Projeto: Perpetuando a Rede LAC
Depoimento de: Maria Auxiliadora Dias Cabral
Entrevistada por: Danilo Eiji e Mariângela de Paiva
Local: São Paulo, 17 de novembro de 2006.
Realização: Museu da Pessoa e Rede LAC
Código da entrevista: REDELAC_HV006
Transcrito por: Suely Aguilar Branquilho Montenegro
Revisado por: Grazielle Pellicel
P – Danilo Eiji ou Mariângela de Paiva
R - Maria Auxiliadora Dias Cabral
P – Auxiliadora, primeiro queria que você falasse seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R – Meu nome é Maria Auxiliadora Dias Cabral, sou conhecida mais como Auxiliadora ou Dora. Eu nasci e me criei até os meus 15 anos numa comunidade rural chamada Sítio Riachão, que fica no município de Barro, estado do Ceará; uma comunidade muito isolada. Na época não tinha estrada, não tinha energia. Era uma comunidade muito, muito rica de produção agrícola: fruta, algodão, mandioca e mamão. E eu tenho uma origem portuguesa e indígena acredito que africana também, como tantas outras pessoas que nascem no Brasil. Mas o mais forte é a indígena. E minha origem é totalmente [na] agricultura, [como] toda a minha família.
P – Conte um pouco sobre os seus pais.
R – Meu pai e minha mãe são primos legítimos. Minha avó, a mãe do meu pai, é irmã do pai da minha mãe. Nós somos de origem pobre. Minha mãe muito mais, porque a minha avó casou com um rapaz que é de outra família, chamada família Cabral, - daí a história indígena – e tinha uma condição maior. E minha mãe foi criada, assim, muito, muito pobre. E, em função das dificuldades de estudar, ela tinha essa relação com a tia, a irmã de meu pai; ela foi morar na casa da prima para estudar. E lá ficou, criou, saiu moça. Ela casou com meu pai. Lá ela conheceu...quer dizer, lá, começaram as paixões. Era uma moça muito bonita naquela época, e assim foi.
P – E o seu nascimento?
R – Vou te contar só uma coisa bonita, que eu acho bonita, uma...
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Depoimento de: Maria Auxiliadora Dias Cabral
Entrevistada por: Danilo Eiji e Mariângela de Paiva
Local: São Paulo, 17 de novembro de 2006.
Realização: Museu da Pessoa e Rede LAC
Código da entrevista: REDELAC_HV006
Transcrito por: Suely Aguilar Branquilho Montenegro
Revisado por: Grazielle Pellicel
P – Danilo Eiji ou Mariângela de Paiva
R - Maria Auxiliadora Dias Cabral
P – Auxiliadora, primeiro queria que você falasse seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R – Meu nome é Maria Auxiliadora Dias Cabral, sou conhecida mais como Auxiliadora ou Dora. Eu nasci e me criei até os meus 15 anos numa comunidade rural chamada Sítio Riachão, que fica no município de Barro, estado do Ceará; uma comunidade muito isolada. Na época não tinha estrada, não tinha energia. Era uma comunidade muito, muito rica de produção agrícola: fruta, algodão, mandioca e mamão. E eu tenho uma origem portuguesa e indígena acredito que africana também, como tantas outras pessoas que nascem no Brasil. Mas o mais forte é a indígena. E minha origem é totalmente [na] agricultura, [como] toda a minha família.
P – Conte um pouco sobre os seus pais.
R – Meu pai e minha mãe são primos legítimos. Minha avó, a mãe do meu pai, é irmã do pai da minha mãe. Nós somos de origem pobre. Minha mãe muito mais, porque a minha avó casou com um rapaz que é de outra família, chamada família Cabral, - daí a história indígena – e tinha uma condição maior. E minha mãe foi criada, assim, muito, muito pobre. E, em função das dificuldades de estudar, ela tinha essa relação com a tia, a irmã de meu pai; ela foi morar na casa da prima para estudar. E lá ficou, criou, saiu moça. Ela casou com meu pai. Lá ela conheceu...quer dizer, lá, começaram as paixões. Era uma moça muito bonita naquela época, e assim foi.
P – E o seu nascimento?
R – Vou te contar só uma coisa bonita, que eu acho bonita, uma coisa que marca todas nós da família. A casa da minha vó era uma casa lindíssima, ainda é. Parede desta largura (indica com o braço), calçadas, 12 degraus para chegar na casa, com engenho, essas coisas todas... Só que por costume, todos dormiam de rede e só tinha uma cama, que naquela época não era cama casal, não é casal, nem é solteiro…
P – Era uma cama de viúva?
R – Aquela cama de viúva, isso. Então, a cama da minha avó fazia rodízio para todos os filhos quando sua nora ia ganhar um bebê. E minha mãe que teve esse tanto de filho? Ela ficava com essa cama no quarto! A cama ia da casa da minha avó todo ano para a casa do meu pai, incrível, né?
P – A cama ia quando a mulher ia ter um nenê?
R – Ia. Aí, saía o nenê e ia para rede. A lua de mel da minha mãe foi de rede, ela conta. É muito engraçada. Ela conta todo o processo, minha mãe é muito da peste. E ela conta todo o processo da lua de mel dela, naquela época, como é que aconteceu. Era diferente do que era hoje, essa coisa da cama, é uma coisa que marca muito. No último filho da minha mãe, ela tinha 45 anos, esse meu irmão, ele é irmão caçula, foi quando meu pai comprou a primeira cama. Daí, a gente começou o hábito de todo mundo ter cama. Hoje, você tem uma rede para por numa área. Todos nós usamos rede para pôr na área, nas plantas; deitada, não dá mais para dormir todo mundo. Tem uma outra coisa que marca, que também vai dos costumes, que era totalmente diferente, por exemplo, na casa do meu vô – eu não conheci minha vó, a mãe da minha mãe. Eu era pequeninha, acho que eu tinha dois anos, não lembro da minha vó. – E lembro muito do meu vô, porque tinha muita vontade de casar, mas não casou a segunda vez. Ele queria muito casar. E ele namorava, tá entendendo? A família da minha mãe produzia leite e vendia o leite e assim ela comprava outras coisas. Meu pai tinha a terra da mãe, minha avó sempre teve terra, a mãe do meu pai, mas meu pai sempre trabalhou muito, muito. Nossa casa sempre muito cheia de alimento, que às vezes olhava, estragava... Minha mãe nunca fez questão. Acho que, de tanto não ter, ela preparava mais coisas. E minha mãe gosta muito de fazer comida. Tem 80 anos, mas ela não esquece a cozinha. O que me marca é que a gente foi criado comendo sempre coisas fortes, alimentos muito nutritivos - é uma coisa que me marca profundamente. A gente teve essa oportunidade, e a maioria era tirada da roça; não tinha essa coisa de você ter que comprar, do consumismo. Eu não sou criada em consumismo, eu trago muito isso [no] presente.
P – Na comunidade, havia troca?
R – Tinha, tinha, a gente trocava, produzia. Eu ainda conheci muita gente na minha comunidade, muita banana na minha casa, muito leite, queijo. Você trocava, digamos, por outra fruta que não tinha, você trocava por alimento, você trocava por galinha... Mas tudo isso em família. Você faz isso, porque você dizia: “Poxa, tá chegando alguém”. Você tinha que preparar aquelas coisas todas para fazer o presente. Os presentes eram sempre coisa de alimentação. Sempre no sentido de comer bem… Nunca pensava em ter um sapato, quando tinha um sapato era sempre uma sandalhinha no pé… A gente tinha muito animal, andava muito de cavalo, jumento, burro. Lá em casa, tinha tudo isto. A gente ia para o roçado de cavalo. É uma região de muita seca. Eu lembro que eu nunca gostei de cozinhar, não fui criada em cozinha. Era trabalho da roça, escola e habituada logo de cedo a aprender trabalhos manuais…
P – Que trabalhos manuais?
R – Tudo: crochê, tricô, bordado, costurar... Eu aprendi tudo. Meu pai, inclusive, pagava a professora em casa. Então, com as primeiras, eu e minha irmã, foi assim; com as outras já foram na outra fase, porque naquela época você já ia para a escola, mas você só podia estudar se você tivesse dinheiro para ir à escola de freira. Naquela época, na minha época, ainda era muito fácil essa história de ir para o convento. Meu pai sonhava muito com isso. E minha mãe dizia: “Deixa, deixa teu pai”. Minha mãe era assim, não brigava. “Escuta isso não.” “Deixa pra lá.” É muito enfrentamento, então, ela dizia: “Espera pelo teu pai, presta atenção no que teu pai vai dizer, escuta bem”. Ah! [É] Como dizer “pau que nasce torto, morre torto”. Era assim, minha mãe sempre foi assim. Eu acho que, lá em casa, a família inteira tem uma cabeça mais aberta para o mundo. Eu não gostava de cozinha, não. E tinha sempre uma pessoa em casa, porque a minha mãe teve filho demais, e também não tinha cuidado de cozinha não, de fazer comida, tinha muitos trabalhadores. E a minha mãe costurava naquela máquina de mão. Uma vez, minha mãe passou 12 dias para fazer um vestido pra mim. Doze dias! Duas semanas para fazer um vestido porque é todo trabalhado e era naquela máquina manual. Então, minha mãe fazia vestido de noiva e ela não tinha tempo. Tinha menino demais. O único tempo que ela tinha, ela passava no peito, e minha mãe não amamentava muito não. Minha mãe nunca amamentou muito tempo um filho, não. Ela fazia mamadeira…
P – E ela costurava para vocês ou costurava para fora?
R – Também para ganhar. Minha mãe também fazia uns trabalhos manuais. De todas [as] irmãs da minha mãe, ela foi a única que aprendeu. Tanto trabalho, tanto trabalho.
P – E ela ensinou?
R – Muitas coisas nós aprendemos com ela, muitas. Costurar, bordar, porque a minha mãe ensinou também a gente a ser um pouco doméstica, ela ensinou também. Mas como ela só vivia grávida, coitada, todo ano uma barriga, ela tinha que reformar... Fazia coisa de bebê, né? E tinha outro que chegava e tinha que reciclar. Não dava para comprar, mas automaticamente estava reciclando e fazendo umas coisas bonitas. Então, o tempo inteiro era isso. Às vezes, a gente tinha que perguntar: “Por que, mamãe, a senhora teve tanto filho?”. E tanta dor, que a minha mãe teve seis abortos. Nessa história toda, seis abortos. Eu vi um bebê já grandinho, eu lembro que tive uma irmã que nasceu assim, não viveu, nasceu de oito meses. Parece que, se fosse hoje, não morreria. Uma vez teve um parto duplo de nove meses, mas aí morreram logo. Outro também teve já idade avançada, desnutrido, esse já não foi aborto, mas mesmo assim ela deve ter tido uns três, quatro abortos, não sei porque. Acho que ela provocava, a gente diz isso hoje, e ela: “Não, só fazia um chazinho”. Faz chazinho daquela erva. Eu não sei com a consciência de hoje, mas acho que estava cansada de barriga. E ela dizia: “Mas teu pai só teve a mim, né?”.
P – Você lembra da relação entre os dois?
R – Meu pai morreu com 85 anos. E ele morreu de manhã, e à noite (anterior) fez muito carinho a ela. Ele gostava muito de alisar e a gente brincava, e dizia: “Alisa mais”. E muito, muito, e mesmo às vezes enchia de beijo. Ela dizia: “Não quero mais beijo, não.” Ele botava ela no colo, era muito legal essa relação. Nossa, muito legal, muito legal. Só que meu pai quando morreu, ele ficou três anos e sete meses numa cadeira de rodas, ele teve um problema na mente e não mexia o corpo, por isso ficou um bebezão. Ele teve três AVC, teve três, e no último acho que não foi AVC, não. Chegou a hora da mudança, acho que é uma coisa muito bonita. Meu pai, vou ter que falar dele numa boa, da mudança dele numa boa, porque eu acho que ele cumpriu...realmente.
P – E qual era o cotidiano de vocês quando crianças? Vocês já iam trabalhar desde cedo?
R – Como se diz, nós criamos 12 irmãos. Tinha uma época, durante uns dez anos, minha mãe ficou com cinco irmãos dentro de nossa casa, na mesma idade nossa. E a gente [se] criava na mesma relação; não tinha relação de tio, era quase irmão. Você sabe que a gente não chama tio? Chama “fulano”, né? E a gente trabalhava demais, trabalhava muito na roça. Com três, quatro anos a gente colocava um pano no chão para a gente deitar ou passava uma rede na roça e a gente ficava o dia lá. Meu pai levava a gente, botava para brincar. Também, a gente passava o dia observando o trabalho, curtindo aquilo, mas a gente almoçava na roça, lanchava na roça. Eu acho que intuitivamente, ele levava para a gente conviver. Ele dizia que é porque a minha mãe ia dizer assim: “Vai ficar em casa dando trabalho à sua mãe”. Talvez fosse também, a minha mãe tinha que fazer outras coisas, porque eram muitas, tinha que dividir. Ele ficava com uma parte, acho que indiretamente era isso. Então, a gente brincava. Eu lembro que tinha um rio na roça, a gente pulava 11 cercas...sabe o que é cerca? A gente pulava 11 cercas para chegar na nossa roça e eu achava ótimo. Tchum! Pulava. Era uma cabrita mesmo pulando. Adorava fazer isso, e quando chegava lá brincava com folhas, com a água, com as pedras, sabe? Então, era assim quando era criança. Eu acho que eu nunca ganhei uma boneca. Eu acho que eu só ganhei uma, [quando] já era grandinha. Mas a minha mãe fazia umas de paninho...tu conhece milho?
P – Milho? Sim.
R – Então, aí não tem o sabugo? Chama sabugo. Não sei como é que vocês chamam?
P – Sim, sabugo.
R – Então, a gente fazia as bonequinhas bem lindas do sabugo, fazia redinha e brincava. De que eram as brincadeiras? De dona de casa, era muito ligada ao cotidiano.
P – Você brincava com quem?
R – Brincava com os irmãos, com as irmãs. Não lembro, porque meus irmãos eles tinham mais liberdade, sabe? De certa forma, eles tinham mais liberdade do que nós.
P – Os meninos?
R – Os meninos, mas nós brincávamos muito. Brincava muito. Tinha momentos que brincava muito com eles. Uma festa que a gente chamava...minha mãe fazia para nós e convidava as crianças da família, porque tudo era família, quase tudo. Quem não era família, eram os filhos dos trabalhadores. Mas a gente também brincava com eles, até porque a escola era uma só, e a escola era o meu pai que trazia a professora. Não tinha escola do governo, era particular. Eu nunca estudei em escola do governo.
P – E como era a escola? Todo mundo na mesma classe?
R – Uma professora para ensinar todas as classes.
P – Era para todo mundo?
R – Para todo mundo. E sempre era um professor da família, aquele que teve mais chance de sair, teve mais condição de estudar fora; nem era formado. Tinha feito o primário, por exemplo, já ia ser professor. Era assim, sempre foi assim. Minha primeira professora mora em Fortaleza. Ela é minha prima, filha da única irmã do meu pai. Todos os irmãos dela se formaram, estudaram, como os meus irmãos também, todos estudaram. Quem não fez curso foi porque preferiu. Nós mulheres, todas estudamos. Os homens menos, mas todos passaram por esse ritmo. Então, você saía, estudava um pouco e dizia: “Agora tenho que pagar, [mas] eu não posso. Tenho que ir para o colégio de freira, mas não tenho dinheiro”, essas coisas. Aí, vou para a casa do meu tio. Lá estava aparecendo muita criança para [se] alfabetizar e eu fui assim até a minha quarta série primária, que chamava admissão, naquela época. Eu fiz admissão. Estudei e fui fazer a admissão no colégio de freira. Muito pesado. Passei e aí…
P – Onde era o colégio de freira?
R – Numa cidade mais distante chamada Milagres, Estado do Ceará. E, quando eu terminei: “E agora vai para onde?”. Eu tinha que ir para uma cidade muito mais distante para estudar, mas meu pai tinha muito ciúme da gente, não deixava ir morar nas casas, nem que podia pagar. Aí, o que acontece? Eu fui ser professora com menos de 16 anos.
P – Quando você terminou o ginásio?
R – Não. Quando eu fui fazer meu ginásio, eu tinha 16 anos, acho que 16, porque eu me lembro que, quando eu terminei o Magistério, eu tinha 23 e, aí, não parei mais.
P – Você falou que tinha ido fazer admissão?
R – Sim, mas com o admissão você ia para o que hoje é a quinta série (sexto ano), naquela época era primeiro ginasial. Foi quando eu vim para Crato, que hoje é uma cidade mais conhecida, cidade grande. Quando eu saí para ir estudar fora, eu ensinei um ano inteiro.
P – Você voltou para a comunidade?
R – Aí eu voltei para a comunidade, fiquei um ano ensinando muitas crianças, adolescentes... A sorte era [que] um seminarista que me ajudava. Hoje ele é padre e me ajudou muito. Mas eu fui preparar outras crianças a fazer admissão, veja que desaforo! Como se eu fosse professora e fosse ensinar para professoras! Então, foi um desafio muito grande. De uma casa só de um tio, eu preparei três para fazer admissão. Todos três passaram. Então, minha tia - eu digo tia, ela até já morreu, em consideração, mas de sangue não era nada, nunca foi nada - ela chegou para meu pai e disse: “Você não vai dizer ‘não’. Eu vim só dizer que vou levar Auxiliadora embora comigo para ela estudar.” E, aí, me abriu para o mundo. Foi muito legal. Eu fui morar na casa dela. Claro, tinha todos os outros costumes. Fui enfrentar uma coisa diferente, mas foi muito bom porque eu fui conviver com outro mundo, saí de uma comunidade rural que não tinha nem estrada, não tinha carro. Eu saí de cavalos até a cidade, da minha comunidade rural com minha sela cheia de malas, assim, com a minha bagagem e, quando cheguei nessa cidade, que é Barro, aí que eu fui para outra. Na época, gastava três horas de viagem. Aí, fui para essa cidade grande.
P – Crato?
R – Crato. Toda uma cultura. Eu cheguei na casa do meu tio, que tinha três empregadas. Então, o maior impacto da minha vida foi conviver com essa riqueza. Só que, apesar da riqueza, as minhas coisas eram numa mala de couro. Trouxe minha rede. – Nessa casa, só tinha três redes. – Era uma rede bonita, bordada. Todos de cama na casa do meu tio e eu na minha rede. Aí, a minha tia: “Você vai para cama”. E eu não sei dormi aí, fui tocando. Eu comecei a conhecer o mundo do teatro, o mundo dos finais de semana numa piscina, fui conviver também com esse mundo, né? Foi bem, bem difícil. Porque eu tive uma infância que eu nunca usei uma roupa sem manga, imagina, nunca. Até eu sair de casa, eu não usava roupa sem manga, eu não usava shorts, não usava uma calça comprida, que meu pai não deixava. Minha primeira calça comprida foi desmanchando uma calça de um tio meu, para fazer uma calça para mim escondida do meu pai, porque a gente fazia um passeio de cavalo, já não aguentava mais botar uma calça, uma saia…
P – Uma saia para andar a cavalo?
R – Andar de cavalo. Nessa época, eu já tinha namorado e eu disse para o homem: “Eu vou do [mesmo] jeito das outras”. Aí, eu cheguei para meu pai, eu já estava no cavalo e ele: “Maria Auxiliadora!”. Eu digo: “Que foi?” Ele: “Cadê o vestido?”. Aí sabe o quê que eu fiz no cavalo? [barulhos de estalo, assobio] Me mandei, não respondi nada, fui-me embora. Quando eu fui descer do cavalo, que eu lá sabia, pulei, a calça: tchum! Muito legal, tantas coisas ainda assim, chegar na cidade grande, conviver com isso, eu pensar nos meus irmãos, nas minhas irmãs que estavam lá. Quando eu cheguei na cidade grande, eu fui rebelde mesmo, eu fui pro radical, aí, usava shortinho curtinho.
P – Que ano era isso?
R – Era 70. Essa cidade grande, bonita... Em 71, eu fui para Pernambuco.
P – Você estudava aí?
R – Daí até agora, nunca mais parei de estudar. Eu saí dessa cidade e fui morar com uma outra tia. Morei sete anos nas casas. Aí, fui morar com a única irmã do meu pai em Pernambuco, foi assim que eu cheguei em Pernambuco e fui conviver de novo com mais pobreza, velhice. Minha avó morava lá, ela já não dorme nada mais. Não tem nenhum poder sobre tudo que tinha, já estava morando com a filha. Eu fui conviver. Meu pai disse: “Agora, você vai estudar.” Era fazer o segundo grau e cuidar um pouco de fazer companhia à minha mãe, e eu muito que fui. E ela chamou, eu fui, mas foi muito diferente. Eu voltei a conviver, não porque eu não quisesse fazer, mas é que eu trabalhava demais. Aí, foi quando eu já comecei a trabalhar fora.
P – Você trabalhava no quê?
R – Começou a minha militância em Pernambuco. Aí eu já comecei a me engajar, porque todo esse período que eu vivi nessa cidade grande foi no tempo do golpe militar. Eu só sabia que um primo, o noivo da minha prima – que eu morava dentro da casa dela – estava preso, mas ninguém dizia o porquê. Ele era bancário. Eu nunca soube. Inclusive, eu vim saber depois quando eu cheguei em Pernambuco. A razão de ele ir até embora para São Paulo, São Paulo dos bancários. Eu acho que ficou por aqui, porque, naquela época, a minha prima já pegava - vê como eles tinham condição - já pegava um avião e vem ficar de férias com o noivo aqui em São Paulo. Não era qualquer família que tinha essa condição, né? Então, eu saí deste mundo e fui viver numa casinha bem pequenininha, desse tamanho assim.
P – Como você entrou no movimento político? Foi na escola?
R – Não, acho que aconteceu ao mesmo tempo tudo, porque quando eu cheguei em Pernambuco, no início dos anos 70, tinha um primo extensionista rural. E eu, muito apaixonada pelo campo, nunca deixei, apesar do estudo. De três em três meses, passava a semana na roça e, aí, meu primo era uma pessoa muito ligada ao social e tinha um trabalho ligado à extensão rural muito legal. E ele me levava para as comunidades e eu gostava muito de ir. E aí, eu comecei a conhecer o mundo inteiro. Automaticamente foi surgindo a história do sindicalismo através da diocese, um bispo muito legal também. Meu primo foi um dos iniciadores e eu morava na casa dele, então, automaticamente eu dizia: “Me leva pra lá, você vai me ajudar a fazer a carteirinha do sindicato.” “Deixa eu ajudar a fazer essa reunião? Tu me leva?”. Eu estudava de manhã e daí eu comecei... Foi espontâneo, trabalhei acho que uns dois anos, mas quando eu comecei a me fincar mesmo foi em 73, foi quando eu entrei como uma pessoa já contratada.
P – Foi trabalhar?
R – Fui para trabalhar. Aquela pessoa que já estava engajada. Na própria escola, a gente também tinha muita discussão de mundo rural porque tinha um padre francês, revolucionário. E a gente tinha muitas discussões, eu participava de um grupo político de esquerda.
P – Que linha de esquerda?
R – Era o PCBR.
P – E havia repressão?
R – A gente não sofreu muito. Soube muitas coisas antes, e a gente foi queimando o material. A gente era muito estratégico. A gente tinha muito cuidado, cada reunião falava muito dessas coisas. Discutíamos os documentos, mas nunca jogava fora; ganhava muita pouca coisa, porque na época mesmo. Os anos 70 foram muito complicados...então, fundamos o sindicato e tinha toda essa minha origem. Eu perdi realmente as estribeiras e eu me considero uma pessoa que contribui muito no sindicalismo rural. Trabalhei 21 anos, fora esses anos de contribuição para fundar, organizar. Eu trabalhei com tudo que foi projeto, desde os bolsistas a professoras rurais contratadas pelo sindicato. Como eu já era professora, eu trabalhava muito essa questão da alfabetização das crianças, mas na linha do Paulo Freire. Eu ainda me achava muito inconsciente. O que eu tinha muita clareza era de que a desigualdade era grande e eu tinha uma raiva dos patrões, muito grande. Eu fiquei com muita raiva, e isso me ajudava a brigar. Então, durante 21 anos, eu trabalhei no movimento sindical em muitas, muitas coisas. Quando eu saí do movimento sindical, já tinha toda uma referência de assessora - já era batizada [na] história da “assessoria”. Eu já era assessora política do movimento e tinha todo um respaldo estadual, regional e também nacional, da Contag, de federações, de visitar outras regiões do país, mas me custou muito caro. Muito caro porque toda essa minha militância... Como dizer? Eu nunca fui ambiciosa, nunca quis aparecer. Eu gosto de ficar cutucando, cutucando... Desde a família. Eu ficava à frente dos meus irmãos. E, no movimento, não foi diferente não. Eu nunca gostei de chegar e aquele discurso, porque eu sempre achei que a luta não era minha.
P – Como assim?
R – A luta que eu digo era desse mundo todo. “Poxa, quem tem que ir pra lá são os trabalhadores.” Minha tarefa era trabalhar para que eles contribuam, contribuir para que eles realmente incorporem a luta. Nisso, você vai também adquirindo outras referências. Sempre fiz muita amizade, mas também, sempre, a gente criou muitos conflitos. Me lembro que a gente encampou uma luta chamada a “luta pela lei de criar preso”.
P – Lei de criar preso?
R – Os animais, criar preso. Nós passamos três anos lutando para que a Câmara dos Vereadores aprovasse essa lei, e os fazendeiros - lá não se chama fazendeiro, é patrão mesmo -, os empregadores, que são os donos da maior terra e da maior produção do município, eram contra isso. Claro, criar o seu gado e seus animais soltos, é muito bom. E eu que vou botar uma rocinha que tinha que fazer uma cerca para o teu gado não comer meu produto! É evidente que isso mexeu com toda a estrutura do município, inclusive o prefeito era um grande fazendeiro. Então, nosso primeiro inimigo era o prefeito e um vereador também. Foi muito difícil, porque eu vivi um período em que fui ameaçada e eu nunca tinha convivido com essa realidade. Eu já tinha minha filha e foi muito difícil, porque eu tinha muito medo que a minha filha fosse sequestrada, muito medo. Até 12 anos de idade, a minha filha nunca foi só para a escola, ela também pagou um preço muito alto por isso, a liberdade de brincar. Eu tinha medo, eu morava na periferia, porque eu também rompi. Houve um período de rompimento, ruptura. Eu saí do centro da cidade, porque no que eu vim para Pernambuco, minha família veio toda. Com dois anos que eu morava, eu nem trabalhava ainda em sindicato, meu pai vendeu tudo que tinha no estado do ceará e veio aqui para Pernambuco.
P – De qual cidade?
R – Meu pai veio do município do Barro e veio para onde eu moro até hoje. Eu tinha a minha casa no centro da cidade, uma casinha alugada, então, o quê é que acontece? Meu pai me ajudou a comprar uma casa e eu vim para periferia da cidade quando a periferia estava iniciando. Morei dez anos na periferia. Aí, foi nesse processo que eu adotei minha filha, minha filha é adotada. Era um bairro que estava se formando. Hoje é um bairro maior, maior do que a cidade nessa história do êxodo rural. Nesse bairro, se concentravam as pessoas rurais dessas comunidades, de 106 comunidades que eu trabalhei. Eu vivi uma fase muito difícil de conviver com toda essa pobreza, com todos esses conflitos e também era um período difícil. Ainda a ditadura, anos 80, então foi muito difícil conviver com tudo isso. Aconteceram muitas coisas boas, porque foi também aqui nos anos 80 quando surgem as organizações de movimentos rurais. Eu e a Vanete, a gente estava no movimento sindical, todas duas. Eu entrei primeiro no movimento sindical, porque a Vanete vem da militância de igreja e, quando eu fui militar na igreja, eu já estava no movimento sindical. Então temos muitas coisas parecidas, mas a trajetória é diferente.
P – Mas na periferia, você estava articulando essas reivindicações com as pessoas e chegou a ser ameaçada por causa disso?
R – Mas não foi só da periferia, não. O foco maior era nas comunidades rurais, porque esses fazendeiros, um grande número dessas pessoas que morava no centro da cidade, que tem seus carros e que tão todo dia lá na fazenda, que são comerciantes, que são médicos, que são engenheiros. Além disso, eles são fazendeiros. Os maiores fazendeiros não são os agricultores, não. Então, a briga terminava sendo com eles e as ameaças eram justamente por parte deles, porque as fazendas estavam sendo ameaçadas, porque agora tinha uma lei que dizia: se acontecer um acidente de carro na estrada provocado por animais, se um carro matar um animal na estrada, o dono do animal vai pagar o conserto do carro e veja o que isso significa.
P – Que tinha que prender o…
R – Se eu crio, eu tenho que ter condição de criar, mas eu não posso prejudicar você que não tem condição de fazer uma cerca, né? Eu vou ter que fazer uma cerca para tirar meu alimento, porque tu tem teu gado, tem teu carneiro, tua ovelha... Então foi um período muito difícil. Eu vivi um período em que era vigiada e tinha um esquema de segurança que eu não sabia que tinha, mas depois é que eu fui tomar conhecimento que tinha. Eu saía do meu trabalho, ia para minha casa...eu ia por esse caminho e voltava por ele, mas tinha gente me seguindo e eu não sabia. Então, pensa, uma pessoa que viaja muito, que tem que tá em rodoviária… Aí começa a descobrir quem são os verdadeiros inimigos.
P – Como você resolveu isso?
R – Foi uma luta muito grande, porque os trabalhadores é que saíram vitoriosos. Criou-se ali e os patrões tiveram que admitir. Hoje todos incorporaram essa lei. E hoje não é mais problema, todos que querem criar já não criam o animal solto. Eles tiveram que compreender. Foram anos, mas foram compreendendo e foi um trabalho muito difícil. Mas a gente começou a entender também que, em vez de ir para o confronto, a gente usou outras estratégias, conversar, procurar pessoas que tinham mais uma agilidade para puxar o consenso. Começa a valer voto para a câmara de vereadores, fazer audiências públicas, fazer assembléias, manifestações públicas...
P – Levar para mídia?
R – Também, né? Saiu em muito jornal. O Diário de Pernambuco noticiava, e a gente via as coisas deturpadas... Foi surgindo o Partido dos Trabalhadores, e eu era uma das fundadoras. Foram chegando pessoas novas, de peso, não só do movimento sindical, mas também do próprio partido, da própria diocese.
P – Você começou a falar do movimento das mulheres lá naquele bairro de periferia onde você estava. Você diz que começou ali?
R – Começou na época da seca.
P – Na época da seca?
R – É. A primeira luta que a gente participou, foi uma luta por trabalho e foi no final dos anos 70, mas não tinha consciência... A gente começou a lutar pelo alistamento das mulheres, era só homem, né?
P - Para que exatamente?
R – Para as frentes de trabalho. Mas não era uma organização, a gente não tinha, né? Você fazia grandes assembleias com mulheres. E aí, a gente ia para frente de trabalho. Então, já foi nos anos 80, e a gente encampou uma outra luta que era muito legal: trabalho igual, salário igual. Mesmo que não tivesse carteira assinada, era por diária. As mulheres ganhavam muito, muito menos do que os homens. Na época, o município era grande produtor de feijão, e quem colhia? As mulheres. Hoje é tomate. Tem grandes projetos de irrigação no município. De novo as mulheres, são catadoras de tomate; naquela época, feijão. No meu bairro, por exemplo, os fazendeiros chegavam de manhã com o caminhão para encher de mulher e levar para roça e ganhar 50% menos do que o homem que estava lá colhendo feijão. Nós já tínhamos a liderança do bairro; a gente ia para o ponto, onde ficava o caminhão grande. A gente começava a fazer aquele trabalho miudinho: “Tu não me paga igual, não vamos colher o feijão”. E sem elas colherem, perdia o feijão. Era tipo uma greve. E elas diziam, antes de ir: “Eu só vou, se me pagar ‘x’”. Era o preço do homem. Toda a mulherada. Claro, é muito fácil porque entrou pelo econômico. A gente entrou de novo com outra luta e, aí, ao mesmo tempo, a gente ia fazendo o organizativo e a gente explodiu nos anos 80. Por exemplo, o meu município foi o primeiro município no Nordeste que fez a manifestação de mulheres rurais. Explodiu no estado inteiro, fizemos grandes manifestações de mulheres no meu município e em outros. Mas, assim, no brio. E isso tem toda uma história...
P - Como vocês faziam?
R – Para começar o trabalho com mulheres?
P - É...
R – Tinha inclusive uma data definida, porque, por exemplo, Vanete, que estava junto com outras companheiras, ela foi discutindo com outras pessoas. Ela dividia com uma companheira – filha de um ex-prefeito – que na época era estudante. Veja como são as coisas: era filha de um ex-prefeito e também estava ligada ao movimento de igrejas, mas estudava; formada, entendia de metodologia, dessas coisas, e foram construindo a…
P - A metodologia?
R – A metodologia? Foi trabalhando. Eu não estava nas primeiras reuniões com Vanete e Lauridete, que foi no município de Serra Talhada, numa comunidade chamada Caiçarinha. Depois de duas ou três reuniões, eu já entro nessa discussão da ausência das mulheres no sindicato. Muito embora o meu município já tem muitas mulheres fortes no sindicato, mas não porque tivesse essa clareza de um trabalho de mulher, nada disso. Eu também era mulher, nem sabia que era mulher. Para mim, estava lá fazendo um trabalho importante para que os homens e as mulheres estivessem lá como trabalhadores e trabalhadoras rurais nessa luta. Eu percebi as mulheres em casa, a submissão, via as mulheres dos diretores. A gente fazia reunião e muitas delas só vinham servir um café, então, essas coisas foram nos despertando.
P - Vocês fizeram assim uma leitura de que era importante?
R – Foram surgindo as leituras, elas surgiram dos movimentos feministas. Nós já começamos iniciando as leituras bem feministas, tanto eu quanto a Neta. Porque, na verdade, a gente foi mais cabeça de frente mesmo. E foi muito, muito rápido. Nas primeiras reuniões, nós tínhamos muita dificuldade...claro, evidente. Mas fomos conversando, como nós éramos mulheres e respeitávamos o sindicato, isso facilitou trazer as mulheres. Nos primeiros encontros, os diretores da nossa região levavam as suas mulheres e as mulheres das suas comunidades. Depois saia de casa em casa: “Essa vai comigo”. A gente tinha as pessoas que eram responsáveis, porque a gente tinha muito medo de que quando as trabalhadoras chegassem em casa fossem sofrer reação do próprio marido, dos filhos. Porque evidente que ela não ia voltar com a mesma cabeça, então, tinha toda essa metodologia. Já tinha uma metodologia da gente trabalhar o corpo.
P - Desde o início?
R – Sim, desde o início. Desde o início a gente já trabalhava corpo. Tinha uma organização feminista que nos ajudou, que era o SOS Corpo, Gênero e Cidadania, no Recife, que a gente foi conhecendo. Ao mesmo tempo, a gente enquanto assessora ia levando trabalhadoras rurais. Eu me lembro do primeiro encontro feminista que participamos, em Bertioga, em São Paulo. Foi lá que a gente discutiu a primeira ideia de articular as mulheres em nível de Nordeste. E, quando a gente foi discutir, já tinha umas trabalhadoras e elas ficavam horrorizadas. Algumas por causa da história das lésbicas, daquelas oficinas específicas. Hoje mudou muita coisa. Mas todas aquelas teorias, e algumas teorias do feminismo. A gente trazia as trabalhadoras, mas já orientávamos tudo: “Tu vai deparar com isto, com aquilo”.
P - Era novidade?
R – Era novidade, tá entendendo?
P - Mas como foi isso? Teve uma oficina falando sobre o assunto da homossexualidade?
R – Sobre homossexualidade, tinha falando sobre corpo, sobre mulher. Tinha toda uma parte, por exemplo, com todos os órgãos genitais do homem e da mulher, então, aquelas que nunca foram na escola, não viram no livro, que eram mãe e que eram avó e que fizeram tudo isso no escuro, sem conhecer seu corpo, nem o corpo do seu marido...
P - Era uma mentalidade muito diferente, né?
R – Choro, mais choro. Claro, a gente ficou aprendendo. Mas como é que se falava da saúde da mulher sem falar do corpo? Então, a gente já começou a trabalhar assim. Nossa região, a região do sertão central de Pernambuco, ainda é considerada a região mais avançada na organização das mulheres do sindicato.
P - Mas quando se forma o MMTR?
R – A gente ainda tinha uma dimensão maior, uma preocupação maior. Claro, nós vínhamos espalhando; nós trabalhávamos em 13 municípios, no movimento sindical, eu e Vanete. Eu funcionária do sindicato e ela funcionária da Federação. E o que acontece? Aqui a gente foi se ligando a outros municípios, porque a gente se aproximou muito da Paraíba. Não sei se você conhece a história da Margarida Alves.
P - Não...
R – Menino, precisa conhecer.
P - Por favor, conte para nós.
R – A Margarida Alves era uma liderança sindical que nessa época não era líder feminina. Era uma liderança sindical que hoje é muito reconhecida a nível internacional e foi assassinada pelos usineiros. Uma capacidade específica da mulher; ela encampava luta de classe e era da classe assalariada rural. Então, teve uma briga logo com os usineiros, os usineiros mataram com um tiro de doze na porta da sua casa. Então, eu diria que do sangue da Margarida, brotou muitas margaridas. Hoje tem o dia da Margarida, instituição da Margarida, prêmio Margarida Alves oficializado pelo próprio governo Lula. Só que a gente passou muitos anos lutando, e até hoje, especificamente pela prisão dos criminosos e dos mandantes, esse crime ficou impune. Quando completou 20 anos, a gente retomou a luta. E acho que o cara ficou preso dois meses ou três meses, mas aí soltaram. Então Pernambuco e Paraíba foram os dois primeiros estados a pensar na organização das mulheres trabalhadoras do Nordeste, a importância de se estar por lá, porque a gente vinha pra cá, digamos, para os encontros maiores e as trabalhadoras rurais eram desse tantinho, desarticuladas.
P - No movimento feminista, você diz?
R – Também nos espaços rurais mistos. E a gente queria se articular, enquanto mulheres, mas não só com as mulheres de um estado, víamos já a necessidade de se organizar muito mais. Então, esses dois estados juntos, foram responsáveis de buscar outros estados e mulheres. A gente foi buscar onde a gente tinha referência e, em 86, foi realizado o primeiro encontro regional e a assembleia de fundação do MMTR-Nordeste.
P - Do movimento?
R – É por isso que a gente comemora 20 anos em 2006, em março de 2006. Nós estamos comemorando 20 anos da nossa organização. A nossa organização tem sido uma constante luta de articulação entre esses estados. Porque você precisa estar articulando a sua base, você precisa articular o seu município, você precisa estar no seu estado. Se você não está no seu estado, você não pode ir para a região. Hoje estamos participando de atividades nacionais e internacionais, no Mercosul, no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em redes regionais e internacionais, em fóruns, etc.
P - Quando você fala articular, o que você está falando?
R – Eu estou falando de agrupar. Antes de qualquer coisa, é articular peso. É saber onde é que tem, onde é possível você ir; o que é possível você fazer, como você vai fazer, ou seja, todo um processo também de estudo daquela realidade, daquela comunidade, daquele estado. As ONGs e os movimentos de cada estado tem todas suas complicações. Imagina a diversidade que é reunir os órgãos do Sergipe que é desse tamanhozinho com os da Bahia. Imagina o que é articular a Bahia! Pernambuco tem três regiões geográficas, a Bahia tem oito. A diversidade, de tudo! Nós rurais, com a condição de mulher rural num trabalho dessa natureza.
P - E como vocês conseguiram chegar a essas pessoas? Como se deu a comunicação?
R – Foi um processo, fomos construindo, estamos construindo ainda. Se a gente pegar a Bahia hoje, por exemplo, o MMTR só está em 13 municípios, numa região da Bahia. Teve um período que a gente chamava muito mais, teve período que estava no meio, agora estamos num pedaço. Em Pernambuco, teve um período que nós estávamos apenas no sertão central. Hoje, nós estamos no sertão, no agreste e na mata, mas em poucos municípios nós vamos. Não é como o movimento sindical que vai lá, cujo sindicato está organizado. As mulheres vão lá devagarinho organizar seu grupo, né? E discutindo a proposta do MMTR, então é muito difícil. Nós temos, hoje, cinco programas. Temos um programa de formação de lideranças, um programa de formação de educadoras, um programa de comunicação, um de geração de renda e um de fortalecimento institucional. Nós temos um movimento reconhecido em vários estados já legalmente, estruturado. Nós temos alguns estados que têm sede própria na capital, outros estão se estruturando para isto. Cada estado está de acordo com a sua realidade. A gente não tem uma receita, a gente tem objetivos próprios, missão própria, programas, um planejamento trienal, mas todo ele adaptado. Quando a gente planeja conjuntamente, a gente já entra com a especificidade de cada estado. Tem essa flexibilidade e essa flexibilidade é que muitas vezes choca, porque um estado vai se reunir com outro. A gente se reúne de três em três meses, essa é a dinâmica do movimento. A gente tem uma diretoria com 18 mulheres rurais, duas por estado. Então, de três em três meses, elas estão aqui. A gente passa uma semana avaliando, discutindo, planejando. Outras vezes, são outras diretoras. A gente chama de revezamento. Digamos, essa semana tem duas, no outro mês mais duas para elas irem incorporando a questão, ir se capacitando na questão de gerenciamento. Essa é a nossa dinâmica, de você aprender a fazer fazendo. Aqui, entra a questão da produção, entra a vida das mulheres, o econômico também entra aqui, não só o político [ou] o organizativo.
P - E o recurso para tudo isso, para conseguir estruturar o MMTR, como vocês conseguem?
R – Nós trabalhamos com gente da cooperação internacional e nacional. Apesar de ser um movimento, nós trabalhamos com recursos próprios e do exterior. Nós temos uma política financeira que não é grande, mas não é grande para a necessidade e as demandas do próprio movimento.
P - De contribuição, não é?
R – De contribuição das sócias, que não é a sócia é a política e o estado. O estado das mais diversas formas, mas o estado contribui anualmente com “x”.
P - As pessoas?
R – As pessoas, sua organização, o movimento lá do seu estado. Alguns estados já usam essa política de organizar os grupos de geração de renda, e aí, digamos, de tudo que produz, tem um percentual para a sua organização. Vende na roça e “x” é para a minha organização, para as despesas, atividades.
P - O que vocês vão fazer agora?
R – Todo esse processo se estende por toda a América Latina, mas hoje acho que tem pessoas e organizações que se apoiam na rede... Algumas coisas pontuais. Temos um importante apoio da MISEREOR. Nós temos um programa de cidadania que é o da documentação, do qual a Nazaré falou no primeiro dia; um grande programa de cidadania das mulheres e temos o apoio institucional do Ministério de Desenvolvimento Agrário, o MDA. O resto é pontual. A gente está fazendo projeto quase todo mês. A gente está numa grande dificuldade, mas a gente não para e também estamos começando a abrir para a questão dos apoios dos ministérios.
P - Não teve uma tentativa de políticos entrarem no movimento? Ou mesmo alguma liderança para tentar alguma candidatura?
R – Nós incentivamos e fomos trabalhando, inclusive, nós somos parceiras de um projeto chamado Mulher e Democracia. É um projeto muito legal, que justamente capacita as mulheres, faz todas as análises de fomentar a discussão sobre a situação das mulheres, seja urbana ou rural. Nós estamos já em quase todo Nordeste com esse projeto, vai fazer dois anos. Por exemplo, na comunidade da Nazaré tem uma trabalhadora rural que já tirou dois mandatos como vereadora, mas ela não saiu do movimento. Do Piauí, tem uma trabalhadora que foi candidata, inclusive, a deputada e ela está na Secretaria da Mulher trabalhando com o governo e trabalhando com as mulheres. Nossa política é de que ela vá para lá e fique cá, mantendo sua cabeça de mulher, fortalecendo as mulheres e suas organizações.
P - E ela faz essa ponte das reivindicações?
R – É, tem umas questões que tá sendo difícil. Por exemplo, o Maranhão tem uma política de brigar pela participação na Secretaria da Mulher, ir para lá, no município, especificamente pela Secretaria de Desenvolvimento Rural Sustentável. E, assim, ficou um tanto difícil delas irem para os encontros, de passar uma semana fora, porque sofrem ameaças de redução de sua pouca gratificação. Mas a gente usou a dinâmica de fornecer documentos, que elas estavam em atividade também na profissão, uma atividade de capacitação, para elas não perderem a sua diária. Mas a gente também tem exemplo de trabalhadoras que estão na direção do sindicato e que o próprio sindicato, quando ela sai para participar de atividades das mulheres, descontam a diária de sua gratificação. Então, nós temos exemplos de todas as formas, por isso, digo que a diversidade é muito grande.
P - Queria que você olhasse agora um pouco para a Rede LAC. Você estava no encontro de San Bernardo (Argentina)?
R – Estávamos em San Bernardo. E já fomos socializando algumas coisas naquela oficina. A gente discutia os materiais juntas.
P - Vocês levavam essa experiência de vocês para lá…
R – A gente falava das oficinas, das dinâmicas no aprendizado, das questões teóricas, de trazer para o aprendizado. “Puxa, mas essa aqui não serve para nós”. Mas vamos nos preocupar também com as questões teóricas e discutir concepções dentro do movimento. Então, eu diria que é uma troca; e a questão da América Latina surge aí. Nós fizemos essa primeira oficina.
P - Quem participou dessa oficina?
R – Eu sei que tinha Argentina. Acho que Peru e Brasil, eu lembro bem dessas duas. Não lembro se Nicarágua... Mas, eu lembro que a oficina foi um sucesso. Do Brasil, nós conseguimos levar trabalhadoras rurais do Nordeste e do Norte do país, inclusive do MAMA, Movimento Articulação de Mulheres da Amazônia. A gente começou a se articular e nós já tínhamos inclusive uma preocupação com as mulheres se organizando autonomamente. Já ia buscar mulher lá no Norte. A gente sempre foi ousada. Aí, nós levamos um bom grupo de trabalhadoras rurais. Acho que nós éramos 10 ou 12, entre rurais e assessoras, e foi muito bom. E a gente foi para esta atividade articulada e financiada pela Oxfam, uma organização da cooperação internacional.
P - E nesse encontro também houve capacitações, discussões?
R – Todas, mas não foi mais nenhum espanto. Teve uma trabalhadora rural que não foi em mais nenhum, ela desapareceu. Ela era muito reprimida. Não sei se ela deve ter tido um impacto muito grande. Acho que ela já não sentia mais nem o corpo dela, quanto mais do marido. Então, foi muito difícil ver aquilo lá, as mulheres se beijando, aquelas coisas, né? E naquela época era uma loucura, as mulheres tiravam a roupa. O nudismo estava começando naquela época, então essa é a época do sutiã, do “ti, ri, ti, ti”. Por isso, eu digo que Bertioga foi um espanto, mas San Bernardo já nem tanto. Também já era outra fase. O feminismo estava cumprindo outras concepções e nós inclusive já tínhamos fluído algumas discussões. Nós fazíamos oficinas de mulheres rurais. Então, a história da América Latina e a minha inserção nesse processo surgiram aqui. Eu quero dizer que o movimento automaticamente também vai se fortalecendo…
P - Então, é a partir do ano de 90 que vai surgir a ideia do 1º Enlac?
R – É em 90.
P - Mas para isso vocês tiveram que…
R – Foram seis anos, seis anos de muita articulação. Muito, muito, muito sofrimento, muita coisa boa, mas muito sofrimento. Sem nada, sem estrutura, mas só com a vontade. A vontade era muito grande e o Brasil foi o grande impulsor dessa articulação. Eu não diria do Brasil, mas do Sertão Central de Pernambuco. Vanete foi pioneira nesse negócio e claro que não foi só, foi com a gente, mas a ideia é uma coisa muito forte. Se a ideia se interioriza, ela não sai, mas se você joga para fora - e foi o que Vanete fez, jogou para fora - deu certo e tá dando certo. Nos anos 80, os movimentos de trabalhadores rurais foram surgindo em todas as partes do mundo, especificamente na América Latina. As mulheres já estão organizadas ali, aqui; agora nós temos que nos juntar. Agora não querem mais no Nordeste... Agora, a gente pensa na América Latina. E, para isso, a gente foi ousada. A gente foi pensando... Já foi pensando nessa primeira reunião, em outras reuniões, e fomos pensando na ideia dos encontros e já trabalhando para arranjar dinheiro para fazer reuniões do Brasil, fazer viagem e discutirmos especificamente nos países mais próximos. E foi assim que fomos fazendo.
P - O que ela quer fazer? Qual é a missão da Rede LAC?
R – E a Rede é o quê? Ela tece as informações, ela discute os problemas. Ela puxa, vamos dizer assim, a unificação dos problemas. Para quê? Para uma análise mais profunda, para puxar a história das políticas públicas, das mulheres da América Latina, para daqui sair as políticas para o mundo. Porque uma coisa é nós do Brasil puxarmos nossas bandeiras, trazemos mais trabalhadoras; e é muito importante fazer isso. Então, cada país faz isso. Mas os países juntos - como no 1º Enlac, 22 países - discutir e tirar uma proposta de planejamento de ações unificadas. E a gente já conseguiu dar um certo norte, apesar de todas as divergências e de toda a diversidade.
P - No 1º Enlac?
R – No primeiro. Também porque a metodologia era aberta para isto e o processo, preparatório. Visitas, correspondências, já discutindo os problemas dos seus países. A gente trabalhou muito tempo e tinha uma equipe muito grande, não só de trabalhadores rurais, mas também de técnicas voluntárias, cedidas pelas entidades parceiras, para fazer esse trabalho. O projeto que a gente tinha aqui era só para a passagem. Inclusive, conseguimos toda hospedagem e alimentação do Ministério de Desenvolvimento Agrário com a influência da Contag.
P - Esse foi o primeiro encontro?
R – O primeiro. Foi em 96.
P - E como você trabalhava com essas diferenças, porque cada país tem o seu contexto, tem as suas problemáticas. Isso foi sendo trabalhado?
R – Claro, foi sendo costurado. Foi construída uma coordenação internacional e nacional. A coordenação do Brasil segurou muita coisa, não só porque iniciou essa articulação, mas também porque ficou de sediar... O MMTR Nordeste foi que impulsionou todo esse processo. Era uma instituição de credibilidade organizacional e autônoma. Então, nós que realmente seguramos as pontas.
P - Qual foi a pauta, os temas que vocês discutiram no 1o Enlac?
R – Eu lembro que tinha um muito legal que era questão da produção, questão da terra, a questão da saúde... Eram várias, porque nós trabalhamos muito em oficinas. Nós trabalhamos várias temáticas e, na medida que a gente ia para os grupos, para essas oficinas, já tinha um certo contexto dessas problemáticas trabalhado pelos países. Nós passamos seis anos construindo isso, a gente entrou com uma metodologia que também favoreceu e já sabíamos também o que queríamos de todo esse evento. Estávamos abertas para socializar e até ficarmos caladas e escutarmos os outros países, mas os países da coordenação já tinham uma certa dimensão do que ia ser depois. A nossa tarefa agora já era o quê? Impulsionar as lutas do conjunto. Na minha concepção, eu diria que a gente ainda não conseguia ver o 2o Enlac. Mas eu diria que nós estamos conseguindo essa coisa da solidariedade enquanto mulher. Ela cresce no país...tá sendo socializada, porque essa é a intenção da Rede, socializar a informação, mas até as informações chegarem à Rede é muito difícil.
P - Essa questão dos meios de comunicação?
R – Não é só. Eu penso que os meios também, mas vejo pela minha organização que ainda tem uma comunicação falha. E fico pensando: ela tem toda uma estrutura, todas as condições possíveis. Nós temos hoje inclusive uma jornalista, mas tem outros emperramentos que surgem. Os problemas são de outra ordem. Então, a informação demora aqui para chegar. No 1o Enlac, a gente passava 2, 3, 4, 5, 6 meses esperando que chegasse a resposta de um fax. Eu gosto muito do fax porque é rápido e eu estou vendo; não é o que eu estou escutando. Naquela época, a gente já usava, e nós não tínhamos fax, não tinha telefone. A gente usava emprestado, era uma outra parceria, com um comerciante amigo. Hoje, eu diria que uma grande missão da Rede é tecer essas informações, socializar essas informações e buscar consenso para as grandes lutas. Eu me lembro que para a China, na conferência da ONU, a gente já levou propostas de rurais. Nós tínhamos que fluir nos documentos dos estados. Depois, o documento nacional. O quanto nós sofremos para apresentar uma proposta de trabalhadoras rurais, até porque a gente teve dificuldade de participar dos fóruns e, ou você tá nos fóruns ou você não participa dos debates. Então, você imagina o que é isso no nível de América Latina? A Marcha das Margaridas, por exemplo...
P - O que foi a Marcha das Margaridas?
R – Já ouviu falar da Marcha Mundial das Mulheres?
P - Já.
R – Na Marcha Mundial das Mulheres, são mulheres de todos os cantos, de todas as raças e de todas as classes. A Marcha das Margaridas é a marcha das mulheres rurais. Conseguimos colocar em Brasília mais de 20 mil mulheres rurais. Acontece no mês de agosto, de dois em dois anos. Já fizemos a segunda e agora vai ter a terceira em 2007. Então a Marcha das Margaridas é um grande movimento de marcha. É um movimento que é puxado pela Contag, um movimento sindical rural, e nós somos parceiras no processo. Nós, no Nordeste, iniciamos a primeira discussão no Brasil das mulheres rurais ao nível de marcha. Mas nós fluímos, nós conseguimos visibilidade. As mulheres dos movimentos autônomos são poucas, nestes grandes eventos, mas como a gente usa outras estratégias para dar visibilidade, dar qualidade às mulheres, a gente consegue que nos vejam nesses grandes eventos.
P - Há uma articulação nacional bem forte entre os movimentos das mulheres trabalhadoras rurais?
R – Eu diria que é forte politicamente, porque as mulheres do MMC, Movimento de Mulheres Campesinas, são muito articuladas nacionalmente. Elas estão em Brasília, têm escritório permanente, elas têm mulheres assessoras de deputados e alguns senadores. Elas estão lá, cavando todo dia os projetos, conseguem grandes apoios do governo brasileiro, de alguns ministérios, estão também no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, como nós, mas elas estão lá em Brasília. Eu diria que elas usam muitas estratégias de articulação e estão sempre na mídia, mais do que nós. Mas em relação à organização e estruturação, não. Inclusive, é muito conflituosa a relação delas no Nordeste. Com o movimento sindical, a relação não existe e, conosco, existe fragilizada. Eu diria que sua metodologia em parte não considera totalmente essa diversidade, não considera os vários níveis de formação das mulheres, que nós somos rurais e que somos também diferentes. É aquela que diz: “Todo mundo tem que ser MMC e vai ser MMC”. Como vai ser MMC se eu tenho mais de 20 anos no MMTR? Como é que eu vou ser MMC? Como é que eu vou mudar a minha maneira? Como é que a minha bandeira não vai ser rosa? Como é que não vai ser branca e agora tem que ser lilás? Então é muita confusão. Eu acho que, com isso, elas estão perdendo espaço, porque elas já tiveram muito mais espaço no Nordeste. Mas existem as grandes bandeiras de lutas das mulheres e nelas estamos juntas, porque a gente acredita que não devemos dividir, a gente tem que somar, não é?
P - E agora vocês estão tentando realizar o 3o Enlac...
R – O 3o Enlac poderá se dar num espaço mais curto de tempo do que o segundo, mas tem muita coisa para ser costurada. No segundo, a gente já definiu o país, porque isso é definido e discutido com todos os países. Então, foi definido lá no México, mas os problemas... Por exemplo, eu escutava Vanete dizer que o 2o Enlac foi o momento que mais sofreu dentro dessa articulação latino-americana. Hoje, eu não estou na coordenação internacional. Hoje são outras pessoas na minha organização e eu continuo colaborando e apostando nisso; e estou em todos os momentos maiores. Mas eu acompanho os processos pelos documentos, com as companheiras da minha organização que vão, a gente discute antes, discute depois. O 3o Enlac vai ser no Equador e a gente já teve uma reunião aqui. A companheira do país que vai receber já tem muitas atividades. A gente já discutiu algumas questões que tem que ir agilizando com mais rapidez, como, por exemplo, o próprio livro da nossa história. Já definimos que o primeiro encontro da coordenação...
P - Você está falando de coordenação executiva?
R – Tem uma coordenação nacional e tem uma coordenação executiva internacional. Do Brasil, acho que são três. Uma é do MAMA, outro é da Contag e outra do MMTR-NE. llda que é secretária executiva do meu movimento, é da executiva internacional. E tem a coordenação nacional - cada país tem a sua. Na coordenação internacional, acho que são cinco países. Esses cinco países vão se encontrar em outubro para discutir esse evento, porque agora eles vão se encontrar no Uruguai para discutir as questões da secretaria executiva. A coordenação do Enlac...acho que são cinco, seis países. Vão se reunir só em outubro. Agora, se você me perguntar o que vai ser da Rede daqui pra frente, eu não vou saber muita coisa não, porque isso também depende muito de quem está na Rede, de quem está de frente. Então hoje é uma, e amanhã poderá ser outra.
P - No 1o Enlac participaram 22 países, no 2o Enlac foram 18. Por que aqueles saíram?
R – Não é que saíram.
P - Ah, não?
R – Eu diria, porque não estiveram no 2o Enlac.
P - Por quê?
R – Vários problemas, e eu digo que o principal problema foi o processo da articulação. Eles não podem vir para o Enlac despreparados. Eles têm que preparar a sua delegação. Um dos critérios é ter a sua delegação preparada, e a coordenação internacional tem que ter um certo monitoramento. Outro problema é de organização. Outros tentaram o visto, porque parece que alguns países estavam em conflito e não conseguiram chegar. Teve também o problema financeiro. No 1o Enlac, nós passamos semanas e semanas, eu e mais outras, em Brasília, com os projetos na mão pedindo dinheiro, de embaixada em embaixada, de ministério em ministério, solicitando apoio para o 1o Enlac. No 2o Enlac, a política financeira foi diferente: dividimos com os países as despesas de viagens. Era muito correto que fosse 50%. Todos tinham que se mexer para conseguir recursos financeiros. Então, tem toda essa dinâmica. Não tenho muita clareza, porque eu já estava mais recuada do processo - até o primeiro eu estava muito na frente com as outras. Agora, certamente vamos lutar para circular mais países. No Nordeste, já tivemos mais de 800 grupos de mulheres organizadas em seus estados, hoje estamos com menos de 400. Nós estamos fazendo altas reflexões deste contexto, mas a gente não pode esconder essa realidade.
P - O que está acontecendo?
R – São várias, várias coisas acontecendo - das dificuldades econômicas das mulheres às relações políticas das próprias mulheres, - porque hoje, a gente não pode negar: temos os conflitos de poder. As dificuldades econômicas influem, porque, de repente, eu não posso mais estar aqui, por questão de sobrevivência, de desemprego; a expulsão do campo para a cidade, então isso dispersa. Eu também diria que, quando a gente começa, é muito fácil: eu estou cheia de energia, acreditando em tudo e eu digo “Eu quero isso para mim e para as mulheres”. Então começam os confrontos, os conflitos individuais, desgastes. E isso também conta. “Eu esperei tanto. Queria que a vida mudasse, não mudou”. E tem também muita história de violência. A violência, eu digo que ela vai aumentar. Vanete diz: “Mulhé, eu acho que não. Acho que a violência está mais visível”. Eu não sei... No contexto rural, as mulheres que estão nos movimentos têm outros tipos de violência, são agredidas de outras formas. Os movimentos que têm grandes apoios, parcerias (no começo, a gente nem usava essa palavra “parceria”), mas nós tínhamos muito apoio de ONG, de paróquia, de diocese. O que o povo faz, que tudo dá apoio. A cooperação internacional vai tirando os apoios. Vai tirando, tirando, e o que acontece? Você na sua ONG, tinha dez pessoas e ficou com cinco, e estas cinco vão fazer o trabalho de dez. Como é que eu vou tirar uma para fazer um trabalho voluntário para o MMTR, para as trabalhadoras rurais? Então, essa coisa foi dificultando o processo. Hoje há uma grande crise de assessoria nos movimentos das comunidades rurais. É claro que nós estamos cursando universidade. Os projetos de apoio foram tirando tudo. Hoje, 80% dos estados não têm mais apoio da cooperação internacional. Então é uma crise financeira muito grande. Também falta gente capacitada para fazer projetos. Esse povo exige mais papel do que prática, a gente sabe muito bem disso. Quem escreve o papel bonito é que recebe o pedaço maior. Eu sou uma das pessoas que briguei muito na minha organização e, às vezes, deixamos de receber apoio por conta disso, por ter que mudar de dinâmica, mudar de linha de ação, que é a coisa da moda. E o movimento, ele é muito preservado na sua identidade. Acho que isso também influi, mas eu sinto que nós estamos evoluindo. A gente diz assim: “Como é que tá caminhando isso no Maranhão? No Piauí? No Ceará”? Você imagine o que é trazer essas coisas, as suas articulações numa base de grupo. É consenso de que grupo de base é realmente a base de sustentação do papel da organização do mundo, mas não é fácil sair daqui e chegar ali para fazer uma capacitação. Entra aquela história de dimensão geográfica: falta transporte, falta dinheiro… As lideranças têm “n” atribuições no partido, nos espaços todos…
P - Para lutar contra os outros boicotes de outras organizações…
R – Isso, nem fala... Na nossa análise, quando no MMTR, chegamos à conclusão que vamos voltar para fazer um trabalho pequenininho: vamos manter outra estratégia, voltar a fortalecer, investir. Em 2006, já foi um investimento. Nós estamos culminando com dez assembleias, nove estaduais e uma regional, que acontece agora no início de dezembro, onde estamos trazendo toda essa informação, essas análises dos estados. Ontem eu já estava lendo, trabalhei até certas horas, lendo justamente a nossa avaliação dos 20 anos para que eu possa propor algumas coisas, que possa fluir, é claro, que a metodologia também ajude. Não sei como vai ser, mas espero que venha um resultado positivo dos grupos de bases. Tomara, porque senão eu vou me angustiar. Também não vou me deprimir, mas vou me angustiar um pouco, porque a gente já tá investindo bastante nisso.
P - O que aconteceu? Vocês começaram a investir mais para ter a rede internacional e deixaram um pouco a base de lado?
R – Por um período. Todos [os] projetos, inclusive os da Rede LAC, eram em nome do MMTR Nordeste. Só que hoje não é mais. Até poucos meses atrás, durante esses anos todos, os projetos estavam em nome do MMTR. Entravam em choque. Você está gerenciando o seu movimento e tem que estar gerenciando também a Rede. Eu digo, gerenciamento de contabilidade, acompanhar o processo. E mais uma dificuldade em relação ao apoio, porque nós temos que arrecadar dinheiro para nós e para a Rede. Então dizemos: “Quanto a Rede está fortalecendo o MMTR?”. Foi uma discussão dentro do movimento. O movimento é para fortalecer a Rede, mas quem vai fortalecer o movimento? É uma discussão que ainda está se dando e nós vamos levar para Brasília.
P - Na verdade a pergunta é: para que essa Rede? No que ela nos ajuda?
R – É, vamos ter que chamar mais essa discussão. Nós todas precisamos de mais clareza disso, eu não sinto ainda qual [é] o processo.
P - Mas, até agora, qual foi a importância da Rede?
R – Eu acho que ajuda na visibilidade.
P - Das questões das mulheres?
R – Das mulheres e do movimento. Primeiro, para as mulheres, tem sido um grande espaço de conhecimento, dessa diversidade da América Latina. É um grande aprendizado para as mulheres, para o enfrentamento, para sair do seu mundo, do seu país, conhecer outras culturas, conhecer outra produção, outras riquezas e outras pobrezas. Então é muito legal isso. Para o MMTR, tem ajudado também. Quando a gente trabalha com a cooperação internacional, com as relações de parceria, fortalece o movimento quando você diz: “Nós somos fundadoras da Rede LAC”. Todo esse movimento do Nordeste, das mulheres rurais, para articular a Rede. Ao mesmo tempo a gente está impulsionando a Rede na América Latina e estamos ainda iniciando uma discussão de Rede específica de mulheres produtoras rurais no Nordeste, que faz estarmos muito mais avançadas. Essa é uma discussão nova dentro do MMTR, porque nós achávamos que estávamos contempladas numa rede de mulheres produtoras do Nordeste, mas, quando a gente começa a participar da rede de mulheres produtoras, percebemos que nós não estamos totalmente contempladas nessa Rede. Nós precisamos de uma rede que seja específica de mulheres rurais no Nordeste e de produtoras. Nós estamos no processo difícil de construção dessa rede. Assim é a dinâmica: você vai para lá construir uma coisa grande, mas você tem a necessidade de uma coisa pequena também. Construímos grandes lideranças, que estão no Conselho Nacional, que conseguem viajar o mundo todinho, mas agora nós vamos ter que voltar a todas as cidades.
P - E você acha que isso é um fenômeno que está acontecendo em todos os países participantes?
R – Eu não tenho muita clareza dessa discussão, porque não puxamos essa discussão dentro de América Latina ainda…
P - Ainda vai ser feito?
R – Eu diria que nós estamos fazendo a discussão dentro da nossa organização. Nós estamos nos preparando, porque essa discussão é muito forte e estamos nos preparando para isso. A gente precisa ter mais clareza da continuidade da Rede. Nós somos obrigadas, quem tiver enxergando, a ir levando para as meninas aqui também da Secretaria, discutindo também com outras organizações que estão dentro da Rede.
P - Já entrando na avaliação e finalização da nossa entrevista. Qual o seu sonho para a Rede?
R – Às vezes, a gente pensa pouco nos sonhos, né? Poxa, eu não tenho nem tempo! Eu vou fazendo, vou fazendo, mas é assim...eu diria que meu grande sonho, eu acho que ele vai para Rede, é ver as mulheres continuarem. Antes do meu sonho de continuidade, de futuro, eu tenho uma preocupação: que muitas coisas se perdem no processo, porque tem umas pessoas muito de frente, e as questões não são eternas, nem continuam eternas na organização. Eu sei que tem muito jeito de a gente continuar contribuindo. Eu não preciso estar aqui para estar contribuindo - tem gente muito distante, e está contribuindo com a luta das mulheres do mundo, - mas eu tenho que ter essa visão. Acho as visões ainda localizadas, ou na sua comunidade, ou no seu estado...e acho muito legal conseguir dentro de um país, da América Latina e do mundo. Nós, como mulheres rurais, já temos essa visão até de mundo. Aí vem a minha primeira preocupação: como que vai ser de recursos? E essa preocupação me leva a sonhar a ver essas mulheres evoluir, crescer. Crescer como gente. O meu grande sonho é ver a humanidade, principalmente as mulheres, evoluírem, porque eu acho que egoísmo...a individualidade é muito grande, a inveja, as ambições, a briga de poder. A gente não pode negar. Sempre existiu nas nossas casas, na nossa família, na nossa comunidade, isso tudo, numa certa dimensão. Você imagina o que é isso? Na América Latina então. Meu grande sonho é esse. Esse aí, ele vai para a Rede, ele vai para a vida de todas as mulheres. Eu fico muito, muito feliz quando as pessoas fazem as coisas sem esse apego. Eu sou uma pessoa muito de improviso em todas as coisas, até minha filha que eu resolvi adotar, eu não pensei. Fui fazer uma articulação com um diretor do STR e cheguei na casa da minha mãe e me disseram assim: “Tu sabes que fulana vai dar o filho dela?”. Eu só escutei e disse: “O quê?”. Eu fui fazer a articulação das mulheres numa comunidade vizinha - eu ia dirigindo inclusive uma Toyota, com carroceria grande, ia com o diretor do sindicato. Minha filha fez 20 anos. Eu peguei, ela tinha três. Então, 17 anos atrás. Quando eu voltei já era início da noite, escurecendo, eu disse para o diretor do sindicato: “Tu topa ir ali naquela casa?”. Era uma casa dentro da roça, que tinha que deixar o carro fora e caminhar na roça à noite. Eu digo: “É muito ruim de enxergar à noite.” Ele disse: “Vou”. Aí fui, cheguei lá...eu não gosto muito de lembrar da cena. Ela já preparou essa criança e me deu.
P - Na mesma hora?
R – Na mesma hora. Não pensou duas vezes. Um negócio que me impressionou. Foi uma coisa boa na minha vida, na vida da minha filha, na vida do pai e da mãe dela, a gente é muito junto, se relaciona muito bem. Eu penso assim... Ter namorado improvisado. Minha vida toda foi um improviso, se está aqui, me chama. Lá no 2o Enlac, foi assim. Minha organização disse que eu não vinha, aí eu fiquei muito chateada. Aí com três dias, o meu passaporte estava vencido; a Rede liga para mim e disse: “Tu tens uma passagem para ir para o México. Topas?” Eu ainda disse: “Me dá quantos minutos para responder?” Eu estava fazendo as contas, as contas de ir lá. Então, eu no ligeirinho, as mulheres, a minha equipe de trabalho, todo mundo fez uma corrente. “Vai que nós liberamos agorinha.” Era uma hora e meia de viagem. Vai organizar teu passaporte.” Eu disse: “Mas eu não tenho dinheiro, como é que eu vou?”. E eu fui com 50 reais para o México e botei umas coisas que eu podia vender na mala, e eu cheguei em São Paulo. Eu me lembro que fiz o câmbio em dólar de 50 reais e fui com esse dinheiro, e ninguém foi se despedir de mim. Lá tem tudo, então, eu não vou perder essa grande oportunidade de botar a minha cara nesse evento. E botei a minha cara política, a minha cara assessora, a minha cara gente, botei toda minha cara, botei tudo que eu tinha no México. Vendi minhas coisas, comprei lembrancinhas e vim me embora. Então é por isso que eu digo eu não tenho tempo de sonhar, porque eu acho que já estou vivendo como estava previsto, mas é bom.
P - Você levantou um tema importante que é a questão da renovação das pessoas, na coordenação, no engajamento. Como está isso?
R – Os movimentos começam. A gente investe muito nas mulheres jovens. Nós, inclusive, temos um encontro específico só de mulheres jovens - tem a jovem no movimento, mas a idade já é avançada, e a jovem de idade. Hoje, nós temos várias mulheres dentro da própria coordenação do Nordeste. É uma preocupação que a gente vem trabalhando e capacitando liderança para isso. Nós temos hoje um Estado, o Estado de Alagoas, onde 90% da coordenação são mulheres jovens. Nós temos sindicatos que cerca de 80% a diretoria são mulheres e jovens. Mas a gente se preocupa não só com a jovem de idade... É jovem de espírito, mas não é jovem de conhecimento. Não conhecer o processo, querer negar o processo, essa é a minha preocupação. Eu não posso construir o presente sem futuro, sem passado. É muita decepção. Às vezes, tem gente que entra logo para boicotar. Acho que cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa contribui do seu jeito e quanto mais você soma, mais é importante. Mas tem gente que pensa que: o que não concorda comigo, não tá dando certo com o meu pensamento e a minha ideologia, então, você não serve para nada. Aí, nessa hora eu sou radical: se não vem para somar, vem para dividir. Aqui não é espaço para dividir, é espaço para somar, então, você tem que compreender isso. Tem um espaço de respeitar as diferenças. Ou você respeita ou está querendo achar que tu é mais. Eu estudei, mas pouca gente sabe que eu fui para faculdade, por quê? Porque eu convivo minha vida inteira com muita gente nesse mundo que pensa que eu sou trabalhadora rural, e o meu jeito é de trabalhadora rural ou vou ser para sempre [uma]. Mas, claro que eu tive outras oportunidades, tive oportunidade de fazer monografia. Sou feliz porque contribui para trabalhadora rural que não tem nem a quarta série primária e faz uma monografia; e rompe com toda essa estrutura de educação e de poder. Hoje, as mulheres rurais podem e devem competir com monografia em pé de igualdade com o prêmio Margarida Alves que é uma coisa do governo. “Você já fez a sua? Escreveu o quê? Manda pra lá que a gente faz uma revisãozinha”. Não podemos fazer muita coisa, porque não temos tempo, mas estamos incentivando as trabalhadoras rurais a escrever. Estou consciente de que já dei a minha contribuição. Inclusive, eu conversava ontem à noite que em 2007 vou encerrar a minha carreira com muita dignidade no movimento de mulheres trabalhadoras.
P - Você pensa em encerrar...
R – Penso, porque eu quero contribuir com as professoras rurais.
P - Mudar de foco.
R – É, mudar de foco. Neste foco, eu já trabalhei 30 e tantos anos. Privilégio para mim, privilégio para o mundo rural, mas agora eu quero trabalhar com as professoras rurais. Eu tenho todo um projeto... Eu quero voltar para esse espaço, porque desde criança fui professora de verdade. Eu acho...eu nem tinha pensado nisso, sabia? Não tinha pensado, estão me trazendo isso. Sabe o que está me motivando a fazer isso? É a história da autoestima das mulheres. É o que está me levando a elaborar um projeto, discutir as relações. Professores que hoje são deputados federais, que já tem alguma coisa voltada para o campo, mas não tem nada voltado para as mulheres e mais, a questão da autoestima dos professores. O jovem sai do mundo rural, porque a escola não motiva, motiva para ele sair. Então, é cruel a educação dada nas comunidades rurais. Eu quero fazer primeiro com as professoras. Porque você se capacita, mas vai trabalhar com quem? Com 20, 30, 40 jovens. Aquele jovem, consequentemente, vai fazer um trabalho na sua família. Isso é o que eu quero. Então, eu vou trabalhar única e exclusivamente [a] autoestima, identidade. Eu quero muito trabalhar com a história de identidade, porque pra isso eu não posso ficar aqui.
P - É outro momento…
R – É outro momento. Eu quero fazer isso junto das prefeituras, porque eu já quero fluir dentro do planejamento do município, senão não chega nunca [em] uma coisa. Meu tempo está pouco aqui nesse planeta. Aí às vezes eu digo assim: “Cadê meu lugar nesse planeta?” Podem ter certeza de que vocês vão continuar me vendo, sonhando e eu quero continuar cutucando. Isso é brincadeira, mas eu acredito muito em outras vidas.
P - Auxiliadora, você queria deixar uma mensagem para as mulheres que um dia possam chegar a ver sua entrevista?
R – Quero dizer para as visíveis e as invisíveis, as que eu conheço e as que eu não conheço, que esta experiência possa servir de alguma lição. Claro que não é possível falar tudo, mas eu espero que frutifique, que multiplique e que nós mulheres possamos, na verdade, deixar de ser tão perseguidoras de outras mulheres. Porque os homens somam, se ajudam muito nas lutas específicas deles e nós mulheres estamos trabalhando muito essa questão. O problema de uma mulher é problema de outras mulheres, e o prazer de outras mulheres pode ser o prazer de tantas, tantas e tantas outras mulheres.
P - E o que você achou de dar essa entrevista?
R – Eu estou melhorando, já consigo...mas eu tenho muita dificuldade de falar, eu tenho também muita dificuldade de gravar as coisas, eu esqueço. Acredito que deixei [fora] muitas coisas que eu deveria ter falado, mas eu acho que essa entrevista, ela é limitada, mas também é prazerosa, né? Às vezes, a gente lembra. E acredito que eu trouxe coisas que, na minha vida, eu não tinha pensado. E eu acho que, quando eu começar a ler: “Puxa, eu disse isso?”... Eu já convivi com um bocado de gente e eu sou muito de esquecer, e acho que eu esqueço porque eu sempre trabalhei muito. Sabe por quê? Porque eu sofro muito quando eu sei de uma notícia que não é boa de uma pessoa que eu amo e aí eu prefiro não lembrar muito. Daqui uma semana vou lembrar. Eu fui para São Paulo, passei uma semana, trabalhei com as meninas lá do Museu da Pessoa, eu vi o Danilo. Eu fico: “Aconteceu?” “Gente, aconteceu isso com Danilo?”. Eu vou logo cuidar de outra coisa. Isso é cruel, mas eu estou dizendo, eu faço assim. Mas eu acho que assim consigo ficar mais leve e aparentando uma felicidade que às vezes nem é tanto? Eu conheço muitas pessoas que precisam dessa minha alegria para viver, porque sofre mais do que eu. Então isso também me custa caro.
P - Maravilha.
R – Então, eu estou muito feliz de dar esta entrevista, e estou feliz porque mais um imprevisto na minha vida aconteceu; e eu tenho certeza que eu não só contribui com essa entrevista, mas que contribui nestas discussões todas e vou contribuir nesse livro. E eu nem imaginava que eu ia contribuir num livro da história da Rede LAC. Para você ter uma ideia, o livro da história e memória do MMTR ainda não foi feito. “Então vai ser igualzinho à história da Rede”. A gente já tem a história da Rede LAC e agora começamos o livro. Isso vai nos incentivar, porque o nosso já tá sendo conversado, mas é porque as coisas acontecem no seu tempo.
P - Bom, em nome do Museu da Pessoa: muito obrigado, Auxiliadora.
R – Um beijo para vocês. E eu vou fazer um esforço para não esquecer de vocês.
[Fim do depoimento.]
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