/1 – Se não quiser falar, não precisa, fica à vontade.
R – É um assunto complicado. Um assunto complicado. Todos vocês ou já tiveram situações complicadas... Ou já tiveram situações complicadas na vida, se não tiveram, talvez venham a ter nos próximos anos. As situações complicadas aparecem na vida da gente e você tem que ter certa resiliência e capacidade de improvisação, de adaptação pra resolver. E eu tenho essa capacidade e estou sabendo resolver bem e tal, pragmaticamente, porque eu também sou uma pessoa pragmática. É isso aí. Não vou entrar em detalhes. Não vou entrar em detalhes.
P/1 – Tá certo.
R – É melhor. É melhor.
P/1 – Claro. Fique à vontade.
R – É pragmatismo. Apenas pragmatismo.
P/1 – Tá. Francisco, eu vou encaminha para o final então da nossa entrevista.
R – Pois não. Pois não.
P/1 – Eu vou te fazer as duas perguntas de encerramento, tudo bem?
R – Pois não. Pois não.
P/1 – Então a primeira é: quais são seus sonhos hoje?
R – Sonhos?
P/1 – É.
R – Sei. Sonho.
P/1 – Pode ser assim: desejos, vontades.
R – Sonhos, nós temos muitos. Eu acho que vocês também têm muitos sonhos, muitos sonhos. Olha, de certa maneira, de certa maneira eu to satisfeito com a minha vida, sabe? Sob certo aspecto, eu to satisfeito com a minha vida. Não tenho muito do que me queixar, digamos assim. Não tenho muito do que me queixar. Na minha vida surgiram muitos problemas, diversos tipos de problemas, e agora mais recentemente apareceu outro também. E eu percebi que... Com o passar do tempo eu percebi que eu tenho uma capacidade muito boa de resolver os problemas. Eu tenho essa capacidade. Então eu estou satisfeito. É claro que, por exemplo... Eu vou dizer uma coisa, vocês vão dar risada, por exemplo, se eu jogasse na loteria, na Mega-Sena, e acertasse na Mega-Sena, seria ótimo. Não seria nada mal se eu ganhasse um milhão na Mega-Sena. Seria ótimo. Seria muito bom pra mim. Isso é bom. Quer dizer, eu estou satisfeito com tudo, sinceramente, mas se eu jogasse na Mega-Sena e ganhasse, seria ótimo. Eu aprendi a gostar... Porque eu não ligava pra dinheiro. Aprendi a gostar de dinheiro, hoje eu gosto muito de dinheiro e gostaria de ter muito dinheiro. Pra mim, uma maneira de ter muito é acertar na Mega-Sena, porque outra maneira seria difícil. Aí eu saberia como usar esse dinheiro. Eu sei como usar esse dinheiro, porque eu não sou bobo. Eu não sou bobo. Se um dinheiro cai na minha mão, eu sei o que fazer com o dinheiro. Então eu estou satisfeito.
P/1 – Tá certo.
R – Eu estou satisfeito. A minha saúde, eu acho que está muito boa. Eu gosto muito de medicina, gosto muito de espiritualidade, essas coisas. Gosto, vou estudar agora, pretendo estudar Ciência da Religião lá na PUC, sei exatamente qual vai ser o professor e outros. É isso aí.
P/1 – E, Francisco, pra terminar então, o que você achou dessa entrevista? Como foi pra você?
R – Eu gostei de tudo. Eu gostei de tudo. Eu gostei de tudo, não tenho nenhum reparo a fazer. Eu gostei de tudo.
P/1 – Tá certo. A gente...
R – Tudo bom. Tudo bem. Tudo bem.
P/1 – A gente encerra por aqui então. Agradeço muito. Muito obrigada pela presença, pela disponibilidade.
R – Obrigado. Eu que agradeço. Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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