IDENTIFICAÇÃO
Meu nome é Joaquim Ferreira Mangia, nascido no distrito de Bom Repouso, Minas Gerais, que hoje é uma cidade pequenina.
FAMÍLIA
OrigemMeu pai se chamava Minote Mangia e a minha mãe Carmelina de Assis Ferreira. A história de minha família é uma história muito simples, restrita a um determinado período. Eu sou neto de italiano, mas a tradição italiana se perdeu tendo em vista que a minha avó materna era brasileira, e como geralmente é a mãe que transmite a tradição ao filho, a tradição italiana foi se diluindo e perdeu-se. E eu, então, fiquei com uma tradição totalmente brasileira.Atividades do paiMeu pai era agricultor e, paralelamente, ele se dedicava ao comércio. Não sei definir qual a atividade mais importante, mas uma atividade realmente estava embutida dentro da outra e havia uma sinergia natural numa pequena cidade, na execução ou efetivação dos dois negócios. Era uma fazenda, vamos chamar assim, de auto-sustentação. Ela produzia milho e feijão, que são as culturas tradicionais, e tinha gado. E era gado mais para leite e não para o abate. Por força das circunstâncias, havia lá uma doação da natureza que era pinheiral nativo, e o pinheiro dava dois produtos: primeiro o pinhão, que é uma fruta muito gostosa, e segundo a madeira. O pinhão ele não comercializava, mas a madeira sim. O pinhão servia de alimentação para as crianças, que gostavam muito, e para os porcos. O porco se alimentava de pinhão. Naturalmente, havia uma suplementação de alimentação, mas o pinhão, na época da safra, era uma comida natural dos porcos. Tinha duas maneiras de preparar o pinhão: uma, era cozido, como se faz a castanha, e a outra, é assado, pinhão assado.A plantação era feita em função de determinadas estações, e na estação de inverno você não tinha nem colheita nem plantio. A geada destrói muito as culturas perenes, como, por exemplo, o café. O café é muito atingido pela...
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Meu nome é Joaquim Ferreira Mangia, nascido no distrito de Bom Repouso, Minas Gerais, que hoje é uma cidade pequenina.
FAMÍLIA
OrigemMeu pai se chamava Minote Mangia e a minha mãe Carmelina de Assis Ferreira. A história de minha família é uma história muito simples, restrita a um determinado período. Eu sou neto de italiano, mas a tradição italiana se perdeu tendo em vista que a minha avó materna era brasileira, e como geralmente é a mãe que transmite a tradição ao filho, a tradição italiana foi se diluindo e perdeu-se. E eu, então, fiquei com uma tradição totalmente brasileira.Atividades do paiMeu pai era agricultor e, paralelamente, ele se dedicava ao comércio. Não sei definir qual a atividade mais importante, mas uma atividade realmente estava embutida dentro da outra e havia uma sinergia natural numa pequena cidade, na execução ou efetivação dos dois negócios. Era uma fazenda, vamos chamar assim, de auto-sustentação. Ela produzia milho e feijão, que são as culturas tradicionais, e tinha gado. E era gado mais para leite e não para o abate. Por força das circunstâncias, havia lá uma doação da natureza que era pinheiral nativo, e o pinheiro dava dois produtos: primeiro o pinhão, que é uma fruta muito gostosa, e segundo a madeira. O pinhão ele não comercializava, mas a madeira sim. O pinhão servia de alimentação para as crianças, que gostavam muito, e para os porcos. O porco se alimentava de pinhão. Naturalmente, havia uma suplementação de alimentação, mas o pinhão, na época da safra, era uma comida natural dos porcos. Tinha duas maneiras de preparar o pinhão: uma, era cozido, como se faz a castanha, e a outra, é assado, pinhão assado.A plantação era feita em função de determinadas estações, e na estação de inverno você não tinha nem colheita nem plantio. A geada destrói muito as culturas perenes, como, por exemplo, o café. O café é muito atingido pela geada, pois é uma cultura perene e a geada ataca as folhas, ataca os brotos e eventuais flores. No meu caso, na minha região não havia isso porque não dava café. Era muito alto, muito frio.IrmãosA minha família é muito grande. Minha família era constituída de dez irmãos, entre irmãos e irmãs. Muitos morreram ainda na infância, como era natural na época. Não havia o atendimento médico-hospitalar como existe hoje; os partos eram feitos em casa através de parteiras. Não tinha esse luxo de hospital e assistência médica. Eu perdi muito cedo quatro irmãos e sobreviveram sete. Desses sete, morreram dois e estão vivos cinco. Nossa convivência era de uma família tradicional.
INFÂNCIA
Lembranças da fazendaEu não nasci na fazenda, mas eu tenho muita lembrança dela porque ela ficava muito perto de onde eu morava, e realmente eu conheci. Lembro-me da casa, sim. A casa era uma casa colonial. A casa onde eu nasci, onde eu morei também, era uma casa típica do início do século XIX, em estilo português. Era de uma beleza de uma arquitetura histórica, saudosista, vamos chamar assim. Era interessante. A casa da fazenda era uma casa com um estilo não propriamente moderno, mas um pouco mais novo, e que não tinha as características colonial portuguesa da casa da vila. Como lá tudo era muito próximo uma coisa da outra, podia ir a pé da minha casa na vila até a fazenda, coisa que eu fazia com muito prazer, pelo menos uma vez por dia. Eu fiquei lá até em torno de seis anos. Seis, sete anos.Os brinquedos Eu era, na família, o irmão homem mais velho. Tinha, além de mim, duas irmãs, e depois uma outra irmã. Então, eu ficava um pouco isolado. Brincar com mulher? A criança sempre tem um gosto diferente. Brinquedo de menino é diferente de brinquedo de menina. O meu brinquedo era muito solitário, e dentro da tradição do ambiente, eram brinquedos relacionados com atividade agrícola, pastoril. Os brinquedos eram enxadas pequenas. Antigamente, usava-se muita enxada. Hoje, usam-se tratores. Tinha carros de boi, cavalos, tudo em miniatura, e selas também em miniatura. Era tudo relacionado com a atividade econômica. É interessante este aspecto da influência do ambiente até nos brinquedos das crianças. Mas eu não fabricava. O que eu fazia era uma coisa muito rústica, que era uma tentativa de se fazer o carro de boi na base de sabugo. Sabe o que é sabugo? Sabugo é a parte do milho onde se encrosta os grãos. E os bois eram representados também pelo sabugo. A falta de irmãos homens me levava à criatividade das coisas. Isso foi muito bom.Mudança de cidadeEu passei a minha infância em Bom Repouso. Esta cidade, que no meu tempo tinha no máximo mil habitantes, hoje deve ter cinco mil. Foi um grande progresso. A primeira infância passei lá, e depois, por acidente de vida, coincidindo com a crise do café, anos 1929 até 1938, minha família mudou-se para o estado de São Paulo, primeiramente para Pirassununga e depois para Campinas. Em Campinas é que realmente eu cresci e me formei, e carreei uma orientação de vida.A crise atingiu o meu pai realmente de uma maneira muito particular, muito agravante, não é? Porque a crise atingiu principalmente a atividade agrícola, já que não tinha mercado. Começou haver uma crise econômica através disso e isso refletiu também no comércio, porque com a falta de emprego e a falta de renda nas vendas dos produtos agrícolas, evidente que as pessoas só compravam o mínimo necessário. E houve realmente uma queda muito grande. A queda foi uma queda geral. Isso resultou num período de grande crise na economia brasileira que atingiu principalmente a classe rural. E daí o fenômeno da emigração para as cidades. Foi a primeira reação. À procura de quê? À procura de emprego e de um modo de vida não mais fácil, mas um modo de vida que pudesse oferecer algo. A saída de Minas Gerais para São Paulo foi uma determinante causada pela crise econômica, cujo o ponto nevrálgico começou em torno de 1926, 1927, e foi até 1938. Essa é a história.Lembranças de PirassunungaPrimeiro fomos para Pirassununga, onde meu pai tinha um armazém, onde fiquei dois anos. Eu gostava muito de liberdade, e lá eu tinha. Eu morei na beira de um rio, o rio Mogi-Guaçu que, por sinal, nasce numa ex-propriedade do meu pai lá em Minas e num local que se chama Cachoeira das Emas, por causa da cachoeira que tinha. Na época o rio não era poluído, por motivos óbvios. Ele veio a ser poluído justamente com o desenvolvimento da indústria do açúcar e do álcool na região e também em função do crescimento da cidade, Ribeirinhas. Era um rio muito piscoso. Como a tendência do peixe é subir o rio para a desova - esse fenômeno se chama piracema -, a cachoeira era um obstáculo para os peixes porque eles tinham que galgar as alturas. Ali acumulava muito peixe e a importância do peixe para a vida era muito grande. Havia uma pequena colônia de pescadores que se chamava Pirangueiros. Não sei o porquê desse nome, a origem deve ser indígena. Mais ou menos 80 famílias viviam da pesca ali. Era um centro de pesca de peixe de água doce. Muito interessante! E isso me deu a oportunidade primeiro de conhecer um novo sistema de vida econômica, que eu não conhecia, que era a pesca, e segundo, me deu muita liberdade de passear nas pedras da cachoeira e de tentar também imitar o pescador. Era só uma imitação, porque eu não era profissional. Muitas vezes pegava-se o peixezinho com as mãos ou com uma pequena peneira, a quantidade de peixe que descia lá. A dieta era à base de peixe. E, por sinal, como eu comia peixe no almoço, comia peixe no jantar, eu fiquei com uma espécie de alergia ao peixe e passei muito tempo sem comer peixe. Era aquela coisa do hábito forçado. Não havia variedade na parte de fornecimento de alimento protéico, a não ser o peixe. Peixe e queijo, laticínios. Também muito tempo depois, eu deixei de comer queijo. Mais tarde é que voltei.Mudança para CampinasA ida para Campinas foi dois anos depois. Eu cheguei em Campinas em 1929. Meu pai começou a também trabalhar com vendas de vários produtos sem ser propriamente trabalhar fora de armazém, como uma espécie de "mascate de produtos". Eu conheci a venda dele. Era uma venda muito simples, constituía de um balcão, umas prateleiras e só. Não tinha sofisticação das lojas e nem dos supermercados. Era coisa simples, mesmo porque não havia ambiente para se ter uma loja sofisticada. Cidade pequena era assim, e a especialização levava a que o número de mercadorias fosse reduzida, aquilo que se chama essencial, porque do contrário não havia demanda.O desenvolvimento de CampinasCampinas era muito gostoso. Havia bonde, cidade tradicional, que era a cidade de ruas estreitas. Um ambiente muito bom. Campinas sempre foi uma cidade caracterizada por uma burguesia muito bem posta. Inicialmente, era a burguesia agrícola, o baronato. Depois, por circunstâncias de posição logística da cidade, ela cresceu baseada numa rede ferroviária que concentra toda ela em Campinas: Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Companhia Mogiana, Soracabana e Ramal Ferro Campineiro. Campinas se desenvolveu com isso, essas atividades relacionadas à Engenharia, principalmente ferroviária, e as atividades mecânicas, que era o fornecedor natural nesta parte de peças para as grandes oficinas ferroviárias existentes, devido ao fato dela concentrar na cidade quatro ferrovias. Principalmente a Companhia Mogiana de Estrada de Ferro e a Companhia Paulista tinham as suas centrais de oficinas e de escritório na cidade de Campinas. Então surgiu uma classe burguesa de engenheiros e operários especializados e uma burocracia muito bem posta, que era a burocracia dos grandes funcionários dos escritórios das empresas ferroviárias e das grandes oficinas. A concentração de ferrovias deu como nascimento um esquema de atendimento hospitalar. O sistema de assistência médica hospitalar aos funcionários não é novidade. As grandes empresas ferroviárias tinham suas próprias organizações nesse sentido, inclusive organizações que previam aposentadoria dos funcionários. Quer dizer, era um INPS privado. É o que está voltando hoje. E isso constituiu o quê? Uma demanda muito grande de médicos em hospitais que concentrou-se em Campinas. Por essa razão os grandes hospitais e centros médicos que tem até hoje têm fama. Em função dessa burguesia bem posta nasceram os grandes colégios, e como conseqüência, a grande universidade. Além do colégio Culto à Ciência, que foi um colégio do fim do século XIX, tinha outros colégios muito bons. Colégios de freiras, os colégios de padres e os colégios privados, três ou quatro colégios privados muito bons. Todos eles com grande freqüência. Isso significa que o padrão de vida da minoria burguesa era muito alto.
COSTUMES
Bom, o pai era muito autoritário, a mãe muito conciliadora, por temperamento. E a vida familiar era muito simples: levantava-se muito cedo, por força do hábito, e dormia-se também muito cedo. Como a região era muito fria no inverno, as reuniões familiares se realizavam na cozinha. A cozinha geralmente era muito grande, espaçosa. Na casa, era o maior setor. Tinha fogão à lenha. Por que no inverno se reunia lá? Porque o calor do fogão aquecia o ambiente. E por que a utilidade ainda maior do fogão? Porque como era muito frio, havia um artifício de aquecer os quartos aquecendo os tijolos no fogão. Esses tijolos eram aquecidos, depois envoltos em papel de jornal e colocados embaixo das camas, e isso aquecia o ambiente. É uma forma muito primitiva, mas muito bem ideada de aquecer um ambiente através de artifícios. Lá não caía neve porque o inverno era muito seco, mas geava muito.
EDUCAÇÃO
Escola ruralEu comecei indo à escola como passatempo. Havia uma escolinha primária que era como toda escola de meio rural. Ela tinha só uma professora, que era a professora encarregada do ensino primário, desde o 1º até o 4º ano, que era dado na época. Não havia conforto. Os alunos sentavam em bancos, não em cadeiras, e como eu sentia um pouco de falta de contato com criança, eu, com cinco anos, ia à escola. Mas eu ia à escola para brincar, não ia para aprender. A aprendizagem poderia ter vindo pelo convívio, mas não como um propósito. Então, pelo fato de ter uma vida muito solta, eu gostava de muita liberdade, e ia na escola, a professora me conhecia, todo mundo conhecia um ao outro, uma cidade muito pequenina. Todo mundo era compadre de todo mundo e todo mundo era padrinho de todas as crianças. E não tinha, portanto, dificuldade. E a liberdade era o seguinte; quando eu me cansava, saía, ia para o outro lado.Não havia propriamente uma imposição disciplinar. A disciplina viria com a compreensão das próprias crianças no ambiente que se formava. Esse problema de disciplina ser necessária e eu só vim a conhecer quando eu fui para o grupo escolar. Aí sim, porque era uma classe maior. A professora não tinha intimidade com os alunos, porque os alunos para ela eram desconhecidos. O contato era apenas durante as aulas. E, então, eu comecei a sentir a força, a autoridade do professor. Mas isso já era na cidade de Campinas.Colégio Culto à CiênciaO Culto à Ciência, eu peguei uma época em que havia ainda como disciplinas tradicionais, que depois desapareceu, o Grego, o Latim, o Alemão e a Astronomia. E desapareceu por força naturalmente de contratos e de função de professores. Foi no tempo do primeiro governo de Getúlio Vargas, que houve uma reforma do ensino secundário, com eliminação de uma porção de matérias, como o Grego, a Astronomia, o Latim continuou. Mas os professores continuaram, porque eles eram professores chamados catedráticos, e quem quisesse estudar o Grego ou o Alemão podia continuar. Esse colégio era um colégio que seguia uma tradição muito grande. Ele começou como um colégio privado e depois é que o Governo do Estado de São Paulo resolveu dar um cunho oficial ao colégio. O colégio se transformou em colégio do estado. E a tradição perdurou. Havia grandes professores, principalmente professores de Português, que formaram escola no Brasil. Havia bons professores de Matemática, que ainda vinham do antigo sistema colegial. O diretor era um homem muito ilustre, chamado Aníbal de Freitas, que também era professor, era professor de Física. Havia o Decourt, que dava Química também. Ele dava Química, Zoologia e Botânica. Havia um professor de Latim que, por sinal, era de cor, que era um excelente professor. E o colégio tinha uma disciplina realmente de convento. A disciplina era de tal maneira severa que cada classe tinha o que se chamava um bedel para tomar conta da disciplina dos alunos. Isso significava o seguinte: que a disciplina não era função do professor. A função do professor era ensinar. A disciplina era função do bedel. Isso era uma divisão de trabalho muito inteligente. Eu tenho muito boa memória do colégio e foi o colégio que me deu realmente a base necessária e essencial para o meu progresso profissional na vida.Eu tenho um espírito muito eclético. Eu não sou um especialista, portanto, eu levava todas as matérias com o mesmo interesse no estudo que eu tinha que fazer. A única matéria que eu não gostava, por preconceito de moleque, era a Música, primeiro porque era uma professora, e geralmente rapaz não gosta muito de professora, ele prefere professor; segundo porque ela era uma professora que queria impor pelos ouvidos uma disciplina realmente que era novidade. Quer dizer, não era a música em si, mas a técnica musical, e isso levava a um relaxamento - que não era só meu, era da turma toda - na parte do aprendizado de música. Havia um menino que era um grande violinista. Por sinal, era um menino que era de uma família muito humilde. O pai dele era pedreiro. E ele revelou-se na música. E Campinas foi, além de uma cidade de grandes engenheiros, médicos, uma cidade de grande cultura. Havia dois conservatórios, tinha um grande Teatro Municipal e tinha uma Sinfônica, e esse menino tocava violino na Sinfônica. O menino é que fazia as provas para a gente. O elementar da música não era problema para ele. Era ele quem nos ajudava a passar nas provas de música. Foi um artifício e, como todo artifício, tem as suas resultantes. Essa resultante foi o seguinte: o meu complexo, até hoje, de não saber música. Esse complexo é muito acentuado. Realmente, quando eu vejo um grande músico, um grande instrumentista, eu penso que gostaria de ser um grande instrumentista. Não fui porque o músico nasce como pintor. Não se fabrica músico. Quer dizer, música não é uma técnica, é uma vocação. E eu tenho, de vocação para música, só a vontade e a apreciação intelectual.Lazer era lazer de menino. Quer dizer, menino que gosta de verdade e que procura as suas distrações da maneira mais diversificada possível. Eu pratiquei esportes. Eu gostava muito de nadar e aprendi a nadar fugindo de casa, que eu aprendi a nadar em rio, não em piscina. Uma das aventuras que se tinha era fugir de casa para nadar no rio, porque minha mãe e irmãs achavam que era muito perigoso. Até certo ponto tinham lá a sua razão. Gostei muito de nadar, gostei muito de correr. Lá eram os meus dois esportes favoritos: a corrida e a natação.
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Preparo para entrada no curso de EconomiaO curso, no Culto à Ciência, começava às 11 horas e terminava às 17, 18 horas conforme o dia. Mas lá eu fiz só o ginasial. Não fiz o científico. Eu prestei um vestibular para Economia, e como Economia era uma disciplina nova, eles não exigiam o científico. Mas antes de entrar no ginásio eu fiz um ano de Contabilidade numa escola chamada São Luiz, que era uma escola que pertencia à Diocese de Campinas. Com esses dois instrumentos que eu aprendi, eu prestei o concurso para a escola de Economia sem nenhum problema e sem nenhum estudo especial. Só com a bagagem que eu já trazia da escola.Interregno para um trabalhoEu já tinha vinte e poucos anos quando fiz o curso. Mas tem um interregno aí, pois eu me mudei para São Paulo e precisei trabalhar o dia todo. Dentro do meu currículo tem o esquema. Eu só consegui iniciar um estudo em conseqüência da minha situação econômica, porque eu precisava trabalhar, e quando eu prestei concurso para a Secretaria da Fazenda, tive a felicidade de escolher um local de trabalho, que foi escolha devida à minha classificação no concurso, em que eu tinha liberdade de escolha de onde é que eu queria ir. E eu escolhi uma repartição que se chamava Contabilidade Mecânica, em que havia liberdade de horário, em que o serviço prestado era feito na base de escalas: cumpriu a escala, não tem que fazer mais horário. Aí eu tomei conhecimento dos primórdios do computador. Era sistema holerit, mecânico, por isso que chamava mecânica, que é o pai do computador. O registro contábil das receitas e das despesas do estado eram feitas lá. Eu tinha liberdade. Lá eu conheci um cidadão que realmente era inteligente, aplicado e trabalhador, o Otávio Frias, que posteriormente veio a ser proprietário da Folha de S. Paulo. Ele foi o meu chefe lá. Bom, então eu tive esse interregno de falta de escola de 1936 a 1940. Eu prestei concurso para a Fazenda, e tive tempo necessário e disponível para estudo. Aí que eu entrei para a escola de Economia e Administração da Fundação Álvares Penteado, onde me formei.Escolha de carreiraNão houve propriamente uma influência direta. Como eu sou muito eclético, eu gostava muito de ler obras políticas e de economia política, e isso me deu uma tendência, mas a minha vontade inicial era ser engenheiro. Não tive realmente a base econômica para tal fim. E quando eu obtive os meios necessários, achei que era um pouco tarde para começar Engenharia. Então entrei para Economia, pois eu gosto muito de Matemática também. Outra opção que eu tinha era entrar para aquilo que no meu tempo se chamava Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que foi um sistema inaugurado no tempo em que Armando Salles de Oliveira foi governador de São Paulo, e que foi uma novidade. Eu tinha opção para estudar, inclusive, Matemática como disciplina especializada, mas como o sistema no curso não podia ser conciliado com o meu trabalho, vamos dizer assim, por imposição de circunstâncias econômicas eu fui estudar Economia, e que foi o que deu base para a minha vida profissional depois.
EVENTOS HISTÓRICOS
Eu presenciei a Revolução de 1932 em Campinas e tenho duas impressões que me ficaram da Revolução. Ou melhor, não vamos nos limitar às impressões que ficaram. Primeiro foi o bombardeio na cidade. Campinas foi bombardeada por avião. Para as crianças era uma festa! Coisa inusitada! Segundo, o movimento civil que não distinguia nem cor, nem tendência política. Foi uma unanimidade em torno do movimento constitucionalista, e que animava também as crianças, como fato natural. O terceiro foi o grande impacto da invasão da cidade pelas chamadas Tropas Legalistas, em que a cidade ficou durante 24 horas sem governo. Ninguém sabia quem era quem e as tropas chamadas Legalistas não entraram imediatamente na cidade com receio de algo imprevisto. Nesse período houve um movimento de saques nas lojas, nos bares, que foi uma coisa muito terrível e, ao mesmo tempo, um espetáculo divertido. Não havia reação policial. Havia uma liberdade plena de pegar o que se quisesse, carregar o que pudesse. A quarta impressão foi a entrada das forças em Campinas que botaram ordem daí para a frente, e a localização de uma força gaúcha que era irregular, não era exército. Era formação de batalhões voluntários, como era muito característico na história do Rio Grande do Sul, no sentido de formar frente de combate. E esse pessoal era um pouco primitivo. Por causa da primitividade, eles foram localizá-los dentro de um bosque que tem em Campinas, cujo nome é Bosque dos Jequitibás, onde tinha vários animais como uma espécie de um pequeno zoológico. O importante do fato é que eles mataram os animais para comer. E como divertimento havia uma espécie de batalha entre eles. Aérea, vamos chamar assim, de dar tiro para o ar. Como eu morava perto do bosque, isso me impressionou muito. Eu não via os acontecimentos, mas eu ouvia. O saque eu assisti. Os saques eram até muito divertidos. O meu pai, nessa época, não tinha o estabelecimento comercial. Ele fazia os seus negócios na base daquilo que eu chamei "mascate de mercadorias", que era uma espécie de caixeiro viajante.
TRABALHO
A pé para o trabalhoEm São Paulo, com a vida de estudante, eu morei em vários locais. Eu morei na Vila Buarque, morei na Liberdade. A Liberdade não era ainda um bairro japonês, na época. E morei no Campos Elíseos. Era vida de pensão. Para ir ao trabalho tinha bonde e tinha a opção de ir a pé. Quando eu me mudei para os Campos Elíseos, eu ia a pé porque eu trabalhava na Avenida Nothmann, perto da Alameda Glete e perto da Barão de Limeira, e a entrada, propriamente dita, era na Barão de Limeira. Então era perto e eu ia a pé. Eu fui sempre um grande andarilho e continuo sendo.Missão em GenebraBem, eu vim para o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, na Divisão de Indústria e Comércio. Foi criado um Conselho de Desenvolvimento e o Conselho tinha uma Secretaria Técnica que tinha como base também o Departamento de Indústria e Comércio como órgãos auxiliares. Trabalhei aí e, por circunstâncias da vida, eu comecei a estudar, ou melhor, interessar-me pela parte fiscal de um posto de importação. Como conseqüência disso houve, em 1946, 1947, uma grande reunião pós-guerra para dar nova ordem ao comércio externo, e houve a proposição americana e inglesa para uma entidade internacional em que houvesse um compromisso multilateral das nações para realmente tornar o mundo sem barreiras comerciais. Iniciaram-se os trabalhos em Genebra, em 1947, e eu fui designado como auxiliar da delegação brasileira. Lá fui eu para Genebra. Daí trabalhei em Genebra. Cheguei em Genebra mais ou menos em março e trabalhei lá até outubro. Daí nasceu o Acordo Geral sobre Tarifas de Comércio, General Agreement Tariffs and Trade, que foi o órgão que teve a canção do parlamento americano, do Congresso Americano, e a parte propriamente dita das normas políticas do acordo foi a Organização Mundial, ela não vingou. O americano é muito prático, ele preferiu dividir os trabalhos e as idéias em duas partes: uma, propriamente de negociação, negociação tarifária foi o GATT, e a outra, mais propriamente a parte de normas e de políticas, era da Organização Mundial de Comércio, que teve a sua sucessão de reuniões de Genebra transferida para Havana, e daí surgiu a célebre Carta de Havana, que só foi implementada recentemente com a Organização Mundial do Comércio, que absorveu, por sua vez, o GATT, que em todo esse período foi um órgão independente. Bem, eu me especializei em imposto de importação e tarifa, por força da função, e continuei a ser um homem que "na terra de um cego, quem tem um olho é um rei". Por força disso, como o Ministério do Exterior não tinha ainda organizações especializadas em Economia e Comércio - ele se supria de funcionários de outros órgãos no sentido de dar assessoria à base técnica necessária - eu continuei o meu périplo de viagem para a Europa, que continua até hoje. Sistematicamente eu ia duas vezes por ano a trabalho em Genebra. Então, sou, de uma certa maneira, um genebrino. Conheci muita gente, aprendi muito.A Europa do pós-guerraEu cheguei à Europa depois da Guerra, isso na primeira viagem. Ainda existiam restrições próprias: transporte, um determinado tipo de alimentação básica, como açúcar e sal. Mas a Suíça era uma espécie de paraíso, porque a Suíça sempre foi neutra, embora houvesse racionamento desses dois produtos básicos, açúcar e sal. Como eu sempre tomei meu café, o meu chá sem açúcar, eu não tinha problema, como até hoje continuo a tomar. Mas a Europa estava em reconstrução, saindo da Guerra. Havia uma espécie de conformidade com tudo. Por quê? Porque eles tinham uma experiência realmente traumática de sofrer os horrores da Guerra, não só fisicamente, mas moralmente, através de perdas familiares, mudança repentina de sistema de vida e exposição aos azares de exércitos não-nacionais, quer aliados, quer exército de invasão. É traumático! Havia um conformismo muito grande e uma volta à religiosidade. Foi o período característico dessa fase européia. Então, ia-se à igreja e a igreja estava sempre lotada. Eu, ainda em 1947, visitei por curiosidade uma parte da Alemanha ocupada, por sinal ocupada pelos franceses. Chama-se Constança porque fica no Lago de Constança. Como eu era funcionário de governo, representativo de governo, sempre tive passaporte diplomático. Então, na base desse passaporte, eu consegui com os amigos licença especial de 12 horas para visitar a parte ocupada pelos franceses na Alemanha. E o que me comoveu muito foi a humildade dos alemães, que era uma coisa inusitada porque o alemão sempre teve a característica prussiana ali, disciplina militar. E como tinha saído da Guerra, a coisa tinha mudado. Eu fui à Catedral de Constança, uma grande catedral da Idade Média, enorme, muito bonita. O que me impressionou foi justamente a presença do povo na igreja, assistindo contritamente a missa com comunhão em massa. A segunda coisa também em Constança foi o seguinte, após a missa houve um concerto público no jardim de Constança, de uma orquestra mista de crianças e mutilados. Bom, essa primeira viagem minha foi realmente impressionante por causa dessas circunstâncias do pós-guerra. Havia um ditado lá que era o seguinte: "Quem tem chocolate, vive muito bem." Todo mundo queria ter chocolate, porque não tinha recessão de açúcar.Defesa da posição brasileiraA gente tem que fazer justiça à boa orientação do Ministério das Relações Exteriores na condução dos negócios, em que impõe uma defesa intransigente dos interesses nacionais que mantinha. Tinha uma formação muito caracterizada de país em desenvolvimento. Aliás, eram o Brasil e a Índia, os dois países que lideravam a posição dos subdesenvolvidos, porque o resto ainda eram semi-colônias ou da Inglaterra, ou da França, como era o caso dos países africanos e o caso dos países asiáticos, com exceção da Índia. Mas tinha uma posição muito firme. A posição era da seguinte defesa: de reconhecimento da desigualdade, de um estágio de desenvolvimento em que as regras gerais tinham que se ser bem qualificadas afim de não prejudicar o desenvolvimento e os interesses desses países ainda em formação econômica, principalmente na evolução da parte industrial. Eram produtos necessariamente importados, com exceção do café. E além disso, era uma posição nossa contra determinadas práticas que ainda hoje continuam ser utilizadas, que era a tarifa administrativa, vamos chamar assim, em que a regra que regula e impede a entrada de produtos é de natureza administrativa ou de natureza fitobiológica, ou fitossanitária: caso de carne, leite, laticínios. Outra posição era contra os subsídios da agricultura que, de alguma maneira, prejudicava a agricultura nos países desenvolvidos. São menos desenvolvidos e de fato isso ainda continua em vigor, as restrições administrativas na forma de cota ou fitossanitárias. Com grande luta consegue-se quebrar as barreiras. Essa luta vem até hoje.Enfrentando dificuldadesQuanto às dificuldades, principalmente a das restrições não tarifárias foi a grande batalha. Quanto às restrições não tarifárias, no caso, eram bem representativas as posições dos Estados Unidos, da Grã Bretanha e da França. Eram os três. Os três campeões das restrições agrícolas. Foi de fato uma batalha muito grande, e isso, tecnicamente, eu poderia explicar em poucas palavras que era uma forma de se conseguir manter uma atenuação para exportação e, ao mesmo tempo, uma defesa para a importação de certos produtos industrializados que necessitavam de proteção, porque havia aquilo que chama-se indústria nascente. É um linguajar econômico que na época era muito utilizado. Então introduziu-se o esquema na parte ainda no GATT que se chama "os direitos compensatórios e anti dumping", que hoje, por força de circunstâncias, é utilizado pelos Estados Unidos contra determinados produtos de procedência brasileira, como os produtos da indústria siderúrgica. Eles alegam dumping e uma porção de coisas semelhantes. Mas a figura foi muito defendida por nós porque era uma figura que de fato poderia ser aplicada, e foi na restrição à importação de determinados produtos que competiam com os produtos industriais, das indústrias nascentes do país. Eu continuei no GATT até a minha saída do Ministério da Fazenda, que foi em 1973, propriamente dito.Eu tratava mais de problemas macro, não micro, de considerar produtos. Os produtos entravam como a ilustração ou como imposição para solução de casos específicos, mas como política geral, como trabalho geral, o meu trabalho sempre foi considerar o conjunto e não as partes. No BNDESDepois do Ministério da Indústria e Comércio, eu fui trabalhar no BNDE, onde também tive uma experiência muito boa de ordem bancária naquilo que diz respeito a banco de investimento. Na minha época, o BNDE, hoje BNDES, exercia uma função de financiador de atividade de infra-estrutura e atividades estratégicas. Hoje ele ampliou. Eu tive duas funções importantes lá, uma para mim, para minha formação profissional, na parte de análise de projetos, e a outra, posteriormente, de análises financeiras. Durante a minha estada no BNDE, eu continuei indo ao GATT, por força da minha, vamos chamar assim, especialização acidental. As requisições eram feitas através do Ministério das Relações Exteriores, que me colocavam sempre na delegação. A reforma tarifária nacional e o ConselhoAinda nessa época eu entrei em contato com a Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio). Quando houve a grande reforma da tarifa nacional, da qual eu participei, por força não só da minha tradição no GATT, mas também pelo fato de eu ter feito um estágio de especialização na Comissão de Tarifa dos Estados Unidos, o USA Tarife Comission. Então, participei do grupo que trabalhou para a reforma tarifária. E no grupo que trabalhou para reforma tarifária surgiu a idéia de criar um órgão que não na base do modelo, mas na base da sugestão da USA Tarife Comission, que é um órgão nos Estados Unidos que tem como função seguir a evolução da função e aplicação da tarifa, de acordo com a evolução da economia americana e das tendências do comércio nacional. É uma instituição que foi criada antes da Primeira Guerra e que, muito bem estruturada, é uma instituição independente nas suas atribuições. Ela tem poder de sugerir e modificar as bases tarifárias. Ela é uma Instituição que funciona na base dos hearings, quer dizer, nas audiências em que participam diretamente os interessados na coisa. Portanto, é uma instituição muito séria e que me deu realmente na parte institucional uma visão de como deve funcionar a coisa. E foi criado nessa reforma tarifária, 1953, 1957, o Conselho de Política da ONER, do qual eu vim ser Presidente a partir de 1961, ficando lá até 1969, e passando sucessivamente por vários ministros da fazenda. O meu cargo era de mandato. O Conselho foi muito bem ideado e foi enriquecido num grande debate ocorrido no Congresso, que para isso constituiu Senado e Câmara uma comissão especial. Então, o Conselho passou pelo crivo do Congresso e foi enriquecido pelo interesse tanto do Senado como da Câmara, de formular uma lei que de fato funcionasse. E, compreensivamente, a gente verifica que o Congresso tinha mais maturidade do que o Congresso de hoje. Mais objetividade e mais responsabilidade na função que Deputados e Senadores exerciam. Eles ouviam muito, não eram auto-suficientes e nem pais da pátria. Eram homens iguais aos outros, só que por acidente eleitoral, eles exerciam um cargo político. E o Conselho foi um órgão democrático, tinha representação do governo, de vários órgãos, da Indústria, do Comércio, da Agricultura e dos Trabalhadores. Havia uma objeção, não era contra, mas à respeito da capacidade dos representantes trabalhadores de entenderem o processo. E é natural. Eu defendia muito porque eles não traziam sabedoria, mas traziam experiência. Em termos objetivos, a experiência vale mais do que a sabedoria. E o Conselho trabalhava como um órgão democrático em que as decisões eram feitas através de votos. Agricultura votava, Comércio votava, representantes dos trabalhadores votavam, a Indústria votava e a parte governamental idem. Era um órgão de decisão coletiva. Os pesos dos votos eram iguais. Não havia discriminação. Um voto era um voto. Não havia era paridade de representação. O governo tinha sempre um número de representantes a mais, mas existiam duas instituições que serviam de balança da coisa. Uma era a Secretaria Técnica, que mandava seus relatórios elaborados de uma maneira isenta, mas tecnicamente certa, e a outra era o modo de o Presidente conduzir as votações. Então, disso sempre saíram resoluções que de fato representavam o balanço dos interesses das diversas atividades da economia nacional. E esse órgão era muito importante. A resolução dos órgãos eram assinadas pelo Ministério da Fazenda, que dava os meios para o funcionamento do órgão, e o Ministro da Fazenda é que assinava as resoluções. A resolução era assinada pelo Presidente, mas submetida à aprovação do Ministro da Fazenda. Se o Ministro da Fazenda estivesse contrário à resolução, ela voltava ao plenário para uma nova votação. Se dois terços do plenário aprovassem ou reprovassem a atitude do Ministério da Fazenda, a resolução não entrava em vigor. Era um órgão independente realmente, e que funcionou muito bem até sua extinção, no tempo do Collor. O Collor é que extinguiu. Bem, ele foi enfraquecido e uma das razões da minha saída foi justamente essa. Ele foi enfraquecido porque eles tiraram o cargo de Presidente, que era o fiel da balança, e o Presidente, no caso, ficou o Ministro da Fazenda. Tirou realmente o equilíbrio da representação, porque a importância do órgão como balança de pesos dos interesses era justamente a independência da presidência. A presidência, passando para o Ministro da Fazenda, ficou de alguma maneira vinculada à administração e não à política. Essa foi a grande diferença. Aí eu pedi exoneração do cargo. Leste EuropeuCom a abertura das relações diplomáticas com o chamado Leste Europeu, os países comunistas, criou-se um ambiente favorável, não só aos entendimentos políticos, mas sobretudo àquilo que se refere às relações econômicas entre o Brasil e os países do Leste Europeu, principalmente no que concerne a dois pontos: primeiro, o entendimento na área técnica e segundo a criação de correntes comerciais. O Ministério das Relações Exteriores compreendeu muito bem o problema e criou um setor especializado no relacionamento do Leste Europeu, naquilo que diz respeito a condução do aspecto econômico, e foi um conselho cujo nome se chamou Coleste, que quer dizer, no fundo, Comércio com Leste. E eu participei do conselho, por força de várias circunstâncias: uma, o meu relacionamento com o Ministério das Relações Exteriores na parte referente ao GATT. Como eu participava muito do GATT e, geralmente, as delegações e representações no GATT eram coordenadas e chefiadas pelo Ministério das Relações Exteriores, o meu contato com o ministério era um contato muito bom, muito frutífero. E eu fui designado para membro dessa comissão, chamado Coleste, a qual eu ajudei a formular a estrutura em 1962, mais precisamente. E com isso eu entrei num esquema especializado de comércio com o Leste e comecei a participar, necessariamente, de todos os trabalhos em reuniões bilaterais e criou-se uma figura que se chamava Comissões Mistas, que era as comissões encarregadas de tratar do assunto específico com determinados países. O Leste Europeu era um complexo, cujo o nome econômico a gente pode denominar o Comecom, que era constituído pela União Soviética, propriamente dita, Polônia, DDR, República Democrática Alemã, Tchecoslováquia, Hungria, Iugoslávia, Romênia, Bulgária. Polônia era parte básica na coisa. Havia comissões mistas com todos esses países e eu participava das comissões mistas. Comissões mistas que tinham reuniões alternadas no Brasil e na sede do respectivo país no Comecom. Isso me deu conhecimento e uma experiência muito grande. Conhecimento das pessoas e das instituições, e experiência no trato da economia desses países. E daí, esta minha tradição com o Leste Europeu, com o qual eu visitava com muita freqüência e continuo a visitar.Era o cenário da guerra fria. E a guerra fria não interferia diretamente no processo. Porque não era uma guerra econômica, era uma guerra de ordem política, de ordem de defesa. Mas, existia uma tensão muito grande que o Brasil estava isento disso. O Brasil sempre teve por orientação do Ministério das Relações Exteriores que é um grande ministério, que tem um grupo de profissionais excelentes e de espírito público de defesa dos interesses nacionais. Realmente, é notável a atuação do Ministério das Relações Exteriores. E o ministério sempre teve uma posição independente, o que fez muito bem. E essa situação de independência dava na parte do relacionamento com esses países uma posição favorável, e como eles tinham também o interesse em estar presentes na América Latina, como uma espécie assim, de contra balanço de situação, e tendo em vista que, na época, eles olhavam a economia como uma espécie de ponta de lança político, a coisa fluía realmente de maneira trabalhosa, mas suave. E as minhas atividades orientaram-se para o Leste Europeu. Como também coincidiu de eu ser Presidente do Conselho de Política Aduaneira, isso me dava uma posição realmente sui generis. Não só como figura que representava uma opinião ponderável do governo brasileiro, mas também como uma outra figura que, por acidente de trabalho, tinha muita experiência em conhecimento específico, independente da capacidade intelectual. Não tinha a qualificação necessária. Bom, isso me deu a experiência e um conhecimento, fora de modéstia, muito grande com a economia do Leste e que resultou numa determinada recompensa moral, intelectual de reconhecimento de alguns governos do Leste que me tratavam muito bem, inclusive, com oferecimento de atendimento muito cordial e até o oferecimento de comendas. Eu tenho uma da Polônia e uma outra da Tchecoslováquia e que, na época, devido a economia da política brasileira, vamos chamar assim, não me era muito favorável sob o ponto de vista político. Bom, mas como eu sempre fui muito cauteloso e aprendi a vida diplomática com o Ministério de Relações Exteriores, eu sistematicamente fazia os meus relatórios e mandava um ao setor do SNI que tinha cédula no Ministério da Fazenda. Aqui, eu fazia tudo às claras para evitar qualquer surpresa posterior. Foi criada a Alalc que é a Associação Latino-Americana de Livre Comércio e eu, por força da minha posição no conselho brasileiro, comecei também a participar da Alalc. Quer dizer, me levou à várias missões. Necessariamente em Montevidéu, eu ia com certa freqüência, e depois certas missões no exterior, principalmente foi com mais ênfase Colômbia, na qual estive duas vezes, tratando de interesses de Alalc.
ENTRADA NA CVRD
Convite da ValeEra Presidente da Companhia Vale do Rio Doce o futuro Ministro Antônio Dias Leite Filho e, por força da minha função, eu tinha muito contato com as grandes empresas interessadas principalmente na importação de equipamentos e máquinas. Porque o Conselho tinha, dentro das suas atribuições, uma muito particular que era destacar daquilo que não houvesse similar nacional, determinados tipos de importações definidas de forma a reduzir ou isentar o imposto de importação sobre a importação desses bens. Por quê? Porque esses bens poderiam ser qualificados como bens de produção. Era necessário para produção nacional. Como não havia similar, não havia porque taxá-los apenas sobre o enfoque fiscal. O Conselho tinha esse poder de manobrar e a Vale do Rio Doce sempre foi uma grande importadora de equipamentos. E eu tinha muito contato com a Vale do Rio Doce porque ela se socorria no Conselho, na medida em que eles tivessem necessidade de promover a importação de máquinas e equipamentos sem similar nacional. Não precisava pagar imposto. E como sobre o enfoque da lei e da reforma tarifária, o imposto não era um imposto fiscal, mas um imposto econômico, esta regra era perfeitamente aceitável, e aplicável, e tinha o seus méritos econômicos. Eu já conhecia o Dias Leite antes, ele foi professor de Economia. E daí a ida dele lá para a conversar comigo, eu disse a ele: "Olha aqui, eu examinei a pretensão da Vale, e ela tem todos os méritos, como nas outras pretensões e pedidos anteriores. Eu vou encaminhar a coisa dentro dos procedimentos normais, mas eu creio que eu não vou assinar a resolução. Eu tenho certeza que a resolução vai ser favorável, porque ela é do mesmo veio anterior." "Ah, mas por quê?" "É porque eu pedi exoneração da presidência do Conselho e só vou ficar até..." Eu pedi em novembro, "... até o Ministro me dar a exoneração."Isso foi 1968. O Ministro me cozinhou em água fria, vamos chamar assim. Ele não me deu exoneração. Ele esperou até o término do meu mandato, que foi em 1969. E na conversa que eu tive com o Dias Leite em 1968, ele disse: "Bem, você faz o seguinte: terminando o seu mandato, havendo a sua exoneração, eu convido você para trabalhar na Vale." Ele era o Presidente da Vale: "Porque eu preciso de alguém lá que realmente conheça esta parte mais global da economia de importação e exportação, e principalmente porque eu tenho certos projetos para entrar no mercado do Leste Europeu." Como eu tinha tradição no Leste, ele lembrou-se de que eu poderia ser útil. Função duplaO convite do Dias Leite relacionou-se com o fato de eu já ter experiência governamental dos negócios de comércio exterior. Ele me convidou. Eu disse: "Está bem, quando chegar a minha exoneração, eu irei lembrá-lo do seu convite." Mas essa exoneração demorou até maio de 1969, porque foi o término do meu mandato e foi realmente uma atenção especial que o Ministro Delfim Neto me deu, embora eu, na minha carta, tivesse explicado a ele que eu não concordava com a orientação que eu sabia que ele estava pretendendo dar no Conselho Aduaneiro e que, por eu não estar de acordo, eu pedia a exoneração para o campo ficar livre. "Porque eu já tenho um compromisso com o Dias Leite. Ele me ofereceu um lugar na Vale e eu vou para a Vale do Rio Doce." Nessa época, o Dias Leite já era Ministro das Minas e Energia. Tinha saído de Presidente da Vale para o Ministério de Minas e Energia, mas antes ele havia me comunicado que o meu lugar na Vale estava acertado. O Delfim Neto disse: "Ah, não, vou falar com o Dias Leite porque eu tenho um cargo a lhe dar, a respeito de umas idéias que eu estou pensando e eu necessito da sua pessoa. Eu vou falar com o Dias Leite." Bom, em resumo, ele falou com o Dias Leite, o Dias Leite concordou e eu fiquei numa função dupla: Ministério da Fazenda e Vale do Rio Doce. A Comissão Especial de Compras no ExteriorA idéia do Ministro Delfim Neto foi o seguinte: "Nós temos que criar aqui no Ministério da Fazenda algo que possa estimular e desenvolver o comércio com o Leste Europeu que, pelo que eu sei, é o seu doce de coco." Eu falei: "O senhor me diga as idéias. Eu posso escrever a estrutura e, se for preciso, criar legalmente. Eu faço o esquema de lei ou de decreto, mas eu não posso é trabalhar aqui e na Vale, em dois lugares." Foi aí que ele falou com o Dias Leite e arrumou-se a coisa conforme eu vou explicar em seguida. A idéia era de desenvolver um comércio, um relacionamento mais íntimo com o Leste Europeu, de forma que o Ministério da Fazenda tivesse uma presença atuante. Eu fiz o esquema, entreguei a ele. Quanto ao nome da comissão eu disse: "Bem, pode ser Comissão de Comércio com o Leste Europeu." E o Delfim: "Não posso fazer isso. Não posso, porque o Presidente da República vai... esse negócio de Leste Europeu, comunismo, nós temos que inventar um nome para esse negócio, para essa instituição." E o nome acertado foi Comissão Especial de Compras no Exterior, que não tinha nada a ver. Mas, com esse nome passou. Eu redigi o decreto e, do entendimento dele com o Dias Leite, eu acumulei os meus dois cargos. Não havia divergência de propósitos. O serviço público sempre é pobre em meios e o ministério não tinha como me dar uma secretaria adequada. Eu o que fiz? Eu fiz a secretaria através de fundo da Vale e como essa coisa era convergente, não divergente, inclusive, pelo fato do Ministério das Minas e Energia também tem interesse na coisa, eu fiquei acumulando duas funções até 1974, até o Governo Geisel, quando saiu o Ministro Delfim Neto e entrou o Mário Henrique Simonsen como Ministro da Fazenda. Bem, mas foi providencial.
NEGÓCIOS NO EXTERIOR
Necessidade e coincidênciaHá certos fatos importantes na vida que acontecem coincidentemente. Eu tenho uma frase de um filósofo moderno francês, ele é bem agnóstico, que diz o seguinte: "Tudo na vida acontece por necessidade ou coincidência", o que os franceses chamam azar, quer dizer, probabilidade. A circunstância da criação do Conselho de Compras do Exterior, do Ministério da Fazenda e, ao mesmo tempo, da minha função na Vale do Rio Doce é um exemplo que realmente ilustra a sabedoria desse ditado. Por quê? Porque eu tive a secretaria custeada pela Companhia Vale do Rio Doce e, ao mesmo tempo, eu tive o poder na mão de ordem administrativa e política que me facilitou toda a vida de relacionamento com o Leste na condução dos negócios da Companhia Vale do Rio Doce. É verdade que eu continuei a ser membro do Coleste, mas a parte funcional, a parte propriamente operacional da coisa, eu consegui através desse casamento. Comércio com o Leste EuropeuO comércio com o Leste Europeu baseava-se em geração de recursos recíprocos para o pagamento de importação e exportação. Houve necessidade de uma especialização bancária, no caso, para a condução desse tipo de negócio. Os países do Leste não tinham moeda conversível, nós não tínhamos moeda conversível. Então, havia necessidade de formar uma espécie de clearing especial. E isso foi feito pelo Banco Central, que criou um órgão chamado Firce, que tinha entre as suas outras atribuições, a de gerenciar as contas com o Leste Europeu. Havia nesse comércio duas figuras: o primeiro era de moeda conversível, mas uma moeda conversível que era função de pagamentos. O comércio tinha que ser regulado em dólares, o que era feito com a União Soviética, propriamente dita, e a República da Tchecoslováquia. O segundo era o comércio que se fazia através do clearings bilaterais, que era o caso de República Democrática Alemã, Polônia, Hungria, Iugoslávia, Romênia e Bulgária. E o Banco Central, através da Firce, é que era uma espécie de "câmara de compensação" para este tipo de pagamento. Isso significa o seguinte: que forçosamente havia de ter importação para haver exportação, porque se não, o país credor tinha necessidade de financiar. Havia um crédito rotativo que eles chamavam crédito técnico, mas era um crédito muito limitado que, na época, foi fixado em 10 milhões de dólares para cada país, e isso não era suficiente, embora fosse necessária. Então, o que era preciso era fomentar as correntes comerciais. Ora, corrente comercial é de dupla entrada: a importação e a exportação. No caso específico era uma imposição ou em junção das circunstâncias. Só exportava se importasse. Do contrário, uma das partes ficava pendurada e a minha função na Vale foi justamente uma função de elaborar projetos que conciliassem essa característica comercial. Eu tive realmente na Vale uma função que eu posso designar como uma diplomacia comercial. Eu elaborava os esquemas, eu tinha a necessidade e a imposição de executar e tudo que diz respeito a serviço público encontra um grande obstáculo que é inerente a função pública que era a burocracia. Aliás, não é só função pública, é as grandes instituições. As grandes companhias também tem a sua burocracia e essa burocracia no serviço público é maior porque ela é estanque. Ela tem uma burocracia no Ministério do Trabalho, das Minas e Energia, da Fazenda, da Indústria e Comércio e da Viação e Obras. Esquemas de corrente comercialOs meus esquemas, necessariamente pelo fato de serem macro, e dependerem de alguma maneira de negociações de nível governamental, tinham que contar para a execução ou implementação com o apoio dos diversos ministérios, sem o que não andava. Bom, para ter o apoio dos diversos ministérios tinha que correr realmente a burocracia ou as práticas que são comuns no serviço público. Há no serviço público, como em todas as grandes instituições, uma espécie de idéia de dono da bola, ou de ter a capacidade máxima e privativa de decidir. Então, uma idéia que veio do ministério, uma solicitação de um ministério para o outro ministério é realmente analisada e reanalisada em cada ministério, que é para dar o seu ponto de vista que, muitas vezes, não são coincidentes e daí vem o atrito e o atraso na execução. Bom, como necessariamente eu dependia de quatro ministérios, sendo um o Ministério das Relações Exteriores, que esse me dava todo o apoio diplomático e político, e que não era nenhum obstáculo, eu tinha o Ministério de Minas e Energia, o próprio Ministério da Fazenda que tratava de problemas de imposto e tinha uma ascensão muito grande por fato da relação monetária e creditícia com o Banco Central. E o Ministério de Indústria e Comércio é que jurisdicionava uma série de indústrias, principalmente a indústria siderúrgica. O Ministério de Minas e Energia era energia, eletricidade, Petrobras etc. Eu dependia dessa cadeia de decisões para eu ter sucesso nas idéias que eu formulava e só seriam válidas se aplicáveis. Bem, tendo em vista a base do sistema de relacionamento econômico com esses países caracteristicamente de economia simplesmente planificada, portanto, tudo planejado havia necessidade de ter aqui no Brasil uma recíproca. Quer dizer, você tinha que ter um mínimo de organização e planejamento para poder levar avante as idéias de correntes comerciais frutíferas. E eu comecei a elaborar a coisa. Se havia necessidade de haver reciprocidade na importação para poder fazer exportação e tendo em vista o interesse da Companhia Vale do Rio Doce em ampliar ou reconquistar esses mercados para o seu minério de ferro, eu precisava formular os esquemas. Para cada país, eu tinha um esquema. Esquema esse que era função das possibilidades de exportação e da vocação de exportação que esses países tinham de produtos que interessavam a economia nacional. Cada país tinha as suas características.O esquema Polônia: carvãoEu comecei com a Polônia, que tinha e tem carvão, e o Brasil era grande importador de carvão. O Brasil nunca foi auto-suficiente, mesmo porque, o carvão nosso é muito pobre. A grande importação de carvão, na época, era dos Estados Unidos, grande maioria, um pouco da Austrália, um pouco da África do Sul e um pouco do Canadá. É interessante que a África do Sul tem um produto chamado antracito e que eu negociei, ou melhor, eu participei da negociação em 1947, 1948 no GATT, e que eu propus a redução do imposto sobre o antracito na negociação com a África do Sul. Bom, e mais tarde eu vim realmente tomar contato novamente com o carvão, inclusive com o antracito. Eu apresentei o mesmo esquema, que foi aprovado, de fazer um acordo com a Polônia na base de exportação de minério de ferro e importação de carvão. Mas, para isso, havia a necessidade das grandes indústrias siderúrgicas, CSN, Cosipa e Usiminas, comprarem o carvão. Essas indústrias estavam sob a jurisdição do Ministério de Indústria e Comércio, através de um órgão chamado Consider. O secretário geral do órgão era um conhecido velho meu que se chamava Sarcinelli. Eu conversei com ele: "Está bem, eu acho que é meritório, vamos tocar para frente." Bem, houve a reação das respectivas compradoras: "Não, nós não queremos esse carvão porque esse carvão nós não conhecemos. Esse carvão não é de boa qualidade. Nós estamos habituados a comprar o carvão americano, o carvão australiano. O carvão americano é muito rico e nós não vamos mudar de fornecedor numa coisa desconhecida." E começou a ameaça de um colapso ou de um insucesso no esquema. Bom, o Ministério da Fazenda era o responsável pela posição de tarifas. Portanto, ele tem a capacidade de impor tarifa na importação de carvão. Segundo, o Ministério de Minas e Energia é o ministério que trata também da economia carbonífera, e o Ministério de Indústria e Comércio é o ministério que tem como função a jurisdição sobre a indústria siderúrgica. "Como eu vou fazer nesse caso?" Eu, como coordenador dessa comissão de vendas do comércio exterior do Ministério da Fazenda, engendrei um esquema que é o esquema de avisos múltiplos. Isto é, quando um ministro contata um outro ministro, um ministério contata um outro ministério para fins burocráticos e formais, ele o faz através de um instrumento escrito que se chama aviso. Eu inventei o "aviso múltiplo". Um aviso do Ministério da Fazenda, Indústria e Comércio e Ministério das Minas e Energia formava o tripé, redigia o aviso para ser assinado pelos três ministros. Então, a execução era automática, não dependia do funcionário, nem dos órgãos técnicos em cada ministério. E eu tive um sucesso: "Há a necessidade de comprar o carvão polonês porque o interesse nacional exige. Se não comprar o carvão polonês, entra o Ministério da Fazenda a impor certas coisas que tem que fazer assim. Vai impor tarifas ou cotas sobre o carvão vindo dos Estados Unidos. Vocês têm que provar que o produto não é bom. O produto é utilizado na Polônia, e a Polônia exporta esse produto para siderurgias européias e exporta esse produto para o Japão. Que história é essa? A indústria siderúrgica nacional é que não pode usar isso? Esse é um problema de cozinha, de tempero. Se eu conversar com o cozinheiro do alto-forno, o cozinheiro arranja a solução. Ele é que sabe." Bom, houve a concordância e nós iniciamos o entendimento com a Polônia.Contrato com a PolôniaO Ministro Dias Leite, nessa época, e o Ministro da Indústria e Comércio foi conosco chefiando um grupozinho à Polônia para discutir um "acordo carvão-minério de ferro". Nas reuniões das comissões mistas eu já havia colocado na agenda a discussão, através do Ministério das Relações Exteriores. Então, eu peguei um quarto ministério para apoiar as minhas idéias. Ele deu apoio. O ministério foi muito participativo porque isso também estava dentro da política dele e nós tentamos um primeiro acordo com a Polônia. Importação de carvão, exportação de minério de ferro. Chegamos a um entendimento técnico com quantidades definidas de carvão e de minério. Como nós éramos importadores líquidos de carvão, nós admitimos como vantagem recíproca a importação em maior volume de carvão do que de minério, porque interessava mais. Esse acordo foi esquematizado, elaborado. Quando foi para a assinatura, na Polônia, em Varsóvia, o Ministro da Indústria e Comércio da Polônia com o qual nós estávamos fazendo o acordo, pediu uma reunião extraordinária com o Ministro Dias Leite num castelo fora de Varsóvia, oferecendo-nos um almoço para tratar do assunto. Eu saí com a esperança de que a assinatura do acordo fosse lá. Mas ele, muito desoladamente, pediu um comparecimento muito restrito das pessoas. Compareceram o Ministro Dias Leite, o embaixador do Brasil na Polônia, que era o Alfredo Valadão, e eu. E o Ministro polonês, muito desolado, nos comunicou o seguinte: que havia recebido da União Soviética, do governo soviético uma orientação contrária a exportação de carvão para o Brasil e a importação em volumes significativos de minério de ferro, que a Polônia já importava em quantidades pequenas. Isso significaria o seguinte: essas quantidades significariam a multiplicação por dez, e isso parece que abalou um pouco o interesse da República Socialista Soviética. Ela era a grande fornecedora de minério de ferro para a Polônia, e ela via nisso que o crescimento das importações brasileiras poderiam eventualmente prejudicar o interesse das exportações de minério de ferro de origem soviética para a Polônia. Foi uma ducha de água fria, principalmente para mim, que tinha preparado a festa. Mas ele nos disse o seguinte: "Mas nós vamos trabalhar no sentido de levar avante este acordo que é do interesse da economia polonesa." Saímos de lá, todo mundo realmente preocupado. Mais preocupado estava eu: "Esse negócio não vai sair." Bem, ao final, em fevereiro do ano seguinte nós assinamos o contrato! Foi no Rio de Janeiro, no gabinete do Dias Leite. O contrato foi assinado em nível inferior. No caso, foi pelo secretário geral do ministério, por mim da parte brasileira, e pelo embaixador da Polônia pela parte polonesa, e saiu o contrato. Esse contrato foi o início das grandes exportações brasileiras para a Polônia. Multiplicou-se por dez as exportações. Iniciou-se a importação de carvão polonês. Em 1975, na grande primeira crise do petróleo, o carvão polonês salvou a indústria siderúrgica brasileira! Por quê? Por duas razões: primeiro, os fornecedores americanos elevaram o preço do carvão, que era US$ 23,00 para US$ 80,00. Segundo, eles cotizaram a exportação. Eles não sabiam o que aconteceria. Então, a Polônia continuou a vender carvão pelo preço normal e ainda deu uma cota adicional durante esse período. É aquilo que a gente chama, volto ao dito filosófico, "o azar". Quer dizer, a coincidência de você ter feito um contrato de carvão com a Polônia que veio repercutir positivamente na produção siderúrgica brasileira, sem o que eles tinham que: primeiro, pagar US$ 80,00 por tonelada, que é um absurdo. Segundo, estar sujeito a cota de exportação que foi configurada pelos exportadores americanos. Bem, isso foi o primeiro grande passo nosso.O segundo contrato com a Polônia Com isso, se deslanchou o processo, e ordenou-se, de alguma forma, a sistemática do modelo polonês para os outros países. Garantia de contrato a longo prazo de exportação de minério com garantia de contrato a longo prazo de fornecimento de carvão. O segundo contrato, ou o segundo compromisso de nível governamental e nível empresarial, Vale do Rio Doce e empresas polonesas, foi feito cinco anos depois, e as quantidades foram alargadas, tanto de carvão como de minério de ferro. Mas, houve para o aumento da exportação de carvão, uma exigência polonesa que foi o financiamento brasileiro para que ela pudesse ampliar a produção de carvão, porque dizia ela que a estrutura estava toda ela comprometida num determinado nível de produção. Para ela exportar para o Brasil em quantidades maiores, ela necessitava ampliar a produção, e para isso tinha que ter investimento. Concordou-se o financiamento. Foi um financiamento muito discutido e muito discutível de 173 milhões de dólares, cash, não dólar convênio. O Banco do Brasil fez o financiamento por orientação do governo e, com isso, nós conseguimos, portanto, a ampliação das exportações de minério de ferro e das importações de carvão. O problema quantitativo aqui, parece-me que é secundário, ia tomar muito tempo se eu descrevesse estaticamente as tabelas quantitativas desse comércio. Com a Polônia também, existia o interesse na exportação de enxofre. Mais tarde, ela, para ampliar a exportação de enxofre, também negociou com o Brasil um modelozinho semelhante ao de carvão-minério, que foi a exigência polonesa para ampliação do aumento de enxofre para o Brasil, no aumento de exportação de enxofre para o Brasil de um financiamento em moeda conversível que, no caso, foram 135 ou 137 milhões de dólares. Também muito discutido e muito discutível. Por que isso teve importância? Porque repercutiu mais tarde na dívida polonesa com o Brasil que, inicialmente, eram três bilhões de dólares, e depois isso aumentou para cinco bilhões de dólares com juros. E acabou o Brasil perdoando metade da dívida, que foi uma grande dor de cabeça para as autoridades financeiras brasileiras no acerto dessas contas. É importante frisar que contribuiu para isso, para esse problema futuro o financiamento que tinha sido feito para o carvão e para o enxofre. O modelo polonês serviu também de modelo para a Romênia.A não ser o enxofre do lado da importação e têxtil do lado da exportação não houve mais aumento de importação-exportação dentro do esquema. O Brasil continuou a exportar soja, café etc., mas dentro de um esquema calcado naquilo que eu chamei o compromisso governamental que refletia nas atas das comissões mistas. A coisa articulada mesmo só esteve presente no caso do carvão-minério, enxofre-têxtil. A importação de enxofre e de carvão, e que pese essa discussão de ordem financeira provocada pelo empréstimo brasileiro em moeda conversível foi muito benéfico para o Brasil, porque o Brasil dependia realmente, continua dependendo, de importação de enxofre para a importação de carvão. A existência de um mercado, vamos chamar assim, quantitativamente cativo era importante. O esquema RomêniaO segundo grande mercado para a Companhia Vale do Rio Doce foi a Romênia. A Romênia sempre teve uma política de aumento de relações com o Oeste porque ela não queria depender muito da União Soviética. O regime era comunista, mas eles tinham as suas idéias de independência, como a Iugoslávia também tinha. A exportação de minério de ferro, no caso específico, para a Romênia não contava com uma resistência soviética. A Rússia continuava a fornecer, mas a Romênia procurava diversificar o mercado de suprimento, comprando do Brasil, da Índia, da Austrália, da África do Sul. Os quantitativos anteriores eram quantitativos muito pequenos. Quer dizer, 300 mil toneladas, 200 mil toneladas num ano, no outro. Mas o mercado romeno era um bom mercado, que podia absorver maiores quantidades. Não o dobro, o triplo, mas dez vezes mais o que foi conseguido. Entretanto, a Romênia não apresentava, como a Polônia, determinados produtos que fossem de interesse da importação brasileira, porque a economia brasileira dependia da importação desses produtos, como foi o caso do carvão e lateralmente do enxofre. A Romênia produzia, como matéria-prima, produtos de base, que interessava ao Brasil, apenas três produtos que eram, na época, importados: barrilha, óleos lubrificantes especiais e fertilizantes, principalmente fertilizante de uréia. Eram quantidades pequenas. Então, houve necessidade de inventar uma fórmula de importar mercadorias romenas para justificar um contrato a longo prazo em quantidades maiores de minério de ferro. Quantidades essa, como eu disse, que foi fixado em 10 a 15 vezes aquilo que era tradicionalmente importado. E, além disso, era um contrato a longo prazo, contrato de 10 anos. Inventou-se, com a colaboração, ou melhor, orientação do Eliezer Batista, uma forma que foi de compra de vagões para transporte de minério e de um produto muito peculiar, que é dormentes de aço. Inclusive, a Vale forneceu o projeto à Romênia para o romeno fazer o dormente de aço. Com esses dois produtos, vagões e dormentes de aço, foi constituída a base da contrapartida com a Romênia. Esses produtos, a Vale comprou. A Vale utilizava nessas transações todas, primeiro a sua demanda específica e segundo o auxílio que outras empresas estatais, até empresas privadas, conforme nós vamos relatar posteriormente, colaboravam conosco. Nesse caso, a Vale do Rio Doce comprou vagões e comprou o dormentes. Houve muito atrito com a indústria nacional porque a indústria nacional já era fornecedora de vagões tradicionalmente, e como a Vale do Rio Doce constituía o mercado certo e seguro para os vagões, elas achavam que isso era uma competição que estava fora da norma, fora da regra. Então, a Vale do Rio Doce deu uma certa compensação à indústria nacional, e com isso foi realmente efetivada a compra de vagões da Romênia. A Romênia ainda oferecia óleos lubrificantes especiais que a Petrobras importava de terceiros países e começou a importar da Romênia. Ela fornecia também para a Petrobras sondas para a exploração de petróleo em postos terrestres. A contribuição da Petrobras também foi muito grande nesse esquema de contrapartida utilizada pela Vale do Rio Doce. Além disso, ela exportava também, como eu disse anteriormente, determinados tipos de fertilizantes que é a uréia e barrilha, que foi depois, posteriormente, cortado a importação porque a Companhia que promovia o monopólio de importação, que era a companhia Álcalis, resolveu que, como o negócio com a Romênia estava muito difícil, promover a importação de outras fontes. Mas, de qualquer forma, conseguiu-se formular um esquema com a Romênia, contrato a longo prazo, através basicamente desses quatro produtos: sondas, óleos lubrificantes especiais, dormentes de aço e vagões, com continuidade.Nas comissões mistas se fazia o seguinte: ou ela formulava o esquema global ou ela dava apoio governamental diplomático às operações. Tudo isso ficava registrado dentro da comissão mista sem os detalhes operacionais. Mas, apenas como um esquema global. O apoio político que as comissões mistas proporcionavam eram muito interessantes. Porque o outro lado assumia o compromisso do governo. Como as economia do Leste eram centralmente planificadas, o governo tinha que cumprir e tinha mais facilidade de cumprir. No acordo com a Romênia, a parte operacional, isto é, a execução de contratos e formulação de contratos comerciais, foi feito pela Companhia Vale do Rio Doce. Isso é um problema natural, porque o governo não vai fazer contrato de compra e venda. Ele pode fazer contrato através de suas empresas, mas não ele especificamente. Tinha um órgão da Companhia Vale do Rio Doce que eu coordenava e era esse o órgão que tinha o trabalho de fazer, vamos chamar assim, o trabalho de convencimento e a materialização dos contratos com as empresas. E de fato, era um trabalho de formiga. Quer dizer, um trabalho de atenção continuada. Não se podia dormir no ponto, vamos chamar assim. E de relação de ordem de política comercial também. Quer dizer, é um trabalho de convencimento.Era um trabalho de natureza externa, interna e empresarial interna. Não era uma coisa apenas fixada entre Companhia Vale do Rio Doce e empresas do Leste Europeu e acabou-se. Não, ela tinha que zelar, acompanhar e fazer com que as operações de contrapartida fossem executadas internamente.Colaboração com a RomêniaCerta época, o comércio com a Romênia ultrapassou o mercado polonês. Nós exportávamos mais para a Romênia do que para a Polônia. E, além desse aspecto de mercadorias, vamos chamar, nós tínhamos também um trabalho de idear determinados tipos de colaboração, de cooperação, em termos de investimento de serviços. E nisso, a Vale do Rio Doce procurou, por exemplo, na Romênia, colaborar na construção do grande porto de Constanta, no Mar Negro. E fizemos um projeto de fornecimento de equipamento para o terminal de minério de ferro lá. Isso não deu certo por questões várias, mas foi um esforço que se fez no sentido da Vale do Rio Doce estar presente já no mercado, através de investimento dela. Ela ia fazer o investimento lá. É que tinha muito significado político, uma companhia brasileira fazendo investimento no Leste Europeu! E esse porto é um porto muito importante. É o maior porto do Mar Negro e que tem ligação com o Danúbio através de um canal, porto e canal que foram construídos no tempo de Ceausescu, foi uma obra criticável porque consumiu excesso de investimentos, como era comum nos países comunistas, mas realmente foi uma obra meritória que, hoje, está dando resultados. O canal liga o porto de Constanta ao Rio Danúbio. Isso quer dizer o seguinte: pode se ter ligação através Danúbio-Reno entre Constanta no Mar Negro, e Roterdã na Holanda. Foi uma grande concepção logística.O minério da ValeO minério da Vale, diga-se de passagem, é um minério muito bom. Principalmente quando entrou Carajás, que é um minério excepcionalmente bom. Além disso, a Vale tinha um processo de beneficiamento, que é a produção de pelotas, um produto já com um grau de agregação superior ao minério comum, e que tem um preço maior e é um produto, como matéria-prima, nobre. Não tinha dificuldade porque o minério nosso era muito bom. O minério importado pelos mercados do Leste Europeu, isto é, dos países pertencentes ao Comecom, era minério soviético: Ucrânia e Urais, e esse minério não é de bom teor. O minério era 30, 33% de conteúdo de ferro, enquanto o nosso era de 65, 60%. Era uma diferença grande. Isso tem uma importância muito grande na economia siderúrgica. Na economia do auto-forno, porque quanto mais rico o minério, menor o gasto de energia, portanto, de carvão no auto-forno, e menor os rejeitos que vem para o auto-forno. Sob o ponto de vista econômico, o uso do minério de ferro da Companhia Vale do Rio Doce dá uma economicidade muito grande à siderurgia. E o produto soviético era um produto muito pobre. Eles preferiam comprar o produto brasileiro, mas totalmente o produto ocidental; australiano, canadense. O venezuelano, o da Índia ou da África do Sul, mas eles não podiam fazer isso por causa da articulação interna em termos de programação. Eles eram obrigados a fazer. Segundo, eles não tinham disponibilidade de moeda conversível. Todo o comércio feito dentro do Comecom, portanto, dentro do mundo comunista feito na base de compensação interna, quer dizer, tudo contábil. Não tinha problema de se ter disponibilidade ou não de divisas conversíveis.A IugosláviaA Iugoslávia teve um processo um pouco diferente. A não ser a colaboração de plano no Porto de Bacar, que foi obra do Dr. Eliezer Batista, a contrapartida com a Iugoslávia era muito minimizada, por quê? Porque a Iugoslávia tinha poucos produtos para fornecer. Ela tinha aço, tinha navios. E isso, comprar navios é um problema que a gente não compra todos os dias. Precisa de um plano. Então, para efeito de relacionamento com a Iugoslávia o que funcionava mais eram as comissões mistas através das atas de compromisso, do que propriamente uma operação de compensação. E o mercado iugoslavo para a Vale do Rio Doce foi sempre um mercado pequeno, mesmo porque a siderurgia deles era uma siderurgia pequena. A Iugoslávia não tinha, como mercado, a importância da Romênia e da Polônia. TchecoslováquiaA Tchecoslováquia era o terceiro grande mercado. Um mercado muito fiel e as operações com a Tchecoslováquia eram feitas na base de minério de ferro, como contrapartida de equipamentos, não matéria-prima. A República da Tchecoslováquia é caracterizada pelo alto desenvolvimento industrial. Sempre foi, desde o tempo do império austro-húngaro. Ela tem uma tradição industrial e a base do fornecimento na contrapartida era equipamentos que se destinavam, primeiro, às empresas privadas. Então, a Vale tinha que fazer um esquema de negociação com as empresas privadas. Segundo, com empresas estatais. Na empresa privada, caracteristicamente, é o equipamento para a fábrica de cimento. Foi o que ponteou os negócios e nós tínhamos que entrar em contato com os fabricantes de cimento interessados em equipamentos tchecos que, diga-se de passagem, são muito bons equipamentos e que alimentaram uma parte da contrapartida que era dada pela República Tchecoslováquia para que ela pudesse comprar o nosso minério de ferro. Era um mercado que se limitava em torno de um milhão e quinhentas mil toneladas, mas era um mercado, como eu disse, fiel, garantido. O pagamento não era feito em clearing, mas em moeda conversível porque o acordo de clearing com a República da Tchecoslováquia foi denunciada em 1968. Daí em diante, toda a transação era cursado em moeda conversível. Além dos equipamentos para a indústria de cimento havia equipamentos para indústria hidro e termelétrica. Bons produtos. A Tchecoslováquia supriu aquilo que era importado, em termos de equipamento, quatro usinas termelétricas em Santa Catarina, na base do carvão catarinense. Grandes projetos. E forneceu também bons equipamentos para a indústria hidroelétrica e tudo isso contava-se como contrapartida.No caso do cimento, especificamente, era um grupo chamado João Santos que gostava muito do produto tcheco. A primeira importação que ele fez foi importação de conclusão de empresa privada. Ela achou que o produto era bom, era barato, e comprou. Porque ele tinha um grande programa de expansão de fábrica de cimento. As exportações dos equipamentos foram feitos dentro do quadro das contrapartidas.Bulgária e HungriaNos outros países, Bulgária e Hungria, o sucesso não foi comparativamente grande quanto a esses mercados que nós acabamos de comentar. Na Hungria, a coisa era um tanto quanto pequena e de intervalos. E com a Bulgária nós nunca conseguimos vender minério de ferro. A circunstância era de duas ordens: primeiro que a Bulgária tinha um grande fornecedor que era a própria União Soviética, e era, dos países do Leste Europeu, o mais dependente da União Soviética. E segundo porque ela tinha pouca coisa para vender como contrapartida. Era um pequeno mercado. A indústria siderúrgica búlgara era muito pequena. Eu acho que um, dois milhões e pouco de toneladas de aço. Portanto, era um mercado reduzido.A Hungria, de quando em quando, nos comprava. Agora, qual era a base da contrapartida na Hungria? A base eram os guindastes flutuantes, determinado tipo de produtos químicos e mais equipamentos óticos e para ensino. A Tchecoslováquia também interessava muito neste setor de equipamentos portuários, guindastes. Mas ela nunca foi grande fornecedora. A República Democrática AlemãEu gostaria de fazer referência a República Democrática Alemã, antiga DDR, que era a parte alemã comunista. Nós tivemos também bom contatos com eles, fizemos grandes negócios, proporcionalmente menores do que Polônia e Romênia, mas foram negócios apreciáveis. E a contrapartida com eles eram feitas através de importação de guindastes portuários. Portanto, utilização de terceira empresa, pela Vale do Rio Doce, para a compra, que foram os portos. Produtos óticos, que ela era uma grande fornecedora mundial, porque a Carl Zeiss ficou na parte da República Democrática Alemã em Iena. E a tradição da Carl Zeiss continuou embora houvesse, posteriormente, uma parte da empresa, vamos chamar assim, transferida "para a Alemanha Ocidental" que continuou com a tradição da Carl Zeiss no Ocidente. Mas, a outra, a genuína era na República Democrática Alemã. Então, ela era a grande fornecedoras de equipamentos óticos, fotográfico, lentes para ensino, para laboratórios. Tudo que fosse material ótico, realmente eles estavam com grande capacidade de fornecimento. Os dois produtos chaves, no caso, foram os produtos óticos e guindastes. Hoje ainda tem aqui no cais do porto, fácil de ver, os guindastes de origem da Alemanha. Se você notar lá está escrito no guindaste Tancraft, que era a empresa alemã fabricante de guindaste. Na Alemanha Oriental, nós tivemos grandes negócios na base desses produtos, como contrapartida. O resto era produtos aleatórios, mas os produtos-chave eram esses dois. O preço do minérioO minério tinha valor de mercado ocidental. Não havia redução de preços. Nós tínhamos contratos a longo prazo e a execução anual do contrato. A execução anual do contrato podia não estar de acordo com as tabelas esquematizadas no contrato a longo prazo, mas isso diminuiu um ano, compensava no outro e a coisa ia sendo equilibrada. Mesmo porque, a contrapartida também não era assim, uma contrapartida que fosse regular e igual todos os anos. Ela variava, principalmente quando se tratava de equipamento. Carvão não, você podia fazer um esquema de compra anual de vida bem definida, mas de equipamentos você tinha que depender de projetos, tinha que depender de programas específicos.As formas de contato Nós tínhamos a correspondência, tinha o telefax antigamente. E as ligações telefônicas que, realmente, era o grande problema. E nós tínhamos, como já foi informado aqui, a Vale do Rio Doce, uma empresa internacional sediada em Bruxelas. Primeiramente em Dusseldorf e depois mudaram para Bruxelas. Primeiro, a Itabira Eisenerz, e depois a empresa Vale do Rio Doce International, cujo a sede é em Bruxelas. E ela é que superintendia as questões contratuais e o cumprimento dos contratos. Então, era fácil. Qualquer tipo de comunicação feita através da Companhia Vale do Rio Doce sediada em Bruxelas.A língua, geralmente, era inglês. O inglês preponderava, mesmo porque não havia pessoas que falassem tcheco e nem polonês. O romeno ia bem. Então, exploramos as questões modelos do mercado e as contrapartidas principais.Projetos de cooperação portuáriaA Vale do Rio Doce continuou a ter interesse em determinadas projetos de infra-estrutura, principalmente portuária, nesses países. Eu citei o caso da tentativa de colaboração na Vale do Rio Doce no Porto de Constanta e, posteriormente, já no início, e depois da transformação política na Polônia, com o Porto de Gdanski. A Vale do Rio Doce se interessava em ter um porto de entrada para o Leste Europeu que fosse próximo, e o Porto de Gdanski na Polônia era o indicado. Nós fizemos um projeto, tivemos dois, três contratos preliminares e a Vale do Rio Doce tinha realmente já uma decisão de fazer investimento lá. Isso é uma colaboração direta da Vale do Rio Doce para a economia polonesa, e também do interesse dela em ter um porto maior que recebesse navios acima de 60 mil toneladas até 110, 150, porque ela ficaria próximo de determinados mercados de minério de ferro, como o caso da República Tcheca. É mais fácil para a República Tcheca receber minério através de portos poloneses, desde que devidamente operacionais, do que do Porto de Constanta. A Vale colaborou nesse procedimento com a Polônia mas, infelizmente, devido às circunstâncias em decisão, e complexidade de decisão do governo polonês, até hoje não saiu. O meu trabalho continua, pelo menos até a época em que eu trabalhei, a interessar o investimento no Porto de Gdanski. É a grande faceta internacional da Companhia Vale do Rio Doce. Ela está presente nos diversos mercados, não só como comerciante de minério, mas também como um investidor nas economias das nações em que ela tem interesse.Trabalho de equipeTinha um núcleo especializado dentro da Vale que eu coordenava, eu tinha a Companhia toda a minha disposição. Quer dizer, eu não fiz o meu trabalho sozinho. Eu fiz o trabalho com a Vale do Rio Doce, ou melhor, fiz o trabalho com base na Vale do Rio Doce. Toda a sua estrutura estava à minha disposição. Não só dado técnico, mas a cooperação nas diversas transações internas que eram realizadas. A Vale do Rio Doce nos dava todo o apoio. Evidente, porque era de interesse dela, desde a Diretoria, Presidência, até os órgãos setoriais. O Setor de Estrada, o Setor de Porto, o Setor de Mineração, tudo isso realmente nos dava apoio porque a Vale sempre trabalhou dentro de uma sistemática articulada, monolítica. Por isso que ela cresceu, ela desenvolveu, devido a esta concepção de sinergia e cooperação dos diversos órgãos da Companhia, como não podia deixar de ser. União SoviéticaEu queria fazer uma referência especial a União Soviética. Evidente que era muito difícil fazer exportação de minério de ferro a União Soviética, que é a maior produtora mundial. A União Soviética, na época, era um mundo, e continha as maiores reservas mundiais de minério de ferro. Mais ou menos umas 10, 15 vezes as reservas brasileiras. Era realmente uma aventura pouco provável vender minério de ferro para a Rússia. Nós então engendramos um esquema que era uma ampliação do comércio de importação de produtos e equipamentos soviéticos para o Brasil, com a colaboração da Vale do Rio Doce, indireta ou diretamente, mediante a reserva do mercado russo no Leste Europeu, isto é na Polônia, República Tcheca, DDR, Hungria, Iugoslávia, Bulgária e Romênia, de 10% do mercado. Então, ela nos cedia 10% desse mercado e nós daríamos a contrapartida direta a ela. Isso foi muito discutível, e na economia centralmente planificada é muito difícil, porque se não tiver escrito não anda. Ninguém decide. Todo mundo parte daquilo que foi devidamente assentado e articulado. Daí, não saí, eles não têm capacidade de inovação, por isso que a economia feneceu na União Soviética. Não progredia devido as circunstâncias. As regras não surgirem das idéias e das articulações individuais, mas sim de cima para baixo, e o Estado através da burocracia é que mandava. Bom, para isso, nós desenvolvemos uma série de tentativas de operação com a União Soviética. Primeiro, na parte portuária: tem um porto na embocadura do Danúbio que chama Ust-Dunaysk em que a Companhia Vale do Rio Doce propôs e até discutiu projetos com os russos para ampliação e remodelação do porto, como um porto alternativo, Porto de Constanta de Sud. Nós gastamos muito tempo de ter paciência, mas no final, não houve possibilidade porque a União Soviética, no final das negociações, exigia um investimento muito excessivo, porque ela queria que esse investimento cobrisse um projeto de ligação entre Ust-Dunaysk e uma outra cidadezinha na beira do Danúbio chamado Izmail. E aí não era porto, era outra coisa. Nós não chegamos a conclusão, mas continuamos a explorar projetos com a União Soviética, projetos de interesse brasileiro. Entre eles, eu cito o de produção de titânio metálico, esponja de titânio, porque a Rússia sempre foi uma espécie de inovadora na produção de titânio metálico. Como a Vale tinha numa cidadezinha, Tapira, perto de Araxá, uma jazida de titânio, nós, então, iniciamos a negociação com os russos para transferência de tecnologia. Gastou-se assim, três, quatro, cinco anos, e missão técnica para lá, missão técnica para cá, articulação governamental, articulação empresarial e acabou não dando resultado. Outro grande projeto explorado pela Companhia foi um projeto de indústria siderúrgica no Maranhão. Era uma indústria de um milhão e quinhentas mil toneladas para a produção de gusa destinado a exportação. Houve apresentação do projeto. Desse projeto participariam Brasil, a União Soviética capitaneando o projeto, a Tchecoslováquia e a Romênia. Em discussão, cinco, seis, sete anos, também não teve sucesso. Ainda com a União Soviética, a Vale procurou levar avante um esquema agrícola de construção de grandes empreendimentos de irrigação no Nordeste. A parte russa financiava, mas a coisa também não teve efeito por restrições das autoridades brasileiras, no caso, não as autoridades políticas, mas as autoridades encarregadas de construção da coisa que era a SUDENE. Também no Norte de Minas, tentou-se fazer na área chamada área seca do estado de Minas, Norte de Minas, uma tentativa de articulação de irrigação. Não deu certo. Depois, nós continuamos a trabalhar esse mesmo esquema com a Tchecoslováquia, também não deu certo. No Maranhão também, nós tentamos fazer um esquema com a República Tcheca de irrigação. No caso, a região parece-me que era São Bernardo, também não deu resultado. Então, havia uma pluralidade de esforços. Ainda com a União Soviética, nós tentamos fazer uma articulação de produção no Brasil de moinhos, produção no Brasil com tecnologia soviética de moinhos, chamado inerciais. É uma tecnologia diferente. Ao Invés de muito trabalhar com bola, ele trabalhava com o sistema de inércia que dava uma grande produtividade e uma qualificação muito boa para os moinhos. Também não conseguimos sucesso. Na União Soviética, nós exploramos várias possibilidades sem grandes sucessos. Também apresentamos um problema de importação de carvão de origem soviética através da Sibéria. Portanto, através do Porto do Mar do Japão, lá em cima no Pacífico. Era uma coisa que tinha senso porque a Vale do Rio Doce entrega minério no Japão, na Coréia e na própria China e, portanto, poderia fazer o transporte de retorno, cuja tarifa era muito barata de carvão para cá. Também não conseguimos sucesso. E essas tentativas na União Soviética, embora infrutíferas, alimentou, vamos chamar assim, um entusiasmo comercial e político daquilo que eu chamo a implementação de relações comerciais com a União Soviética. Ainda continuamos a ter interesse lá, mas isso é outra história. Com a abertura, com a democratização ou a liberalização de mercados no antigo mundo comunista houve necessidade de uma reformulação completa da estratégia.O fim dos regimes socialistas A democratização da economia mudou todo o esquema de relacionamento na venda de minério e, com isso, o pagamento não foi mais através de clearing, mas através de moeda conversível, o que dificultou um pouco a venda, porque eles tem escassez de moeda conversível para pagamento. Houve necessidade de se recompor o esquema na base também de compras. Utilizou-se além da compra direta, a exploração triangular. Isto é, a utilização de terceiras empresas nacionais ou estrangeiras no esquema. A Companhia Vale do Rio Doce comprava, vamos chamar assim, equipamentos para mineração de uma empresa americana, com a condição dessa empresa americana colocar através de suas sucursais ou não, dado que o mercado a Vale definia, o minério de ferro. Nós fizemos uma triangulação e houve várias operações com empresas americanas nesse sentido. Nós comprávamos equipamento delas, dava-nos preferência. Parte do valor disto, ela se propunha a vender em minério de ferro. Então, houve a exploração do sistema de triangulação. Ainda com base na escassez de divisas deles para pagar o minério de ferro, houve uma articulação que foi feita no meu tempo, quando eu voltei para a Vale do Rio Doce. Eu me aposentei, fui para a MBR num contrato de três anos. Depois que terminou o contrato, eu voltei para uma assessoria especial para a Companhia Vale do Rio Doce. Nesse meu trabalho, nós elaboramos um esquema de compras de trilho polonês não só para a Companhia, mas para outras estradas de ferro, contra minério de ferro. E está funcionando até hoje. Mas são coisas muito particularizadas. Inovar o processo, mas, devido à escassez de moeda conversível, a coisa continua, ou melhor, as operações continuam a ser triangularizadas. Não é como era antigamente. Hoje o pagamento é diferente, e as empresas lá são diferentes, não são mais monolíticas. A primeira coisa que foi privatizada foi a estrutura empresarial para o comércio, essas tais de tradings. A gente tem que entrar em contato direto com o consumidor, mas a sistemática continua basicamente uma espécie de compensação. Não tendo a compensação, o mercado enxuga.A aplicação de capital estrangeiro no Leste Europeu tem que levar em conta o ex-político. Político no sentido global da palavra que, inclusive, se associa com o aspecto econômico. A Rússia, por exemplo, deve quatro, cinco bilhões de dólares ou mais a República Federal Alemã. Investimento que fizeram lá e não tiveram retorno. Isso representa o risco. E nesse sentido a atuação hoje é uma atuação vigiada, ou melhor, ponderada. Coloca-se na medida em que tenha a certeza do retorno. A Alemanha entrou muito na República Tcheca no início, e continua a investir muito na Polônia.
TRABALHO ATUAL
Ainda no LesteEu continuo a trabalhar no Leste Europeu, embora amadoristicamente, sem ter um retorno imediato do meu esforço. Eu continuo a explorar os mercados do Leste Europeu, procurando criar no mercado brasileiro o nicho para as importações, como uma forma de se promover também a exportação de produtos brasileiros. No caso, agora, não estritamente o minério de ferro, mas os outros produtos. Eu tenho, por exemplo, o relacionamento, no caso específico, a Eslováquia que, por sinal, é um grande mercado para o minério de ferro. A maior siderúrgica do conjunto Tchecoslovaco fica na Eslováquia, que é uma siderúrgica chamada Cochinsk. Na Rússia, nós temos ido lá com freqüência anual e pretendemos participar de uma comissão mista que vai ser realizada em setembro agora em Moscou. A existência dessa comissão mista, e a existência desse esforço de ampliar as importações desses países como forma de gerar exportação de produto brasileiro, continua sendo feita com a base de entendimento no nível governamental. As comissões mistas continuam, quer dizer, não se desencarnou ainda do regime anterior. A gente está num processamento de modificação, de transição, mas ainda não se chegou realmente a uma abertura total de mercado livre, naquilo que concerne ao mercado externo. Tem que se fazer um esforço através de canal diplomático, entendimento inter-governamental, para estabelecimento de bases que levem à execução contratual de operações efetivas.Mudanças e permanências no Leste EuropeuÉ muito fácil fazer uma conversão de um Estado Capitalista, ou melhor, da economia de mercado, para uma economia centralmente planificada ou comunista. Mas, é muito difícil o contrário, porque tem que haver tradição, tem que haver a compreensão daquilo que é mercado, e isso realmente é muito difícil. E há uma espécie de amadorismo ainda, tanto na parte bancária como na parte comercial deles. Excesso de intermediação que não leva a nada. O diálogo tem que ser feito entre o produtor e o comprador. Se colocar excesso de intermediação, o que está ocorrendo agora, primeiro eleva o custo da operação; segundo, dificulta o entendimento, porque há o linguajar próprio da operação. Esse linguajar é entendido para aquele que compra, que necessita do produto e aquele que faz, que sabe o produto que está fazendo. Entrou intermediário, a coisa complica um pouco porque o linguajar já começa a ser diferente; segundo, o aumento de custo. Ele quer tirar parte do leão sem fazer muito esforço. A nova geração foi substituindo a antiga. A antiga foi se aposentando, mudou, realmente mudou bastante, mas continua a ser, o que eu chamo de "pára-funcionário público". Não se liberaram das coisas. Mas vamos ver. Eu acho que isso é um problema de tempo. Há muito saudosismo. De fato, hoje existe aquilo que não se conhecia anteriormente, que é o desemprego, e isso é o que eu chamo de uma imoralidade. O desemprego é uma imoralidade em qualquer regime que se considere. No regime capitalista diz que há uma faixa natural de desemprego que marca, vamos chamar assim, um movimento tectônico da economia. Mas, não pode ser em percentuais altos. Tem que ser numa base de 2%, 0,5%, 1%. É admissível porque é a transição entre um emprego para outro emprego, ou a transição entre acomodação de uma determinada tecnologia com a inovação de uma segunda. Isto é muito natural. Mas, havendo o desemprego como uma característica marcante de um processo econômico, é uma imoralidade. Eu acho que não é um problema de doutrina, mas é um problema de entendimento da figura humana, direitos da figura humana, que não pode ser compactada, humilhada dessa maneira: "Eu quero trabalhar e não tem onde!" Isso realmente é causa do saudosismo na mentalidade de todo mundo no Leste Europeu, e é natural. Tem que sofrer uma evolução na medida em que haja uma recomposição e a recuperação econômica. Mas, até lá, a gente não sabe se a capacidade de resistência humana persiste. Eu faço votos que sim.Freqüência das viagens Eu agora espacei muito. Eu estou indo uma vez a cada 12 meses, a cada 18 meses, mas eu continuo tendo muita ligação com o Leste Europeu. Eu ia muito freqüentemente, cinco, seis vezes por ano, quando eu estava na ativa. Eu viajava muito. Eu gosto de viajar, quer dizer, é uma vocação que eu descobri muito tarde, mas que realmente é uma vocação muito genuína, essa minha de estar sempre se locomovendo. Tenho um pouco o espírito de viajante, meio bandeirante.
OPINIÃO
Imagem do Brasil no exteriorO Brasil sempre foi um desconhecido e continua sendo hoje. O Brasil é notícia apenas quando existem catástrofes. Vê-se isso pelos programas hoje de televisão como, por exemplo, o transmitido através da Net, a BBC, que eu gosto muito de ouvir. A BBC, por exemplo, só inusitadamente traz notícia do Brasil, e é realmente lamentável, mas é assim. Inclusive, até no esporte. Por exemplo, as vitórias de Guga não são comentadas. As vitórias de um desconhecido tenista europeu, ou australiano, ou inglês são comentadas. Isso marca muito e dá um exemplo muito ilustrativo do desconhecimento do país fora. A BBC dedica em todo o período das 24 horas de transmissão, 15 minutos à Ásia e África. Ao Brasil, nada. Por ocasião da visita do Primeiro-Ministro Blair ao Brasil, eles deram uma noticiazinha pequenininha, restrita, como se não tivesse muita importância a visita ao Brasil. Já a Argentina, sim. Não sei se é por força da tradição do inglês na Argentina, porque grande parte da economia argentina foi construída através de investimento inglês, britânico, ou se é também por causa da última Guerra das Malvinas. Mas o fato é que eles deram ênfase à visita do Blair à Argentina e apenas uma pequena reverência à visita do Blair no Brasil. Isso é realmente uma ilustração significativa de como o Brasil é pouco conhecido no exterior. E além disso, há determinadas referências que não são lá muito felizes. Por exemplo, notícia da morte do Jorge Amado, comentada pelos jornais, o New York Times comparou o Jorge Amado ao Pelé. Não tem muito sentido! Isso é uma espécie de pouca importância que se dá ao país. Como o país é o país do futebol (em decadência, vamos dizer, mas ainda continua ser o país do futebol), o que tem que comparar o Pelé com um escritor? As duas coisas não têm nada a ver! Mas isso marca realmente a desproporção entre aquilo que o Brasil é e a forma como o Brasil é considerado.Os problemas da União SoviéticaAs minhas observações me levavam, de início, à conclusão de que uma revolta ou uma alteração de sistema na União Soviética seria muito difícil porque o Estado era realmente policialesco. Isto é, a polícia entrava, o controle entrava em todos os campos: na escola, no lar, nas fábricas, nas fazendas; e essa minha idéia também foi reforçada por leituras de uma revista publicada por um grupo de intelectuais russos que conseguiram fugir da União Soviética, e que se concentraram em Universidades alemães e depois em universidades francesas. Eles faziam a publicação de uma revista mensal dedicada aos negócios políticos e exploração da evolução no Leste Europeu. Um dos grandes mentores dessa revista, desse movimento, chamava-se Zenoviev, que é um nome muito comum na União Soviética, e ele escreveu, numa ocasião, uma série de artigos dizendo que o mundo ocidental estava um tanto enganado quanto ao efeito da propaganda, e efeito de demonstração, para levar a União Soviética a uma revolução. Por quê? Porque tudo estava controlado. Entretanto, eu senti sinais de modificação do regime do Krushov, e depois no início, isso naturalmente, da "Perestroika" com o Gorbachov. Eu tomei conhecimento, em uma das minhas viagens à União Soviética, da existência de um órgão de estudos econômicos, políticos, que trabalhava à margem dos ministérios estruturais e eram uma espécie de órgão meio secreto. A opinião pública não tinha conhecimento, mas nós tomamos conhecimento por força de nosso relacionamento com as missões soviéticas que vinham aqui discutir conosco os projetos, e através de umas informações que nos foram dadas pela embaixada do Brasil em Moscou, a respeito desses movimentos, e nós tivemos uma reunião. Foi uma reunião-almoço, uma ocasião, neste órgão, que não ficava em nenhum ministério, mas num ministério isolado em que eles fizeram umas referências já da necessidade do estabelecimento do início de novas regras, em que fosse possível implantar no regime centralmente planificado, o regime comunista, um sistema de mercado mais aberto. Por quê? Porque havia uma distorção muito grande de preço e de consumo. Eles deram como exemplo, o seguinte: o excesso de demanda para carne que não correspondia realmente a um mínimo de consumo per capita. Era um excesso de demanda. Para trigo, idem. Eles achavam que o preço estabelecido em normas pré-fixadas, muito baixo, levava o consumidor a não dar importância aos excessos que ele comprava e aos desperdícios que ele, usualmente, fazia. Eles achavam que esses dois exemplos de trigo e carne eram muito ilustrativos para a necessidade da União Soviética pensar na criação de uma economia de mercado interno, naturalmente, ainda sob controle dos órgãos de planejamento, centralmente falando. Mas, depois eu li, ou melhor, não li. Eu não comprei um livro, mas tomei conhecimento das suas bases. Um livro escrito por uma escritora francesa, historiadora, que se especializou em estudar a história do regime comunista. E o nome dessa escritora é Hélène Carrère, e eu ia passando por uma livraria, eu sempre levava a minha senhora nas minhas missões, e sempre fui uma espécie de traça de livraria. Então, eu estava fazendo uma visita numa livraria em Paris, quando ela me chamou a atenção para esse livro da Carrère, e o título do livro era L'Empire éclaté. Eu olhei, vi a capa, olhei dentro do livro, achei que era propaganda, uma forma de se vender o livro, e que aquela teoria dela sobre a transformação da União Soviética num país democrático era um sonho, uma ficção. E ela estava certa, ela estava certa! São essas coisas surpreendentes que a gente tem que ter muita base de conhecimento, detalhes, e também muita sensibilidade a respeito da interpretação dos acontecimentos. Eu não previa porque a propaganda era uma propaganda monolítica. Era uma propaganda concentrada, e de fato a presença do Estado, da autoridade, era total. Ela interferia em tudo, até na educação da criança. Quem educava a criança lá não era a família, era o Estado. A criança ia para a escola, ficava na escola. Era uma forma muito interessante de instruir, mas não é uma forma muito interessante de educar. E uma coisa que eles levavam muito a sério era justamente a instrução que, de fato, é uma das boas coisas da antiga União Soviética e países satélites. Era a escola. Agora, o esquema era um esquema muito intelectualizado. Não era nada prático. Isso explica porque a União Soviética produzia muito cérebro, muita teoria, gente muito capaz teoricamente, especulativamente, mas que não aplicava, com a intensidade da capacidade dos seus intelectuais e técnicos, o conhecimento em coisas úteis no termo econômico da palavra. E isso é um problema de mentalidade. Eu li umas referências de um grande escritor romeno, que era ao mesmo tempo um casamento de filósofo com intelectual, e ele produziu um grande livro que é considerado um marco da literatura húngara, que se chama a Tragédia Humana. E ele, como intelectual, meio filósofo - ele é do século passado, portanto, ainda fora do regime comunista -, explicou, numa ocasião, a diferença entre a mentalidade do Leste Europeu e a Europa Central, incluindo Rússia e a mentalidade do Ocidente. Em resumo, para não alongar muito, ele achava que o Ocidente era muito aristotélico, seguia realmente a lógica aristotélica, o que é verdade. Inclusive, a própria igreja. E no Oriente eles são muito platonistas, isto é, seguem a teoria de Platão, muito espiritualista e, portanto, pouco objetivos. E, de fato, isso reflete um pouco a evolução da Rússia, da União Soviética, de preparar muito bem os seus filhos e tirar pouco proveito tecnológico daquilo que eles são. É diferente do americano, que é especialista no know how, aprende o negócio, quer aplicar e aplica bem, ao passo que na Rússia se foge das questões. E ele ainda foi mais longe, diz o seguinte: "A grande diferença entre a igreja ortodoxa e a igreja católica é uma diferença de enfoque filosófico. A igreja católica é muito aristotélica, e a igreja ortodoxa é muito platonista." E é verdade, em tudo. Isso de alguma maneira, se a gente for analisar o fenômeno russo na base desses princípios filosóficos, se chega a conclusão de que ele sabe muito bem preparar, na base acadêmica são insuperáveis, mas não sabem aplicar. A educação, vamos chamar assim, atende mais ao espírito egoísta do indivíduo, por mais contraditório que pareça. Por exemplo, no regime coletivista, a satisfação do conhecimento ser individual, individualista. Bom, isso é para chegar à conclusão de que ela não acompanhou a evolução econômica por motivação de não aplicação ou de não desenvolvimento tecnológico, na medida da necessidade de uma evolução econômica. Evidentemente que existe uma outra série de fatores econômicos, cujo o cerne é a economia centralmente planificada que destoa tudo. Mas, ela explica a razão de ser desse distanciamento mais do que atraso da economia soviética da economia ocidental. Eu creio que outra razão é o seguinte: eles se concentravam muito na economia de defesa e esqueciam o resto. Quer dizer, a nação trabalhava para o investimento de defesa e como tudo era centralmente planificado, você não tinha, no caso, por exemplo, da economia ocidental, a participação de empresa privada no esforço de defesa. Os Estados Unidos, todo ele feito na base de terceirização com empresa privada. As empresas privadas que constróem aviões e tanques, e na União Soviética não. Então, aquele esforço concentrado na defesa, e que exigia conhecimento e aplicação tecnológica, ficou restrito ao campo de defesa sem que isso fosse difundido na economia global russa. É uma forma de explicar esse atraso.
FAMÍLIA
Eu, infelizmente, sou viúvo. Isso me choca muito porque eu compartilhava todos esses dramas de ordem política e econômica com a minha mulher porque eu a levava. Todas as minhas viagens, eu a levava. Eu tinha só uma filha e a filha ficava aqui com os avôs maternos e nós íamos usufruir das viagens. Ela mais do que eu porque, enquanto eu trabalhava, ela ia se ilustrando na cultura de cada país. Ela gostava muito, por sinal, e se adaptava muito bem com as línguas. Existe uma forma muito interessante de relacionamento para quem não se entende lingüísticamente que é a mímica ou uma forma de se expressar através de simplificação de estrutura da linguagem, e ela tinha essa capacidade, de modo que na Rússia, enquanto eu estava trabalhando, ela estava fazendo visitas, tomava metrô, os ônibus, sem conhecer muita a língua. Depois, ela que me dava as indicações dos lugares mais interessante para ir.
AVALIAÇÃO
Trajetória de vidaEu acho que o essencial na condução de uma vida profissional não é propriamente um projeto. Quer dizer, o projeto é um objetivo longínquo para conquistar, mas são as circunstâncias que vão levando a realização, não realização e a mudança de rota. Se eu tivesse que voltar, eu escolheria o mesmo caminho. É uma atividade que não me tornou uma pessoa rica, em termos financeiros, mas que me tornou uma pessoa muito rica no conhecimento das coisas e que me deu uma capacidade de análise muito objetiva das evoluções e dos problemas políticos e econômicos que as nações enfrentam. E viver de uma forma, há um atrativo, uma espécie de atração daquilo que é desconhecido e que no fundo é uma bússola do comportamento humano. Desde as épocas imemoriais, o homem sempre teve um élan para deslocamento. Desde dos primeiros indícios de civilização com a mitologia grega, movimentação de egípcios, fenícios etc., o homem sempre procurou uma forma de deslocamento. E continua assim. No tempo da colonização no Brasil era os Bandeirantes que queriam alargar as fronteiras, mas eles não pensavam no alargamento de fronteiras. Eles pensavam na movimentação deles para áreas ainda desconhecidas. E hoje, a ida a Lua, Marte, é uma aspiração atávica que sempre existiu no homem. Ele quer sempre ir para frente. Como já explorou a Terra, ele agora vai para o espaço. Isso é muito peculiar. Força telúrica da ValeEu queria fazer uma referência específica a Companhia Vale do Rio Doce como instituição e como um ente que consegue impressionar as pessoas que convivem direta ou indiretamente com ela. É interessante a força de atração, de convencimento que a instituição exerce sobre os seus funcionários. Existe um filósofo alemão, chamado Ernst Cassirer, que analisou a tendência, a força e o destino germânico como uma espécie de força telúrica da Terra. Então, mutatis mutandi, a Companhia Vale do Rio Doce tem essa força telúrica e isso, no caso, tem muito a ver com a sua principal atividade que é a atividade de mineração, isto é, terra. E o funcionário da Vale, ele entrosa com a Companhia e assimila a empresa como se fosse uma segunda família. Isso dá e deu à Companhia Vale do Rio Doce, enquanto empresa estatal, um sentido de cooperação entre os funcionários que resultou numa evolução progressiva e no desenvolvimento muito estável e seguro da Companhia nas suas atividades, e que resultou numa figura de empresa estatal respeitável, não só no Brasil, mas do mundo. Ela é muito bem conceituada no mundo de negócios. Essa característica explica, de certa maneira, porque uma entidade estatal geralmente ineficiente por força da burocracia e da falta de objetivo econômico do Estado, e compreensão dos negócios micro-econômicos, e uma empresa dessa natureza crescer, desenvolver e ter uma posição no mundo internacional naquilo que diz respeito a sua atividade principal. Eu atribuo isso a essa força telúrica da Companhia, que é o orgulho que ela impõe e o funcionário assimila de trabalhar na Companhia Vale do Rio Doce. O ambiente é um ambiente realmente muito compreensivo, há uma cooperação irrestrita dos diversos órgãos, tudo muito bem articulado e cada sucesso da Companhia representa um orgulho para o seu funcionário, desde o mais simples até os seus diretores. Isso foi a grande razão do desenvolvimento da Companhia e dela ter ultrapassado as crises - que sempre existem, são conjunturais - e ter desenvolvido a um nível que ela conseguiu desenvolver mesmo sendo uma Companhia estatal ligada diretamente ao governo. Eu quero com isto prestar uma homenagem ao corpo da Companhia e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que eu aprendi muita coisa, eu tive muito sucesso na minha vida profissional, graças ao fundamento que a Companhia me proporcionou, sem o que eu teria realmente fracassado. Esse sucesso que eu descrevi a respeito do aumento e do desenvolvimento do comércio com o Leste Europeu não foi produto de um esforço pessoal. Se houve algum mérito era apenas esquemático, isto é, as idéias que eu apresentava que era a minha obrigação. Mas, foi um esforço conjunto da Companhia que soube entender a importância dos esquemas apresentados e soube articular internamente no plano, não só governamental, mas no plano de cooperação que ela procurava obter com as empresas. Isso não foi, nem podia ser uma obra de um único indivíduo, mas uma obra de compreensão da coletividade da Companhia que entendeu isso e que deu apoio e que trabalhou nesse sentido. O sucesso todo é da empresa e não do cidadão que, eventualmente, exerceu uma determinada função ligada a esse esquema.
DEPOIMENTO
Eu achei muito meritório, no sentido realmente construtivo, porque as coisas não podem morrer na base do registro em papel. Há necessidade de realmente haver um testemunho de cada pessoa que viveu intensamente o problema, os fracassos, o sucesso da Companhia, como forma de registro vivo do que se passou e como forma de um testemunho pessoal que, muitas vezes, tem uma interpretação variada, mas que a síntese realmente é uma síntese positiva. Fazer história na base de documentação morta é uma forma um tanto passiva de interpretar e contar acontecimentos. Geralmente, quem pesquisa história não encontra todos os elementos informativos que deseja ou que deveriam estar presentes. Há uma tendência humana de dar muita ênfase às questões negativas, e os registros que se fazem por escrito, crônicas ou documentos, sempre dão mais ênfase aos problemas negativos do que as soluções encontradas. Isso no dia-a-dia é uma forma cultivada pelo homem, desde os tempos dos hieróglifos, em que ele se impressiona muito com as tragédias, os problemas passados e não com aquilo que foi feito ou construído. Não é só um problema contemporâneo. Eu li um livro sobre um período da história na Europa. A autora, que é uma historiadora, fez uma pesquisa que vai desde a Idade Média até a Segunda Guerra, a Primeira Guerra Mundial, explicando ou analisando a história européia através da vida de uma família. Então, ela diz o seguinte: que na pesquisa que ela fez, que durou sete anos, ela encontrou um excesso de informação negativa e uma escassez de informações positivas. Ela parte daí uma referência à modernidade, e diz o seguinte: "Se assemelha ao comportamento da imprensa americana, que só costuma dar ênfase e continuidade às notícias negativas e não às positivas." Este método que se está utilizando de contar a história de maneira viva, realmente é uma forma de você tirar as coisas positivas e colocá-la ao conhecimento da posteridade. O grande mérito, portanto, dessa forma de fazer história através do testemunho pessoal, é muito importante, e é uma maneira que está sendo seguida no Brasil como uma metodologia de contar história. E o historiador, então, vai ter acesso realmente às informações vivas daqueles que participaram e não apenas daqueles que observaram.
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