P1- Boa tarde, senhor Fábio. A primeira coisa que eu queria fazer para o senhor é o seu nome completo, a data do seu nascimento e o local do nascimento.
R- O meu nome é Fábio Ravaglia. Eu nasci em primeiro de maio de 1930, aqui na capital de São Paulo.
P1- Senhor Fábio, como é que chamava...Continuar leitura
P1- Boa tarde, senhor Fábio. A primeira coisa que eu queria fazer para o senhor é o seu nome completo, a data do seu nascimento e o local do nascimento.
R- O meu nome é Fábio Ravaglia. Eu nasci em primeiro de maio de 1930, aqui na capital de São Paulo.
P1- Senhor Fábio, como é que chamavam seus pais?
R- Desculpe, eu não ouvi.
P1- Como se chamavam seus pais?
R- Ah, o meu pai chamava Francisco e minha mãe Bianca.
P1- O que eles faziam?
R- O meu pai era contador, ocupava um cargo de chefia na época na Light. Naquela época, The São Paulo Trade Light and Power Company Limited. (riso) Chamada vulgarmente de Light. E minha mãe era do lar.
P1- E eles eram do Brasil, eles eram brasileiros?
R- Meu pai era italiano e veio para o Brasil já adulto. E minha mãe era brasileira filha de italianos.
P1- E o senhor sabe de alguma história, por exemplo, seu pai quando veio ele foi para, por que ele veio para o Brasil? O que trouxe ele aqui?
R- O meu pai morava no norte da Itália, na cidade do Bolonha. Na época em que começou o movimento fascista na Itália. O movimento, começou o movimento fascista. Um movimento bastante brutal com... E esse movimento chegou ao poder e ficou no poder no início da década de 19 20 até 1940 e pouco, durante a Segunda Guerra Mundial. E era um clima assim, o meu pai via um clima assim estranho com a... Politicamente, em que as pessoas assim sentiam que estavam se encaminhando para um regime de ditadura. De falta de liberdade. Embora o meu pai fosse cidadão comum. Não era nem uma pessoa envolvida com política ou com movimento, coisas assim. E aliado também a uma certa crise econômica na Itália. Ele veio para o Brasil. Na Itália ele trabalhava em uma estatal, numa empresa, empresa de ferrovias. Uma ferrovia estatal. E no Brasil ele veio e encontrou imediatamente emprego. Porque naquela época havia falta de pessoas com uma certa formação. Não era o caso dele que já era contador. E eu lembro que ele ficou abismado ao chegar ao Brasil. Com o fato das coisas aqui custarem nada comparado com o que custava na Itália naquela época, 1920 e pouco. A vida era extremamente barata. Comidas, aluguéis, objetos, enfim. Era uma vida extremamente barata. Então o imigrante que viesse e tivesse uma qualificação encontrava emprego e gastava pouco. Muito menos que gastava na terra original dele, teria dificuldade de emprego e uma vida muito cara.
P1- Senhor Fábio, e onde os seus pais foram morar logo quando casaram?
R- Os meus pais... Minha mãe foi criada no Bom Retiro. E meu pai também foi morar lá. Porque o Bom Retiro à época era um bairro de italianos. O Bom Retiro foi um bairro de italianos. Depois de judeus. E agora virou um bairro, depois foi um bairro durante um curto tempo, de gregos. E atualmente é um bairro de coreanos e alguns remanescentes judeus. Depois eles foram morar na Vila Mariana.
P1- E o senhor nasceu na Vila Mariana?
R- E eu nasci na Vila Mariana.
P1- Como é que era, como que era o cotidiano da casa do senhor?
R- Era um cotidiano simples. Minha mãe dedicava-se às tarefas domésticas. Sempre teve uma, havia sempre uma ajuda assim externa. Conosco morava uma tia, irmã do meu pai, solteira. Que veio da Itália para morar com ele. E era um cotidiano muito simples, mas muito seguro, muito tranquilo. Meu pai tinha um emprego na Light que garantia a renda que dava para fazer uma vida de cidadão de classe média. E um fato interessante, ele com poucos anos de casado, ele já construiu a casa dele. Também ali na região. Ali na Aclimação. Era Vila Mariana e se mudou para a Aclimação. E um fato interessante na nossa vida e que eu e meus dois irmãos - eu tive dois irmãos. Um médico, que é vivo. O outro também engenheiro, que é falecido. Eu, é que nós éramos bilíngues. Nós falávamos italiano em casa e falávamos português fora de casa. E eu não me lembro quando é que eu aprendi o italiano, quando é que eu aprendi o português. Aprendi as duas línguas juntas. E nunca me aconteceu de trocar as palavras. Sempre falei português falando português e sempre falei italiano falando italiano.
P1- Mas isso na casa do senhor falando italiano?
R- Falava italiano correntemente. Com meu irmão vivo ainda falo italiano. É com ele, mais reminiscências da nossa época, da nossa infância.
P1- E assim, o quê que o senhor se lembra dessa região da Vila Mariana e da Aclimação quando o senhor era criança? Como que era esse local que o senhor morava?
R- Ah, uma coisa que chama a atenção é o seguinte: havia em primeiro lugar, várias classes sociais, digamos assim, coabitando o mesmo bairro, uma mesma rua. Então em uma mesma rua havia uma casa grande rica de uma família abonada. Havia casas de classe média, como era o nosso caso. Havia casas de pessoas de nível operário. E havia até cortiços. Em uma área relativamente pequena. Então não havia como é hoje em dia, digamos o Morumbi, que só tem gente rica, favela do Jardim Ângela só tem pobre, além de outras coisas piores. E também um outro fato que, nessa coexistência de várias classes, havia também gente, pessoas das mais variadas origens. Nós éramos de origem italiana. Tínhamos vizinhos de origem portuguesa. Tínhamos, tinha até uma família sueca. Tinha uma família dinamarquesa morando na mesma rua. Espanhóis, também havia uma família de espanhóis. Enfim, havia uma presença muito grande de famílias de origens diferentes e também de situação social diferente numa coexistência assim pacífica. A cidade era completamente diferente. Ali na Aclimação, Vila Mariana, também era comum a existência de chácaras geralmente de portugueses que vendiam verdura, vendiam flores, enfim, o abastecimento da cidade era...
P1- O senhor chegava a ir nessas chácaras?
R- A gente ia nessas chácaras comprar verduras, comprar flores para enfeitar a casa no dia de festa. Havia assim, era uma cidade totalmente diferente.
P1- Como é que eram as brincadeiras da infância?
R- A grande, o grande divertimento dos meninos da minha época era jogar futebol na rua, né? Como as ruas tinham pouco movimento, muitas nem eram calçadas. O futebol de rua era um divertimento normal de pessoa assim de nossa classe social e de outras classes assim aproximadas. Havia também, como a cidade tinha muitas áreas vazias, havia muito pequenos campos de futebol, em vales, em várzeas onde a meninada ia jogar. E aos domingos esses locais de várzea eram, jogavam adultos no lugar de jogarem crianças. Era o grande divertimento. E uma posição muito boa era o dono da bola. E era, a maioria daquelas crianças, as coisas eram tão diferentes, não era comum uma família que tinha dinheiro para comprar uma bola para a criançada brincar. Então o menino que tivesse a bola sempre tinha uma posição, embora podia ser o pior do mundo, sempre havia um lugarzinho para ele jogar. E eu era péssimo, para falar a verdade.
P1- E o senhor era o dono da bola.
R- Às vezes éramos os donos da bola. Mas os meus irmãos jogavam muito bem, salvavam a família. Salvavam a pátria. A maioria também, um fato que chama a atenção, a maioria dessas crianças que moravam no nosso bairro estudavam em escolas públicas. Nós estudávamos em escola privada. Eu comecei a estudar no Colégio Cristo Rei. Depois no Externato Cristo Rei. Depois no Colégio Santo Agostinho. Depois fui fazer o colegial no Colégio São Luís na Avenida Paulista. Mas a maior parte das crianças estudava no Grupo Escolar, na Avenida Paulista, que é na região na extremidade da Avenida Paulista, junto ao Paraíso, havia o Grupo Escolar Rodrigues Alves, que era a escola que a maior parte dos garotos e das meninas do nosso bairro iam. E eu me lembro perfeitamente que eram escolas muito boas. Aquela criançada aprendia mesmo a ler, escrever e saíam com quatro anos apenas de escolaridade. Tinham uma razoável formação porque eram escolas muito sérias. Os professores, principalmente mulheres que se empenhavam muito assim na profissão deles.
P1- Como é que era para o senhor ir para a escola na época? Com quantos anos o senhor foi?
R- Eu fui para a escola com cinco anos.
P1- Qual a primeira memória que o senhor tem da escola?
R- A primeira memória, eu me lembro que era um lugar muito agradável. Era um casarão antigo que as freiras tinham transformado em externato. Esse externato existe até ainda hoje. E é grande, hoje se chama Colégio Cristo Rei, é na Avenida Rodrigues Alves. A minha sensação era um lugar agradável. Era um, esse casarão tinha um enorme de um jardim, umas árvores grandes e essas árvores eram muito perfumadas assim. Naquele tempo não havia poluição, as árvores assim, aquele jardim era muito perfumado, o chão era sempre úmido, cheio de pedregulhos. Então eu tenho uma visão agradável daqueles tempos, das freiras que tomavam conta da escola - eram muito carinhosas com a meninada. Uma sensação muito boa.
P1- E como é que era o cotidiano na escola?
R- No começo...
P1- O cotidiano ao longo dos seus anos escolares. Como que o senhor foi caminhando dentro da escola?
R- Bom, eu sempre fui um aluno bom. Não excepcional, mas sempre fui um aluno bom. Sempre estava entre os primeiros colocados e passava com facilidade. E esse, a lembrança que eu tenho da escola é que havia uma variação muito grande de qualidade de professores. Isso é uma coisa que me marcou. Nós tínhamos, por exemplo, um professor de francês no ginásio que em quatro anos de ginásio que se aplicasse saía de lá falando francês. Hoje em dia as pessoas, falar em quatro línguas no ginásio, que se ensina em quatro anos a falar uma língua, não existe, né? Pelo menos eu tenho sentido. Então havia professores excelentes que deixavam a gente marcado. Como esse professor de francês, professor de português que eu tive, muito bom. E por outro lado havia outros professores também muito fracos, de formação intelectual assim muito precária. De uma forma geral a disciplina era dura. E estudei sempre em colégio de padres. No Colégio Santo Agostinho e no Colégio São Luís era um colégio onde a disciplina era muito rigorosa. No Santo Agostinho você no ginásio a disciplina era mais ou menos imposta; no São Luís a disciplina era aceita, quem não concordava saía fora. E quem ficava lá se aceitava aquela disciplina, que era uma disciplina não de perseguições, de... Eu vejo às vezes, pessoas falam de colégios religiosos, que os alunos são submetidos a sevícias, a isso... Não tinha nada disso, não. Realmente aqueles padres implicavam quando o aluno realmente era um aluno que dava um trabalho danado. O aluno normal passava tranquilamente os seus anos lá aprendendo, evoluindo sem maiores preocupações.
P1- Senhor Fábio, qual seria a memória mais forte que o senhor tem da sua infância? Aquele que o senhor se lembra sempre?
R- A lembrança mais forte… [pausa] Tem uma lembrança é um negócio até meio, não sei se é como é que seria, me escapou o termo. Bom, não vou usar um termo errado, é melhor dizer o que é, do que utilizar um termo errado. Quando eu tinha sete anos morreu o meu avô materno. Meu avô era o único, foi o único avô que eu conheci. Todos os outros meus avós morreram muito novos, eu não conheci nenhum deles. Os do meu pai, os pais do meu pai nem chegaram a vir ao Brasil, quando ele veio ao Brasil ele já não tinha os pais. Eu me lembro quando morreu meu avô em 1937. Eu tinha sete anos e a coisa que mais me impressionou é que ele foi enterrado no caixão. Eu achava que um caixão de defunto que a gente via. Porque os funerais naquele tempo, eram muito públicos, não? Passava um funeral na rua, todo mundo parava, olhava. Eu achava que o caixão era assim tão valioso, como é que se deixava embaixo da terra? Sempre achava que, usando um termo que naquela época não existia, eu achava que o caixão era uma coisa reciclável. É uma imagem que nunca mais saiu, é esquisita, mas é isso. (riso) Como eu nunca fiz psicanálise não sei como é que isso seria interpretado. Então eu acho que porque a sociedade não era uma sociedade de consumo. Esse era um fato importante da vida da gente: a sociedade não era uma sociedade de consumo. A gente reciclava as coisas, gastava pouco, tudo era muito regulado. Eu vejo hoje em dia pessoas de posse modestas, mas que parecem sempre estar gastando mais do que podem. Na época, as pessoas eram muito mais austeras nos seus gastos, embora a vida, como eu disse, era uma vida mais barata na alimentação, etc. Um outro divertimento que havia mais de outras crianças do que de nós, um grande divertimento que havia para as crianças da época era a matinê de cinema.
P1- E o senhor ia assistir?
R- Às vezes ia, mas não, nem sempre. Mas havia muitos cinemas nos bairros. Se eu for pensar no número de cinemas que fecharam da minha infância até hoje, deve chegar a uma centena. Porque tinha cinema em tudo quanto é bairro. No nosso bairro que não era um bairro tão populoso assim tinha muitos cinemas. A matinê de domingo era muito procurada porque tinha dois seriados e mais dois filmes. Então era um programa de horas. E custava pouco. Eu me lembro de uma vez que paguei, pagamos 700 réis, são 70 centavos hoje. Inclusive acho que com o poder aquisitivo é realmente uma ninharia.
P2- Mas aí o senhor tinha quantos anos nessa época?
R- Aí nessa época eu tinha 12, 13 anos.
P1- E assim, vamos pensar um pouco na juventude. O quê que o senhor fazia na sua juventude? Quais eram as diversões, como que eram os grupos que tinha?
R- É, eu realmente não tive uma juventude muito cheia assim de divertimentos, de aventuras, etc, porque terminando o colegial eu entrei na Escola Politécnica - fazer o curso de engenharia química. E o nosso curso tinha aula das oito da manhã de segunda-feira às seis da tarde de sábado. Isso de segunda a sábado. Então isso já diminuía um pouco o espaço, o tempo, não? O meu curso era assim, eram 48 horas de aula por semana.
P1- Em que ano o senhor entrou na Politécnica?
R- Não entendi.
P1- Em que ano o senhor entrou na Politécnica?
R- Entrei na Politécnica em 48, 1948. Tinha 17 anos, tinha 18 anos incompletos.
P1- E como é que era o cotidiano na Politécnica?
R- O cotidiano era um cotidiano de muita tensão, de muito trabalho. Era uma escola muito exigente, se o aluno bobeasse ele ficava para trás. Então havia uma exigência muito grande de estudos, de dedicação. Não dá para brincar como se diz. E então, nesse, com esse ritmo de estudo assim o espaço não era muito grande. Acrescentou-se a esse fato para mim e para muitos e muitos alunos, quase a totalidade, que o serviço militar era feito no CPOR e o CPOR tinha um excelente horário. Excelente entre aspas, né? Porque era aos domingos e nas férias, durante dois anos. Então era um negócio pesado. A gente durante o ano escolar ia na escola que era de 48 horas de aula por semana, a minha escola. E nas férias aos domingos a gente tinha que levantar de madrugada para ir ao quartel em Santana. Ainda está lá o quartel do CPOR. Eu fiz 50 anos de formado no CPOR. Fui lá, o quartel é no mesmo lugar e praticamente nas mesmas condições. Então foi um período de muita exigência. O meu divertimento principal no meu caso, havia alguns alunos que faziam esporte, mas não era muito, não. O divertimento principal do aluno na época além de ir ao cinema, ter algum namorico ou coisa assim, eram os bailes. O baile na minha época era uma coisa assim, tinha baile de calouros, baile de formatura, baile da primavera, enfim. (riso) Esses bailes eram em clubes, assim... Na Avenida Paulista tinha um clube, o Clube Homs. Era famoso. Quem tocava nesses bailes era o Silvio Mazzuca, que morreu recentemente. Ele morreu não sei com que idade tinha. Porque ele já era um veterano, ele já era um homem adulto que tinha a sua orquestra, quando eu era um jovem. Então, e outras orquestras no estilo dele, tocavam aquelas músicas americanas, mexicanas, assim. Então era, algumas brasileiras. Era o grande divertimento, o baile.
P1- Nos bailes eram os casais, todo mundo juntinho, dançando ao som da orquestra?
R- É, é. Eram bailes assim, não é, eram mais ou menos abertos, digamos. Eram frequentados pelos mesmos grupos. Mas eram lugares, eram assim, enfim, eram frequentados por estudantes, em sua grande maioria, ou gente recém formada. Porque naquela também o pessoal dois ou três anos depois de formado estava todo mundo casado, ou quase todo mundo casado.
P1- Como é que o senhor conheceu sua esposa?
R- Conheci num baile desses. (riso)
P1- Como é que foi esse baile, o senhor se lembra?
R- Lembro, eu fui a um baile no Clube Homs e minha mulher também foi. Ela era recém formada em Letras. E nos encontramos e casamos, acho que uns sete ou oito meses depois que nos conhecemos. E fomos morar em São Miguel, onde eu já trabalhava na Nitro Química.
P1- O senhor trabalhava na Nitro Química?
R- É, depois de um ano em uma empresa de cerâmica em Mauá eu fui trabalhar na Nitro Química. E eu morava ao lado da fábrica. Aliás, todos os, praticamente a totalidade das pessoas moravam, quase a totalidade das pessoas moravam lá. E os que vinham de fora, engenheiros, químicos, técnicos, pessoas da administração, alguns que eram aqui de São Paulo acabavam se deslocando, se transferindo para lá, né? Por causa do horário muito apertado. Entrávamos às sete horas da manhã. Então para morar em São Paulo precisava levantar de madrugada, né?
P2- Senhor Fábio, eu quero voltar um pouquinho lá atrás. Pensar um pouco a sua carreira, o quê que levou o senhor a escolher a engenharia química?
R- Quando eu estava no colegial, no segundo ano eu tive um curso de química orgânica. Essa questão eu falei de professores que impressionavam a gente. Tive um curso de química orgânica que foi um dos melhores que já tive, que eu tive no meu período escolar, e achei aquilo fantástico. Então estudei aquilo. Fui um ótimo aluno, um bom aluno de química orgânica. Então a química me atraiu muito. Achei a química é o que eu quero ser. Havia duas hipóteses: ir para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que tinha o curso de química, mas era um curso de química pura - de lá a pessoa saía ou pesquisador ou professor, isso eu não queria. Eu queria uma vida mais prática. Então fui estudar Engenharia Química na Politécnica.
P1- E o vestibular nessa época era muito concorrido?
R- Ele não tinha tantas pessoas como hoje. Mas era um vestibular, eu acho que para 150 lugares concorriam 800 a 900 pessoas. Mas era um exame que tinha a nota mínima. Então era preciso tirar nota mínima três em cada matéria. Eram quatro matérias. E nota mínima cinco na média. Então precisava satisfazer um mínimo para entrar. Não é que os primeiros 150 entravam, não era assim. Entravam aqueles que conseguiam a nota mínima três individualmente em cada matéria e nota mínima cinco na média das quatro matérias. E com isso sempre sobravam vagas. O que dava margem a uma série de brigas, que o pessoal achava que era um desperdício deixar vagas nas escolas. E era uma das fontes assim de problemas no sistema de ensino universitário na época.
P1- E a sua carreira profissional começa junto, no momento que o senhor está ali cursando a faculdade de engenharia ou depois em que o senhor se forma?
R- Não, eu nunca trabalhei durante o curso, mesmo porque era muito difícil. E não, com horários assim como nós tínhamos de segunda a sábado, as chances de trabalho eram praticamente inexistentes. Haviam alunos que trabalhavam, alguns, dando aula à noite, era uma das atividades. Tinham alunos que davam aulas à noite. E tinha alguns alunos, não do curso de engenharia química, mas do curso de engenharia civil que já faziam alguns serviços assim, tipo de topografia, medição de terrenos, coisas assim. Mas era, eu diria que era uma minoria.
P2- E qual foi o primeiro trabalho do senhor depois que o senhor se formou?
R- Me formei, eu fui trabalhar em uma empresa de cerâmica na cidade de Mauá. Mauá era uma cidade, hoje em dia é uma cidade dormitório pelo que tenho lido. Era uma cidade muito pequena, pertencia ao município de Santo André. A refinaria de petróleo estava em início da construção, ainda não existia a refinaria que veio a ser chamada Refinaria de Capuava. Era ali ao lado de Mauá. E eu, essa pequena cidade de Mauá era cheia de indústrias de cerâmica. Desde indústrias muito grandes, Porcelana Real, Porcelana Mauá. Indústrias médias, como Cerqueira Leite, onde eu fui trabalhar. E uma porção de indústrias pequenas, que fabricavam louças assim mais baratas. Louças comuns, louças que hoje em dia foram substituídas pelo plástico e que desapareceram. E essa empresa tinha uma característica. Ela não fazia cerâmica para uso doméstico, fazia isoladores de alta tensão, utilizada na linha de alta tensão, isoladores que eram usados em linhas telefônicas. Era uma empresa assim tecnologicamente mais avançada. Essa fábrica desapareceu, como uma porcentagem muito grande das empresas assim, indústrias da época que eu comecei a trabalhar, desapareceram nesses 50 anos praticamente.
P1- Aí o senhor fica nessa fábrica?
R- Eu fiquei um ano. E eu viajava sempre. A gente ia de trem para lá. Eu morava lá, mas ia de trem. No trem eu sempre vinha, encontrava um senhor alemão que era diretor de uma das grandes fábricas e ele me catequizou dizendo que eu devia sair da empresa, de uma empresa pequena como eu estava e devia ir para uma empresa grande. Porque em uma empresa pequena eu não teria desenvolvimento profissional adequado. Ele dizia: “Não quero prejudicar o meu, a empresa que o senhor trabalha, quando o senhor sair, eu, o meu conselho seria o senhor procurar uma empresa grande”. Aí eu achei que eu devia tentar ir para o exterior. Eu escrevi então umas 50 cartas para empresas do exterior. Nenhuma delas me aceitou. A maioria não respondeu. As que responderam falaram que não tinha interesse. Aí, porque naquele tempo tinha gente que dizia: “Não, vamos para os Estados Unidos trabalhar como lavador de carros, como garçom!” Eu disse: “Se você for para os Estados Unidos trabalhar como lavador de carros e como garçom, você vai ficar nisso o resto da vida, né? Tem que ir para lá para trabalhar na profissão”. Os tempos eram outros, também. Aí eu queria ir, mas para trabalhar como engenheiro. Aí nessa fase então eu procurei uma, escrevi e uma das empresas me disse que havia aqui, eles tinham aqui em São Paulo uma representação. E que eu procurasse o responsável por essa, pelo representante deles aqui. Eu fui falar com esse representante e ele me falou: “Ó, se o senhor quer trabalhar em uma empresa grande, procura a Nitro Química. O doutor Eduardo Sabino de Oliveira”. Que era diretor técnico. Aí eu fui lá e falei com o doutor Sabino. Ele era da Politécnica também, me admitiu na mesma hora. (riso) Aí comecei, fiquei lá, fiquei no Grupo o resto da vida. Mas quando eu comecei lá a Nitro Química não era uma empresa exclusiva da Votorantim. Tinha como sócio, tinha a Votorantim, tinha o Klabin, tinha o Grupo Monteiro Aranha, tinha o Grupo do Banco Comércio Indústria, que já é extinto. E tinha uma porção de acionistas pequenos. Então era uma empresa, não era uma empresa de capital aberto, mas era uma empresa onde já havia vários interesses, acionistas diferentes. Não era uma empresa assim exclusivamente da família Moraes. Embora a família Moraes tivesse o comando da operação.
P1- O senhor entrou na Nitro Química fazendo o quê?
R- Eu entrei lá para ser assistente no departamento de engenharia. Havia um departamento de engenharia que fazia obras, fazia manutenção, novos projetos. E eu entrei nesse departamento. E esse, na Votorantim da época, tanto na Votorantim Cimento e na Nitro Química, que era uma indústria química, uma indústria que fazia rayom e produtos químicos, haviam muitos engenheiros dinamarqueses. Porque a fábrica de cimento da Votorantim quase todas tem tecnologia dinamarquesa. Então com essa tecnologia também vieram engenheiros para o cimento e eles trouxeram o diretor técnico da Votorantim - era um engenheiro dinamarquês, por sinal uma pessoa de altíssimo nível, o doutor Dawsborg. Então o doutor Dawsborg trazia outros engenheiros para trabalhar nas fábricas. Então o corpo técnico era quase todo dinamarquês, os brasileiros eram poucos. E eu entrei justamente em uma fase em que se estava repensando essa questão de ter engenheiros dinamarqueses. No meu tempo havia engenheiros dinamarqueses, engenheiros noruegueses, engenheiros americanos, engenheiros alemães. Foi uma época em que os diretores da Nitro Química estavam já pensando em, e começando com gente, com engenheiros brasileiros, para um dia ter um corpo técnico brasileiro. E assim, foi nessa época que eu entrei.
P1- Em que ano foi isso mais ou menos?
R- 1954, ano do Quarto Centenário da cidade.
P1- E o senhor participou das comemorações?
R- Me lembro bem, foi uma época muito alegre na cidade, porque foi inaugurado o Parque do Ibirapuera. E havia muitos restaurantes e parques de diversões. O Quarto Centenário da cidade foi realmente um fato marcante, um fato alegre para a cidade. Muito alegre.
P1- Senhor Fábio, retomando essa questão da Nitro Química, o senhor se lembra como foi o seu primeiro dia de trabalho?
R- Lembro, lembro. Eu cheguei e fui falar com, fui encaminhado ao meu chefe, que era o engenheiro chefe. Era um engenheiro dinamarquês, como eu tinha dito. O engenheiro Petersen. E o engenheiro Petersen, naquele dia estava chegando uma máquina muito importante. Uma nova turbina de produção de energia elétrica na casa de força, um gerador a vapor para cá de, para gerar energia elétrica para fábrica. E ele estava ocupadíssimo com a chegada dessa máquina, que estava chegando de, que vinha, estava chegando de trem. Tinha vindo de Santos, estava chegando de trem. Eu me lembro que ele estava ocupadíssimo com aquilo e não me deu muita atenção. Eu fiquei ali mais ou menos perdido. E esse eu lembro o fato de chegar e o meu chefe estar preocupado com outra coisa e eu fiquei mais ou menos perdido. Naquele tempo não tinha essa questão de recepção de funcionário, a pessoa ia lá, começava. Aí não tinha mesa para eu trabalhar. Aí encontraram uma mesa dessa mesa de contínuo, que era menor que essa aí. E daí: “Você fica nessa mesinha aí, enquanto a gente arranja outra”. Eu sentei naquela mesinha e comecei a trabalhar. Na Nitro Química, na fábrica da Nitro Química todo mundo marcava ponto, a não ser o diretor. Trabalhavam lá umas cinco mil pessoas. Só um não marcava ponto que era o, dois, que eram dois diretores. Mas um ficava tempo integral lá. O outro que era esse que me admitiu, o doutor Sabino, ficava uns três dias na semana, não mais que isso. E todos marcavam ponto e nós engenheiros não tínhamos cartão. A gente assinava. Havia um relógio, parecia uma janelinha, a gente assinalava lá um número, as iniciais, e escrevia E ou S, entrada, saída. Então eu recebi o número 17. Eu tenho muita simpatia pelo número 17, porque era o número que eu recebi quando entrei na Nitro Química.
P1- Senhor Fábio, como que era a Nitro Química? Como era a Nitro Química quando o senhor entrou? O senhor falou já um pouco de quem administrava, mais quais eram os setores que existiam na Nitro Química?
R- A Nitro Química era muito grande. Trabalhavam cinco mil pessoas. Tinha um setor que produzia rayom, uma fibra artificial fabricada a partir da celulose. Fazia um raio de fio, de filamento contínuo. Fazia um algodão artificial, mas com composição química do rayom. E fazia um fio de alta resistência que era usado para, na fabricação de pneumáticos. Esses fios de pneumáticos depois vieram, foram substituídos depois por outras fibras sintéticas, inclusive por fios de aço. Isso está nos posteriores. Tinha fábrica de ácido sulfúrico, tinha fábrica de ácido nítrico, de sulfato de sódio, sulfureto de carbono. Tinha uma fábrica de tintas. Estava sendo inaugurada uma fábrica de soda cáustica. Era um conjunto industrial grande.
P1- E vocês na engenharia andavam por todas essas coisas?
R- Cuidávamos da parte, na engenharia se cuidava de melhoria de equipamentos e de instalações novas. Era basicamente esse o trabalho, cada engenheiro fazia. Os novos, um engenheiro novo como eu recebia geralmente um abacaxi que ninguém tinha conseguido resolver.
P1- Qual foi o abacaxi que o senhor recebeu?
R- Para mim deram um abacaxi. Na fiação de rayom havia uns motores de fiação - até não foi uma experiência muito agradável - havia uns motorzinhos de fiação que deram um trabalho de manutenção muito grande. E aí eu fui escalado para acompanhar aquilo. E basicamente o problema da manutenção é que era feito de uma forma muito mal feita pelo pessoal que trabalhava lá. E eu fui lá como uma espécie de um inspetor assim, de um auditor técnico para ver o que estava acontecendo e dar opiniões. Eu não tinha uma formação específica para isso. Eu era engenheiro químico e ali o problema era de eletricidade e de mecânica. Mas era uma questão mais de organização, de bom senso. E aí o pessoal, quando eu comecei a indicar os pontos que estavam errados no trabalho deles na manutenção desses motores. O pessoal lá deu um jeito de fazer uma, criar problemas com o departamento de engenharia para que o departamento me tirasse de lá. E eles continuaram lá fazendo as besteiras deles. Mas eu me vinguei, porque depois quando cheguei a diretor da fábrica eu trouxe da Argentina um especialista que pôs aquilo para funcionar feito um relojoeiro.
P1- Aí o senhor, bom, o senhor entrou na engenharia, né? Como foi a sua trajetória na Nitro Química?
R- Eu entrei na engenharia, passei um tempo na produção de rayon. E quando tinha lá uns quatro anos de casa, começou esse... Esses engenheiros dinamarqueses, sentindo que a situação, o futuro deles não era muito garantido, porque eles sentiam, vamos dizer assim, um movimento nacionalista para que eles não permanecessem lá. Embora eles eram pessoas excelentes como pessoas e como técnicos. Eram pessoas impecáveis, nenhuma crítica podia ser feita a eles assim nesse sentido, eram competentes e corretos. Mas havia essa idéia de que tinha que se criar um corpo técnico de brasileiros, o que era certo, né? E aí não ficar dependendo sempre de importar pessoal. E aí nessa mudança vagou o cargo justamente do meu chefe na engenharia. E eu fui nomeado para esse cargo. Eu confesso que eu não tinha a bagagem técnica para ocupar essa posição. Eu senti isso desde o começo. Mas eu tinha uma coisa que eles não tinham, que era desde o início do meu trabalho na indústria de cerâmica, eu percebi que eu era, modéstia à parte, eu era bom na parte de organização, de distribuição de trabalho, de racionalização, de motivação. Então eu substituí. Em lugar de ter como chefe da engenharia um excelente técnico como tinha, passou a ter digamos, um razoável administrador. E a minha presença então colocando em cada setor um técnico que conhecia bem. E eu com minha formação de engenharia sabia julgá-lo, não? E tendo esse espírito assim voltado para administração, à organização, à racionalização, funcionou bem. Então foi isso, eu fiz aquela capacidade de organização, de administração prevalecer sobre a necessidade de uma grande formação, de uma formação técnica especializada, como seria necessário aí. Daí eu acho que saí bem, porque depois quando o diretor da fábrica saiu, pediu demissão alguns anos depois, eu fiquei um ano como diretor interino. Na realidade havia um diretor que era o doutor Ermírio Pereira de Moraes, mas ele tinha outras ocupações dentro do Grupo. Então eu tinha uma certa habilidade de trabalho. Fiquei, digamos assim, um ano em um estágio de treinamento, depois fui nomeado diretor da fábrica.
P1- E quando o senhor trabalhou na produção, ligado à produção, quando era? O senhor trabalhou ligado à produção de rayon, né?
R- Sim.
P1- Quais eram os maiores problemas pensando a produção? E quando o senhor assumiu a chefia de engenharia, quais eram os maiores problemas postos primeiramente na produção e depois para toda engenharia dentro da Nitro Química?
R- Bom, na produção o que se, o que era necessário era fazer com que todos cumprissem os padrões de trabalho. Tinha sido organizado e eu participei desse trabalho, padrões de trabalho para todas as reações químicas. Para ter, vamos dizer assim, em geral, para as reações químicas que se faziam, a forma para que se cumprissem os princípios necessários para que a produção saísse bem. Enfim, era um problema assim de acompanhamento, de fiscalização, de treinamento do pessoal, para que eles cumprissem realmente aquilo, para fazer com que as pessoas trabalhassem dentro de padrões - porque quando se escapava dos padrões estabelecidos, a gente tinha seríssimos problemas de qualidade. Havia o fato que necessidade também de se empenhar em uma melhoria das condições ambientais de trabalho. As condições ambientais não eram, eram... A fábrica não era uma fábrica antiga quando eu comecei. Mas havia muitos problemas de poluição. Não de poluição do ambiente externo à fábrica. Mas eram condições difíceis de trabalho, de fábrica com gazes, temperaturas, principalmente isso. Isso também havia a necessidade e um empenho grande para melhorar a salubridade das condições de trabalho. Então era obedecer aos padrões, melhorar as condições de salubridade e empenhar-se no treinamento do pessoal. De uma forma geral, eu veria isso.
P1- Como é que o senhor foi vencendo essas adversidades dentro da, por exemplo, essas questões de salubridade?
R- É, foram vencendo muitos casos, melhorando a qualidade do pessoal. Era comum na época, uma pessoa começava como servente na fábrica, se ele tivesse personalidade e o grosso da, quase todos os empregados da Nitro Química era nordestinos, né? E esse pessoal, tinha muita gente assim esperta, assim quase analfabeta, mas muito esperto. Aprendiam o trabalho com facilidade, inventavam outra maneira de fazer o trabalho, às vezes, às vezes maneiras que não deviam ser seguidas, mas que eles inventavam e queriam implantar. Então era um pessoal muito, havia muita gente assim, esperta, viva, que era aproveitada. Então o indivíduo começava como servente e depois evoluía, passava para aquilo que a gente chamava de operador, passava para encarregado. Então esse pessoal tinha uma formação, normalmente eram pessoas que não tinham além do curso primário. Então quando se foi realmente necessário implantar padrões de trabalho melhores. Então foi preciso ir substituindo esses encarregados, que eram pessoas práticas e que repetiam aquilo maquinalmente. E quando não repetiam, inventavam por conta própria coisas que não deviam ser feitas. Nós começamos a fazer um programa de admissão de técnicos químicos que substituíssem essas pessoas na chefia, no comando das turmas. E isso deu um resultado muito bom. Porque essas pessoas tinham uma formação técnica. Não eram pessoas de curso superior, eram de cursos técnicos. Mas uma das maneiras de ultrapassar foi essa, o treinamento de pessoas que tivessem mais aptidão, mais potencialidade, mais capacidade de aprender o serviço bem feito. Eu dizia que isso foi uma, bom, um dos fatos.
P2- O senhor se lembra de alguma invenção que eles faziam e que acabava se tornando moda na produção?
R- Desse pessoal que inventava as coisas?
P2- É.
R- Não, assim no momento... Agora não me lembro mais.
P1- E senhor Fábio, a Nitro Química é uma empresa que antes de vir para o Brasil tem uma história, né? Ela vem dos Estados Unidos, foi montada aqui no Brasil, etc. Quais foram para o senhor os maiores desafios que o senhor teve dentro da Nitro Química quando o senhor assumiu a direção?
R- A questão da tradição, empresa que veio... Quando entrei na Nitro Química a fábrica que veio dos Estados Unidos, que era a fábrica de lá, não existia mais. Já tinha sido substituída por uma fábrica mais moderna. E eu perdi a sua pergunta.
P1- O senhor estava falando da chefia, daí a questão é o seguinte: a Nitro Química tem uma história, já tem uma tradição. Vamos dizer que a Nitro Química é uma empresa extremamente tradicional. Quando o senhor assumiu a direção quais foram os maiores desafios que o senhor teve dentro da Nitro Química? Qual era, ou seja, o senhor teve que atuar mais em que área dentro dessa empresa?
R- Olha, eu acho que a primeira área foi essa de formar... A grande, eu acho que o grande desafio foi criar um corpo técnico, um corpo operacional mais preparado do que estava lá, procurando selecionar um pessoal de curso superior, engenheiros, químicos. E o pessoal de nível médio, e que esse praticamente não existia, passou a existir quando nós nos empenhamos nesse sentido. Então o grande desafio foi esse: formar um corpo profissional mais preparado do que aquele que existia antes. Evidentemente isso foi fruto das necessidades, porque eu acredito que em outras épocas os custos de produção eram mais facilmente passados para os preços. A concorrência talvez não fosse tão grande. Enfim, era uma época de evolução e que também a empresa teve que mudar. Um dos grandes desafios foi esse. Uma outra, um outro desafio foi de modernização. Havia métodos de administração obsoletos que poderiam ser substituídos por métodos mais modernos. Já havia muita coisa em matéria de eliminar administração que não eram adotados pela empresa. E isso era uma necessidade e foi feito. Então, por exemplo, se faziam notas fiscais, duplicatas e faturas tudo manualmente, na máquina de calcular, na máquina de escrever, quando já na época era possível ter máquinas de contabilidade. Não se compara com os computadores de hoje, mas já eram uma evolução em relação ao tipo de trabalho assim muito precário, manual. A própria movimentação de materiais dentro da fábrica. Havia muito uso de mão-de-obra humana, quando já existiam empilhadeiras. Já se podia falar em caminhões caçamba. Um pouco de coisa assim. Então isso também, hoje em dia parece meio ridículo, assim, falar nisso, mas foi preciso implantar essas coisas. E pessoas assim, com uma mentalidade mais antiquada que estavam lá, não, ainda tinham abertos os olhos para isso. Inclusive fazendo uma coisa que é muito desagradável, mas em certos casos, reduzir a participação de mão-de-obra. Quando diretor técnico, de diretor da fábrica passei para diretor superintendente, que foi o degrau que eu dei. Eu fui também o diretor técnico da fábrica em 1961. Fui nomeado diretor superintendente em 1965, quatro anos depois. Aí em 1965, foi empreendido uma reforma geral dos conceitos da empresa, porque a Nitro Química teve adotado, mantinha coisas, junto de um, de épocas passadas e... Por exemplo, a fábrica tinha uma fundição grande. Trabalhava quase 100 pessoas, para fundir as peças que eram necessárias nas máquinas da fábrica - isso quando a Nitro Química era uma empresa que estava se iniciando, era uma necessidade. Naquele tempo não havia isso. Mas a essa altura, já na década de 1960, tinham fundições especializadas. E faziam aquilo melhor e mais barato. Então foi preciso ir fechando uma porção de setores que pesavam muito na folha de pagamento e no próprio conjunto das despesas. É que não se justificavam mais, por exemplo, fundição. Carpintaria, quando entrava um novo funcionário, a marcenaria fazia uma mesa para ele, em lugar de se ir lá em uma loja de materiais de escritório e comprar uma mesa. A marcenaria se orgulhava de fazer uma mesa, cadeira, tudo. Uma maravilha. Então essas coisas foi preciso ir eliminando, eliminando setores que não se justificavam mais dentro da empresa. Isso foi um fato. Outra coisa que foi importante, isso eu diria que a formação de novas equipes, a racionalização do trabalho. E eu, junto com a equipe, pensávamos, discutíamos e ia-se fazendo. Tinha alguns, chegamos a admitir algumas pessoas de racionalização do trabalho, uns funcionários assim de nível médio e que eram funcionários da empresa, não eram consultores.
P1- Senhor Fábio, além de todo esse processo de racionalização, a Nitro Química foi uma empresa que enfrentou sucessíveis, algumas crises, né? Algumas que acabaram perdurando algum tempo. Como que o senhor vê essas crises, como que o senhor conduziu essa fábrica nos momentos de crises? Por exemplo, naquilo que cabia ao senhor?
R- Bom, algumas crises, como é que eu vou dizer? Bom, todo esse trabalho era um trabalho para minimizar o problema das crises, um dos problemas que nós tínhamos é que eu acho, é... Que eu acho, não. Um dos problemas graves de crise que a Nitro Química teve, foram problemas próprios dela, e eu especifico isso. Eu fiz um, eu escrevi um pequeno trabalho sobre a história da Nitro Química, que eu digo isso lá. A Nitro Química tentou se expandir para muitos ramos, sempre dentro da química. E essas expansões eram fruto da atividade do doutor José Ermírio de Moraes, senador Moraes. E o doutor Moraes sabia muito bem determinar os setores dentro da empresa que ele ia entrar. Mas a empresa não tinha na época realmente uma estrutura para desenvolver esses projetos. Então projetos que teoricamente eram muito bons, quer dizer, era uma idéia muito boa de fazer aquilo. Era essa idéia, digamos, do principal acionista da empresa, né? Essas idéias foram mal detalhadas, foram mal desenvolvidas. Isso fez com que a Nitro Química colocasse, investisse mal o seu dinheiro. Então ela fez uma fábrica de soda, fez uma fábrica de fios para pneumáticos, fez uma fábrica de ácido sulfúrico, baseada na matéria prima nacional. Fez uma fábrica de nylon, com o sobrenome de edição brasileira. Mas era uma fábrica de nylon baseada em óleo de mamona. Não baseada em produtos petroquímicos, como são as fábricas de nylon que vieram de, como foram as outras, como foram e como eram as outras fábricas da época. Então a idéia do campo de atividade foi acertado, mas a empresa não tinha uma estrutura técnico-administrativa para desenvolver isso de uma forma adequada. Então não se procurou melhor esses projetos de fábrica de soda, não se procurou o melhor projeto de fábrica de pneus. Houve realmente uma falha, não de quem idealizou a coisa assim no seu aspecto mais amplo, mas de quem, bom, vamos fazer uma fábrica de soda cáustica. As pessoas que fizeram essa fábrica de soda cáustica escolheram o projeto errado. Vamos fazer uma fábrica de fios pneumáticos, ótimo, é um grande ramo. Na época era um campo importante. Só que não foi escolhida a tecnologia adequada. Então a empresa sofreu muito. E a maioria dessas empresas desses ramos foram fechando, pesaram violentamente na economia da empresa.
P1- E essas consultorias que eram feitas para a Votorantim, por exemplo, para construir a fábrica de soda, provavelmente era feita uma consultoria, creio eu.
R- Era.
P1- Eram de brasileiros ou eram de grupos estrangeiros?
R- Era, no caso da soda cáustica foi uma consultoria italiana. No caso de fio para pneumáticos foi uma norte-americana. Houve uma fábrica de sulfureto de carbono também que não funcionou, foi uma fábrica que teve que ser refeita com tecnologia suíça. Mas a fábrica que não funcionou era de tecnologia americana. Quer dizer que houve tecnologias mal escolhidas. Mas as pessoas, acho que as empresas que tinham sido contratadas, acreditou-se que elas tivessem know-how e a competência para fazer projetos adequados.
P1- O senhor, por exemplo, chega a acreditar em má fé dessas empresas?
R- Não.
[pausa]
P1- Eu perguntava para o senhor sobre as consultorias que foram feitas no Grupo Votorantim; o senhor acredita que houve má fé dessas empresas?
R- Não, não acho. Eu acho que eram empresas que não estavam adequadamente preparadas. Mas que concorreram provavelmente, isso eu não sei dizer. Provavelmente tinham preços mais favoráveis do que outros consultores mais renomados, empresas de engenharia mais renomadas. E talvez tenham sido escolhidas por isso, ou tinham preços mais favoráveis, condições mais fáceis de serem atendidas, mas que acabaram fazendo com que o tiro saísse pela culatra. Acho que a Nitro Química foi realmente muito prejudicada por esses investimentos que foram, teoricamente eram bons. Foram bem escolhidos por quem tinha o comando maior dentro da empresa. Mas que foram mal, não sei, detalhadas - não é bem detalhada, porque é uma coisa muito importante. Mas que foram mal implantadas por quem deveria tê-lo feito, por quem o fez.
P1- O senhor se tornou diretor superintendente da Nitro Química. E esse, o senhor ficou na Nitro Química até quando?
R- Eu fui nomeado diretor superintendente em 66. Comecei em 66 como diretor superintendente. Eu saí de São Miguel, vim para São Paulo no escritório central na Praça Ramos. O escritório central da, os escritórios centrais da Votorantim na Praça Ramos eram recentes. Eles tinham se mudado naqueles meses para lá, tinham se reunido várias empresas que tinham escritórios em vários pontos, inclusive a Nitro Química, e se instalaram na Praça Ramos, no edifício antigo do Hotel Esplanada. Esse edifício que é um edifício, que eu acredito que seja um edifício tombado. É um edifício que deve ter sido construído em 1920. E que foi, nesse edifício estava o hotel mais luxuoso da cidade. E ele foi hotel, ficou fechado e virou escritório da Votorantim. Diziam que o doutor Moraes tinha comprado esse prédio porque ele, a festa de noivado dele na década de 20 tinha sido nesse prédio, nos salões desse hotel. O que eu acredito que seja verdade. (riso) Era, o folclore era esse, o doutor Moraes gostava do prédio porque lá tinha sido a festa de noivado dele, ou de casamento talvez. Como eu disse, isso é o que o pessoal dizia, não tenho certeza disso.
P1- E o senhor foi...
R- Aí eu em 1965 fui nomeado diretor superintendente, começo de 1966 eu vim para São Paulo como diretor superintendente. E fiquei tempo integral nesse trabalho até 1977. Aí eu fui nomeado presidente do Cimento Itaú. E durante alguns anos eu continuei companheiro da Nitro Química. Mas não no dia-a-dia, assim, mais à distância. E nesse período em que fui diretor superintendente da Nitro Química, foi um período muito bom profissionalmente, embora nós tenhamos enfrentado problemas seríssimos, a começar pelo fato que em 1964 houve o golpe militar. E após o golpe militar em 1964, os anos seguintes, 1965, 1966, 1967 foram anos muito difíceis. Havia muita crise generalizada de vendas. Pela primeira vez naquela época, era mais de 30 anos, pela primeira vez em mais de 30 anos a fábrica de rayon da Nitro Química teve uma parada total de semanas, porque os estoques se acumulavam e não se conseguia desová-lo, não se conseguia vender. Houve algum desemprego, não o desemprego de hoje, mas houve algum desemprego. E a transição, essa transição da democracia para os governos militares teve um início muito difícil para a empresa. Ela sofreu muito. E aí nessa época se aproveitou para fazer, aproveitou-se para fazer essas modificações que eu disse de eliminar setores que trabalhavam mal, eliminar setores que dentro da nova conjuntura, dentro das disponibilidades do parque industrial eram obsoletas. Com isso houve uma redução de pessoal. Como eu digo, é sempre uma coisa desagradável a redução de pessoal, mas foi necessário fazer. E aí foi-se completando depois o trabalho dentro daqueles, dentro daquela orientação que eu disse, de melhorar as equipes, racionalizar os trabalho em todos os setores da empresa. Foi uma época que fizemos modificações. Arranjamos consultorias competentes, adequadas para a fábrica de rayon, consultorias técnicas. Reformulamos muitos setores, como a fábrica de sulfeto de carbono, fábrica de ácido sulfúrico, fábrica de celulose. Enfim, foram feitas muitas modificações. A fábrica sofreu realmente uma grande modificação. No final da minha gestão também foram introduzidas novas unidades, algumas para atender o Grupo Votorantim e outras para atender ao mercado em geral. Há uma linha de produtos fluorados que foi feito para atender a Votorantim, Companhia Brasileira de Alumínio. E há uma linha, houve, porque foi feito uma linha nova de nitrocelulose, uma fábrica inteiramente nova para atender um mercado assim de mais qualidade com mais, enfim, com mais eficiência. Felizmente as consultorias para essas novas fábricas foram bem escolhidas. Foram consultorias alemãs, suíças, basicamente. No caso do rayom, consultoria italiana. Mas foram consultorias muito melhor sucedidas do que aquelas do passado. Participação. Não era bem consultoria, na realidade era fornecedores de novas instalações - não consultoria no sentido que tem de a pessoa ia lá sugerir. Aquelas eram realmente fornecedores que, externos de instalações industriais. Então nessa época, tivemos sorte. E foi também uma época de algumas modificações importantes administrativamente. Foi introduzido um, a computação na empresa. Fizemos um contrato com a IBM e colocamos um centro de processamento de dados. No início o processamento de dados não era como hoje que é, digamos assim, individualizado através de microcomputadores. Havia um sistema grande que fazia o serviço para todos. E o serviço que se fazia era folha de pagamento, faturamento, coisas desse tipo. Foi introduzido o sistema de computação de dados que eu acho que foi um fato importante que trouxe uma nova mentalidade e para quem trabalha na empresa também uma realização de ver. “Estamos entrando em uma nova era, estamos entrando em um...” Foi feito um, foi tomada uma providência que muitas empresas depois fizeram, empresas em geral no mercado, né? Que foi eliminar o escritório central. Nós tínhamos um escritório central na cidade e a fábrica em São Miguel. Foi eliminado o escritório central e foi todo para São Miguel. E isso também foi um fato que eu reputo, um... Interessante porque na época todas as empresas que tinham fábrica nos arredores tinham escritório no centro de São Paulo. Óbvio que isso foi facilitado pela própria evolução das coisas, a evolução do país, até, e de Estado. Porque agências bancárias foram criadas no subúrbio, nos chamados subúrbios. As estradas foram melhoradas. As comunicações foram, se tornaram realmente comunicações, porque a Nitro Química era uma empresa que trabalhava mais de cinco mil pessoas. Tinha duas linhas de telefone quando entrei para trabalhar lá. E essas linhas de telefone, que eram linhas particulares da empresa, eram operados pela telefônica, mas tinha sido construída para a Nitro Química. Era saindo da linha, vinha até São Miguel, porque São Miguel não tinha telefone. Eu já estava trabalhando lá quando foram instalados os primeiros telefones em São Miguel.
P1- Como que era São Miguel na época que o senhor chegou lá?
R- Era uma cidade feia, sem o grande... Tinha o clube que era o clube da Nitro Química. Veio a ter um hospital que era o hospital da Nitro Química. E era uma cidade feia, sem atrativo nenhum. Realmente um subúrbio industrial. A coisa mais bonita era uma igreja. Uma igreja que é o edifício mais antigo existente no Estado de São Paulo. Uma igreja que foi construída na época das invasões holandesas e ainda está lá, felizmente. Não mexeram, ninguém inventou de reciclar a igreja como estão fazendo com tantos edifícios históricos. Mas era um lugar assim de pouca, um lugar assim, muito de vida assim, as pessoas que viviam lá, viviam de vida extremamente simples. Tinha dois cinemas, tinha o clube, não tinha nenhum restaurante adequado. Era tudo muito simples, muito modesto.
P1- Senhor Fábio, o senhor ficou na Nitro Química até final dos anos?
R- Eu fiquei no dia-a-dia até o final dos anos 1970. Depois fiquei mais uns cinco anos assim ainda com o cargo de diretor superintendente. Mas só participando só das reuniões mensais assim de acompanhamento, não trabalhando no dia-a-dia.
P1- Como é que foi essa transferência do senhor da Nitro Química para Cimento Itaú que estava sendo recém adquirida pelo Grupo?
R- É, eu acho que aconteceu o seguinte: a Votorantim, na Nitro Química eu já tinha tido uma experiência de trabalhar em uma empresa de família, mas com características diferentes das outras empresas da Votorantim. Porque na Nitro Química, como disse, quando eu entrei haviam outros acionistas. Então embora fosse uma empresa comandada pela família Moraes, era uma empresa que tinha que dar satisfações ao Banco Comércio Industrial, ao Monteiro Aranha, e principalmente aos Klabin, né? Então eu já tinha uma experiência de trabalho em uma empresa que era de família, mas era um pouco diferenciada. E tinha outros acionistas. A Cimento Itaú é uma companhia de capital aberto. E eu acho que a Votorantim naquele tempo procurava nos seus executivos principais, pessoas assim que tivessem uma formação técnica e uma aptidão administrativa. Eu lembro que o Doutor José Moraes Filho dizia que era uma coisa muito difícil de achar. Um técnico que fosse bom administrador e ao mesmo tempo um bom administrador que não tivesse esquecido a parte técnica totalmente. Ou dizia, a parte técnica dizia o raciocínio técnico, né? Então eu acho que dentro, não digo que eu fosse uma figura excepcional disso, mas eu era um administrador que tinha essa característica - uma origem técnica, mas uma boa experiência administrativa. E em uma empresa que havia outros acionistas. E especificamente a Cimento Itaú era uma empresa não só com outro acionista, mas uma empresa de capital aberto, né? Com participação de acionistas minoritários no conselho. Um conselho fiscal com obrigatoriedade de publicidade, com ações na bolsa, uma obrigatoriedade de uma porção de informações ao mercado, né?
P1- Eu tenho uma curiosidade antes de continuar: os grupos que formaram o capital da Nitro Química permanecem nele ou só o Grupo Votorantim? Quando o Grupo Votorantin assumiu toda a Nitro Química?
R- A Votorantim assumiu toda a Nitro Química. A Nitro Química foi fundada 1935, em setembro de 1935, e ela comprou parte do Klabin por volta e agora, por volta de 1967, por aí.
P2- Ela passou a ser totalmente...?
R- Então, durante uns 30 e poucos houve acionistas. Saiu o Klabin que tinha quando saiu uns, agora esses números depois de tantos anos... Mas devia ter algo em torno de 35 a 40 por cento das ações. Mas não participou praticamente em nada da administração e do dia-a-dia da empresa.
P1-Voltando na Cimento Itaú, o senhor ficou mais na parte administrativa, é isso?
R- Eu fiquei como presidente.
P1- O senhor já assumiu a presidência. E como era a situação da Cimento Itaú?
R- A Cimento Itaú era uma empresa já organizada, uma empresa que não era uma empresa, digamos assim, problemática, diria. Não, era uma empresa organizada, mas era uma empresa que tinha um pouco de gordura, né? Era uma empresa que era administrada ou conduzida, no meu entender, conduzida assim de uma forma um pouco megalomaníaca, talvez. Talvez a palavra seja um pouco exagerada, enfim. Os diretores assim era, sentiam-se o peso do... Os dirigentes se sentiam como se fossem dirigentes de uma empresa muito mais rica do que ela era. Na realidade não era uma empresa que aguentasse assim aquele tipo de administração. Então uma das primeiras coisas a ser feita foi fazer uma empresa que tivesse uma administração assim mais sóbria, uma administração mais austera.
P1- O senhor levou muito tempo para conseguir tudo isso?
R- Não, na Itaú nós encontramos um corpo técnico administrativo muito bom, que entendeu bem as novas idéias e colaborou. Eu talvez esteja minimizando, mas não creio realmente, não sentimos a, o pessoal se acostumou logo com o novo ritmo, com as novas idéias. E também eu já tinha uma experiência grande de empresas problemáticas. Eu achei que a Itaú não era tão problemática quanto era a Nitro Química.
P1- E o cotidiano, pensando em termos do cotidiano, o senhor foi diretor superintendente da Nitro Química, teve toda uma trajetória no sentido de melhorar, tentar melhorar a empresa, apesar de todas as crises. Daí o senhor já assume a Itaú como presidente. O cotidiano do senhor mudou muito?
R- Não, não mudou muito. Mudou no sentido que passou a exigir muitas viagens. Porque a Itaú tinha fábrica na Bahia, tinha fábrica no Mato Grosso, todas fábricas. Em São Paulo tinha uma pequena fábrica de cal no Jaraguá. Aqui perto do pico, no morro do Jaraguá. Mas exigiu assim uma redistribuição da nova forma de trabalhar. Como eu tinha uma origem também, eu gosto, sempre fiz questão de visitar essas fábricas com muita frequência. Uma vez por mês, uma vez a cada 45 dias. E como eram muitas, exigia-se muitas viagens. E então o que mudou foi isso. No lugar de ficar em São Paulo e São Miguel, e depois só São Miguel eu tive que arranjar assim um tempo.
P1- Eram ruins essas viagens?
R- Não, não eram, não eram porque eu acho que as pessoas sabendo bem organizar... Porque eu sempre tive um estilo trabalho metódico. Eu sempre desejei que o pessoal que trabalhava comigo estivesse lá às oito horas quando começa o expediente e que estivesse lá até às seis quando o expediente se encerrava. Mas nunca fui marcar reuniões depois do expediente, de marcar reuniões na hora do almoço, que atrapalhasse o almoço de todo mundo. Eu sempre tive como princípio trabalhar dentro das horas de trabalho normal. Nunca apreciei esse, o fato de começar a trabalhar tarde, sair tarde, começar a trabalhar cedo e estourar o horário de noite, eu nunca fui assim. Trabalhando dentro desse sistema, quando eu ia em uma fábrica, se eu queria começar com um expediente cedo lá, eu viajava de noite. Então se nós começássemos uma reunião, um expediente de uma fábrica sete e meia, é porque eu tinha viajado de noite, tinha dormido lá, começava o expediente às sete e meia. E também não sacrificava, só porque eu estava lá, sacrificava o pessoal da fábrica que tem que ficar até às seis, sete, oito horas, nove horas da noite. Eu sempre fui muito metódico na questão do horário de trabalho. E exigia que as pessoas cumprissem os horários. Mas nunca gostei do trabalho fora de hora. O trabalho assim, muito cansativo. Eu achava que, eu sempre achei que o trabalho devia ser feito intensamente dentro do horário de trabalho, para mim mesmo. E quando era necessário um trabalho extra eu sempre reservei as horas extras para o meu trabalho individual. Então eu deixava de estudar durante o dia, estudava de noite, mas não segurava, não é que eu estudasse o meu problema de dia e depois estourava o horário dos outros fazendo reuniões à noite.
P1- Senhor Fábio, a gente já está entrando em um processo avaliatório do senhor, um balanço de sua passagem pelo Grupo Votorantim. O que representou isso na sua vida? O quê que o senhor trouxe, por exemplo, o que o Grupo Votorantin, esses anos de vivência no Grupo Votorantim influenciou na sua vida?
R- Bom, realmente a Votorantim foi, difícil encontrar um termo porque a minha vida profissional foi toda dentro da Nitro Química, da Votorantim. Então um ano que eu fiquei fora. Quando eu entrei na Nitro Química eu entrei um ano antes de completar 24 anos de idade e saí três meses antes de completar 60 anos de idade. Então toda a minha vida profissional foi dentro da Votorantim. Mas não foi uma rotina, porque eu mudei muito de cargo dentro da Nitro Química. E depois, evoluindo sempre, depois fui para um cargo importante, que foi de diretor presidente da Cimento Itaú. Então toda a minha carreira, todas as coisas boas que eu tive na minha vida profissional foram dentro da Votorantim. Então o que tive de bom foi dentro da Nitro Química. As derrotas que a gente sempre, as derrotas também foram dentro do Grupo Votorantim. Então a minha vida profissional é indissoluvelmente ligada a Votorantim. E acho que ela foi a fonte de todas as minhas satisfações profissionais. É o balanço que eu faço, e que sempre teria. Todo mundo diz, tenha o seu, os políticos sempre falam: “Tenho a sensação de dever cumprido”. Eu acho que essa é uma frase furada, porque eu acho que a gente nunca cumpre tudo aquilo que gostaria de cumprir, ou que teria de cumprir. Eu acho que embora eu considere que o meu trabalho foi útil para a Votorantim. Eu não teria sido promovido se meu trabalho não tivesse tido um desenvolvimento bom. Isso é óbvio. Não teria ficado tantos anos se o meu trabalho não fosse um trabalho no mínimo aceitável, razoável. Eu acredito que talvez eu pudesse ter feito mais. Aí é uma questão muito, uma reflexão muito pessoal. Eu acho que talvez eu deveria ter ousado mais. Certas coisas que eu queria fazer e encontrei dificuldades em fazer. E as coisas que eu queria fazer e que os acionistas não aceitaram. Talvez eu devesse, eu falhei em não ter conseguido os argumentos necessários a convencê-los a fazer aquilo que provavelmente teria sido bom para a empresa, mas que não foram feitas. E eu acredito, não acredito - eu sinto que não foram feitas porque talvez eu tivesse ter ousado mais. Devia ter conseguido melhores argumentos para convencê-los a fazer as coisas que não foram feitas e que eu acho que deveria ter sido feitas. Assim como o... Mas guardo da, evidentemente, da empresa, uma... Enfim, toda a minha vida profissional foi lá. Falando em termos materiais, o sustento da minha família. O progresso da minha família foi todo devido ao trabalho que eu ganhei como funcionário. Depois como diretor do Grupo Votorantim. Eu conheci no Grupo Votorantim o doutor Moraes. Alguns anos, não muito. Porque o doutor Moraes antes de falecer ficou muitos anos doente, vários anos. Conheci bem o doutor José e o doutor Antônio. O doutor Ermírio Pereira de Moraes, que, com quem eu trabalhei na Nitro Química, junto com ele. E depois conheci algumas pessoas da nova geração. Inclusive alguns trabalhavam comigo na mesma empresa que eu, como o Carlos Ermírio e o Fábio Ermírio. O relacionamento com eles, não digo que seja um relacionamento fácil. Porque essas pessoas, todas elas têm uma personalidade muito forte. Eu não gostaria de ser mal entendido. Mas ele, homens assim como o doutor Moraes, o doutor Oséias, o doutor Antônio não são pessoas comuns. Se eles fossem pessoas comuns não fariam o que fizeram, né? Então é preciso entender isso. Então é preciso saber como apresentar os fatos a eles. Se é possível saber como receber deles a reação àquilo que a gente leva a eles. Mas não é uma relação nesse sentido fácil. Porque é uma relação num nível assim, há um nível de exigência muito grande por parte deles. Mas sempre foi um relacionamento cordial e que se manteve após a minha saída do Grupo.
P1- Dos irmãos, quer dizer, o doutor Ermírio Pereira de Moraes, ele fica mais, vamos dizer, ele não aparece muito.
R- É.
P1- Há um motivo, ou seja, ele não ficou ali junto com o doutor Antônio e o doutor José?
R- É, essa é uma questão muito delicada, não? É daquelas perguntas que eu podia, não e não gostaria de responder. Mas eu respondo. Eu digo o seguinte: o doutor Ermírio é uma pessoa com personalidade, uma pessoa muito sensível, muito humana. É um homem muito inteligente, muito inteligente. Mas tem uma personalidade completamente diferente assim dos irmãos. Ele não tem aquela personalidade assim tão exuberante. É uma personalidade assim mais modesta. Modesta no sentido, não que ele seja um homem modesto. Uma personalidade menos, que aparece menos. Mas ele tem algumas coisas assim - um fato que eu até comentei com o doutor José - eu nunca vi uma pessoa que soubesse conhecer as outras pessoas como ele conhece. Muitas vezes me aconteceu de conversas com ele. Eu, ele e uma outra pessoa, e ele depois dizer: “Olha, Fábio, cuidado com esse cara”. (riso) E acertava. E uma, um psicólogo nato. Uma qualidade muito grande que ele tem. Acho que talvez na família é a pessoa que mais conhecia as pessoas. É uma qualidade extraordinária, né? Era uma personalidade diferente. Mas em, eu digo isso, é uma pessoa inteligente, de personalidade menos exuberante. Mas com qualidades como essa. Acho até que ele poderia ter tido um aproveitamento maior. Até se especificamente tivesse cuidado de determinados setores.
P1- Senhor Fábio, atualmente o senhor está, o quê que o senhor faz?
R- Atualmente eu estou completamente aposentado com os meus anos de trabalho na Votorantim. Eu saí da Votorantim com uma posição financeira razoável. E fiz um, quis ser industrial por minha conta e não deu certo. (riso) Eu percebi aí, para resumir tudo, a grande diferença que existe entre o executivo e os empresários. Então eu acho que é outra coisa, eu acho que não se começa, a pessoa não começa como empresário aos 60 anos. Acho muito tarde. E nessa atividade empresarial eu não fui feliz nem mesmo financeiramente, de modo, isso é uma coisa muito pessoal. Hoje eu tenho menos do que eu tinha quando saí do Grupo. Mas o que eu tenho e que foi conseguido alguma coisa, uma parte com o meu trabalho, uma parte com algum, uma herança da minha família, dos meus pais. Eu tenho uma renda assim de aluguéis, aplicações, menos, mais aluguéis. Assim me permite uma vida razoável.
P1- E qual seria o maior sonho do senhor?
R- O meu maior sonho realmente é que os meus filhos ficassem muito bem encaminhados na vida. Ficassem bem encaminhados na vida. Isso, claro, eles são todos já adultos e são pais de, alguns de crianças até já adolescentes. Mas o que eu mais gostaria é que eles continuassem e os que estão em uma posição mais, menos brilhante, conseguissem uma posição mais brilhante. Enfim, o que eu gostaria era ver o sucesso dos meus filhos. Em resumo, a coisa que eu mais desejaria era ver o sucesso dos meus filhos.
P1- O quê que o senhor acha de um projeto como esse que aos 85 anos o Grupo Votorantim resolve retomar sua trajetória, a sua memória? Chama primeiro seus funcionários mais antigos para contar um pouco das suas vidas, um pouco de suas trajetórias dentro do Grupo. E celebrar um pouco essa memória e tentando recuperar um pouco do seu passado. O que o senhor acha de iniciativas como essa?
R- Não, eu acho muito interessante, agora, eu não saberia dizer. Claro, é completamente fora da minha, do meu ramo de conhecimento profissional. Eu não sei bem dizer qual seria o caminho ideal para que esse projeto seja realmente um projeto vivo. Porque eu acredito que um projeto desse deve, deva ser utilizado. A finalidade é que ele tenha um resultado positivo para a empresa. Eu acho que se tiver, não pode ser um projeto assim meramente, uma expressão, vou usar uma palavra muito pouco elegante. De arquivo, né? “Vamos fazer um livro que diga...” E fica naquele livro. Ou faz uma exposição. “Olha isso aqui são fotografias da empresa e tudo”. Eu acho que devia procurar alguma coisa - não que isso não seja importante. Um livro, um filme, um evento assim, tipo uma exposição. Mas acredito que alguma assim, que viva, que aproveitasse a experiência do passado e que mantivesse essa e que se mantivesse assim dando um resultado favorável tanto para o Grupo, como para a sociedade em geral. Agora qual seria a ação assim, melhor para isso, eu confesso que eu não sei dizer.
P1- O que o senhor achou de ter participado desse depoimento?
R- Eu achei muito bom. Fiquei muito agradável. Tudo que eu fiquei aqui foi com o máximo de franqueza. Alguma coisa, evidentemente, os anos vão diluindo as coisas. Não parece, mas às vezes muita coisa mesmo importante da vida vai se esvaindo. Vai esquecendo, eu não sei, há pessoas também que estão dentro do Grupo como eu que vão depor aqui. Eu não sei se eles também vão enfrentar esse fato que às vezes muita coisa fica um pouco longe atualmente.
P1- E se o senhor tivesse que deixar uma mensagem para o Grupo Votorantim, qual seria?
R- Eu acho que o Grupo Votorantim é um Grupo de, que não precisa dizer que é um Grupo de grande sucesso. Todo mundo sabe que não é de grande sucesso. É de um enorme sucesso. É, dificilmente teve uma empresa no Brasil, uma empresa de 85 anos e com a vitalidade que tem. Eu acho que o Grupo Votorantim se - eu não me considero apto a dar conselhos para os dirigentes do Grupo Votorantim. Eu acredito que a grande, a grande chance do Grupo Votorantim é se ele manter esse mesmo espírito que norteou a Votorantim hoje em dia. Eu sei que houve mudanças imensas dentro do Grupo com a substituição de, com a entrada, a saída do, muito maciça, digamos assim, as pessoas da família, da administração do dia-a-dia. Eu sei que a Votorantim mudou muito. Não acredito que o, a permanência, a continuidade da Votorantim está ligado a ela permanecer fiel àqueles, aos princípios que ela sempre teve. E eu acho que os principais são, a escolha adequada do campo de trabalho. A Votorantim tem um enorme sucesso, o grande sucesso da Votorantim é devido em grande parte, ou principalmente ao tipo de produto que ele trabalha - são produtos que não tem obsolescência fácil. São produtos que exigem imensos investimentos industriais. E além disso, tudo isso administrado de uma forma assim muito sóbria. Muito... A palavra agora me escapa de novo. Muito séria. Eu acho que os dirigentes do Grupo Votorantim sempre colocaram a empresa acima das suas pessoas. Nunca ouvi pessoas da família Moraes falar “a minha fábrica” ou “a minha empresa”. Eles sempre se referem a Votorantim como um ente que está acima deles. Isso é muito importante. Acho que é uma coisa que realmente, os novos dirigentes, sejam eles da família ou sejam eles pessoas de carreira, devem manter isso, como foi mantido até hoje.
P1- Senhor Fábio, houve alguma pergunta que a gente não fez ao longo de entrevista que o senhor...?
R- Eu não entendi.
P1- Houve alguma pergunta que o senhor gostaria que a gente fizesse que a gente não fez?
R- Não, não. Acho que está ótimo.
P1- Está ok. Então eu gostaria de agradecer, em nome da Votorantim, pela presença do senhor. Agradecer em nome do Instituto Museu da Pessoa. E agradecer em nome da nossa equipe. Obrigado, senhor Fábio.
R- Obrigado pela atenção e pela paciência.Recolher