Entrevista de Rosana Magalhães Limeres
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Bernardo do Campo, 26/08/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV007
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro eu quero te agradecer demais por estar recebendo a gente aqui na sua casa, dividindo um pouco da sua história, uma honra e, pra começar, gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Tá. Em primeiro lugar eu quero agradecer a vocês, a cada um e ao Museu da Pessoa, por esse trabalho tão bonito, que vai ficar. Eu me chamo Rosana Limeres, tenho sessenta anos, nasci na cidade de Santos. Faltou alguma coisa?
P/1 – Que dia?
R – Dia doze de fevereiro de 1963, na Santa Casa de Misericórdia de Santos.
P/1 – Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Hum-hum, sim. Foi assim: no dia onze, o dia anterior ao meu nascimento, minha mãe completou dezoito anos e deu uma festinha em casa e aí ela estava fazendo a limpeza das coisas, o pessoal já tinha ido embora, ela começou a sentir as contrações, aí foi para o hospital, eu nasci 12h40 do dia doze, então um dia após a minha mãe completar dezoito anos. Então, essa é a história. E o meu nome o meu pai escolheu, porque ele era fã de duas atrizes italianas da época, uma chamava Rossana Ghessa e a outra Rossana Podestà. Só que, na hora de registrar, ele falou: “Eu quero que fique mais brasileiro e tirou um dos Ss, aí ficou Rosana, mas em homenagem, e o sonho dele era ter uma menina e eu fui a primeira, de seis filhos do meu pai, Roberto Limeres.
P/1 – E como você descreveria o jeito dos seus pais?
R – Minha mãe é uma pessoa de casa. Os dois se conheceram na Santa Casa. A minha mãe, quando tinha quatorze anos, teve o primeiro emprego em uma lavanderia e ela queimou a mão. Ela ficou dois anos internada na Santa Casa. Então, por...
Continuar leituraEntrevista de Rosana Magalhães Limeres
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Bernardo do Campo, 26/08/2023
Projeto Vestindo Memórias: Legado e Identidade
Entrevista número: VES_HV007
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Primeiro eu quero te agradecer demais por estar recebendo a gente aqui na sua casa, dividindo um pouco da sua história, uma honra e, pra começar, gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Tá. Em primeiro lugar eu quero agradecer a vocês, a cada um e ao Museu da Pessoa, por esse trabalho tão bonito, que vai ficar. Eu me chamo Rosana Limeres, tenho sessenta anos, nasci na cidade de Santos. Faltou alguma coisa?
P/1 – Que dia?
R – Dia doze de fevereiro de 1963, na Santa Casa de Misericórdia de Santos.
P/1 – Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Hum-hum, sim. Foi assim: no dia onze, o dia anterior ao meu nascimento, minha mãe completou dezoito anos e deu uma festinha em casa e aí ela estava fazendo a limpeza das coisas, o pessoal já tinha ido embora, ela começou a sentir as contrações, aí foi para o hospital, eu nasci 12h40 do dia doze, então um dia após a minha mãe completar dezoito anos. Então, essa é a história. E o meu nome o meu pai escolheu, porque ele era fã de duas atrizes italianas da época, uma chamava Rossana Ghessa e a outra Rossana Podestà. Só que, na hora de registrar, ele falou: “Eu quero que fique mais brasileiro e tirou um dos Ss, aí ficou Rosana, mas em homenagem, e o sonho dele era ter uma menina e eu fui a primeira, de seis filhos do meu pai, Roberto Limeres.
P/1 – E como você descreveria o jeito dos seus pais?
R – Minha mãe é uma pessoa de casa. Os dois se conheceram na Santa Casa. A minha mãe, quando tinha quatorze anos, teve o primeiro emprego em uma lavanderia e ela queimou a mão. Ela ficou dois anos internada na Santa Casa. Então, por que eu nasci na Santa Casa? Tem uma história da Santa Casa, então ela ficou dois anos lá. Eles fizeram enxertos, aquele teste que a mão fica na barriga, naquela época era assim, pra ver se cresce a carne, foi traumático, mas era como se fosse a casa dela, ela gostava de lá e conheceu meu pai lá. Meu pai foi visitar a vó dele, Maria Limeres, a minha ‘bisa’ espanhola, porque a família do meu pai é toda de Espanha, metade da Galícia e metade da Andaluzia, então ela estava na Santa Casa de Misericórdia e a minha mãe passeando, ‘moradora’ da Santa Casa. Aí meu pai se apaixonou, os dois namoraram e se casaram acho que em menos de um ano e um ano depois, certinho, eles se casaram no dia seis de maio de 1962 e nove meses depois, na verdade, eu nasço na Santa Casa. Então, a história deles começa na Santa Casa e por uma tristeza meu pai veio a falecer na Santa Casa também, com 61 anos de idade. Então, é um lugar também que tem uma memória pra mim. Então, a minha mãe era do lar. Ela costurava porque, naquela época, eu conto pras minhas filhas, pras minhas netas, que não tinha magazine, as pessoas faziam roupas em casa. Praticamente todas as famílias tinham uma mãe, uma vó, uma tia que fazia a roupinha dos filhos, de todo mundo e quem tinha uma condição melhor, ia na modista, na costureira. Poucas eram as lojas de roupas naquela época. Tinha a Petistil, de roupa infantil, mas era muito caro, só pra quem tinha dinheiro e nós éramos pobres, meu pai era estivador do Porto de Santos. Na verdade, ele era doqueiro, que fala, porque o estivador ainda era uma classe um pouquinho mais acima. Então meu pai era um homem de um porte alto, muito bonito e não teve condição de estudar, os dois estudaram até o quarto ano primário na época, fundamental hoje e ele foi trabalhar no porto e ele carregava saco. Hoje em dia acho, nem sei se ainda existe esse trabalho braçal, mas na época era feito pelos trabalhadores que descarregavam os navios, as coisas que chegavam, todo tipo de mercadoria, desde cereais, açúcar. Ele comentava que, quando era açúcar, era terrível, porque o porão ficava... era insalubre, muito insalubre e todo tipo de mercadoria. Hoje não, o porto está modernizado, mas isso, nos anos sessenta, ele era um jovem trabalhador que perdeu os pais, a mãe dele morreu quando ele tinha cinco anos, de parto do irmão e o pai dele se casou novamente e ele ficou um tempo na casa de uma tia, na casa de outra. Então, ele foi um menino que foi criado por uma tia, não tinha uma família dele, muito carente e minha mãe foi trabalhar cedo, aconteceu isso, se casou cedo, então os dois eram muito jovens, pais jovens e de famílias pobres, também. A gente tinha uma condição bem pobre, mesmo, e éramos seis filhos e uma veio a falecer, com poucos meses. Eu, a mais velha.
P/1 – E como era a sua relação com seus irmãos, na infância?
R – Eu, praticamente, fui a segunda mãe deles. Eu digo que eu não tive infância, porque eu só ia vendo chegando um por ano, um por ano, um por ano, (risos) então desde muito cedo, a memória que eu tenho mais recente, de seis anos, já cozinhava, creio que até antes disso, lavava, trocava fraldinha, os levava pra escola, ensinava, era professorinha deles, então era uma relação mais de segunda mãe do que irmã, e quando a gente ia brincar, muitas vezes não dava muito certo, porque ou você está na função de irmã e todo mundo brinca junto, ou você é aquela que ensina, que dá a bronquinha, que tem que cuidar, porque os pais precisam trabalhar. É complicado. Ser a mais velha tem essa coisa de também ser o exemplo, então... mas era boa, sim. Eu tenho quatro irmãos vivos. Essa minha irmã morreu com três meses, eu era muito novinha, eu tinha seis anos, foi muito triste, na época, ela tinha leucemia, mas eu tenho quatro irmãos mais novos do que eu.
P/1 – Todos homens?
R – São três homens e uma mulher. Todos com R. Rosana; Roberto, que é o Júnior, do meu pai; Rogério; Renato e Regiane e a que morreu era Rosa Maria. Ele gostava de seguir o R. Aquela época era assim: escolhia uma letra e ia embora todo mundo da família, com aquela mesma letra e eram muitos filhos, eu sou da geração baby boomer ainda. Peguei o final da baby boomer, mas me dou bem com a Z, com a Y, com a J, todas as gerações, eu sou ‘de boa’. E hoje sou vovó, com muito orgulho.
P/1 – E teve algum outro parente na sua família que foi bem importante pra você? Primos, tios?
R – Sim. A minha vó materna, Eulina, era uma pessoa muito importante pra mim, porque a minha mãe não era muito próxima, mas minha vó... porque sempre estava chegando filho, então não tinha aquela coisa de poder dar uma atenção maior. Minha vó também não podia, mas eu lembro da minha vó sempre procurar me ouvir, quando eu tinha as minhas questões emocionais, era minha vó que estava mais próxima de mim e até hoje é o meu referencial e meu exemplo. Eu tenho um carinho muito grande pela minha vó e senti muito quando ela partiu.
P/1 – Você se lembra de algum momento que você foi conversar com ela e foi muito significativo?
R – Bom, vamos lá! A família do meu pai, como eu falei, são espanhóis. Eles tinham preconceito. Então, quando meu pai se casou com minha mãe e minha mãe morena clara, eles diziam que ele ia se casar com uma negrinha caiçara. Quando eu nasci todos falaram que eu era negrinha. Eu sou a mais morena dos meus irmãos, dos meus primos, da família inteira. Então, quando eu ia visitar alguns dos parentes do meu pai eles diziam: “Lá vem a negrinha do Roberto”. Um deles chegava a falar que eu não podia frequentar a casa dele, porque eu ia sujar o chão da casa. E eu chorava e sentia e minha vó me consolava, ela falava: “Nós temos a mesma cor” - por isso que eu falei da questão da cor – “A gente é da cor do chocolate, da cor do ouro”. E eu me espelhava muito na minha vó, uma mulher muito batalhadora, analfabeta, mas que cuidou de oito filhos, estava sempre ajudando um, ajudando outro e eu sou a continuação dela, exatamente como ela foi eu sou e ela foi esse ‘norte’ pra mim porque, naqueles momentos difíceis, onde você fica sozinho e principalmente na infância, essa pessoa é muito importante e vai ser, pra sempre (choro). Não queria chorar, mas não tem jeito (choro).
P/1 - O que vocês gostavam de fazer juntas?
R – Olha, até hoje eu sonho em aprender a costurar uma colcha de retalhos, mas quando eu tinha nove anos eu fui mexer na máquina da minha mãe e ela me deu uma surra e eu fiquei traumatizada. Eu já comprei três máquinas de costurar e não consegui. Eu costuro tudo na mão. Acho que um dia eu vou fazer uma colcha de retalhos à mão, porque a minha vó costurava as colchas assim: quando uma roupa não servia num dos netos ela passava de casa em casa dos filhos e quando não dava mais, ela cortava, quando aquela roupa não servia pra mais ninguém, já estava gasta, ou não tinha mais uma utilidade e aí ela fazia as colchas, que ela presenteava as filhas e os netos e aí a nossa brincadeira era pegar a colcha e ficar: “Olha, esse era o short do Bebeto, esse daqui era o vestido da Rosana, aquela blusinha do Renato”. E a gente se divertia com aquilo e aquilo, pra mim, enquanto ela costurava, eu costumo falar que ela ia costurando as memórias, então eu falo que, de Esopo a Lobato, de Cervantes a Pessoa, porque hoje eu sou escritora, poeta, eu gosto muito de ler, sou autodidata desde criança, a minha vó analfabeta foi quem me despertou o gosto pela literatura, porque ela contava história da vó dela, que era índia e foi sequestrada da tribo pelo bisavô, que era holandês e ela era uma morena, como eu, de olhos verdes. Aí ela contava as histórias de todo mundo, então eu gostava de ouvir. Então, estar ao lado dela enquanto ela costurava, eu ficava sonhando um dia estar naquela máquina, costurando também, mas nunca chegou esse dia, mas quem sabe, né, ainda chegue?
P/1 – A sua família tem algum costume muito específico, ou uma comida, ou datas comemorativas, vocês tinham?
R – Olha, o meu pai era o festeiro. Eu lembro que nós morávamos em casas muito pobres, eram chalés, ou bangalôs, que são casas que têm uma parte de alvenaria e uma de madeira e, nas festas juninas, o que ele fazia? Ele ia juntando madeira velha no quintal. Eram aquelas casas que tinham pés de frutas e a gente ia guardando aquelas madeiras velhas. Quando chegava perto das festas juninas ele já se preparava pra fogueira, aí ele já falava: “Rosana, vai pegar o gadanho”, que é o rastelo em espanhol. Gadanho é uma palavra feia, mas é aquele rastelo. Então, já tinha que passar o gadanho, pra limpar o terreno e fazer aquela fogueira, com toda a madeira velha e as coisas que a gente não queria mais. Então, eu lembro, isso era muito típico do meu pai, meu pai gostava muito, era muito festeiro. Minha mãe não, até hoje não gosta de festa e eu herdei esse lado festeiro, porque nossa, minha filha mais nova fala: “Mamãe gosta tanto de festa” – quando eu montei meu buffet – “que criou um buffet, um salão de festas pra ela, de tanto que ela gosta de festa” e eu adoro fazer festa, eu gosto muito. Então, eu acho que essa é uma das tradições. Tem alguma comida que a gente faz, que seja tradição? Tem a famosa torta de maçã, que eu faço desde os meus nove anos e é uma tradição.
P/1 - Você que sempre faz?
R – Eu que sempre faço. Aqui eu sou a cozinheira oficial.
P/1 – E você lembra da casa em que você passou sua infância?
R – Olha, eu nasci numa casa que essa eu não lembro, mas tinha a casa da Rua São Paulo, que era nos fundos, um chalé que nós morávamos, na frente morava a proprietária, que era a Dona Cecília e o ‘seu’ Máximo, era uma boleira e o Rubem Alves fala que a leitura de mundo antecede a leitura, propriamente, das letras e quando você é alfabetizado aquilo fica no seu inconsciente, então eu, aos sete anos de idade, morava nessa casa e quando eu fui lembrar desse tempo eu falei: “Gente!” Era uma casa cheia de gente com problemas psiquiátricos, porque essa senhora que fazia bolo às vezes andava só de penhoar e falava sozinha, era uma ‘figura’. Tinha a costureira Dona Iolanda, solteirona, também tinha os problemas dela: o pai era esclerosado, que se falava na época, saía pelado pelas ruas (risos) de Santos e o irmão também, e tinha uma mulher que a gente chamava de garrafeira, que era uma ‘neurótica de guerra’, uma alemã que andava com uma boneca dizendo que era o bebê dela. Isso nos anos setenta. Ainda remanescente da Segunda Guerra. Já era uma senhora idosa. E eu sentia muita dó daquela mulher, porque ela, com aquela boneca velha, dizendo que era o bebê dela e todo mundo falava que ela tinha perdido o bebê na Segunda Guerra, muito triste. E nós morávamos na rua do famoso Hospital Anchieta, o hospital psiquiátrico mais famoso de Santos que, depois, nos anos oitenta, foi desativado e virou a Rádio Tam Tam. Olha o nome! Fez muito sucesso. E passava, pra ir pro colégio, na frente desse hospício, pra levar os meus irmãos e os doidos ficavam de lá, gritando: “Ooooooo” e a gente morria de medo. Então, eu falei: “Gente, qual a chance de uma criança de sete anos, que está ‘lendo’ o mundo e o mundo é assim? Então, eu lembro que um dos meus primeiros pensamentos, que nortearam a minha vida naquele momento e até hoje norteia, é uma frase do pensador Chesterton, que diz assim: “O louco não é aquele que perdeu a razão. O louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão”. E por uma infelicidade meu pai ficou internado nesse hospital algumas vezes. Em outros também. Por causa de problemas, também, emocionais, não psiquiátricos. Então, tudo isso, esse caldeirão de emoções me fez ser empática com as pessoas que têm esses problemas porque, no fundo, todo mundo vem do ‘quartinho escuro’ da infância e ninguém sabe o que tem lá, (risos) às vezes nem a gente. Quando a gente começa a mexer, uhmm, aí assusta, ou não, por isso que eu tento fazer o ‘quartinho da infância’ dos meus netos o mais colorido possível. Iluminado, colorido, como a vida tem que ser.
P/1 – O que você mais gostava de fazer na infância?
R – Olha, eu não pude brincar, então era assim: depois de fazer todo trabalho doméstico, à noite, quando todo mundo ia dormir, eu acendia uma vela no cantinho onde eu dormia, às vezes era uma cama, um beliche, às vezes era um sofá-cama compartilhado e eu ficava lendo, então eu li muito, a obra de Monteiro Lobato completa; Miguel de Cervantes, Dom Quixote; A Divina Comédia. Com doze, treze anos eu já fui lendo os clássicos: a Odisseia. Depois, mais tarde, fui fazer Letras, mas era um momento que eu ‘viajava’ e até hoje, então eu não tenho muitos anseios de conhecer o mundo, mas quando eu leio e conheço o mundo que está ali, aquilo me preenche. E o momento que eu ia pra escola, que era onde eu não precisava fazer as tarefas domésticas, não era tanto por fazer, porque até hoje eu faço, mas porque nunca estava bom, porque sempre tinha que ser refeito e refeito e refeito. Isso era uma tortura. E até hoje uma vozinha às vezes fala: “Não está bom, não está bom, não está bom”. Eu mesma fico me repetindo ‘não está bom’, porque é aquele padrão que você repete na infância, você leva isso pra frente. É a vida! Nossa, está ficando ‘pesado’, desculpa. Eu não queria, mas está, desculpa.
P/1 – E escola?
R – Eu adorava estudar. Eu nunca tive a facilidade. O meu irmão, que é o próximo de mim, era muito inteligente, não precisava estudar e tirava notas boas. Eu sempre tirei notas boas, mas sempre tinha que estudar e nas madrugadas. Até hoje eu sou notívaga, eu durmo duas, três horas da manhã, pelo hábito de infância. Então, a escola era o meu refúgio, eu gostava de ir pra escola e um episódio que marcou bastante foi quando eu terminei... eu só pude ir pra escola com sete anos. Os meus irmãos fizeram pré-escola, parquinho, foram com quatro, cinco aninhos pra escola, minha mãe fez pré-escola, eu não, porque eu tinha que cuidar dos irmãos. Então, quando eu terminei o primeiro ano eu não sabia ler, por quê? Eu decorava as lições. A minha mãe - ainda era daquela cartilha Caminho Suave - dizia o que estava escrito em cada linha, eu decorava, até hoje eu tenho facilidade em decorar. Quando ela foi ganhar minha irmã, que tem sete anos de diferença de mim, eu estava na lição do gato e fiquei na lição do gato quase um mês, tomando reguada (risos) na cabeça, porque a minha mãe não podia me ajudar, porque ela estava cuidando da minha irmã recém-nascida. Quando teve a festinha de entrega do livro, que era Aprender é Festa, nunca esqueci esse livro, foi quando eu comecei a ter contato com a poesia de Cecília Meireles, que me apaixonou. Aí foi escolhido alguém pra declamar uma poesia, que chamava O Sapateirinho. Eu fui a escolhida. Aí me colocaram em cima de uma mesa, todos os pais estavam lá e eu declamando. Não foi ninguém da minha casa. Ninguém. Porque tinha quatro irmãos e uma recém-nascida e eu fiquei – isso daí devia ser uma hora da tarde – até seis horas da tarde na porta da escola, com a Dona Nazaré, que era zeladora, quando de repente aparece a minha vó pra me buscar. Então eu fiquei com esse trauma. Então, aquela coisa de ninguém ir numa reunião. Então, eu me esforçava, mas não tinha pra quem. Nunca tinha uma reclamação, mas eu queria um elogio. Todo mundo quer. Mas foi assim: eu fui crescendo sendo um exemplo, a forte. Então, tive que ser assim. E a escola era o meu refúgio, por isso que também eu acho que juntou tudo, porque era o lugar onde eu podia ser eu, era o único lugar que eu podia ser eu. Acho que é isso.
P/1 – Tinha alguma professora, professor muito marcante pra você?
R – A minha primeira professora chamava Dona Rute. Dona Rute me dava reguada, principalmente (risos) na lição do gato. Eu me lembro até hoje: “Menina!” Porque eu não conseguia, porque eu decorava. Depois eu ‘deslanchei’. Mas uma professora que marcou bastante foi a do quarto ano, que era Dona Ceni. Dona Ceni era professora de Francês e ela levava a gente pro prédio dela, que era o Verde Mar, eu acho, que chamava, lá em frente à praia, que tinha piscina, mas não era por isso, era porque ela era culta, fina. Já era uma senhora, já tinha idade e eu admirava aquilo, sabe, ela falando francês e ela ensinando a cantar em francês, então eu tinha um carinho por ela. Dona Ceni foi, do ciclo básico, a professora que marcou pra mim e a Dona Rute também, porque naquela época era comum: quando não sabia, tomava reguada. No tempo da minha mãe ajoelhava no milho. Umas coisas, assim: palmatória, gente! Onde? São umas coisas, assim, que... (risos) mas eu estou viva.
P/2 – Só pra saber: como era essa régua? Muita gente comenta, mas a gente que não teve na época...
R – Era uma régua de metal. E tomava reguada na mão, na cabeça. Qual a chance de isso ajudar? Só traumatiza. E eu saí da primeira série pra segunda sem saber ler, mas sabendo decorar. Até hoje eu tenho as poesias que eu declamava!
P/1 – Lembra de uma?
R – Ixi, vamos lá!
R – Jesus é Bonito.
“Andava pelos caminhos
À procura de Jesus
Naquela tarde de maio
Cheia de encanto e de luz
Pelas campinas floridas
Chamava sem descansar
Clamando pelo seu filho
Que não podia encontrar
É que no tempo se achava
Falando aos grandes doutores
Jesus, o pequeno sábio
O maior dos oradores
Nossa Senhora chorava
E dos olhos da Virgem Santa
Lágrimas puras e pequeninas
Caíam sobre as (choro) florzinhas das campinas
E foi assim que nasceu
O miosótis, flor gentil
Da cor dos olhos da Virgem
Da cor do céu do Brasil”
E eu me emocionei porque essa poesia foi minha mãe que me ensinou. (choro) Então, são coisas que a gente não esquece. Outras os livros me ensinaram, mas essa foi a minha mãe que me ensinou. (choro)
P/1 – Queria saber o que você podia fazer na escola, o que era aprendido, que você não podia mais fazer em nenhum outro lugar, que ali você se sentia você.
R – Olha, aí é a parte esquisita, vamos lá! Eu tenho um senso de justiça, porque eu era a mais velha dos meus irmãos. Meus irmãos viviam se metendo em confusão. Naquela época a gente podia bater na escola. (risos) Eu batia nos meninos. Eu ia defender os meus irmãos. Então, eu me sentia poderosa quando eu fazia isso. Assim: um senso de justiça, que eu estava protegendo-os, porque eles se metiam numa confusão, lá ia eu, porque eu era maior. E mesmo sendo magrinha, eu era magrinha e pequenininha, não sei como... muito tempo depois um dos meus amiguinhos falou assim: “A gente deixava você ganhar, só pra você (risos) ficar batendo na gente”. Olha só como é! Criança é ‘fogo’, porque tem esses jogos infantis, então tinha isso e a questão de algumas brincadeiras, mas eu não podia fazer educação física, porque minha mãe me tirava, porque era um tempo que eu tinha que trabalhar em casa. A única vez (risos) que eu fui numa educação física joguei Queimada e quebrei o pulso. Então, nem na escola eu podia brincar. Então, era só estudar, mesmo. Então, eu me tornei uma autodidata e até hoje... hoje eu já relaxei um pouco, mas eu fui fazer faculdade com mais de quarenta anos e eu cheguei com uma bagagem muito grande, mesmo estando 25 anos longe da escola eu lembrava de muitas coisas, porque tinha lido muito. Então, isso era a minha diversão, porque também não tinha muitos amigos, porque também não podia brincar. Ai, eu posso falar do namorinho?
P/1 – Claro!
R – Tem uma história. (risos) Eu era pobrinha, mas sempre tinha uns menininhos atrás, sabe? E quando eu tinha acho que uns doze, - é bom que minhas netas não escutem isso - treze anos eu tive meu primeiro namoradinho e aí a gente saiu da escola, era à tarde e aí a gente ficou numa esquina, conversando, tal, tal, tal, de repente anoiteceu, o pai do menino apareceu e deu uma surra no menino, de cinta. O menino ficou envergonhado, traumatizado e eu também, fui pra casa tremendo, me joguei na cama e fiquei: “Meu Deus, tomara que ninguém perceba isso!” Foi um trauma, mas os menininhos andavam direto atrás de mim, eu fazia um sucesso! Era uma coisa! (risos) Mesmo sendo pobrinha, não tinha roupinha legal, às vezes não tinha nem água. Shampoo eu fui usar com dezesseis anos, quando eu comecei a trabalhar. Foi o primeiro shampoo que eu vi na minha vida! Lavava o cabelo com sabão, não era nem sabonete, de tão difícil que era nossa vida, mas eu falo: “Gente, eu fico imaginando se eu tivesse os cuidados que as minhas netas têm hoje”, porque era um outro tempo, sonhava com coisas simples. Às vezes aparecia alguém com um reloginho, eu lembro que teve a moda de um relógio-bolha. Quando eu poderia ter um relógio-bolha na minha vida? Nunca. Aí eu peguei um relógio que minha mãe ganhou no casamento e lá fui eu exibir o relógio. Foi a gozação, né? O ‘mico’ da escola. Mas eu gostava da escola por isso, porque saía do ambiente de casa, porque tinha muita briga também, isso que era o mais triste. Não era nem tanto o serviço. Era briga, muita briga, mas prefiro não falar. (risos)
P/1 – E você ficou nessa escola até quantos anos?
R – Olha, a gente se mudou de casa, às vezes não tinha pra onde ir, meu pai com cinco filhos, um dos meus irmãos era muito doente, não tinha dinheiro pra pagar aluguel, a gente chegou a ir morar na casa da minha avó, que era na zona noroeste, muito longe de onde era a escola, que a minha escola era na Vila Belmiro, onde tem o campo do Santos, sou santista ‘raiz’, conheci o Pelé, o Chulapa, eu sou do tempo do Chulapa - não sei se tem algum santista aqui, eu sou santista ‘roxa’ - do Pita, do Juary, daquela seleção dos setenta, sabe? E peguei o final do Pelé jogando ainda na Vila. A gente ensaiava as comemorações festivas da escola no campo da Vila Belmiro. Então, era maravilhoso. Então, quando a gente se mudou lá pro Bom Retiro, que é zona noroeste, tinha que ir de ônibus. Meu pai e minha mãe queriam me tirar da escola, eu não quis, então eu estudei oito anos no Azevedo Júnior, que é um colégio que fica na esquina da Vila Belmiro, do campo do Santos. Então, a gente fazia desfile lá, era muito legal. E depois eu fui pro colégio, o Avelino, que ficava no Centro da cidade, depois eu me mudei pra São Bernardo, com dezesseis anos eu vim, mas esses oito anos são as memórias mais maravilhosas, porque era muito bom. Eu ganhava tudo que era placa. Tinha um concurso de poesia, lá ia a Rosana e ganhava. Era concurso... lembro uma vez que era homenagem pra Polícia Militar, eu escrevi acho que 36 folhas à mão, um negócio também que até hoje deve estar lá. Meu avô tinha um orgulho, o pai da minha mãe, andava exibindo aquelas medalhas, aquelas placas, meu nome no jornal e falava pros meus primos, que ficavam ‘loucos’, porque ninguém gostava de estudar: “Olha a Rosana como estuda! Você tem que ser como a Rosana”. Então, eu era ‘CDF’, vamos dizer assim. Eu era bem ‘Caxias’, mesmo. Gostava de estudar. Mas sempre com dedicação, nunca foi fácil. Não é que nem a minha filha mais velha, que passa em tudo que é concurso, muito inteligente, a Mariana. Eu sempre fui ‘na raça’, mas foi. (risos)
P/1 – E como foi essa mudança de cidade?
R – Primeiro o trauma foi a separação dos meus pais, quando eu tinha quinze anos e aí a gente veio pra cá, a minha mãe veio meio que escondida, ficamos dois anos aqui, meu pai procurando a gente, até que eu entrei em contato com ele e avisei que a gente estava em São Bernardo, porque ela não queria que ele tivesse contato com a gente, mas eu sentia muita falta do meu pai, porque eu sempre tive muita proximidade com ele. Era uma coisa ‘louca’. Eu nasci no dia que comemorou, que fez vinte anos da morte da minha avó. Minha avó faleceu no dia doze de fevereiro de 1945... 1943, desculpa, em plena Segunda Guerra ela faleceu, de parto. No dia que eu fiz vinte anos eu mandei rezar uma missa na Igreja Coração de Maria pra ela e o meu pai tinha crises emocionais de falta da vó... da mãe, da minha vó e ele dizia que eu era o espírito da minha vó, porque eu cuidava dele. Então eu sempre me senti mãe do meu pai e da minha mãe, mas a proximidade, essa coisa sentimental eu tenho dele. Ele, um homem de quase dois metros, era chorão. Grandão e chorão, (risos) como eu. E ele tentou, de todas as formas, fazer uma família unida, mas não conseguiu e isso, o trauma de vir pra cá foi esse, mas depois eu comecei a trabalhar e foi indo, mas as raízes, como são fortes! Hoje eu tenho sessenta anos, eu passei - depois a minha mãe voltou, mas vamos dizer - dezessete, dezoito anos em Santos, um terço da minha vida, mas é mais forte do que o tempo e tudo que eu construí. É estranho! É o tal do ‘quarto escuro’, ou claro, sei lá. (risos) Quando eu tinha quinze anos... é assim: eu não sei se vocês são assim, mas a gente precisa ter momentos onde a gente goste de voltar quando a gente não está muito bem. Então eu volto pra quando eu tinha quinze anos, ainda morava em Santos, últimos meses que eu passei em Santos, que era a época da discoteca. Eu tinha uns amigos do colégio: o Júlio Carmênia, que é um grande amigo até hoje e a gente ensaiava os passinhos e ia pro Atlético, que era uma domingueira, que começava às oito e ia até uma hora da manhã e eu dançava as cinco horas, sem parar. Ah, quando toca uma música, uma ‘disco’, essa vovó... eu sempre falava: “Eu fico imaginando quando a minha geração chegar à terceira idade”. Chegamos. Hoje eu estou indo num estúdio que tem flashback, pessoas da minha idade e a gente continua gostando dos mesmos passinhos, as mesmas coisas e isso faz... me alegra. Foram poucos momentos, mas foram marcantes, porque era tudo muito alegre e é uma música alegre. Tanto é que o movimento LGBTQ adotou como hino I Will Survive e tantos outros, pra ser o hino da alegria, porque gay é alegria, né? Porque era alegre e acho que nem antes, nem depois esteve tão alegre quanto foi a minha geração, do final dos anos setenta e eu fico feliz, porque eu sou roqueira, gosto de rock, ‘curto’ um pouquinho de Beatles, mas nada que se compare a Queen, toca Queen, ‘enlouqueço’. Agora, toca um Bee Gees, uns Embalos de Sábado à Noite aí, que não tem pra ninguém, eu amo. Então, esse foi um momento muito legal e acho que todo mundo que ‘curtiu’ essa época, a mãe de vocês (risos) deve falar, o pai, sei lá, pela geração que vocês têm. É isso.
P/1 – E como foi ‘desenrolando’ a sua vida, desse momento, aqui, já em São Bernardo, os trabalhos?
R - Então, eu comecei com dezesseis anos. Eu era telefonista, depois eu passei a ser secretária, cheguei a ser secretária de uma multinacional, aí eu me casei, nós namoramos três anos e meio, ficamos casados um ano e meio, até hoje nós temos contato, que é o pai da Mariana, meu primeiro marido e depois a Mariana nasceu, como eu tive que acompanhá-la em uns tratamentos, eu tive que interromper a minha carreira e fazer trabalhos que dava pra conciliar, que eu conseguia conciliar. Então, fui tendo várias atividades: lojinha, decoração, criei uma agência de publicidade, onde eu editava um jornal local, o Painel São Bernardo, depois uma revista, Painel ABC, aí nós fomos convidados pra fazer um programa numa TV regional e algumas coisas. Depois, mais pra frente, quando eu já tinha me casado pela segunda vez, aí eu construí um buffet, onde eu fazia festas. Então, passei um bom tempo fazendo festas. Então, eu fiz muitas coisas. E no meio do caminho nasceu a minha filha, que hoje tem 37 anos, a primeira e dez anos depois nasceu a Beatriz, que está com 28 anos e aí, depois, quando chegaram os netos, aí (risos) que a vida começou, realmente, pra mim. A minha vida começou aí.
P/1 – Antes de chegar nos netos, queria saber o que a maternidade representou na sua vida?
R – Quando eu me casei eu disse que ia esperar cinco anos. Com cinco meses eu engravidei. Eu, grávida, falava: “Meu Deus, como eu posso ser mãe, se eu não fui filha?” E aquilo me dava uma angústia muito grande, mas eu dei o melhor de mim. Eu deixei de ser tudo, pra ser mãe. Tudo que eu podia, 100% de mim eu dediquei à maternidade das duas. E hoje à mocidade. Não sei se é essa a palavra, mas acho que sim. E é uma fase maravilhosa. Então, a maternidade significou que às vezes a gente dá o que a gente não recebeu. É tão estranho! Aquela colcha de retalhos, de todas as pessoas, as mães de amigas, a minha vó, a minha tia Márcia, que também é um querida, muito importante na minha vida, eu fui costurando e aí, quando chegou a minha vez de ser a mãe Rosana, eu fui a melhor que eu pude ser e eu acho que eu fui bem. Eu acho que fui. Porque eu era feliz, eu sou feliz sendo mãe. Minha filha é maravilhosa, as minhas filhas são, mas a Mariana é um presente de Deus. Ela me fez melhor. Ela me fez crescer. Ela me fez acreditar que eu podia, sabe? A Bia chegou dez anos depois, aí eu já tinha experiência, né? Mas quando nasce o primeiro, aí que nasce a mãe, né? Então, o primeiro é aquele que faz a gente descobrir, inventar que mãe que eu vou ser. Que mãe? Eu acho que eu sou uma mãe legal. Eu era jovem, bem jovem, quando ela nasceu. Então, além de muito carinhosa, que eu sou, brincava e participava. Única coisa, assim: quando ela pedia pra brincar eu falava: “Não consigo, porque eu nunca brinquei”, mas o brincar era de escolinha, ou então levar pra passear, mas eu procurei ser o melhor. Eu acho que ela vai poder falar melhor sobre isso. (risos)
P/1 – E você conheceu, depois de um tempo, seu marido?
R – É. Eu conheci o Luiz em 1997... 1987, gente, ui! A Mariana tinha um aninho. E aí eu falei pra ele: “Olha, pra você ficar comigo você tem que aceitar a minha filha e ser legal com ela”. Aí a gente começou a namorar, deu um tempo, ela por ela mesma começou a chamá-lo de pai. Era paizão primeiro, no começo, depois pai. E aí a gente oficializou. Na verdade, dez anos depois, quando já tinha a Beatriz, que são aquelas fotos, eu me casei de vermelho. O primeiro eu me casei de branco, mas o segundo eu me casei de vermelho. E a Beatriz tinha dois aninhos. Então eu me casei no civil no dia do aniversário da Mariana, que é dia 28 de fevereiro.
P/1 – Uau!
R – Mariana com onze anos e a Beatriz com dois. Então, essa foi a cerimônia religiosa.
P/2 – Por que vermelho?
R – Você sabe que eu não sei? Até hoje eu fico pensando por que eu escolhi vermelho, não sei. Sinceramente. Eu que desenhei as roupas delas, a minha, foi a Norma Pinheiro que fez, na Maison Athenas, era o segundo casamento, eu já tinha casado de branco e eu falei: “Vou casar de branco? Não tem nada a ver”. Aí eu falei: “Eu vou...”. Quando eu entrei o fotógrafo teve um ‘troço’, falou: “Desculpa, quando eu vi você entrando eu cortei, eu não sabia que era você”. Eu falei: “Putz”. Aí continuou. Porque ninguém esperava. Aí os filhos de amigos, quando encontravam a gente: “Olha lá a noiva de vermelho! Olha, mãe, a noiva de vermelho!” Então, ficou aquela coisa. Hoje já é mais comum, mas isso foi há 26 anos. Mas a gente já estava há dez anos junto. E o pai da Mariana a gente tem amizade até hoje, ele se casou novamente, já está na terceira (risos) e vida que segue, né?
P/1 – E você gostaria de comentar algum dos seus trabalhos, que você já fez vários ________, que foi mais significativo pra você?
R – Mais significativo. Olha, o trabalho mais significativo que eu tive... eu sou cristã, congregava numa igreja evangélica, aí a gente teve uns probleminhas, nós saímos dessa igreja, nessa época eu tinha o buffet e eu ‘senti no coração’ de parar e fazer um trabalho assistencial e abri a porta e aí começaram a chegar crianças e adolescentes e eu fiz por mais de um ano um trabalho não só de educação cristã, mas todo tipo de educação, desde usar o sanitário, que muitas não sabiam, porque não tinham a higiene de usar uma escova de dentes, a pentear o cabelinho, então eu tenho fotos e filmagens dessa época. Foi um trabalho não remunerado, mas o benefício que isso me trouxe e eu vou falar uma coisa bem séria pra vocês: foi o ano onde eu fui mais próspera. A gente vestia, os calçava, fazia festa de Natal, onde dava um pacote com roupa, peru pra todos, várias famílias, chegou a dar cem pessoas, de vir as famílias das crianças. Tinha uma comunidade próxima aqui, sabe? E eu tenho muita saudade. Não foi um trabalho remunerado, mas a satisfação... a minha filha Mariana toca cinco instrumentos, então a gente tinha esses instrumentos e ela os ensinava a tocar bateria, o baixo, a guitarra, o teclado e eu a cantar, porque eu sou professora de canto. Então, o povo passava e falava assim: “A Irmã Rosana montou uma igreja e contratou uma banda” e não era, eram crianças e adolescentes que nem tinham nenhuma experiência, mas Deus prosperou de uma tal maneira! As cantadas, as peças que a gente fazia dava pra colocar até num teatro, de tão lindas que eram. Encenação de nascimento de Jesus, do Natal. Olha, esse trabalho vai ficar pra sempre no meu coração. Tenho vontade de fazer novamente, quem sabe um dia? De tudo que eu fiz, eu fiz muitas coisas, mas essa foi a melhor. (risos) Eu acho. Você acha também, Mariana? Acha, né?
P/1 – E a faculdade?
R – Quando minha filha Mariana foi pra faculdade, porque existiam muitas sentenças contrárias, porque ela tem uma síndrome, não ia poder andar, falar, não ia pra uma escola normal. Foi vencendo tudo, a menina hiper mega inteligente. Passa em primeiro lugar nos concursos, é uma coisa! Ela foi fazer faculdade, passou em quinto lugar em Veterinária e foi fazer. Aí eu falei: “Agora eu vou fazer”, porque eu tinha o sonho de fazer Letras e cheguei, toda cheia de vontade, aos 44 anos, era das mais velhas que tinha lá, na turma, achando que o mundo estava igual, ainda, mas não estava. Então, a turma estava lá só pelo diploma e eu queria continuar (risos) sendo a ‘CDF’ que eu era. (risos) Então, foram três anos difíceis, mas sou amiga hoje de algumas pessoas, mas principalmente das professoras, que se tornaram... tem uma professora que eu tenho muito orgulho de ter sido minha professora, uma das maiores escritoras do Brasil, Raquel Naveira, minha amiga particular. Em breve ela vai estar na Academia Brasileira de Letras, ela tem mais de cem livros editados. E eu tive professores maravilhosos, de latim, que dizia que eu ia ser a discípula dele, professor Homero, infelizmente já ‘não está mais aqui’, mas foram três anos onde eu me realizei, cursando aquilo que eu queria, mas eu percebi que as pessoas não estão na mesma ‘vibe’. Não sei se é comum, mas a maioria das pessoas hoje não querem estudar, querem só o diploma, ou pouco querem estudar. E eu venho de uma época onde era bacana você sair com um monte de livro debaixo do braço. Aí você, nossa! Tinha gente que nem lia, só andava, pra posar de intelectual. Era chique a coisa. Hoje não, isso daí, nossa, já era. Mas me formei, graças a Deus! Já tinha 47 anos. Mas também não exerci, não fui, porque a sala de aula hoje também está bem complicada. E como eu venho de uma outra geração e eu sou uma pessoa muito franca, eu fico pensando: “Eu vou falar a verdade e vou pagar por isso”. Então é melhor eu não ir. Apesar que eu me dou muito bem com adolescente. Meu sonho era dar aula pra adolescente. E quando eu tinha o trabalho aí, no salão, eu me dava super bem, mas hoje eu não sei como está a cabeça dos jovens de hoje e dos pais, principalmente, então... mas realizei o meu sonho, fiz a faculdade que eu queria.
P/1 – E como foi se tornar avó?
R – Ah, minha filha, primeiro que eu não queria, porque eu tinha muito medo que a minha filha passasse pelo que eu passei, por causa da síndrome dela. Então eu fiquei nove meses orando, pra dar tudo certo, mas a hora que a Melissa nasceu... quando ela foi me dar a notícia que eu ia ser avó, ela comprou um chaveirinho onde estava escrito assim: “Mães maravilhosas são promovidas à avó”. Eu olhei aquilo e falei: “Está de brincadeira, né?” Aí fiquei apavorada, falei: “Meu Deus, minha filha tão pequenininha, tão magrinha, como vai ser?” Mas a ‘bichinha’ é mais forte do que eu, teve três e lindos, perfeitos, graças a Deus! Aí, quando a Melissa nasceu, tudo mudou. Não sei te explicar. Eu acho que tudo que eu não recebi eu recebo hoje. Sabe o que é você ouvir a cada cinco minutos: “Vovozinha do meu coração, eu te amo? Obrigada por tudo, vovozinha”. Ela dorme na minha cama. A vida dela é estar comigo. Ela troca qualquer coisa pra estar comigo e eu troquei tudo que eu poderia... poderia ter uma alegria, a minha alegria está com ela também. Os outros eu amo, mas a Melissa é a primeira e eu acho que é aquela coisa de eu ter sido a primeira, ela ser a primeira, a mãezinha dela ser a primeira. Você vê hoje, ela está aqui, a minha primeira. E é assim, o primeiro amor de uma mãe e de uma avó. (choro) E a gente diz que quando a gente aceita Jesus no nosso coração a gente vive o primeiro amor, que é sentir esse amor inundar o coração da gente e quando a gente vê isso materializado num ser humano, aí você vê que a vida valeu a pena, porque a gente está vivendo num mundo muito difícil, onde pouca coisa vale a pena, mas a família ainda vale, graças a Deus!
P/1 – E depois da Melissa teve...
R – Aí veio a Júlia. A Júlia é assim: se está tudo no lugar, Júlia chega. Melissa é básica, Júlia é ‘brilho’, é ‘paetê’. Sabe aquela pessoa? Eu pus o apelido dela de Pequena Notável, ela é a própria Carmem Miranda! A menina é uma ‘estrela’, ‘brilha’, sabe? E ela herdou a minha emoção. É engraçado isso! Cada uma... eu gosto muito de ‘biju’, dá pra perceber, eu tenho milhares de balangandãs. Ao longo da vida eu gosto das minhas pulseiras, meus anéis, meus brincos. Ela vai ser herdeira. A Melissa é mais basiquinha, ela não, quer pôr tudo, gosta de maquiagem, porque as minhas duas filhas não têm vaidade. Eu queria que elas fossem ‘princesas’, colocava aqueles vestidos, aqueles laços, aquelas coisas. Menina, as duas saíam se arrancando, porque não gostavam. As duas, não, são duas ‘princesas’. As duas: Melissa e Júlia. Mas a Júlia é aquela pessoa que onde ela chegar ela vai fazer a diferença, por isso que eu acho que ela vai ser comunicadora. Eu tenho certeza. Benjamim vocês vão ver, ele tem dois aninhos, mas é um ‘lorde’, um ‘príncipe’. A mãe o cria como se ele fosse... ele é um cavalheiro, um mini hominho, ele é um hominho mesmo. Ela já o veste assim, ele pede licença, diz obrigado, é todo... e eu acho que ele vai ser o protetor das irmãs. E ele é um gracinha. Então, eu não esperava ter um menino. Quando eu engravidei da Mariana eu achava que eu ia ter um menino, depois, da Beatriz também, porque eu venho de uma família onde desde a minha avó menino, menino. A minha vó ficou tentando. Sete meninos, pra vir o oitavo menino. Dizia que quando tenta sete, o oitavo vem menino, é lobisomem. Antigamente falava isso. E era aquela época que: “Ai, filho homem” e eu fiquei com aquilo na cabeça. Não que eu quisesse, mas eu achava que eu ia ter. E porque eu tinha um sonho recorrente, de infância, onde desde criança no meu sonho eu via uma criança de cabelo Chanelzinho, que eu usei muitos anos cabelo Chanel, meu cabelo é liso natural mesmo, franjinha, porque é indefectível, eu sou que nem a Rita Lee, eu vou morrer de franjinha, eu vou ter cem anos e vou estar de franjinha, se eu estiver viva. E eu vi aquela criança moreninha, Chanelzinho, correndo atrás de mim, ‘grudada’ em mim. Peladinho. Acho que porque era Santos, né? Aí engravidei e falei: “É um menino, um indiozinho vem”. Aí veio a Mariana. Não foi. Aí veio a Bia, que é mais branquinha ainda que a Mariana. Também não foi. Aí eu já tinha desistido, o tempo passou, aí não faz muito tempo a Mariana falou pra mim assim: “Mãe, sabe aquele seu sonho? A criança do seu sonho não era menino, era a Melissa”. Aí eu recordei, falei: “Era a Melissa todinha”, porque as fotos que eu tenho da época, da idade, três aninhos, mais ou menos, ela tinha o cabelinho, era a própria e ela é ‘grudada’ comigo. Então, você vê que existiu um plano, a minha filha fala que ela foi preparada no céu, pra ser a alegria da minha velhice, porque ela é a ‘coroa’ da minha velhice, porque quando você chega em uma idade, você começa a se desprender de um monte de coisa e você observa que você precisa ter uma razão de viver e às vezes a pessoa idosa não tem e quando você encontra uma criança que diz que você é tudo pra ela, ou quase tudo, você fala: “Puxa, eu preciso viver, eu preciso querer viver, eu preciso me cuidar, eu preciso... ainda sou importante aqui”. É isso.
P/1 – Você pode contar pra gente a história do casaquinho da sua filha?
R – Sim. O casaquinho. Vou pô-lo aqui. Esse casaco chegou pra mim eu creio que em 1968, ou 1969. Eu devia ter uns cinco, ou seis anos. O meu pai, como eu já falei, era estivador do porto e chegou um navio com agasalhos que vieram da Alemanha, para pessoas carentes do Brasil. Eram as antigas campanhas do agasalho, que antes de serem feitas aqui, vinham de fora. Eu não sei se ainda vêm, mas vinham. E aí o meu pai pediu pro chefe, que era chamado feitor, na época, se ele podia pegar - ele viu o casaquinho - pra mim. E o dia que ele chegou com esse casaco eu me lembro como se fosse hoje a minha felicidade. Mas aí eu fico pensando hoje: ele trabalhava no porto, num lugar frio, meu pai não tinha casaco. Esse foi o único casaco da minha infância todinha e dos meus irmãos, porque nós éramos muito pobres, como eu falei, a gente não tinha como ir numa C&A, numa Marisa, na Renner, Riachuelo e comprar um casaco. Mesmo as pessoas de baixa renda têm, ou recebem doações. Quando a gente não recebia de algum primo, de algum parente que tinha, a gente não tinha. E meu pai poderia ter pegado um casaco pra ele, porque ele precisava. Então, eu digo que é o símbolo da generosidade, sabe? Porque meu pai era generoso, eu sou generosa, aquela criança que se desprendeu, porque diz que esse casaco é de astracã, minha mãe dizia, que é uma pele que até hoje é muito valiosa e eu acho que é sintético, ou genérico, sei lá, (risos) imitação, mas ele é tão bom, que ele já deve ter mais de sessenta anos, porque se eu recebi há 55 anos, ele deve ter mais de sessenta anos. Então, dizem que era muito moda nos anos cinquenta, então essa criança, nos anos cinquenta, se desprendeu - foi generosa, solidária – de um casaco que era muito bom, muito novinho e aí chegou até mim e eu lembro que eu torcia pra fazer frio, pra eu ir na escola com o casaco. Imagina: uma menina pobre... eu assistia com meu pai aqueles filmes de antigamente, de Hollywood, era sempre no frio, as pessoas de casaco de pele. Então, eu colocava isso daqui, eu me sentia uma estrela de Hollywood, eu falava: “Eu sou chique, francesa, europeia, americana”, sei lá. E eu ia pra escola toda exibida e eu lembro que eu o usava com sete anos, porque eu só fui pra escola aos sete anos. E quando eu fui pegar pra minha filha... depois minha filha usou, a outra usou e quando eu fui colocar na Melissa, que tinha seis anos, já estava pequeno. Então, eu era bem pequenininha. Aí, depois de mim foi passando para os quatro irmãos. Então, cada vez que um crescia passava pro outro, então tinha a tal da generosidade e solidariedade. Então, foi passando, passando. Então, ele ficou com a gente, na minha infância, de 1968 até 1977, até os sete anos da minha irmã mais nova. Depois ele ficou guardado, minha mãe guardou por, vai... a Mariana nasceu em 1986, ela me passou esse casaco em 1991, quando a Mariana tinha cinco anos. Ele tinha, no original dele, um tecido impermeável, que era dupla face, a gente falava que parecia tecido de guarda-chuva. Então, quando chovia a gente virava e era muito comum, na época. Quando precisava esquentar, esquentava, mas quando não estava tão quente também ele não era abafado, era um casaquinho que tinha... essa pele tem essa característica, de se adaptar à temperatura. E aí, quando a Mariana... é pra eu chegar nessa parte, já, na minha filha? Aí quando chegou, que minha mãe me trouxe o casaquinho, eu falei: “Vamos trocar o forro, porque já está todo rasgado”. Eu lembro que meu irmão mais novo, era um outro cordãozinho, dormia... um que está na foto, depois eu mostro, um loirinho, essa lembrança sempre vem na minha mente. E aí nós fomos numa loja de tecidos, escolhi um azul clarinho, que agora já está bem mais claro e ela trocou o forro. Então, a Mariana usou, você vai ver que tem bastante foto da Mariana, foi pra escola com ele e aí, da Mariana pra Beatriz tem uma diferença de quase dez anos, aí depois a Beatriz usou um pouco e aí, depois, ficou praticamente vinte anos guardado, aí eu falei: “Vou colocar...” e aquela lembrança que eu ia pra escola, “vai servir na Melissa”. Quando eu coloquei na Melissa, já estava aqui, mas ela usou um pouquinho, aí hoje já está na Júlia, mas já está também saindo e já está indo pro Benjamim. Mas a lembrança, o símbolo é que dez Limeres usaram esse casaco: eu, meus quatro irmãos, minhas duas filhas e agora os meus três netos. Então, é um elo dos Limeres. Embora a nossa família... a minha família anterior não seja unida, venho de uma família disfuncional, mas isso é uma coisa que eu guardo, porque é a presença do meu pai e de cada um dos meus irmãos que, de alguma forma, estiveram dentro dele, dormiram com ele, viveram, foram felizes, na melhor fase da vida. Então, pra sempre eu vou guardar e quando não servir mais no Benjamim, a guardiã vai ser a Melissa e quem sabe daqui a cinquenta anos o Museu da Pessoa não venha entrevistar a Melissa e, com certeza, ela não vai se desfazer dele e muitos outros Limeres irão usar. Muitos outros não sei, eu não sei quantos Limeres, quantos filhos elas terão, o meu netinho vai ter, espero que a Mariana não tenha mais nenhum. (risos) Quem sabe ainda vem mais um neto por aí, meu Deus do céu! (risos) Então, mas saber: uma peça de roupa não é só... muitas vezes ela pode ser muito mais do que um objeto. Ela é um símbolo. E esse casaco é o símbolo do amor que eu tenho por cada um que o vestiu. Que cada pessoa que venha a usar sinta um pouquinho daquilo que cada um sentiu, porque dentro dele tem muito mais do que aconchego e calor. Tem afeto, generosidade e solidariedade.
P/1 – Tem muitas histórias!
R – Tem muitas histórias!
P/1 – Você continua guardiã desse casaco?
R – Ainda, por enquanto. (risos)
P/1 – Tem alguma lembrança muito significativa de você usando, ou alguém usando, em algum evento muito importante?
R – Como eu falei: na escola, quando eu chegava, porque em Santos não era comum uma criança, numa cidade quente, (risos) usando um casaco de lã. Então, eu chegava, eu era ‘estrela’ naquele momento, porque eu só tinha uma roupinha, que era o famoso (risos) vestidinho xadrez e as crianças zombavam de mim, puxavam minhas trancinhas, as meninas chutavam, eu era muito zoada, muito. Bullying já existia, há ‘mil anos’, mas quando eu colocava o meu casaco azul, que: “Meu Deus, faça frio, pra eu ir com o casaco azul”, eu ‘me sentia’, então aquele dia eu era importante. Então, isso eu me lembro. E lembro desse meu irmão, que depois eu vou mostrar a foto, posso mostrar agora?
P/3 – Fica à vontade!
R – Esse meu irmão - espera aí, deixa eu pegar a foto dele – que está comigo aqui, na foto de ‘1900 e nada’, espera um pouquinho, aqui o meu irmão Renato, esse daqui.
P/1 – É você e ele?
R – Eu e ele. Ele é meu irmão mais novo, sabe? E eu lembro de dar bainho nele, de colocar... e eu o olhava deitado, com o casaquinho, ele dormia, eu ficava pensando - que até hoje eu tenho essas manias, minha filha herdou isso de mim: “Roupa de sair não é roupa de dormir”, coisa que pensa assim: “É mãe, né? Mãe faz isso” “Roupa de sair estraga se você dormir” - “Meu Deus, ele está dormindo com o casaquinho azul” e já estava, ele já era o quarto a usar: eu, Bebeto, Rogério, Renato, ele era o quarto. Fora o menino lá, ou menina, sei lá, da Alemanha. Aí eu ficava pensando: “Nossa!” Mas quando eu o olhava com o fiozinho no nariz, se acalmando pra dormir, eu falava: “Ai, deixa, deixa. Depois eu lavo e tudo bem”. E aí depois dele passou pra minha irmã mais nova e até hoje, a hora que cada um usar e o próximo vai ser o Benjamim, ainda vai fazer sucesso. Onde chegar vai falar: “Nossa, que casaquinho bonito!”, mas ninguém vai imaginar o tanto de história que tem, né? E é um objeto que merecia estar num quadro. (risos) Essas são as histórias que eu mais lembro, fora as das minhas filhas: Mariana indo pra escola. Como ela mesma disse, ela falou... já tinha uma outra condição, ela podia ter vários casacos, mas ela gostava daquele. A Beatriz usou menos, porque aí a minha condição já era melhor ainda e ela também era mais calorenta, a minha filha mais nova, mas cada uma usava sabendo da história. Eu acho que, de certa forma, todos eles usam porque sabem que é importante pra mim, porque eles têm outros casacos mais bonitos, mais modernos, mas esse é especial. E, sabe, um dia eu queria conhecer, saber qual foi essa pessoa. É meio impossível, mas seria maravilhoso. Hoje, com a internet, quem sabe, né? Quem sabe essa pessoa está viva ainda? É um senhor, uma senhora que lembre que esse gesto gerou tantas coisas, então viva o casaquinho azul! Que ele viva por muitos e muitos anos!
P/1 - Você dava pras suas filhas esse casaco e pros seus netos, contando a história também? Era sempre junto?
R – Sim.
P/1 – Vamos lá! Você estava contando que você é uma contadora de histórias...
R – Sim.
P/1 - ... e você dava o casaco pras pessoas já contando todo esse legado.
R – Sim.
P/1 – Não sei, se você quiser terminar essa ideia, a gente interrompeu bem no meio.
R – É. Muitas pessoas conhecem, não só as minhas filhas, mas as minhas amigas, as pessoas sabem, porque eu sou uma pessoa de valorizar afetos. Por mais que, se você andar pela minha casa, eu falo que eu devo ter uma ‘alma de cigana’, onde tiver um cantinho, tem um negocinho, então a minha filha mais nova diz que eu sou acumuladora, mas eu não sou, não. Eu gosto de muitos objetos. Não são coisas de valor, mas são coisas de afeto. Então, cada objeto que eu tenho eu conto uma história, tem um significado, porque eu ganhei de alguém. Passeando por aqui você vai ver coisas que a minha filha trouxe, que nem ali, coisas das viagens que a minha filha fez, os instrumentos que a minha filha toca, que a representam, os meus livros. O ano passado a gente... o grupo que eu faço parte de poetas de Santos, o Grupo Picaré, que é o grupo de poetas mais famoso de Santos, fez quarenta anos. Picaré é um nome de uma rede pra pegar peixes na beira do mar. Então, no começo dos anos oitenta, final dos anos setenta, uns jovens poetas de Santos se reuniram e montaram, criaram esse grupo, do qual eu fiz parte e o ano passado foi o lançamento da coletânea dos quarenta anos desse grupo de poetas. Então, uma das coisas que também permeou a minha vida foi a poesia. Eu digo que a poesia me salvou, porque em meio a tudo que eu enfrentava na minha casa: não tinha tempo pra brincar, pra ler, lia nas madrugadas, certa vez eu encontrei uma pilha de livros na rua, abandonados. Então, eu comecei... e eram livros de Castro Alves, que eu os tenho até hoje, estão até aqui, na minha... e aí eu li O Navio Negreiro, li a obra do Castro Alves, me apaixonei por poesia, devia ter uns oito anos e comecei a escrever meus próprios poemas e com isso, nessa época, no começo dos anos oitenta, eu fui fazer parte desse grupo e aí eles reuniram todos os poetas que, ao longo desses tantos anos, estiveram com eles e foi muito bacana e é uma parte da minha história também, que é importante, porque a poesia está nesses sentimentos que eu tenho, tanto é que eu declamei uma. (risos) Não é uma das minhas. Eu posso declamar uma das minhas?
P/1 – Claro!
R – Pega o óculos da vovó, meu amor. Deixa eu ver se está no meu bolso. Vou pegar uma das minhas. Tem uma que eu fiz pra Santos, que é um poema-canção, porque eu sou cantora também e compositora e tem uma bem pequena, que eu vou ler, que eu fiz pro meu pai, que também é um blues, mas é um poema, antes de música, chama O Cais do Pranto, é um poema-canção dedicado ao meu pai, Roberto Limeres.
“O Cais do Pranto é um encontro de tantos ais
Um esperar-te mais, por quem já partiu
Eu vejo seus faróis a lançar tantos sinais
Que eu seria até capaz de calar a voz
De voltar atrás e te descobrir depois
Nesses tantos laços, nesses tantos braços
Que movem o cais, que leva e que traz
Saudades de nós
O mar revolto e o mar em paz
Sempre vão dar no cais
Na luz do cais de Santos”
Obrigada! Essa eu fiz pro meu pai. Quando eu penso em quanta carga ele carregou. Carga emocional também. Mas hoje, graças a Deus (choro) eu sei que ele está em um bom lugar. Ele partiu muito cedo. Eu fiz essa homenagem pra ele no aniversário de sessenta anos do meu pai. Fizemos uma festa linda e ele faleceu um ano depois. A gente não sabia que ele estava doente. Mas ele deixou uma história que eu conto até hoje e, por orgulho desse pai, desse avô, a minha filha continuou com o sobrenome Limeres, mesmo casada e transmitiu aos meus netos, que eu espero que eles continuem também porque, mais do que uma herança material que eu, particularmente, acho que o valor é emocional. Claro, todo mundo precisa de ter um respaldo material, mas a herança afetiva, aquilo que você passa, de valores, de você ser íntegro como ele foi, generoso, fico imaginando-o no frio, no porto, que era insalubre à época e ele se preocupou em pedir apenas um casaquinho pra dar pra filha dele. Então, isso não tem preço. O legado de você saber que você teve um antepassado que deixou mais do que um nome, mas um exemplo, isso é o que vale a pena você fazer parte daquela família. A gente pode não ter um sobrenome importante, mas pra mim é importante. Meu pai nunca teve um automóvel. Na época do telefone fixo nem o telefone ele teve. Ele pegou o finalzinho do celular, que eu dei pra ele, nunca teve uma casa própria, mas ele deixou bens muito mais valiosos do que esses que... e o casaquinho azul, (risos) que é a nossa herança.
P/1 – O que ele representa? Qual é a importância, pra você? O casaco.
R – É aquilo que eu falei: ele representa o elo. Quando eu olho pra ele e eu lembro de todos os Limeres que estiveram dentro dele, desde o meu pai, que pediu pro feitor se podia pegar o casaquinho, porque não era assim: “Ah, pega aí o que quiser”. Era um tempo difícil. Até hoje é, né? As coisas que chegam, os trabalhadores não podem pegar. Então, a partir do meu pai e todos os meus irmãos, eu, minhas filhas, os meus netos. É um elo, né? É como se todo mundo, em algum momento, estivesse aqui dentro. Um casaquinho tão pequeno, mas que ‘abraça’ todo mundo. Então, ele é o elo que une, mesmo aqueles que estão distantes, que eu gostaria que não estivessem, mas estão. Isso é a vida, né? Ainda bem que existe algum elo, né? Mais do que um nome, é um sentimento.
P/1 – Quais são os seus sonhos de vida?
R – Meus sonhos. Eu quero viver mais dez anos, pelo menos, pra ver a minha neta formada e, se Deus me der a graça, vê-la casada. Quero voltar pra minha cidade, pra praia, eu amo o mar. É isso. Eu quero ver os meus netos crescerem felizes e, se Deus me der a graça de morar na praia, caminhar todo dia, uma vida simples. Nada. E poder, um dia, ir morar no céu, que é onde eu sei que meu pai está, a minha vó, a minha tia Márcia, que são as pessoas importantes pra mim, que eu sei que hoje estão junto de Deus, porque aqui é uma passagem. Então meu sonho é ser uma pessoa boa a cada dia, eu peço a Deus todos os dias perdão pelos meus erros e que eu consiga melhorar pra ser merecedora de estar com essas pessoas, porque são tão poucas pessoas que, ao longo da vida, são importantes, são caras pra gente, são valiosas, preciosas pra gente, que quando essas pessoas ‘vão embora’, por mais que a gente tenha feito e eu sei que eu fiz por essas pessoas e elas fizeram por mim, a gente fica querendo mais, né? Então, o sonho de que exista um depois, além do fim. Aqui não pode ser o fim. Tem que ter um além do fim, né? A eternidade.
P/1 – E o que você mais gosta de fazer hoje?
R – (risos) Eu gosto de estar com a minha família, com os meus netos, com a minha filha, com a minha cachorra maluca, a Hope, que eu peguei na pandemia. É o que eu mais gosto. Fazê-los felizes. Em cada coisa que eu faço: na comida, na roupinha que eu compro, um brinquedinho, não é? A vovó fica feliz. E eu amo ser uma vó. Isso eu fico pensando como tem gente que não quer ser chamada de vó, sei lá o quê. Essa semana eu fui fazer meu RG, um aparte aqui, aí eu cheguei lá, eu fui fazer segunda via, porque eu perdi meu RG, aí a moça perguntou se eu tinha outro documento, eu falei: “Estou com a CNH aqui”. Aí ela olhou, olhou, chamou a menina do lado e falou assim: “Ai, desculpa, sabe?” Começou a rir. “É que eu não acreditei (risos) na sua data de nascimento”. Eu falei: “Uh, eu ‘ganhei o ano’!” Ela falou: “Nossa, não acredito que você está com sessenta anos!” Mas essas coisas que eu fico pensando, que tem gente que quer esconder. A gente é o que é, não adianta fugir, o tempo chega, o tempo passa e a gente passa com o tempo. E o bom de um trabalho como o de vocês é que é um trabalho que fica. Então, hoje, literalmente, eu virei museu! Eu sabia que um dia ia virar museu. (risos) Hoje eu virei museu, vou pro museu, mas o legal é saber que, daqui a um tempo, quando a gente não estiver mais aqui, alguém vai poder assistir isso e saber que, em algum momento, existiu uma história assim, porque todo mundo tem uma história e todas as histórias têm um valor, desde aquelas mais tristes, como você vê o Museu do Holocausto, mas mesmo em meio a tanta dor a gente vê, até como naquele filme, A Vida é Bela... claro que aquilo é uma ficção, mas se as pessoas se permitirem, em meio a dor, reconhecerem que a vida é bela, a vida pode ser bela e a vida é bela e só vai poder passar pra frente o legado se quem vier depois falar: “Poxa, isso aí valeu a pena!”, porque ninguém quer sofrer, todo mundo quer ser feliz. Então, apesar de toda a luta, de toda dor, a vida é bela e a minha vida foi bela, tem sido bela e eu creio que será, até o fim.
P/1 – Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa que eu não tenha te perguntado? Alguma história, algum momento, _________?
R – Não. Eu acho que foi dito tudo. Agradeço demais a vocês. Acho que é um trabalho de um valor tremendo. Sei que vai ser editado, sei que não é uma história... que daria um livro se fosse fazer de todo mundo, mas saber que essa ‘colcha de retalhos’ eu vou estar lá, nessa ‘colcha de retalhos’, que é Contando Histórias, como é o nome do projeto?
P/1 – Vestindo Memórias.
R – Puxa, tudo a ver com o patchwork! Então, nesse patchwork alguém vai vestir, um dia, essa história que eu já vesti e que tantos outros que estão também inseridos nisso. Obrigada! Obrigada a todos vocês! Trabalho lindo. Vocês são ‘feras’.
P/1 – O que você gostaria de deixar como legado?
R – Eu penso que não sejam como eu. É isso que eu ensinei pra minha filha e tenho ensinado pras minhas netas, para que não sofram... não, que não sintam como eu sinto. Tentem ser mais leves, tentem não somatizar, não serem tão empáticas, porque a empatia em excesso também não é bom. Então, eu quero deixar de legado que elas aprendam a serem elas da melhor forma e tirem a lição daquilo que elas estão vivendo, ouvindo hoje, que possa ser bom pra elas, porque eu não tive algumas escolhas, cheguei aqui ‘aos trancos e barrancos’, inventei o meu jeito de viver, de ser mãe, de ser tudo, mas eu quero um mundo melhor pra elas, uma vida melhor pra elas e eu sei que elas já são, porque a Mariana já é assim, eu a eduquei assim. A Melissa, que vive comigo, também é assim e a Júlia, então, pelo amor de Deus, só se quiser copiar algumas coisas, mas ela só copia o lado alegre, que eu sou muito alegre. Então, isso eu quero que elas ‘levem pra frente’, esse é o legado: acreditem que a vida pode ser bela, mas depende da gente, não depende de mais ninguém, porque as pessoas sempre vão querer mostrar uma cor cinza, ou preta, mas o seu desenho você vai pintar com a cor que você quiser e é o que elas fazem. Então, aqui não precisa dizer (risos) o cenário e é essa recordação que eu quero, que o ‘quarto da infância’ delas seja o mais colorido possível, porque essa vai ser a base, esse é o legado e eu sei que a Mariana teve, a Beatriz teve e a Júlia, a Melissa e o Benjamim estão tendo. Obrigada!
P/1 – Como foi contar e dividir sua história com a gente hoje?
R – Ai, foi uma catarse. O que eu posso dizer? Foi um presente. Quando meu pai fez sessenta anos eu fiz uma festa linda pra ele, porque meu pai gostava de homenagens, queria aparecer no jornal, tadinho. Aí eu pus uma matéria grande, um poema, escrevi, uma foto grande. Naquela época não tinha internet. E ele ficou feliz. E eu estou sentindo como um presente dos meus sessenta anos poder contar essa história, que possa chegar ao coração de outras pessoas, porque as pessoas da minha família já conhecem, mas que possa alcançar outras pessoas e que vocês estão me dando essa oportunidade e eu sou muito agradecida por isso, porque é muito difícil quem escute a gente e quando a gente vai ficando mais velho, vai ficando mais difícil. Eu sei que ainda eu não pareço uma idosa, embora eu já seja uma, mas mesmo quem não é idoso, as pessoas não têm mais tempo de ouvir ninguém. É um mundo que não tem referências. Então, se você não tem base, você vai pra onde? Você veio de onde? Quem você é? Então, falar é bom, pra mim foi bom, mas eu estou muito feliz, porque eu sei que, em algum lugar, alguém vai me ouvir. Isso não tem preço (choro).
Recolher