P/1 – Seu Arnone, você fala então para mim seu nome inteiro, local e data de nascimento?
R – José Arnone Filho. Eu nasci em 1946, em nove de outubro.
P/1 – Você nasceu em São Paulo?
R – Eu nasci em São Paulo, na Bela Vista, no antigo Bexiga.
P/1 – Você nasceu em hospital ou…?...Continuar leitura
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Seu Arnone, você fala então para mim seu nome inteiro, local e data de nascimento?
R – José Arnone Filho. Eu nasci em 1946, em nove de outubro.
P/1 – Você nasceu em São Paulo?
R – Eu nasci em São Paulo, na Bela Vista, no antigo Bexiga.
P/1 – Você nasceu em hospital ou…?
R – Não, não. Eu nasci no velho Bexiga, naquela época, nada de hospital, eu nasci na minha casa, mesmo. Eu, meus irmãos, minhas irmãs. Era o que a gente chamava de parteira, não era nem médico. Eu não nasci em hospital, não. Na bela Vista, na rua Treze de Maio, mesmo.
P/1 – Como é que era? A parteira vinha na casa?
R – Ela… bom, isso era um…
P/1 – Costume, né?
R – Costume, né? Existiam poucos hospitais nessa época, mas já existiam, naturalmente, mas era a parteira da família, né, que fazia os partos de todos os parentes e eu não me recordo o nome dela, mas ela fazia toda nossa família, a família Arnone, quando veio da Itália, se fixou na Bela Vista, então, era um próximo do outro, era uma família grande. E eu sei que ela não só a família Arnone, mas todas as famílias do bairro, era a parteira do bairro, vai. Vamos chamar assim. E o parto era feito em casa, água quente, era isso.
P/1 – Ah é? Que mais? Aquela banheira? Você viu acontecer algum assim?
R – Não, eu não vi acontecer.
P/1 – Mas você sabe como que é?
R – Sei, a gente ouvia as histórias, eu nunca vi. Eu não vou dizer para você que todas as casas tinham banheira, o que existia em todas as casas eram os recipientes grandes, umas bacias grandes de metal, que se usava para várias finalidades. Eu acredito que era esse tipo de bacia, mas eram nos quartos… a gente vê muitas vezes em alguns filmes, né, o serviço da parteira no quarto com panos molhados, tal. É aquilo. Em cama, não é… sei lá, talvez a bacia fosse para levar a água quente, essas coisas, para fazer assepsia, é isso, é o que a gente vê em filmes, principalmente, em filmes italianos, é bem isso. Ficava a família, né, as senhoras em torno da parturiente e a parteira que fazia o serviço e as outras ajudavam.
P/1 – Entendi. Agora, me fala o nome inteiro do seu pai, onde ele nasceu e quando?
R – Meu pai se chamava, italiano, era Giuseppe Arnone, mas quando imigrou para cá, teve que usar o José, foi uma exigência das autoridades federais. José Arnone, ele nasceu em 1910. Calabrês, veio da Calábria, veio com os pais dele, ele veio garoto ainda pra cá e mocinho, veio jovem ainda para cá, não era menino, era jovem, tinha 16 ou 17 anos. Minha mãe também veio da Itália e o nome da minha mãe é um nome interessante, o nome da minha mãe era Achiropita Scorza Arnone. A
Achiropita é a santa padroeira lá da Calábria, de onde eles vieram Rossano, eles vieram todos de Rossano, da Calábria, as famílias e todos os calabreses daquela região vieram, não só a nossa família, todos vieram para a Bela Vista, tanto é que aí, eles montaram a igreja Nossa Senhora Achiropita, que é a igreja padroeira lá em Rossano na Calábria, de onde eles vieram e minha mãe tinha esse nome, Achiropita.
P/1 – E o seu pai… você sabe o que a família do seu pai fazia lá na Calábria? Do que eles viviam?
R – Olha, lá, na verdade é o seguinte, eles tinham… o meu pai com o meu avô, eles tinham um sitio, então eles plantavam, eram agricultores, plantavam de tudo, azeitona, castanha, aqueles produtos regionais. Então era isso, eles eram agricultores. A gente não tem ainda… eu não tenho essa história muito detalhada, porque eu não tive a oportunidade de detalhar mais, teria que voltar lá para pesquisar. E o meu pai sempre contava que o avô dele trabalhava nos correios da Calábria, ou era… falava que o correio era do avô dele, eu não sei bem. Então, tinha uma parte da família que trabalhava nos correios, tanto é que existe hoje lá na Calábria, a cidade chama-se Catanzaro, tem um palácio lá, o Palazzo Arnone, que virou museu. Então, eu não pesquisei, talvez lá fosse a sede dos correios, eu não sei. Alguma coisa tem a ver com essa história que me contaram. Então, eles eram agricultores, tinha alguém da família que fazia outra coisa, antes deles virem ao Brasil, vieram os tios do meu pai, os irmãos do meu avô, vieram dois tios dele para o Brasil, não foram para o café, não foram para lavoura. Um deles se tornou açougueiro e o outro se tornou, na época, não era feirante, era, a gente chamava de carroceiro, que nem hoje em dia tem, tem a carroça dele ambulante e vai vendendo as coisas na rua. Esses vieram antes e se fixaram aqui. E da minha mãe, idem, eles vieram… a minha mãe já veio com o meu avô e também não foram para o café. Aí depois, veio o meu pai e o meu avô, então por isso, como tinha já alguém responsável, eles não foram para a lavoura de café e vieram já com um trabalho específico. Meu avô foi trabalhar primeiro, no açougue do primo dele, do tio do primo dele, depois foi para a feira também, começaram como feirantes. Meu pai não, meu pai se tornou operário, ele foi trabalhar… o primeiro emprego do meu pai foi como operário, ele foi trabalhar numa indústria de chapéus, chamava Ramenzoni, até hoje tem, não sei onde ela tá e ele se tornou operário aprendiz de fazer chapéu, trabalhou alguns anos lá, depois cresceu e foi para feira também. Aí, todos, todos viraram feirantes, meus tios, avô paterno, avô materno, todo mundo foi para a feira livre, essa feira livre que até hoje existe. Foi aí que eles se engajaram e começaram a crescer, começaram a construir na Bela Vista, cada um construiu sua casa, cada um morava numa casa, todo mundo perto, então foi isso, eles vieram. Eram agricultores e aqui se tornaram feirantes, antes de irem para a zona cerealista.
P/1 – Entendi. E eles falaram pra você tanto da parte de mãe, quanto da parte de pai, mais ou menos como que foi a viagem para chegar aqui? Você tem histórias sobre isso ou não?
R – Eu não tenho essa história da viagem, mas não é muito diferente de toda história da imigração italiana que a gente lê no livros, aí, né? Claro, eles vinham em navios, não vinham naquele regime semiescravo, que morria gente, não, eram navios bons, era segunda classe, terceira classe, era por classe, mas tinha refeição, tudo, ninguém ficou doente nessas viagens, não era aquela imigração tipo africana e que o pessoal morria no navio, não. Era uma coisa, bons navios, se pagava, tinha custo, era barato, mas… então, não tenho noticias da viagem, eu não me lembro muito, eles não comentaram muito, mas eram viagens normais, inclusive depois, na sequência, coisa de poucos anos, alguns anos, vieram mais parentes Arnones, então meu pai era inclusive, responsável por alguns filhos dos primos dele que ficaram lá. E vieram, eu até me lembro desses navios, eu fui a Santos com o meu pai, com a minha mãe para receber os primos lá, os filhos dos primos. Me lembro que tinha um navio chamado Conte Biancamano, tinha o outro Grande C, então eram navios italianos, da bandeira italiana, já eram muito bonitos, esses transatlânticos, mas eram bem bonitos, pessoal vinha muito bem vestido. É mais ou menos isso, eles não pegaram a fase ruim, não. Foi aquela imigração que saiu a maioria para os Estados Unidos, né, para fazer a América e outra para esta América. Eles vieram para esta, não foram para a América do Norte e nessa época, já não havia tantos problemas na viagem. Claro, sempre tinha alguém que adoecia, mas para a nossa família foi muito bom.
P/1 – Então, meio que já vieram numa outra geração que era melhor a condição?
R – Era pago, tinha que pagar, não era de graça.
P/1 – E o seu pai falou como que era esse trabalho no operariado?
R – Isso ele falava demais. O meu pai, a Ramenzoni, a fábrica de chapéus foi um dos grandes marcos da vida dele, apesar de ser muito curto. Ele se apaixonou tanto, tanto pela fabricação de chapéu, ele entendia, ele via um chapéu, ele sabia o que era e ele se tornou um fã do chapéu. Ele começou a usar chapéu desde que ele se tornou adulto até o dia em que ele morreu. Então, ele não vivia sem… ele era conhecido na zona cerealista, inclusive, por causa do chapeuzinho, ele tinha vários chapéus, só andava de chapeuzinho à noite, de dia, quando punha um terno e uma gravata, punha um chapéu. Enfim, e ele tinha vários. E inclusive, eu me recordo muito bem, aliás, se usava muito chapéu também, não era só o meu pai, naquela época, na Bela Vista, no Bexiga, outros bairros, Mooca, Brás se usava. Os europeus e descendentes usavam muito chapéu. E tinham lojas e lojas de chapéu aqui no centro, até hoje ainda tem duas. Naquela ladeira que vai dar na Praça do Correio, ali, deve ter mais duas lojas de chapéu, ainda. Não só esse chapéu hoje sertanejo, ou panamá, mas os chapéus… ele se tornou tão apaixonado que tinha coleção de chapéu. Eu me lembro que na zona cerealista, de vez em quando, eu vinha um senhorzinho que reformava chapéus. Vinha buscar o chapéu do meu pai, lavava, limpava, reformava, ficava impecável de novo e ficava conversando com o velhinho lá sobre chapéu, que tipo de feltro, a paixão dele, então ele aprendeu muito. Mas ele trabalhou como operário e depois, saiu e foi para feira. Na feira, ele usava chapéu.
P/1 – Que tipo de chapéu ele usava? Você se lembra?
R – Esse chapéu social, chapéu de feltro, chapéu… no inverno, um pouco mais encorpado, de lá, aquele chapéu tipo borsalino, são vários tipos de chapéu, eu que não entendo tanto assim, mas eu tenho, eu gostei muito, eu tenho lá uns chapéus de panamá da vida, esses que a gente usa, né? Mas não vou usar aquilo, não ia na zona cerealista de chapéu. Usava na zona cerealista o chapéu, eu usava. Ele me deu, porque a gente começava muito cedo, começava de madrugada na zona cerealista, quando eram cinco horas, nós estávamos abrindo as portas de todas as empresas, fazia muito frio, por causa do rio Tamanduateí, batia um vento ali que a gente andava na rua, a gente não era gabinete, era rua, o nosso era na rua, a frente das empresas e tal e no inverno, era capote e chapéu para proteger. Eu usava, tenho até hoje chapéu. Coisa fabulosa. Era um chapéu… a gente chamava de um chapéu social, depois que veio aí o sertanejo, aí é outra coisa, diferente.
P/1 – A gente já chega lá na zona cerealista, mas vocês chegaram aqui, tal, o seu pai quando era operário, você tinha quantos anos?
R – Não…
P/1 – Você não tinha nascido ainda?
R – Não, não. Eu nasci, ele já era feirante. Eu nasci em 1946, todos eles, ele, meus tios, meus avós já eram feirantes, já estavam na feira.
P/1 – Tá. E você tem irmãos?
R – Somos eu, um irmão e duas irmãs. Uma irmã falecida, meu irmão falecido, que era meu sócio na zona cerealista e agora, tenho mais uma irmã só. Somos em quatro.
P/1 – Como é que é essa escadinha, aí?
R – Eu sou o mais novo, tenho 69 anos. O meu irmão… a minha irmã mais velha faleceu, meu irmão faleceu também no ano passado e agora, tem a minha irmã na sequência minha, na escadinha, tá? Éramos em quatro.
P/1 – O seu pai, ou a sua mãe falaram pra você como é que era ser feirante quando eles começaram? O quê que eles vendiam, se era difícil ou se era fácil? Onde que eles vendiam?
R – Sabe o que acontece? Eles pegaram a época em que tudo estava começando na Cidade de São Paulo, não no estado, estava tudo começando. Assim que o meu pai começou a
feira, só para ter uma ideia, quando ele… por isso que eu não tenho como precisar problema de ano… assim que ele começou a feira, ele, porque eu já tinha avô na feira, meus tios estavam começando, enfim, assim que ele foi para feira com a barraca dele, cada um tinha a sua barraca separada. Ele recebeu um convite, não sei porque, mas era por causa dos fornecedores, naturalmente, tinha que fornecer a batata, cebola, o alho, sei lá o que, ele recebeu um convite, meu pai, para montar uma banca de frutas no Mercadão, na zona cerealista, e ele foi. Ele ganhou uma banca, ele ganhou uma banca… ele contava essa história para todo mundo, que ele ganhou uma banca de frutas e foi para lá, quer dizer, não tinha ainda essa… todas essas vias de acesso, Anhangabaú, tudo era meio mato, tudo meio tosco, ele já morava na Bela Vista, no Bexiga, que não é tão distante. Já era casado, minha mãe levava todo dia almoço para ele no Mercadão a pé, depois é que veio o bonde, levava a pé. Ele ficou, se não me falha a memória, seis ou oito meses no Mercadão e não gostou, era uma coisa muito… era o principio, ele achava a feira mais empolgante ou melhor financeiramente lá e ele voltou para a feira. Então, a feira sempre foi para a família um ícone do crescimento das famílias, quer dizer, eu, meus irmãos, meus primos, nós crescemos em torno daquilo que a feira proporcionou, tanto é que todo mundo construiu suas boas casas no bairro, passaram a ter mais conforto. Ninguém tinha carro, né, não existia isso, mas começou a se viajar de férias para Santos ou para Poços de Caldas uma vez por ano, todo mundo trabalhava, meu irmão assim que fez 15, 16 anos, foi trabalhar, minhas irmãs também, porque o menor podia trabalhar naquela época. Eu também. Mas a feira foi o galgo para nossa família foi o sustentáculo. Então, nada… tinham histórias muito interessantes da feira, tinham conflitos, tinha fiscalização, tinha um monte de coisa, às vezes, perdia-se dinheiro, tinha que jogar mercadoria fora, mas a feira era empolgante, era tão empolgante que o que eles fizeram? A casa dos meus avós ali na bela Vista era muito grande, tinha um quintal muito grande lá no fundo. Eles compraram um caminhãozinho na época, esse caminhãozinho era para toda família, cada um punha a sua mercadoria e depois, na madrugada ia para a feira. E no fundo da casa do meu avô, cada um fez um box, uma divisão, uma divisória tosca, cada um tinha a sua mercadoria, porque eles não eram sócios, eles trabalhavam… compravam em conjunto, depois dividiam e depois do almoço, que eles almoçavam, vinham da feira, almoçavam, iam todos lá para preparar a mercadoria para o dia seguinte, sabe, aquela conversa, os italianos conversando, todo mundo trabalhando junto ali, cada um com o seu trabalho e a gente ia para lá, as crianças iam para lá, ficavam brincando no quintal, ficavam vendo lá, ajudavam: “Limpa isso, limpa aquilo”, às vezes, as mulheres iam pra ajudar, era uma verdadeira festa, todo mundo ia. No fim do dia, minha avó ia antes dos filhos irem embora, ela servia um vinho pra todo mundo, cada um ia para a sua casa dormir e no dia seguinte, ir trabalhar. Então, a feira para nós, eles passavam essa alegria, meu pai sempre… meu pai, meus tios, sempre dignificou a feira e foi o grande sustentáculo da família Arnone, foi o que conduziu a família. Depois, veio a zona cerealista. Meu pai e os meus tios foram para a zona cerealista, antes da gente. Mas foi consequência da feira e na zona cerealista, vocês vão notar, que eu posso até começar a enumerar alguns nomes lá na frente, muito feirante se tornou atacadista da zona cerealista, muito feirante, principalmente portugueses, tinham vários conhecidos, se conheceram na feira, depois viraram atacadistas. Muito feirante… ano tô dizendo que a zona cerealista foi originada da feira, não, ao contrário, ela já existia. Mas muito feirante virou atacadista da zona cerealista.
P/2 – Você
falou que tinham os fornecedores. Como que a sua família fazia o abastecimento?
R – Ia comprar na zona cerealista. Ela já existia, ela começou a
existir, eu acredito que ela deve ser… que a gente chamava de Parque Dom Pedro, né, ali, não tinham todas aquelas divisões, pontoes, era o rio e o Parque Dom Pedro e eu me lembro, isso eu consigo me lembrar, tinha um dia da semana, não me lembro qual dia, caminhão vazio, eles esvaziavam o caminhão e os três irmãos, que aí meu avô já não tava… meu avô ficava em casa, os três irmãos, iam para a zona cerealista, eu lembro, eu vejo isso, paravam o caminhão, aqueles caminhõezinhos, pequenos, antigos, mas que dava e ai, eles iam fazendo as compras dos atacadistas, dos cerealistas, que já existiam e compravam em grande volume, muito se punha no caminhão, uma parte, os cerealistas entregavam lá na Bela Vista, na casa deles, às vezes, eles compravam diretamente do… por exemplo, no Rio Grande do Sul, comprava dois caminhões de cebola, então, vinha a cebola direto do Rio Grande do Sul para a casa do meu avô. Mas na zona cerealista a gente ia em cima, na carroceria, porque na cabine só cabiam os três, e a molecada ia em cima e a gente ia se divertindo no caminho, era uma… eu, meus primos, era muito… eu me lembro perfeitamente da rua Santa Rosa, da rua depois, aquela que se chamava Américo Brasiliense, eu me lembro. E às vezes, eles desviavam, antes, passavam do outro lado do Parque Dom Pedro, quem tá vindo aqui para o centro, e ali, tinha um comercio de animais vivos, se comprava porco, se comprava cabrito, se comprava galinha, animais vivos, mas já existia o Mercadão também e era quase anexo na zona cerealista, o atacado de animais vivos, tinha isso também, isso eu lembro! Eu vejo isso. De vez em quando, compravam, se abasteciam, traziam para o deposito na casa do meu avô, descarregavam ali e às vezes, eles compravam caminhões fechados, os próprios cerealistas ofereciam: “Tenho um caminhão de batata”, mandava pra lá, descarregava… aliás, eu peguei essa fase também, só que numa outra escala, uma escala bem maior, mas era assim, eles se abasteciam… principalmente, eles iam para fazer a compra e muita gente que vocês… aliás, uma segunda geração dos que vocês estão entrevistando eram fornecedores do meu pai, eu já os conhecia de nome e tal.
P/1 – Agora, fala pra gente como é que eram as feiras na época, as feiras são iguais as que tem hoje?
R – São. São iguais as que tem hoje, só que elas eram mais… como é que eu vou chamar? Elas eram mais abrangentes, não tinha o supermercado, tá? Tinha o que existia naquela época, eram as mercearias, os empórios dos bairros. Então, eram lojas pequenas que tinham de tudo, onde as pessoas… e para complementar isso, tinha a feira. A feira tinha muita coisa fresca, frutas, verduras, legumes e o peixe. mas eram mais amplas, eram maiores, inclusive, eram maiores, em mais bairros, quase todo bairro tinha uma feira livre, eram enormes, tomavam ruas e ruas. Eu vou dar um exemplo, aqui tem a Praça Roosevelt que vocês conhecem, Praça Roosevelt já tinha a igreja, hoje virou aquela praça, skatista… só tinha a igreja, vocês imaginem aquela praça só a igreja e o resto era o piso no nível da rua da Consolação, era isso, era uma praça sem arvore, sem nada, era cimento puro. Era uma das feiras mais importantes de São Paulo, era aos sábados, a praça toda tomada de barracas, a praça toda! Era muito grande. O ramo do meu pai era cebola e alho, pode calcular que tinham umas 20 bancas de cebola e alho. Tinham aquelas bancas que eram verdadeiros supermercados, que são as bancas de cereais, que a gente chamava, que tem um atacadista, o ex-atacadista, o sogro do Paolo Schiavo, da turma do Dadá, ele tinha uma dessas bancas de cereais, para montar uma banca de cereais dessa, o sujeito… nós tínhamos que chegar na feira às quatro e meia, cinco horas da manhã. O feirante da banca de cereais tinha que chegar às duas, porque era um verdadeiro mercadinho que ele montava lá, era arroz, feijão, lataria, bebida, era um supermercado. Então, o que você podia imaginar, você achava na feira. Hoje a feira tá muito reduzida, eu vejo feirante hoje, tem uma Kombi, sujeito tem uma Kombi, ou um caminhão pequeno, a não ser o peixe, né? Então, estão bem reduzidos, a feira era muito grande, era muito grande e abrangente, todo bairro tinha feira livre, hoje não, tá bem reduzido, ainda tem bastante, mas são bem menores. Nas feiras, não tinha comida, não tinha o pastel, isso veio depois, o pastel de feira veio depois. Eram bancas bem toscas que o feirante montava, ele mesmo fazia, o marceneiro fazia. Hoje, são mais ou menos, padronizadas, aqueles toldos, ali não, você enrolava toda aquela lona, tinha todo um formato de armação, eles tinham que armar uma coisa pesada, as balanças manuais, enfim, mas era muito grande, muito bonito e outra coisa, não existia, se você tivesse uma feira no seu bairro, na sua rua, naquele dia, só a feira vendia. O sujeito lá do mercadinho, do empório não vendia nada, eram produtos mais frescos, mais… sei lá. E preço também, né?
P/1 – Preço menor?
R – É. Então, era um espetáculo! Muito bom. Hoje tá reduzida, além dos locais, que muitos locais deixaram de ter, elas são bem pequenas. Você vê essa do Pacaembu, na Praça Charles Miller, eu acho que tem… eu morei no Pacaembu, acho que tem duas ou três vezes por semana, né? Era todo dia, mas ela pegava todo aquele parque do Pacaembu. Agora não, você vê que ela fica só aqui na frente, né, então… e você vê feirante chegando com a sua Kombi ou caminhãozinho pequeno, sujeito chega às sete horas da manhã, então… que é coisa menor. Nosso caso, não, era muita coisa.
P/1 –
Você se lembra as cores das barracas? Se elas eram pintadas, alguma coisa assim?
R – Lembro. Na verdade, não tinha padronização, né, não tinha nenhuma exigência. Era madeira, madeira, né, eram bancas de madeira, tabuleiros que a gente chamava de madeira ripada, madeira boa, cavaletes de madeira, botava aquilo em cima, jogava a mercadoria, tudo de caixotes, né, e tinha lá, sustentação tipo barraca, e era uma lona, essa lona é a de cobrir aí alguma coisa, não era lona plástica, era lona, lona de caminhão, que ainda existe hoje. Sujeito punha, amarrava, quem concebia a banca era o feirante. É claro, tinham alguns marceneiros que faziam já, no bairro lá tinha, enfim, era madeira crua… a nossa família pintava, passava uma tinta para conservar por causa de chuva, tudo, mas não tinha padrão, não era uma… era uma coisa bem simples.
P/1 – Bem artesanal.
R – Era bem artesanal.
P/1 – E em quais feiras mais a sua família ia ou não tinha uma…?
R – Não, tinha! Eles faziam Santa Cecilia, faziam Praça Roosevelt, porque cada dia era num local, só não às segundas-feiras, segundas-feiras, eles não trabalhavam, eles folgavam, não faziam nada segunda-feira, nem compras. Então, tem um detalhe, a Praça Roosevelt, eu esqueci, era sábado e domingo, dois dias. Então, tinha na Praça Roosevelt a das Palmeiras, eles não saíam muito… mas tinham nos outros bairros. Então, a nossa família fazia Rua das Palmeiras, Santa Cecilia, fazia Praça Roosevelt, fazia na Bela Vista, tinha uma feira excelente, tem até hoje, acho que é às sextas-feiras, enfim, eles faziam nesses bairros, mas cada um fazia um dia num, outro dia no outro, era… só não às segundas-feiras, que ninguém trabalhava.
P/1 –
E seu pai vendia alho e cebola…?
R – Cebola e alho, só. Na feira, só cebola e alho.
P/1 – E os seus tios também?
R – Meus tios… os meus dois avôs batata, só batata. Teve um tio, irmão da minha mãe, só batata também, então, o meu avô materno batata também, só batata. Era aquela montanha de batata e chegava no fim do dia para ir embora, não tinha nada, não sobrava uma batata.
P/1 – E por quê que eles escolheram esses produtos? Tem algum motivo?
R – Porque eram produtos que eles conheciam lá na Itália, cultivavam, conheciam bem, sabiam como funcionavam, para que serviam, o que era bom, o que era ruim. Isso tudo eles aprenderam lá, na Itália, não foi aqui.
E eram produtos de bastante consumo na época, eles nunca mexeram na feira com grãos, com feijão, arroz, não. Então, era básico na alimentação alho, batata, cebola, isso era básico na alimentação. Tinha que comprar.
P/1 – E você falou…
PAUSA
P/1 – Você falou essas histórias aí que o seu pai contava de fiscalização, etc., que histórias são essas?
R – É fiscalização de feira, é outra coisa, de feira, de limpeza, da balança, as balanças eram fiscalizadas, eram balanças muito simplórias, então, precisava fiscalizar se a balança estava correta ou não, se estava com as medidas corretas. Fiscalização da prefeitura, porque a feira foi sempre subordinada a prefeitura, o feirante tinha que se cadastrar na prefeitura do município, eram todos cadastrados, tinham licença, tinha uma licença para trabalhar como feirante. Então, era a fiscalização da prefeitura. Então, vinha… naquela época, já existia a corrupçãozinha, vamos chamar assim, né, então o feirante estava com uma irregulariedadezinha, ai o sujeito fechava os olhos, ganhava uma cebola, uma batata, mas era coisa muito simples, mas tinha fiscalização, sim, só podia trabalhar quem fosse registrado, não existia o ambulante, o ambulante sem registro. Se o sujeito se encostasse e colocasse a loninha para vender lá algum artesanato, ou algum produto que não fosse licenciado, a fiscalização tirava, porque o feirante pagava a taxa mensal dele, licença e tudo mais. Então, vamos chamar – entre aspas – o camelô não tinha vez.
P/1 – E você nasceu na Bela Vista?
R – Na Bela Vista.
P/1 – E como é que foi crescer na Bela Vista? Como é que era o bairro?
R – Bairro italiano, bem italiano, só residência no começo, residência e o comercio que tinha eram cantinas, muita cantina italiana, padarias, muitas padarias, todo pão italiano foi originário ali e comercio? Tinha algum comercio, tinham empórios, depois, primeiro vieram os cinemas, dois cinemas.
P/1 – Cinema?
R – Cinema. Um na esquina da atual Ruy Barbosa com Conselheiro Carrão, chamava Cine Rex, era um cinema bom, era um cinema que tina à noite filme e no fim de semana, várias sessões, no sábado, cinema. Depois veio um outro chamado Monark no fim da rua Treze de Maio, chegando na Brigadeiro e depois, vieram os teatros, muito teatro. Então, ela foi mudando assim. Então, o bairro era um bairro italiano, todas as famílias se conheciam, fora os italianos ali, quem vai no sentido da Nove de Julho, descendo, perto da Praça 14 Bis, já na minha época de garoto, já existia o Vai-Vai, escola de samba Vai-Vai, ela já existia naquela época. Então, os negros no bairro, surgiram por causa da Vai-Vai e ali, a gente chamava de Saracura lá embaixo, onde tá a Vai-Vai ainda hoje, as famílias negras foram morara lá, muitos negros, mas eram famílias que trabalhavam tudo em torno da Vai-Vai. Então, tinha isso e que mais que veio? A Bela Vista foi isso. Depois, começaram a abrir as avenidas, ruas e aí, foi mudando, começaram a aparecer os primeiros prediozinhos, prédios pequeno, mas começaram. Aquilo era aquele típico bairro residencial, as crianças brincavam na rua, a gente brincava na rua, brincava no quintal, mas brincava na rua. Na rua, literalmente, na calcada, no meio-fio, que trânsito era princípio, não tinha quase trânsito, tinha… era chão de paralelepípedo, aquele chão de pedra, bicicleta, a gente usava muita bicicleta, jogava bola na rua, era na rua, passava o carro, a gente parava o jogo e continuava. Tinham uns campinhos ali no meio do mato, tal, que a gente jogava também. Muita bicicleta, muita pipa, porque tinha morros ainda, bastante morro, então pipa era nos morros. Tinha feira e tinham as festas italianas por causa da santa, até hoje tem. Então, o bairro todo se preparava para a festa da santa que é no mês de agosto, agosto inteiro e era como hoje, todas as barracas na rua, barracas de comida, naquela época, tinham barracas de comida, sorteio, era bem diferente. E o carnaval, que o bairro sempre foi muito carnavalesco, tinha a Vai-Vai que já ensaiava quase o ano inteiro, tinha o Bloco Esfarrapado que até hoje existe, um dos blocos mais antigos desse país, então tinha carnaval, tinha festa da santa, as festas religiosas, todas, viravam festa no Bexiga, semana santa era uma coisa bonita, tinha encenação da via-crúcis no bairro, às vezes, na rua, às vezes, dentro da igreja. Tinha muita coisa também em função da igreja. Muito, muito. Tinha até um teatrinho dentro da igreja, um teatro bem amador lá, tinha… tá lá ainda, a gente estudou no Grupo Escolar Maria José, que era um grupo do estado, todo mundo fazia o primeiro… hoje chama primeiro grau, mas era o nosso primário, que é ali na Manuel Dutra com a Treze de Maio, tá lá até hoje, todo mundo estudava ali. Tinha muito alfaiate, porque era tudo roupa feita sob medida, as calcas que o pessoal usava, muita… elas chamavam… hoje em dia, chamam de modista, aquelas madames costureiras que eram ateliês de costura de madames, vinha gente de São Paulo inteiro para fazer, uma das minhas irmãs trabalhou num ateliê desse, aprendeu costura com uma dessas madames, se tornou uma alta costureira, mesmo, minha irmã mais velha. Então, tinha muito disso no bairro, também e era um bairro muito bom, muito saudável e pouco vicio. Os italianos gostavam… tinham umas cantinas que não eram só frequentadas por sujeito que comia, bebia e pagava, eles iam jogar baralho nessas cantinas, quer dizer, aproveitar para jogar carta e tinham duas ou três canchas de bocha, aquele jogo italiano, bocha, tinham essas canchas. Então, meu o pai ia jogar bocha, meu avô ia jogar. Era muito…
P/1 – Muito animado, né?
R – Muito animado, saudável e todo mundo andava na rua e aí, quando estava todo mundo, já, tinha trabalhado, as pessoas desciam suas cadeiras das suas casas, punham na porta, punham as cadeiras na porta, sentava todo mundo e ficava conversando com os vizinhos nas cadeiras nas portas, então era assim… não quando chovia (risos), mas todo mundo trazia cadeira e ia para a rua, punha nas calcadas, virava uma sala de visitas na porta das casas. Todo mundo conversando um pouco.
P/1 – E além de futebol, o quê que mais você brincava na sua infância?
R – Bicicleta, futebol, toda brincadeira de moleque, bolinha de gude, porque o que a gente fazia era isso, era brincar. Brincar com todas… todas aquelas brincadeiras antigas, a gente fazia, tinham aquelas… a igreja promovia aquelas gincanas da molecada na rua, enfim, e eu particularmente, eu brincava, eu tinha primos, amigos na rua e eu também frequentei muito a igreja Nossa Senhora Achiropita, porque lá dentro também tinha muita atividade, além da religião, minha mãe me fez ser coroinha lá, mas tinha muita atividade dentro da igreja para as crianças, enfim. Então, a gente brincava muito lá dentro também. Tinha quadra, depois mais futuramente, puseram uma quadra, uma bola ao cesto, basquetebol, então de tudo. Fizemos teatro, enfim… fundou-se um grupo de escoteiros na Bela Vista, tinham os escoteiros no bairro, a gente desfilava na rua, dez gatos pingados lá desfilando. Era uma beleza, uma maravilha.
P/1 – E futebol, você jogava muito na rua? Como é que era?
R – Não. Rua, era aquela pelada de rua, né, então, não era futebol.
P/1 – Colocava o sapatinho ali…
R – É isso! Duas pedras, sapatinho, bola de borracha… então… dentro desses locais tinha lá o pingue-pongue, tinha lá essas brincadeiras de salão. Era muito saudável.
P/1 – E você torcia para que time?
R – Torcia não, eu torço.
P/1 – Para quem?
R – Para o Palmeiras e hoje, se Deus quiser, hoje a gente avança mais um pouco. O que eu vou fazer? Todos nós… aliás, todos nós não, minha esposa nasceu no Bexiga também, é nata de italianos, corintiana. Tenho um neto, o meu neto mais novo é são-paulino porque o pai é são-paulino roxo. Minha neta tá tendendo para o lado… tem uma filha minha que é corintiana, o que eu vou fazer? Ninguém é perfeito, né? Não tem jeito.
P/1 – Mas todo mundo lá no bairro era palmeirense ou não?
R – A maioria, né? Mas tinham sempre os dissidentes. E tinha, por exemplo, o pessoal da Vai-Vai, pessoas da saracura, ali é Corinthians, né, então, não tem nada a ver com a Gaviões, mas é Corinthians, Vai-Vai tem lá um senso corintiano. Não tem nenhuma interligação com a Gaviões, não tem nada, tanto é que é uma escola totalmente diferente, mas é claro.
P/1 – E quem que você gostava mais no Palmeiras na época? Quem eram seus ídolos?
R – Eu peguei Dudu e Ademir da Guia jogando, fui da época em que o Leão foi goleiro do Palmeiras, então essa é uma época tão áurea, que é inesquecível, então, quem viu Ademir da guia e Dudu jogando, Ademir da Guia, vai, não precisa mais ninguém, quem viu… claro, eu vi Pelé, eu vi Garrincha, eu vi aquela seleção de 84, de 92, é um negócio… agora, Palmeiras é Ademir da Guia, sempre foi, antes eu não me recordo, né, Leão, pô, o Leão como goleiro, independente do caráter dele, é um time… Leivinha, nossa! Leivinha, o que jogava aquele moleque!
P/1 – Você ia no estádio?
R – A gente ia no Pacaembu, tá, no Pacaembu e um pouco no Parque Antártica. A gente ia muito pouco, mas ia. Eu ia mais, quando eu entrei para a universidade, eu ia, ainda com alguns amigos da faculdade e tal, mas depois com o passar do tempo, eu deixei de ir. Hoje em dia, eu não vou mais.
P/2 – Teve algum jogo marcante?
R – Não teria como te falar em jogo marcante. Isso não, porque não é que eu me dedicava ipsis-litteris ao futebol, não era a minha… gostava. Eu acabei… quando a gente vai crescendo, por causa das amizades da faculdade, eu me apaixonei mais foi por cinema, mesmo. Eu era um cinéfilo… hoje eu não tenho tempo, mas não perdia nada.
P/1 – Mas na infância ainda, você gostava mais do quê? De fazer o quê? De brincar, de brincar do quê? O quê que era?
R – Minha infância foi muito… foi tão boa, tão boa, tão boa que eram tantas coisas boas…
P/1 – Que você não saberia dizer?
R – É, claro! Moleque de rua, brincar! Isso era uma delicia. Tinha a sequência, de manhã, escola, almoço, vai fazer a lição, aquelas italianas rígidas, aí vai brincar. Então, eu ia para a rua, bicicleta, adorava a minha bicicleta, ia para cima, para baixo, voava com aquela bicicleta e eu gostava muito da igreja. Na igreja, tinha um orfanato mantido pelo Pequeno Cotolengo Dom Orione, que até hoje existe, é uma entidade que cuida de tudo, de crianças lá. Lá dentro, tinha um orfanato, orfanato no é de bebê, não, de crianças da minha idade e lá tinha escol, tinha o alojamento deles, onde eles moravam, comiam lá, cresceram… a maioria era com a tendência de se tornar padre um dia, mas era um orfanato e eu e os meus primos, a gente vivia com essa molecada do orfanato, muitas vezes, a gente comia junto com eles, então esse engajamento era muito… a gente vivia dentro daquela igreja, porque tinha molecada… a gente não convivia com o padre, convivia com a molecada, então, tinha o teatro, o grupo de escoteiros, tinha a parte católica, enfim, então eu gostava muito daquela igreja, de ficar lá dentro. A gente viu as reformas, as pinturas que aqueles artistas faziam nas paredes da igreja que existem até hoje. Então, eu gostava muito daquilo, nessa fase, né? E brincar. Brincar nessa fase. E ao mesmo tempo, eu e o meu irmão, a gente com os primos, meu irmão mais velho, a gente ia muito lá na, enquanto os pais estavam trabalhando, lá na casa do meu avô e a gente gostava muito de ficar naquele meio, aquele cheiro de cebola, de batata, brincar no caminhão, tal. Então, marcou também, marcou muito isso. O meu irmão… marcou tanto, que o meu irmão começou a querer tender a ir para a feira, mas o meu pai não deixou, porque o meu irmão já estava estudando, já tinha se formado em Contabilidade, foi fazer Economia, meu pai falou: “Não. Vamos arrumar um emprego para você fora daqui”, meu pai já enxergou, mas quase que o meu irmão vai para a feira. Era tão gostosa a coisa… mas eu, não. Eu fiz isso, aí depois, ampliou um pouco as minhas amizades, quando eu terminei o que chamam de fundamental, primário, eu fui fazer… a gente chamava de ginásio, que vocês chamam segunda faze, como que é? Ensino Médio?
P/1 – Ensino Fundamental Dois.
R – E eu fui fazer isso lá perto da igreja do Carmo, dos padres carmelitas, no Colégio Santo Alberto. Muito perto, Martiniano de Carvalho e eu fui fazer lá, a gente chamava de ginásio. Ali, amigo, ali me realizei também, novas amizades, era um pouco mais adulto. E ali, eu me realizei. Você imagine, por exemplo, um dos amigos que eu tive lá e tenho até hoje é o Edgar Possas, Maestro Edgar Possas, que faz jingles, enfim, um filho dele acabou namorando uma filha minha, coisas assim, me encantei pelos laboratórios do Colégio Santo Alberto, laboratórios de mecânica, tal, só fugi do colégio porque quando chegou na álgebra, na Física, Matemática, eu dancei, não fui para exatas, tive que ir para humanas. Então esse Colégio Santo Alberto foi outra coisa que marcou e aí, já era adolescente, então, aí começaram os namoricos e tudo mais. Aí, a gente já ia nos outros colégio perto, Imaculada Conceição, Dante Alighieri para ver a saída das meninas, então já começou a… saiu um pouco daquela brincadeira de moleque da Bela Vista.
P/1 – Eu queria voltar, a gente vai chegar lá, mas antes, vamos… você me fala como era um pouco a sua casa, a sua casa que você passou sua infância, descreve ela para mim.
R – Tá lá. Não é nossa mais, mas tá lá.
P/1 – Que número que é, em que rua?
R – Rua Treze de Maio, 437. Então essa casa era assim, ela é assim, é um sobrado, na frente é um sobrado, uma casa embaixo e uma casa em cima, separados, duas entradas separadas, entra pelo mesmo lugar aqui e sobe. Do lado, esse tipo de entrada de uma garagem, como se fosse… e no fundo, outra casa. Eram três casas. Meu pai que construiu. Essa era do meu pai. Então, ele construiu três casas: uma aqui, outra aqui e outra no fundo. Nós fomos morar, primeiro, no fundo, na casa do fundo. Também no fundo eram dois andares, escada, tudo e embaixo, a sala, cozinha e em cima, os dormitórios, os quartos. Era um corredor grande, meu pai não tinha carro. Meu pai nunca teve carro. Então, podia entrar uns cinco, seis carros até o final. No meio, ali tinha o tipo de um balcão que ele fez, mas não era para trabalhar, era um galpão que ele fez lá, deixava as coisas lá, enfim, e tinha um muro que separava as outras duas casas. A casa de baixo, da frente, ele pôs para morar a irmã dele, minha tia, que casou, minha tia casou e ele falou: “Você vai morar ali”, ele pôs para a irmã morar ali e ali, nasceram meus dois primos, filhos dessa minha tia. Aí, ele deu uma arrumada em cima, melhorou em cima e nós saímos do fundo e fomos morar na casa de cima. Então, ali tinha o quarto do meu pai, o quarto da minha mãe, um banheiro, uma bela sala, nos fundos, a cozinha e um terraço. Essa era a nossa casa. A gente dormia os quatro no mesmo quarto, eu e os meus irmãos no mesmo quarto. Não tinha um quarto para cada um, nada disso e o meu pai e a minha mãe… não eram suítes, tinha um banheiro no meio, sala boa, tudo, sala de visita, sala de jantar e a cozinha boa, nós temos fotos ainda disso daí e um terraço onde a minha mãe tinha lá o tanque, lavava a roupa, as coisas, uma despensa. Então, a gente passou a nossa vida… o tempo maior dessa… antes de casar foi aí, nessa casa de cima. Aí depois, minha tinha mudou para outro bairro, nós alugamos embaixo e a casa do fundo virou uma tinturaria, alugamos para uns japoneses, nunca me esqueço e os japoneses montaram uma tinturaria, uma tinturaria que ficou até famosa no bairro. Meu pai alugou as duas e a gente orava em cima. Tá lá até hoje. Depois de muitos anos, que ele morreu, minha mãe morreu, nós vendemos, tá lá. Outro dia, foi uma coincidência, eu fui… minha neta quis passear, tal, falei: “Vou levar você conhecer a nossa igreja”, aí eu levei e nós paramos o carro em frente à casa que eu morava, aí eu tirei foto com a minha neta de onde eu morava, enfim, casa gostosa. Na época da festa da nossa Santa Achoropita, lá, o meu pai cedia: “Pode colocar uma barraca na frente”, aí punha uma barraca de comida na frente da nossa casa, só deixava a entradinha pra gente entrar, tal., muito bonitinha. Hoje tá meio baleadinha, o cara não conserva muito, não.
P/1 – Como é que eram seu pai e a sua mãe em casa? Quem que… seu pai era mais bravo ou menos? Sua mãe ficava mais em casa, como é que era?
R –
A minha mãe só ficava em casa, né, as mulheres, praticamente, não trabalhavam, a não ser as filhas, mas a mulher matriarca não trabalhava. Cuidava da família, cozinhava, fazia tudo. Minha mãe era uma pessoa rígida, mas de uma bondade, aquela pessoa boa, mas rígida, como toda italiana era. Meu pai não, meu pai era linha dura. Nós nunca tomamos um tapa do meu pai, nunca! Ninguém, nunca! Mas ele dava uma olhada, meu, que você se borrava, eu me borrava de… a gente sabia que não tava certo, alguma coisa errada, a gente se borrava só com a olhada dele, mas também, era um cara carinhoso, tudo, mas muita rigidez. Nós tínhamos horário pra tudo, mesmo depois de crescidos. Eu tava na faculdade, a minha mãe controlava os meus horários, a velha não ia dormir enquanto eu não voltava da faculdade. Ela ficava sentada… você chegava às 11 e meia, meia-noite, uma hora da manhã, ela tava lá no sofá sentada: “Mãe, por que você não foi dormir?” “Eu estava te esperando”, só bastava isso, você fica sossegado na rua? Você não fica! Então, foi muito rígido, muito… a nossa educação foi uma educação muito rígida, foi boa, mas foi muito rígida, muito respeito, não se podia fumar na frente de pai e mãe, nem pensar em fumar na frente do pai e da mãe. Era: “Sim, senhor. Obrigado, senhora”, o “Você” não existia. E era geral isso, não éramos só nós. Então, foi uma educação… mas foi muito bom. Por exemplo, o meu pai com toda rigidez dele, meu pai era analfabeto. Minha mãe era analfabeto, sabiam escrever os nomes, sabiam ler, mas culturalmente, nada. E você imagina, segunda-feira meu pai não trabalhava, nenhum feirante trabalhava. Eu voltava da escola, almoçava, tomava um banho, toda segunda-feira, ele me levava para passear aqui no centro, centrão, aquelas lojas na Barão de Itapetininga, Viaduto do Chá, porque eram lojas tipo Europa, aquelas lojas maravilhosas, tudo muito fino, tinha bares, tinha chá da tarde, tinha… era uma coisa muito fina, o centro da cidade, ruas, lojas… meu pai pegava, ele gostava de tomar um chope, não existe mais, numa confeitaria que tinha do lado de lá, na rua Direita, tinha até violino na confeitaria, tinha um cara tocando violino, ele tomava o chopinho, eu tomava algum sorvete…
P/1 – Você tinha quantos anos, assim?
R – Quantos anos eu tinha? Dez anos? Onze anos, sei lá, nove… aí, a gente voltava, pegava o bonde, voltava. Aí, minha mãe se trocava e ele trazia minha mãe para os cinemas aqui, que os cinemas eram só aqui, só tinha cinema aqui. À noite, eles iam para o cinema. Punha terno, gravata, chapéu para vir no cinema e eles iam nos cinemas dessa região, os cinemas já eram para o lado de cá. Mas era rígido, linha dura! Tudo muito simples em casa, mas nunca nos faltou absolutamente nada, principalmente, alimentação. Alimentação, educação, sempre… mas simples, nada de luxo. Foi muito bom.
P/1 – E vamos falar um pouquinho mais detalhadamente dessas coisas do bairro, tá? O cinema, você foi muito nesses cinemas? O quê que você assistia?
R – Direto, direto!
P/1 – Você falou que foi cinéfilo na infância…
R – Eu acho que talvez tenha sido aí… por aí. Esse tal de Cine Rex, hoje tá fechado lá o espaço, ele virou depois, mais recentemente, o Teatro Zácaro, era um teatro, mas ele era o Cine Rex, cinema bem grande, dois andares, tinha a plateia em cima e em baixo. Então, ele tinha à noite, toda noite tinha filmes, tinha um filme em cartaz, tal, mas era mais adulto, né, filmes mais para adultos. Nos fins de semana, aos sábados e aos domingos, tinha além da noite, tinham as tais das matinês, que não eram esses filmes corridos, você entra, já começa a sessão, não, eram aqueles horários fixos. Então, por exemplo, nós, toda a molecada ia aos domingos, logo depois do almoço, acho que era uma hora da tarde, uma e meia começava a matinê das crianças, dos jovens, então, passava um seriado, sempre teve um seriado, tipo “Perdidos no Espaço”, tal e todo domingo passava e tinha o filme, às vezes, dois filmes, dois longa metragens, uma comedia. Tinha muito eastern naquela época, a gente gostava muito do eastern, então todos aqueles grandes artistas que fizeram filmes… tinha muito filme épico, então era isso que a gente assistia, mas todo domingo, todo mundo para o cinema, não tinha… acabava o almoço, a gente, pumba, cinema! Tinham os intervalos entre os seriados, os dois filmes, e à noite, voltava o filme para os adultos, aí os adultos iam para o cinema. E era uma algazarra, né, era uma baderna. O que você podia imaginar acontecia lá dentro. Só samangam, era nego atirando coisa lá embaixo, saía briga, mas era tudo na farra. E os namoros, né? Molecada aproveitava para ir namorar lá.
P/1 – Começa aí essa história? A gente chega lá, então. Mas fala pra mim como é que era a relação sua om a sua família com a Vai-Vai? Vocês iam lá? Gostavam de carnaval…?
R – Não. A Vai-Vai era a escola de samba do bairro, mas eles… o bairro, a maioria do bairro, as famílias tinham como sendo
escola do bairro, mas só existia nos dias de carnaval para o bairro, né, para as famílias. Como eles faziam um desfile também nas ruas do bairro, o bairro inteiro assistia… os ensaios, quando chegava beirando o carnaval… porque os ensaios sempre foram na quadra deles, mas quando chegava a época do carnaval, eles faziam alguns ensaios de rua, pelas ruas do bairro. E o pessoal saía nas janelas e tal, mas ninguém saía, vamos dizer, saía atrás dançando, isso não acontecia. As famílias apoiavam, gostavam, mas só na época do carnaval. Diferente do tal do Bloco Esfarrapado, que aí era uma mistura, a maioria eram as pessoas do bairro que saiam fantasiadas e o bloco corria as ruas inteiras, aquela diversão, aí sim.
P/1 – Tem alguma história com bloco?
R – Não, eu não. Eu nunca participei, gostava, olhava. Eu moleque, eu vi, eu me lembro dos ensaios, quando a escola passava pelas ruas do bairro, sempre branco e preto, né, Vai-Vai sempre foi branco e preto, depois foi mudando, foram entrando as cores, os carros, não existiam essas alegorias, nada disso. Só quando começaram a desfilar, era Prestes Maia o inicio, primeiro foi na Prestes Maia, onde tem o sambódromo. Aí começou a entrar carro, a entrar alegorias e tudo mais. Mas era branco e preto e eu achava bonito aquilo, o som era uma coisa fabulosa, então, mas só. nunca participei…
P/1 – Mas a festa da Santa Achoropita, você…
R – Essa sim!
P/1 – Como é que era? O quê que tem lá? Para quem não conhece, assim…
R – Era uma mistura… tinha barracas… tudo na rua, não existia nada interno na igreja, hoje tem, hoje tem espaços internos da igreja que tem gesta dentro e fora. Era tudo na rua, o departamento de trânsito na época, que era a prefeitura, eles fechavam a rua Treze de Maio de ponta a ponta, quer dizer, só entrava lá em cima, lá perto da… depois da Brigadeiro pra cá e na rua Santo Antônio também fechava, então, eram barracas dos dois lados, eram barracas de comida, barracas de jogos, esses jogos que a gente joga em festa junina e tal, barracas de sorteios, tinham muitas barracas de sorteios de prendas, roletas, tal, prendas que as pessoas doavam, você ganhava. Tinham muitas bandas que se apresentavam, não eram bandas de conjunto, música, eram bandinhas, bandas típicas mesmo, que se apresentavam, umas que tocavam música italiana, outras; então, tinha muita música no coreto lá, toda hora era uma banda diferente que se apresentava, uma coisa muito iluminada, muito bonita, era lotado, aquele mar de gente. Então, a gente brincava. Era muito doce, muitas coisas pra criança, os carrinhos de pipoca, algodão doce, era uma festa incrível! E eram 30 dias, né? Acho que começava na quarta, era quarta,, quinta, sexta, sábado e domino, não. Quinta, sexta, sábado e domingo.
P/1 – Toda semana?
R – Quem trabalhava nessas barracas eram todos nós, as famílias…
P/1 – E reverte tudo para a paróquia, é isso?
R – Tudo pra paróquia.
P/1 – E vocês trabalhavam em barraca de quê?
R – Depende, como a gente eram os pequenos, ajudávamos nessas barracas de rifas, né, distribuía rifa, vendia rifas. Comida não, comida era só adulto que trabalhava. Então, você ajudava um pouco de tudo e às vezes, tinha dias que não, brincava no meio da festa e tal.
P/1 – Que mais que comia lá? De massas, essas coisas, o que era?
R – Tudo que você vir hoje, grande escala hoje, é grande escala. A festa da Achoropita é uma barbaridade, né? Se comia de tudo, massas, tinha lá os sanduiches, tinham os pratos típicos, muito doce, muito doce italiano, tal. O que se come hoje, só que menos.
P/1 – Você tem alguma historinha que te marcou em relação a essa festa, ou… por qualquer motivo?
R – Não, dessa festa, não.
P/1 – Tá. Então, você… agora, você também disse que estudou lá, né? No bairro. Onde você começou a
estudar?
R – Eu fiz o primeiro grau lá, curso primário, que a gente chamava, ali, na esquina. Aí depois, eu subi um pouco mais em direção ao segundo grau, e aí, depois, eu sai do bairro para estudar, fui para o Largo São Francisco fazer Escola de Comercio e depois, eu fui para a PUC nas Perdizes. Estudei ali o fundamental, vai, o básico foi ali.
P/1 – Nessas escolas, nessas trajetórias, tiveram alguns professores ou não que te marcaram? Ou alguma coisa que você…
R – Ah, isso você no tenha dúvida! Isso daí é…
P/1 – Fala um pouquinho pra gente.
R – Eu não vou lembrar do nome da minha professora, porque nessas escolas primárias, acontecia o seguinte, naquela época, a professora… eram quatro anos, a professora pegava aquela turma no primeiro, no segundo, no terceiro e quarto. Ela ia junto com a turma. Era interessante isso. Então, a gente ficava com a mesma professora quatro anos e eu não me lembro do nome dela, mas eu lembro da figura dela, sabe? Mas depois, no que a gente chamava de ginásio, segundo grau, aí tivemos professores, aí, que marcaram muito a gente. Então, desses eu tenho boas lembranças. O professor de Geografia, professor Osvaldo, ele era delegado de policia. O sobrenome dele ainda não tá vindo e ele era de Geografia, fortão, atarracado, boa gente. Mas ele era delegado. Professor de manhã e delegado durante o dia e a turma adorava ele porque ele dava a aula dele lá de Geografia, uns dez minutos anotes, ele parava a aula e contava os causos da delegacia, um negócio assim, que você ficava maluco! A molecada ficava empolgada que a policia prendeu fulano, tal… esse foi legal.
P/1 –
Você se lembra de alguma coisa especifica que ele te contou?
R – Não, não. Era tudo meio genérico, primeiro que era um colégio de padres carmelitas, ele não podia… se você me falar na faculdade do professor de Medicina Legal, aí debandou, mas… aí tinha o nosso professor de Desenho, sobrenome Mastrobuono, italiano, grandão, o cara desenhava! O cara tinha uma mão para desenhar no giz, né? Um cara excelente! Eu me apaixonei por aquele professor, eu adorava Desenho… naquela época, eram matérias que a gente chamava, né, Desenho e Trabalhos Manuais, acho que hoje já nem existe isso na grade, você tinha que fazer desenho geométrico e trabalhos manuais, montar cubos, fazer trabalhos em madeira, todas essas coisas. O cara era um artista! Esse daí, eu não perdia uma aula dele por nada desse mundo. Era um espetáculo, a facilidade como ele fazia desenhar, pintar. São professores, naquela época, tinha uma outra grade, professor de Canto Orfeônico, veja você! Você aprendia cantar, aprendia música, né, algumas cifras de música, cantar os hinos todos, você era obrigado a aprender todos os hinos, Hino Nacional, Hino da Bandeira, todos você era obrigado a aprender e aula de música, dava música e canto. E eu não era muito chegado, gostava de música, mas formou um grupo liderado pelo Edgar, Edgar Possas que era meu colega e o cara já era nato, já tocava violão naquela época e o Professor Antônio. O Professor Antônio foi incentivando que se formassem grupos em torno do Edgar, porque o Edgar era um artista nato, né? E a gente começou, aí veio a época da… tava começando a Bossa Nova, né, e o Edgar já dedilhando no viola, toda essa… e a gente começou a escrever, quer dizer, escrever letra de música para poder decorar, para poder cantar junto em festas, nas festas do colégio, a gente cantava. Era uma banda, né, a gente cantava em festinhas assim, dois, três violões e eu comecei a aprender violão. Um dos colegas meus que depois, ele foi trabalhar com o Paulinho Nogueira, ele foi aluno do Paulinho Nogueira e ele vinha dar aula para mim em casa, amigo meu, tudo, não me ocorre o nome dele agora. Mas vieram as contingencias, veio a faculdade, tal, cursinho, eu comecei a trabalhar cedo, aí eu acabei não seguindo o violão. Tudo por causa do Professor Antônio, de Música, que era uma matéria que a gente tinha. Então, cada um marcou de um jeito. É claro, em todas as outras escolas, Escola de Comércio, da faculdade então, aí foi… aí a gente pegou aquele pessoal da pesada.
P/1 – Agora, como é que foi crescer, agora voltando um pouquinho mais ainda, como é que foi crescer em feira? Quais são as lembranças que você tem sobre a feira, do seu pai, trabalho. Você falou um pouco do caminhão…
R – É, é próprio do moleque, né, ficar no caminhão, em cima do caminhão, tal. Isso daí é normal. Um pouquinho maior, aos sábados, sábados, meu pai fazia a feira da Praça Roosevelt. Sábado não tinha escola, aí eu tava lá em casa, quando era mais ou menos, sempre, umas oito, oito e meia, a minha mãe falava: “Vai lá ajudar o teu pai”, então eu vinha, descia lá a Treze de Maio, saía aqui perto da Praça Roosevelt e ficava com o meu pai na banca, todo sábado eu ficava na banca aqui. Ficava com ele, ajudando? Ajudando em termos, né, tira uma casquinha daqui, limpa ali… então, eu praticamente todo sábado eu estava aí, nos outros dias, não, porque coincidia com o horário de ir para
a escola, então não, mas aos sábados, eu ficava na feira com ele aqui, então, sentia as brincadeiras do meu pai com as clientes, as brigas do meu pai com algum cliente. Ele era bravo, pavio curto, ele não saía na pancada, mas ele era pavio curto. Sabe, quando um cliente ou alguma cliente começava a encher muito ele, ele pra responder atravessado eram dois minutos, respondia mesmo, não queria saber, não. Era muito… atendia bem, mas enchia muito o saco dele, ele soltava o cachorrinho, não queria saber, não. Então, tudo isso eu vi e tal. Conhecia os amigos feirantes dele, todo mundo… apesar da concorrência, odo mundo se conhecia muito bem, todo mundo se dava bem e tal. O ambiente era muito bom da feira, viu, não tinha… às vezes, uma ou outra vez, apareci algum gatuno, alguém para roubar alguém, mas era muito raro, muito raro. Tinha aquela correria, os fiscais… a fiscalização da prefeitura era permanente, não tinha policia, então, tinha aquela correria, pega ladrão, mas era muito raro. Era interessante. E as chuvas, né? Chuva de vento, amigo! Quando batia uma chuva de vento, para segurar aquelas barracas… aquilo balançava, aí molhava a mercadoria, era fogo!
P/1 – Tinha que segurar a barraca?
R – Não tem jeito, aquilo é alto. Molha mercadoria…
P/1 –
Você acha que o clima da época era diferente do hoje, ou não?
R – Acho que sim.
P/1 – É?
R – Claro! Eu acho.
P/1 – O que você sentiu que mudou?
R – Ah não, o que eu acho que era diferente é o seguinte, ele era totalmente previsível o tempo. Verão era verão, inverno era inverno e outono era outono. Era isso e tinha, por exemplo, esses picos de falta ou de excesso de água, de chuva era difícil. A garoa era perene, pô, São Paulo da garoa, isso aí não é letra de música, era perene.
P/1 – Como assim, perene?
R – Hora de garoar, garoava, não tinha… eu acho, é claro, os urbanistas devem entender melhor. Eu acho que tudo foi sendo sei lá, descompensado por causa das umidificações, ventos, permeabilização do solo, então mudou, eventualmente, alguma coisa. Mas garoava em São Paulo, São Paulo da garoa.
P/1 –
Foi sempre assim?
R – Não no verão. Não no outono, mas no inverno, tinha garoa, nunca nevou, naturalmente, agora não. Mudou totalmente, o clima mudou, eu acho que em qualquer lugar do mundo.
P/1 – E você acha que a feira tem algum corte de etnia, de população, assim, portugueses vendem isso?
R – Não.
P/1 – Mas quem que vendia?
R – Tinha etnia, tem um pouco de tendência da etnia, porque nós vendíamos batata, alho, cebola, mas tinham portugueses que vendiam batata, alho e cebola. Mas os portugueses vendiam um pouco mais de hortigranjeiros, tomate, as verduras. Os japoneses, naturalmente, no peixe, aquela época tinham os caminhões de peixe, eram quase todos japoneses.
P/1 – Ovo, né?
R – Ovo, tem razão. O ovo. Depois, agora nos tempos modernos, você vê que agregou, né? Barraca de alho, batata, cebola, ovo, né, então… mas tinha sim. Os espanhóis, tinha muito espanhol que tinha a tal da barraca gigantesca de cereais, mas tinha italiano que tinha também. Então, não dá para pontuar muito nesse sentido.
P/1 – E em que ano que foi que o seu pai teve a ideia de virar atacadista? Como é que foi isso para ele?
R – Meu pai e os meus dois tios, tá? Meu pai e os dois irmãos dele. Precisamente, mais ou menos, nós fomos em 69 pra lá, eles ficaram… deve ter sido por volta de 1960. Estavam todos muito bem, já. As famílias criadas e a feira era sacrificada, tinha o problema da madrugada, o meu pai passou a ter uma bronquite crônica que foi por causa da feira, os médicos falaram que foi por causa da umidade, frio, claro, trabalhando no meio da rua, aquela lona não protege nada. E eles todos já estavam com as famílias criadas e tal, enfim, e os três irmãos sempre muito juntos, né, e eles visualizaram uma chance de abrir um pequeno comercio lá na zona cerealista de alho e cebola, que era o que eles conheciam, que aí, eles já conheciam os produtores, eles conheciam os grandes fornecedores… eles conheciam os produtores que forneciam para os fornecedores deles. Então, e eles tinham um nome na zona cerealista, falavam em Arnone, o feirante Arnone, sujeito não queria um tostão: “Me paga quando você quiser, você é muito correto”, e no ouvido do produtor chegava. Então, eles visualizaram. Aí, apareceu na rua Mendes Caldeira, apareceu uma loja bem pequena, mesmo, bem pequena: “Vamos montar uma cerealista lá, nós três?”, todos eles muito bem. Todos eles, além da casa própria, tinham casas de locação, entendeu, já tinham uma renda alternativa, tal. Os filhos todos trabalhando: “Vamos tentar?”
“Vamos!”. E fundaram a Cerealista Irmãos Arnone, ficaram acho que oito, nove anos juntos. Cebola e alho. Era tão pequeno, que não cabia toda… se eles comprassem cinco, quatro caminhões de mercadoria, não ia caber lá dentro, mas o movimento da zona cerealista era tão grande, tão grande, que o que chegava no dia, vendia no mesmo dia. Era um negócio impressionante! O Brasil inteiro vinha se abastecer na zona cerealista, não tinha o Ceasa ainda. Não tinha o nosso e não tinha os Ceasas que hoje tem no Brasil inteiro e em São Paulo inteiro. Então, era… foi o grande auge, daquelas décadas de auge da zona cerealista. Então, as pessoas traziam a mercadoria exata, porque era para abastecer o país. O Dadá mesmo fala isso, a gente chegou uma época que a zona cerealista era responsável por 45% do abastecimento de gênero alimentício do país, chegou-se a esse número. Saía de São Paulo para o Brasil inteiro. Então, eles fundaram a Irmãos Arnone, ficaram acho que uns nove anos juntos, os três ali e nós, eu na faculdade, aí começaram… uma parte da família começou a
casar, meu irmão casou, minhas irmãs, meus primos, eu era o mais novo, não tinha casado ainda. Estava terminando a faculdade. E aí, essa é a história deles, né, ficaram juntos, aí quem saiu da sociedade foi o meu pai para montar o Comércio de Cereais Arnone pra mim e para o meu irmão em 1969.
P/1 – Quais são esses anos que você acha que são os anos de auge da zona cerealista e por que você acha?
R – Eu acho que desde a fundação da zona cerealista até 1900 e… vamos calcular… 75, vai, 78, por aí, até 75, se alguém quisesse algum produto de gênero alimentício, tipo grãos, batata, cebola importados, tinha que comprar na zona cerealista, no Brasil inteiro.
P/1 – Maranhão, sei lá?
R – Maranhão… o que você pudesse imaginar vinha se abastecer… supermercados do país inteiro, feirantes do país inteiro, que mais? Atacadistas de outros estados vinham comprar da gente, até 75. E aí, era um fenômeno que foi natural. Havia um corte, não vamos chamar de etnias, mas um corte durante a semana, às segundas-feiras, vinha todo pessoal de Minas comprar, às terças, todo pessoal do Rio, quarta e quinta, o pessoal do nordeste, então começou a segmentar a coisa. Depois, começou… começaram os atacados nos outros estados, veio o Ceagesp… na época, nessa época do auge, não sei se alguém ligado, existia um atacadista, era do outro lado do rio, aquele lado que eu tô falando é o lado da Paula Souza, chamava-se Alô Brasil, era um atacadista distribuidor, o quê que é um atacadista distribuidor? Nós éramos atacadistas da zona cerealista, estava lá nossa empresa, sujeito vinha e comprava a mercadoria. Aí, começaram os distribuidores, começou a
mudar o conceito de atacadista, aquele sujeito que tinha os grandes depósitos e ele fazia a distribuição pelo país inteiro e os vendedores no país inteiro tinham as compras, o caminhão do cara saía distribuindo a mercadoria, chamava-se Alô Brasil, era na rua da Cantareira, quase ali beirando o rio, família… nós vamos até achar o nome dele, foi vice-presidente nosso por vários anos, família… depois eu vou ver o nome dele. A gente viajava muito pelo Brasil, a feiras, às vezes, você ia estar lá no canto de uma prainha lá no nordeste onde ninguém entrava, tava lá um caminhão da Alô Brasil distribuindo. Saía de São Paulo. Depois, vieram outros atacadistas, cujo maior hoje é o Dias Martins, que é o Martins que faz esse serviço, que a Alô Brasil não existe mais. Então, esse auge era por causa dela… Ah, não esquecendo que na zona cerealista estava agregada a Bolsa de Cereais, era dentro da Senador Queiroz, era um nexo entre o Sagasp e a Bolsa, porque a Bolsa de Cereais, além de ter pregão todo dia de alimentos, pregão de cereais, tinham os estoques reguladores do governo, a Bolsa tanto de São Paulo, quanto do Rio, o governo tinha estoques de alimentos para regular o consumo, não dar problema. A Bolsa de São Paulo era distribuidora de estoques reguladores do governo de São Paulo, a Bolsa de São Paulo distribuía pelo país inteiro, pregoes nacionais. Então, a zona cerealista, esse auge, a justificativa é essa, nós abastecíamos o país inteiro. Depois, foi descentralizando e é claro, foi declinando, isso é natural. Era uma coisa… primeiro, era intransitável, hoje você acha intransitável a Senador Queiroz? Era intransitável. Para você entrar com o caminhão na rua Santa Rosa, pegar ela do começo ao fim, uma hora e meia, duas horas, tinha que desligar o motor, você não chegava e assim mesmo, a clientela vinha. Era uma coisa… não tinha fim, o que você trazia de mercadoria, você vendia. É claro, tinha lá as nuances, você às vezes perdia dinheiro, quer queira ou não, é um mercado de oferta e procura, preço oscilava, perdia-se dinheiro, ganhava-se muito dinheiro. Então, era uma coisa… era violento. E tudo… os industrializados também já estavam lá, tinham os atacadistas de produtos industrializados também. Então, comida, material de higiene e limpeza também eram comprados na zona cerealista, Cofesa, Portadora Benjamim, todo esse pessoal era na zona cerealista, eram cargas e cargas… bebidas nacionais, importadas, laticínios, tudo saía da zona cerealista, tudo!
P/1 – Tempero?
R – Tempero veio depois, o tempero era complemento, hoje virou carro chefe, né, tempero era complemento. Então, era uma coisa assim, soberba. Não tinha onde parar caminhão, não tinha onde parar carro. Restaurante, para você comer, você não conseguia de tanta gente, era uma coisa! E os horários, né, praticamente, era 24 horas, não nós, mas o comercio era quase 24 horas, porque a bolsinha que a gente chamava de bolsinha ali, que chegavam os caminhões de arroz e feijão começavam a funcionar à uma hora da manhã, caminhões fechados, né, quando a gente chegava, já tinham vendido tudo. depois, foi declinando, é claro.
P/1 – Você acha que de 75 para frente foi declinando, né?
R – Foi. Devagar, muito devagar foi declinando porque foi descentralizando. Aliás, várias empresas saíram de lá, montaram filiais em outros estados, postos de vendas em outros estados. E foram sendo criados terminais atacadistas em outros estados. O próprio Ceagesp nosso, uma boa parte do nosso Ceasa daqui de São Paulo, principalmente na fruta… ah, tem que lembrar da fruta. Tinha o atacado da fruta também nas mediações do Mercadão, todas aquelas lojas em torno do Mercadão, que hoje vendem produtos chineses eram frutas, atacadistas de frutas frescas nacionais e importadas, era tudo ali. As frutas, saiam tudo dali. E quem foi embora primeiro do Ceasa foi o pessoal da fruta, que para o Ceasa foram os produtores do hortifrutigranjeiros, o peixe, o pescado, as flores e esse pessoal, os fruteiros, os grandes fruteiros da zona cerealista foram todos para o Ceasa.
P/1 – Por quê que eles saíram primeiro?
R – Porque é outra condição, uma coisa bem mais… é mais moderno, tal. Era tudo ali.
P/2 – Os produtores, quem eles eram? Eram cooperativas?
R – Tinham cooperativas e tinham produtores… as grandes cooperativas, na época, era a Cooperativa de Cotia, a Cooperativa Sul Brasil e a Cooperativa bandeirantes, tudo japonês, cooperativas espalhadas pelo país inteiro. Então, produção de tudo, batata, cebola, alho, frutas, legumes, hortaliças. Essas três eram as grandes que comandavam e tinham outras cooperativas, mas tinham os grandes produtores, principalmente no sul, Santa Catarina, do, Rio Grande do Sul, eram menos cooperativas, eram mais produtores, empresas produtoras, então tinha uma mescla, esses eram os fornecedores. E muita importação. Naquela época, tinha muito mais importação do que agora.
P/1 – Ah é?
R – É claro! O Brasil não tinha essa autonomia toda nesses ramos de hortifrutigranjeiros e grãos, se importava muito mais. Agora não, agora evoluiu muito.
P/1 – Mas importação para atacado? Importava-se grandes quantidades para…?
R – Olha, todos nós nos tornamos grandes importadores de tudo. Alho, cebola, batata, arroz, feijão nas épocas de falta, frutas, metade das frutas sempre foram importadas. Depois começou a produção da maçã, Brasil não tinha maçã, passou a ter no sul de altíssima qualidade, então, muitas frutas… você vê, kiwi era só lá na Austrália, não sei onde, hoje o Brasil é um grande produtor, enfim, frutas eram navios e navios de frutas que chegavam em Santos, no Rio de Janeiro, diariamente. E eram os fruteiros atacadistas da zona cerealista do lado do Mercadão. Então, muita importação!
PAUSA
P/2 – Você falou bastante da questão espacial geografia, queria que você delimitasse, mais ou menos, a zona cerealista pra gente.
R – Tá. A zona cerealista que eu conheci, tá, vamos falar de 69 pra cá. Rua da Cantareira, desde o começo dela, passando pela Senador Queiroz até o Parque Dom Pedro, que aí, eu tô abrangendo a Paula Souza, o Mercadão e os fruteiros. Aí, rua Paula Souza inteira, todas as quadras da Paula Souza eram atacadistas. Atravessando o rio, tem um Largo do Pari, que se chama Largo do Pari, que do Largo do Pari, rua Mendes Caldeira até o fim da linha do trem, lá nos fundos, Monsenhor de Andrade até a rua do Gasômetro, onde começa o atacado da madeira, vindo para a Senador Queiroz, entrando pela avenida Mercúrio e rua Santa Rosa. Vamos dizer, são três blocos, zona cerealista, rio, perto do Mercadão e Paula Souza e da Cantareira para cima.
P/2 – ____01:29:44______ desse complexo?
R – De carro. Rua Santa Rosa, Benjamim de Oliveira, Monsenhor de Andrade, Eurípides Simões de Paula, rua lá da igreja, lá…
P/1 – Poliana Mare.
R – Rua Poliana Mare, rua do Lucas, Alfândega. Esse sempre foi…
P/1 – Você tava falando dos importados, engraçado, você fala de importados hoje, o pessoal pensa que é vinho, queijo e acabou, né? Mas na época, se importavam alimentos mais básicos, né?
R – Hoje se importa muito mais coisa, mas os básicos, claro! Se importava cebola, se importava batata, o alho sempre se importou. Se importavam as frutas, arroz e feijão eu já falei, o bacalhau, que mais? Temperos. Os temperos que vêm todos lá da região do oriente, lá, tudo… cravo, canela, cominho, grãos que o Brasil não produz, grão de bico, feijão branco, a lentilha, a ervilha seca, tudo importado. Que mais? Sei lá, se falar em bebida não tem graça, whisky, vinho, azeite, azeitona, queijos, muito queijo importado. Azeite e azeitona, praticamente, só importado. Muito grão, esses grãos que eu falei, tudo importado, era muito.
P/1 – Como você acha que seria a mesa do brasileiro e os seus hábitos alimentares sem a zona cerealista?
R – Sabe o que é? Aí, a gente vai bater de frente com a cultura de cada estado, a cultura de cada família, a influencia dos estados. Se você pegar em São Paulo, nós temos todas as influencias de países imagináveis, japoneses, italianos, portugueses, árabes, então, em todas as composições de todas as cozinhas tem o produto importado. Hoje, nós temos muitos similares nacionais que já estão começando a competir, é claro, não vamos discutir isso. Mas vamos lá, vamos na cozinha árabe, vamos comer um homus, o grão de bico é importado, o Brasil não produz grão de bico, se produz eu não sei, tá, eu acho que não, até outro dia, ele não produzia grão de bico, vinha do México, vinha de outros países. Então, todas as culturas, todas as cozinhas têm lá um elemento que é importado. A azeite, o Brasil tá incipiente na produção do azeite, começou agora, acho que sul de Minas, acho que é uma coisa assim, agora que tá começando a aparecer alguma coisa de azeite de oliva. Qualquer mesa de qualquer boteco tá lá uma latinha de azeite, ou ela é mista ou não é, mas vi estar lá o azeite, isso vem da Europa, não tem como, é importado.
P/1 – Mas se não fosse a zona cerealista, não tinha como chegar, né?
R – Naquela época. Naquela época, era só a zona cerealista. Depois, o próprio varejo grande, o grande varejo, os supermercados, eles fazem muita importação direta, eles mesmos, não precisam mais do importador, da zona cerealista, né? Muita coisa ainda eles compram do importador, mas o próprio varejo, os Carrefours da vida, Wal-Mart, Pão de Açúcar, você vê, Pão de Açúcar tem uma linha que até outro dia, era portuguesa, mas agora é francesa, eles importam, então, faz parte da… e não vamos chamar daquela cozinha do sujeito com maior poder aquisitivo, mesmo na cozinha das pessoas mais simples, vai ter sempre lá um ingredientezinho importado, nem que seja um tempero, alguma coisa.
P/1 – Vamos voltar agora para chegar na sua trajetória até começar com o negócio com o seu pai. Você saiu da escola, é isso?
R – Da faculdade… não, não tinha saído ainda.
P/1 – Você tava na escola e você tinha ideia do que queria ser, já?
R – Eu fui. Eu não fui direto para o comércio.
P/1 – Mas você estava com 15, 16 anos, você falou: “Quero ser…”
R – Eu queria ser engenheiro mecânico quando eu estava fazendo o segundo grau. Aí, eu bati de frente com a Física, com a Química e a Matemática na parte de álgebra, não dava para mim, então, engenheiro, esquece. E aí, fui para humanas, falei: “Vou ser advogado”, eu gostava de ler e comecei a me direcionar para isso, quando eu sai, aí eu tive que fazer aquilo que a gente chamava de terceiro grau, antigamente era científico, clássico, que era a última etapa antes da faculdade, eram três ou quatro anos, e eu fui fazer escola de comércio Alvares Penteado, eu me formei em Ciências Contábeis na Alvares Penteado e depois, nesse meio tempo, aí eu já comecei a trabalhar…
P/1 – Com o seu pai?
R – Não, não. Com 16 anos… meu primeiro emprego foi numa empresa chamada Agromotor Veículos, que era distribuidora do Jeep Willys naquele época. Antiga rodoviária, praça Dino Bueno, aqui nos Campos Elíseos, onde tem a Sala São Paulo, ali, era uma rodoviária ali, antes de ir para o Tietê, era aí a rodoviária e do outro lado, tinha a matriz da Agromotor Veículos, era o distribuidor exclusivo do Jeep Willys, dos produtos, dos carros da Willys, eram importados. Eu fui trabalhar no escritório, um amigo do meu irmão me arrumou um emprego lá, eu tinha… ia fazer 17 anos e eu estava fazendo escola de comércio nessa época. Fui trabalhar lá, estudava à noite, trabalhava de dia lá, depois eu passei para sub-gerência de vendas, lá, aí eu comecei a me envolver com os caras, foi uma coisa muito gostosa, porque era bárbaro, um negócio totalmente diferente da família, tal, aqueles carros, aí já tinham os Salões de Automóvel, tinham sempre lançamentos, aí vieram os carros da Willys, os carros de passeio, Aero Willys, uma coisa linda! Era muito charmoso esse mercado, coisa bonita! Jeep, então, eu me apaixonei pelo Jeep, aqueles jeepinhos Willys mesmo, até passei a ter um depois. E eu estudava na Álvares Penteado, escola de comércio e trabalhava na Agromotor. Meu irmão, é importante saber isso, o meu irmão foi contabilista, ele era contador, ele trabalhou em banco, aí ele casou mais o meu cunhado que casou com a minha irmã mais velha, eles montaram na época o que a gente chamava uma mercearia, que é esse negócio… na rua Ana Cintra, uma travessa da São João, ali nos Campos Elíseos, aí foi um sucesso, não tinha tanto supermercado grande na época, e estavam muito bem ali ele e o meu cunhado e eu fui para isso. Aí, chegou as vésperas… terminou o curso da escola de comércio, eu tinha que fazer vestibular…
P/1 – Antes, só. Como é que era esse curso de escola do comércio? O quê que se aprendia lá?
R – A gente tinha uma escola do comercio, mas basicamente, são as Ciências Contábeis e as Ciências Econômicas, então, é Contabilidade e Economia, é basicamente isso. É claro que tem lá, tinha uma matéria sobre comercio, sobre comercio internacional, mas era uma coisa incipiente. Se formava contador ou semi-economista, vai, alguma coisa tributaria já se falava naquela época ali. Então, é isso. Na verdade, a gente se tornava grandes contadores, contabilistas que faziam a contabilidade das grandes empresas. é isso, não mais do que isso. Foi isso. Mas não era o meu escopo. O meu escopo era Direito.
P/1 – E nessa época aí, o quê que mudou em relação à infância? Você começou a namorar?
R – Aí, eu já estava apaixonado pela menina do bairro, ela tava crescendo, eu já a conhecia. Fazia parte das amizades, entendeu? Então, tinha outras namoradinhas, é claro, já era quase adulto, né, então, quando eu fiz 18 anos, eu já era um adulto, o meu Jeep eu comprei com o meu dinheiro, fui lá, comprei um Jeepinho usado, mas descontava do salário, tudo, era um adulto, né? Acabou. Já era outra vida, a primeira bebidinha, a cuba-libre da época. Fumar, eu fumei muito pouco, mudou totalmente, é claro.
P/1 – E para onde é que vocês iam nessa época para sair, para se divertir? Tinha um bar, alguma coisa assim, ou cinema mesmo, você falou, né?
R – Cinema sempre…
P/1 – Que é um amor seu, né?
R – É, mas os cinemas eram… sei lá, não era eu só que ia, não. Muita gente. Foi mais na faculdade, que aí, sim, pegou, era cinéfilo, principalmente Belas Artes, mas aí era outra coisa. Mas era cinema… como a gente trabalhava muito, trabalhava de dia e estudava à noite, na semana, durante semana muito pouco, não tinha o que fazer de diversão, porque senão, não aguentava, né, e era tudo feito na condução, ninguém tinha carro, era bonde, ônibus, era um negócio que você tinha todo um tempo pra chegar na sua casa, descansar. Mas nos fins de semana, tinha de tudo, tinham sei lá… barzinhos eram raros, tinha pizza, você ia comer uma pizza com os amigos, tomava um chopinho, eventualmente, o futebol, certo? E tinha uma coisa que a gente fazia, minha mulher vai me matar quando ela vir, se passar isso, quando eu trabalhava na Agromotor, eu não tinha carro, comprei o Jeep foi muito depois, mas eu tinha um colega meu que trabalhava comigo na minha sessão, ele tinha, na época, ele tinha o mesmo salário que eu, ele tinha um Cadillac conversível, carrão, 200 metros, conversível! Baixava… e a gente ia passear com aquele carro aos sábados à tarde, aos domingos, às vezes, a gente ia para o Viaduto do Chá, o Viaduto do Chá, o footing, a paquera era no Viaduto do Chá, encostava o carrão ali, ficavam os dois ali (risos) para ver o que acontecia e a mulherada passava, era ali que passava ou rua Augusta, aí veio a rua Augusta, a gente ia com o carro para a rua Augusta e era a paquera, aí tinha lá o ____01:42:10____, você tomava um sorvete, tinha sorveterias, essa era … a diversão maior era essa, correr atrás de mulher. Era essa a nossa diversão. Tinham os bailes de carnaval, a gente ia nos bailes de carnaval, não tinha carnaval de rua, eram bailes em salões dos clubes. Lá no aeroporto de Congonhas e tal, festas, a gente ia para os bailes, tinham os bailes de formatura, a gente saía louco para arrumar convite para os bailes de formatura para dançar, paquerar, beber. Era esse tipo de diversão. Não se viajava, tá? A nossa geração não viajava muito. Tinha acampamento já, mas eu nunca fiz, fiz muito pouco, mas era isso, era paquerar e correr atrás de mulher.
P/1 – E aí então, você foi prestar vestibular para Direito, é isso?
R – Então, terminou a escola de comércio, eu tinha o meu trabalho. Escola de comércio acabou, não tinha como você prestar o vestibular sem fazer um cursinho, até hoje tem os cursos de vestibulares, certo, até hoje existem os Etapas da vida e tinham uns dois específicos para Direito, que eram os melhores, Castelões e Camões, dois cursos para formar vestibulandos em Direito excepcionais. Caros, e eu fui fazer um deles, só que era de manhã, não tinha à noite. O quê que eu fiz? Eu parei com a Agromotor, sai da Agromotor, mas eu precisava de um dinheiro, eram seis meses só, mas eu precisava da grana, então, o quê que eu fazia? Ia para o cursinho de manhã, estudava de manhã no cursinho, saía e ia direto para a Agromotor, naquela época, a montagem da fabrica Willys era na Anchieta, via Anchieta aqui, eles fabricavam os Jeeps aqui e tinha que trazer esses Jeeps, as Rurais, as Pick-ups, os carros tinham que trazer para as concessionárias, nosso caso, era a Agromotor. Eu ia puxar carro da fabrica, puxava dois, três carros por dia, então, saía numa van com motorista, eu ia e a gente ganhava por carro que a gente puxava da fábrica para a concessionaria e com isso, eu quebrava o galho, fazia uma graninha, me deram preferencia, porque eu era subgerente de vendas lá, puxava dois, três carros por dia, eles pagavam por carro e eu me mantive naquele seis meses do cursinho. Aí, entrei para a faculdade, aí mudou a história. Quando eu entrei na PUC, mudou a história.
P/1 – Entrou na PUC em Direito?
R – Direito, à noite.
P/1 – Em que ano foi isso?
R – 1965, primeira turma noturna da PUC em Direito, não existia curso noturno. Eu fiz o vestibular da São Francisco naquele ano, fiz São Bernardo, que era muito boa e do Mackenzie, eu não fiz da PUC porque só tinha de manhã, então eu precisava uma que tivesse à noite, eu precisava trabalhar e por isso que eu não fiz da PUC. Lamentavelmente, eu não entrei em nenhuma das três, porque era vestibular, vestibular. Não era… nosso vestibular na época, não eram fases, tipo Fuvest, essas coisas, era um exame que tinha, primeiro, toda a parte escrita, todas as provas e depois, tinha exame oral, você tinha que fazer exame oral com banca ali, para o vestibular. E eu não entrei em nenhum dos três. De repente, naquele ano, a PUC resolveu abrir a primeira turma do curso noturno, eu corri, prestei e entrei, foi a sorte ter atrasado um ano, então entrei em 1965. E me formei em 71.
P/1 – E você foi trabalhar junto com a faculdade?
R – Aí é que está, então, foi bem aí que a
coisa começou a acontecer. Entrei na faculdade, fui trabalhar… fiz uns outros trabalho e tudo mais, e Agromotor me deu chance para trabalhar no Comercio e Indústria, que era do mesmo grupo, eu tava me arrastando, na verdade, né? E quando foi em 67, o meu irmão e o meu cunhado, 66, tinham lá a mercearia, empório, sofreram um baque por causa do advento dos supermercados, Pão de Açúcar, começaram a entrar em dificuldade, tinham crianças pequenas, meus sobrinhos, tal, aí o meu pai viu aquela situação, né, ele estava lá, os Irmãos Arnone na zona cerealista, ele viu aquela situação, ele chegou para os irmãos dele e falou: “Olha, eu vou sair da sociedade, eu vou montar para o meu filho e para o meu genro um negócio aqui na zona cerealista – ainda existiam alguns espaços – vou montar um negócio semelhante, que eu preciso porque eles não estão indo bem e já, já vai dar problema”, meus tios falaram: “Vai com Deus”, era toda uma família unida. Aí, ele chegou na minha casa e falou pra minha mãe: “Eu vou sair da sociedade – meu pai podia ter parado de trabalhar naquela época, que já estava muito bem – eu vou parar, vou montar uma cerealista para o Jorge e para o Silvino – Silvino é meu cunhado e Jorge, meu irmão – vou montar uma cerealista, apareceu um ponto ali – a gente chamava de ponto – apareceu um ponto na – antiga – Brasiliense, é de um amigo meu, uma bela loja, vou montar, vou dar um empurrão inicial, não vou ser sócio”, a minha mãe falou: “Tudo bem, pode montar, só que tem uma condição…”
P/1 – Ele falou para a sua mãe?
R – Para a minha mãe, ele falou.
P/1 – Mas a sua mãe trabalhava inicialmente?
R – Não, não. Mas aí, primeiro, ele comunicou por uma questão de respeito, naquela época era assim, amigo, ela falou: “Tudo bem, pode montar, monta, só que tem uma condição, o Zé vai junto” “Tudo bem, o Zé vai junto, mas será que ele quer?” “Ele quer, sim, pode deixar que ele vai querer”, ela falou. Olha só. Aí, meu pai falou e eu: “Tudo bem, eu vou continuar estudando à noite, não tem problema, só que eu vou ter que sair um pouco mais cedo para ir para a casa, tomar um banho, estudar um pouco e ir para a faculdade” “Tá bom”, fomos para a zona cerealista para olhar o tal do ponto, estava lá, uma loja bonita e passando na rua Santa Rosa, onde tem lá a Casa Flora, aqueles laticínios, tudo, estava inaugurando, um prédio novinho estava acabando de ser construído aí, uma baita loja bonita, o meu cunhado, português, ele tinha muita experiência antes de montar na zona… ele tinha muita experiência em restaurante, teve restaurantes bons aqui no centro, pizzaria, na época auge, aqui, antes de ser sócio do meu irmão. Falou: “Seu José, tá vendo aquela loja? Vamos montar um restaurante ali, nós vamos explodir de ganhar dinheiro”, meu pai… “Seu José, não tem onde comer aqui na zona cerealista, é tudo botequinho e tudo lotado, vamos fazer um restaurante, bar na frente, restaurante atrás, cozinha boa, pratos do dia, não tem erro”, meu pai falou: “Você tem certeza?” “Tenho certeza. Vamos fazer?” “Vamos fazer”, e não abrimos a cerealista, montamos um bar restaurante lá. Ficou bonito. Bom, a hora que nós abrimos a porta no primeiro dia, naquela época não existia maquininha de senha, sabe, se tivesse, a gente teria que ter usado, foi uma coisa, uma enxurrada de gente, gente querendo comer no restaurante do seu Arnone, não chamava Seu Arnone, né, gente querendo comer, era madrugada a madrugada, os motoristas de caminhão chegavam na madrugada, estava aberto, eles queriam comer frango. O almoço… bom, veio Verissimo almoçar no nosso restaurante, veio Dias Martins, vinha… que aí, a gente começou a fazer aqueles pratos que não existiam, tinha um dia da semana que tinha cabrito, tinha um dia da semana que tinha… eu e o meu pai íamos fazer as compras no Mercadão, baita cozinheiro, assim, lotado, lotado! Simples, mas… foi um sucesso, você pode perguntar para um monte de gente que você vai entrevistar que comeu lá. Enfim, e trabalhávamos até sábado à noite. Eu fazia as compras logo cedo com o meu pai, aí ajudava na hora do almoço, punha o jaleco de garçom, eu e o meu irmão, ficávamos para servir as mesas com os garçons, o meu cunhado comandando a cozinha, saída dos pratos, meu pai no caixa e os empregados todos. E não tinha muito horário para fechar, fechava muito tarde, tal, e eu ia para a faculdade. Quatro e meia, saía para a minha casa, depois ia para a faculdade. Depois de dez meses, teve uma briga lá dentro, à noite, estava o meu cunhado e o gerente, a gente não trabalhava à noite, nem meu pai, nem o meu irmão, teve uma briga de dois motoristas de caminhão e saiu garrafada, facada, tudo que você possa imaginar entre os motoristas, mas foi lá dentro, foi na porta, entraram lá dentro. Ficamos um dia para limpar a sujeira, fora o que quebraram, um dia para limpar toda aquela sujeira. Meu pai quando viu aquilo, ele falou: “Eu vou embora daqui, acabou. Meus filhos não vão ficar mais aqui”.
P/1 – Sujeira do quê? sangue?
R – É. “Meus filhos não vai ficar mais aqui”, meu cunhado falou: “O senhor tem razão, mas eu fico”, aí o meu cunhado ficou e aquele ponto que nós tínhamos visto na rua continuava lá, parece que a coisa é meio… aí o meu pai falou: “Vamos alugar aquele troço lá para vocês, você e o seu irmão… eu vou ensinar vocês”, então foi em 69, que até montar o bar e tudo mais, inaugurar, tivemos que esperar o prédio terminar, abril de 69, nós fomos, eu e o meu irmão montamos a Comércio de Cereais Arnone. Então, antes passamos ali pelo boteco, lá e aí, fomos para lá em abril de 69. E eu continuava na faculdade à noite, é claro, porque eu me formei em 71 e me casei em 72.
P/1 – Você se casou também em 69?
R – Em 72.
P/1 – Como é que era atender esses clientes no restaurante, no bar? Você aprendeu muita coisa? O que você aprendeu lá?
R – Olha, o que eu aprendi? Aprendi a ser garçom, né, aprendi a fazer compras para cozinha de restaurante, que é totalmente diferente para a sua casa, né, era gostoso, sabe? No sábado, a gente inventava umas modas que não tinha lá, enfim, a gente fazia um festivalzinho ali de batidas, fazia umas caipirinhas para os comerciantes, todo mundo trabalhava aos sábados até duas, três, quatro horas da tarde funcionava a zona cerealista. Então, sabe, era gostoso. E a gente conhecia todo mundo, passou a conhecer todo mundo, porque todo mundo conhecia o meu pai, a gente passou a conhecer todo mundo, então era… e os motoristas eram motoristas de caminhões, viajantes. Alguns clientes de lá, depois vieram se tornar nossos clientes no nosso comercio, que almoçavam, jantavam lá, vieram se tornar nossos clientes. Então, foi uma coisa muito saudável. Aprendi a servir mesa, não tem erro, não, era divertido, os 10% eu estava dispensando, eu era dono, não precisava dar não, não tem problema, mas era legal, era legal. Dava uma fome, cara!
P/1 – Ah é?
R – Impressionante! Dá uma fome, porque é tudo coisa muito boa, gostosa, né, dá vontade de comer esse negócio aí que o cara tá comendo, é incrível! Você tem que se segurar, manter a linha, né?
P/1 – E você servia o cara e a comida do lado, assim, e ficava com fome?
R – Não. A hora que começava o almoço, sair aquela feijoada ou sair aquele prato virado do dia, o macarrão, dava uma fome, vontade de sentar e comer, tinha que comer depois, é claro.
P/1 – Era mais ou menos assim?
R – É.
P/1 – Agora, tem algum cliente, alguma figura que você conheceu nessa época aí que te marcou um pouco, que você se lembra mais ou menos, assim?
R – Sei lá, não foi nessa época. Que na verdade, alguns clientes, depois, se tornaram… nós nos tornamos concorrentes de alguns clientes, mas sem nenhum problema, então, marcar, não marcou nada. Alguns motoristas… não é que era cliente, um dos donos desse prédio que nós nos tornamos inquilinos do bar, lá, do restaurante, João, seu João, eram dois irmãos, eles eram… os dois irmãos, eles eram corretores de gêneros alimentícios, existia a figura do corretor, também. Acho que até hoje existe. O quê que era corretor? Era representante de produtores de produtos alimentícios, ele recebia essas mercadorias, ele não tinha a loja, ele não era atacadista, ele não vendia para o consumidor final, ele era representante e ele vendia para os atacadistas, para nós e para outros e esses dois irmãos, Valverde, seu João Valverde, o escritório dele era em cima do restaurante, né, e o irmão dele, que eu preciso lembrar o nome, era mais velho que ele, o João Valverde era um cara sensacional, um cara mais jovem, falante, galante, tal, um homem com olho azul, bonitão e contava as peripécias, gostava de tomar um whisky, no sábado, a gente preparava uma caipirinha, ele gostava, ajudava e tal, mas o irmão dele era aquilo que a gente chamava na época do mão de vaca, aquele cara… era gente boa, tudo, né, mas dava m trabalho pra gente, se ele podia, ele fazia uma boquinha de graça toda vez, porque ele era o dono, mas a gente pagava o aluguel, pô! não era de graça que a gente tava lá. Ele fazia o diabo para comer de graça e beber de graça no nosso restaurante. Era até gozado, a gente não ligava. Nós inauguramos o restaurante, marcamos uma data, trouxemos alguns amigos, alguns comerciantes, a nossa família para inaugurar no sábado à noite o restaurante, inauguração, minha mãe, minhas irmãs, enfim, marcamos a data e convidamos o seu João Valverde e o irmão dele, preciso me lembrar do nome, as esposas, tal, sabe o que ele fez, não o João, o irmão? Ele inaugurou o prédio, ele convidou todo mundo para inaugurara o prédio com a nossa festa. Nós fizemos uma festa para 50 pessoas, apareceram 150, 200, ele convidou e jogou os convidados da inauguração do prédio na nossa festa, ele era assim, era uma figura, mas de vez em quando… ele ia, almoçava: “Estão me chamando…”, sumia para não pagar (risos), era hilário, deixa pra lá, tudo bem.
P/1 – Mas te marcou de um jeito.
R – Claro. Eu me lembro dele até hoje, pô, o nome não tá me ocorrendo agora.
P/1 – Mas a figura, né?
R – A figura dele. E depois, acabamos até… quantas e quantas vezes compramos caminhões de mercadorias desses dois irmãos? Porque a gente já estava num outro setor. Era isso, a zona cerealista era isso, esse entrosamento, todas as histórias, todo mundo se cruza um dia, lá, depois foi demais, a nossa época, quando nós, realmente, viramos atacadistas, nesses 30 anos, tem histórias, duvido que caiba num livro, não cabe. Se sentarmos eu, Dadá, pena que morreu o primo dele, o Claudio Marchetti e mais alguns que você vai entrevistar, não dá para pôr num livro.
P/1 – E engraçado, que tem muitos personagens do bairro do Brás, né? Tem, sei lá, o barbeiro, tem não sei quem… quem que era muito conhecido nessa época, assim, no Brás ou é conhecido até hoje, que tava lá, assim?
R – Aí, é um pouco difícil pra mim, porque eu acho que isso é mais para quem residia lá na região, né? Um pouco difícil. Barbeiro tinha no prédio nosso, nosso prédio eram lojas e embaixo e em cima, escritórios, tinha barbeiro? Tinha barbeiro e a gente usava esses locais. Tinham os outros restaurantes, os outros bares que se tornaram pessoas conhecidas nossas, claro, eram pessoas do bairro. Agora, pessoas típicas do bairro, eu particularmente não me atrevo. Teve uma pessoa, que era um vendedor de doces, eu acho que alguém mais vai falar sobre esse cara, eu li na “Vejinha”, mas não é a mesma pessoa, pode ser até um parente dele. Era um sujeito que era um rapaz novo, um italiano, todo meio de tarde, começo da tarde, no meio da tarde, um pouco depois do almoço, ele vinha com avental branco, uma caixa de doces que a gente chama, tem um doce chamado cannoli, é um doce redondinho com dentro um creme delicioso, ele vinha com aquilo e andava todas as ruas da zona cerealista, ele era da região e ele fazia isso no Juventus também, ele era o vendedor de cannoli do Juventus, dentro do Juventus tinha esse doce, tem até hoje e ele vinha… tinha que nem um véu em cima dos doces, por causa de moscas e tudo mais, todo mundo comprava, todo mundo comprava, aquilo era uma delicia, esse cara era um cara típico, que todo mundo conhecia, seu Antônio, o sobrenome eu não me lembro. Ele vendia cannoli, tinha de creme e de chocolate, o meu pai comprava, meu irmão… todo mundo comprava. Quando chegava no fim da tarde, não tinha mais nada para vender e se sobrasse, tinha quem arrematasse tudo para levar para casa, porque não era que você precisava comer ali. Parece que tem ou é um descendente dele, eu li outro dia, no Juventus, que existe ainda a mesma figura, ele não, não pode ser ele, que ele já deve ter morrido, que vende cannoli no Juventus, dentro do Juventus que é uma delicia. Esse marcou, esse era um que era todo dia, só não aos sábados, esse era um… e esse era típico da região, realmente, seu Antônio, eu não me lembro o sobrenome dele, a gente comia os cannolis.
P/1 – Tinha sapateiro lá? Farmácia?
R – Tinha muito engraxate de rua antigos, senhores engraxates, não eram crianças, não. Que mais?
P/1 – Chapa?
R – Bom, isso aí fazia parte dos terceirizados, né, então, muito jogo, bilhete de loteria, as loterias novas não tinham chegado ainda, né, primeiro veio a loteria esportiva, depois, vieram as outras, Mega Sena é mais recente, mas era muito bilhete de loteria, jogo do bicho. Jogo do bicho eram um ou dois grandes bicheiros, não sei se é um ou dois, não vou nem tentar citar o nome do chefe da banca, porque eu não me lembro, mas eles tinham… a gente chamava de apontadores, que são os caras com os quais… você não precisava ir num chalé, num boteco para fazer o… eles vinham nas empresas para colher o jogo do bicho e bilhete, eram bilheteiros assim, homens, mulheres, o que se vendia de bilhete de loteria e jogo do bicho, era um negócio… e eram todas pessoas conhecidas, pessoas do dia a dia, tal, eram os mesmos sempre. Tinha uma velhinha, nunca me esqueço dela, ele se vestia toda de preto, parecia minha avó, me impressionava aquilo, ela só vendia bilhete com o final 13, só 13. Era uma corrida atrás da velhinha, bilhete 13, vendedora do bilhete 13. Isso tinha muito, muito jogo. Na zona cerealista, depois nós vamos falar só isso, talvez, quando vieram as cooperativas japonesas, veio muito japonês para lá, além das cooperativas, vieram cerealistas japoneses e eles gostam, né? O oriental gosta muito de jogo! Então, eles jogavam e jogavam firme no bicho, não era apostinha… assim como os comerciantes, os próprios chapas, todo mundo jogava no bicho, todo mundo! Todo mundo sem exceção, muito jogo do bicho, muito!
P/1 – Agora, vamos passar de volta para a faculdade, você estava lá trabalhando, mas tinha a faculdade também, né?
R – Faculdade à noite nas Perdizes e durante o dia era na zona cerealista, Comercio de Cereais Arnone Ltda.
P/1 – E como é que era o clima na faculdade, como é que eram as aulas?
R – Eu peguei uma época muito singular, eu peguei a época da nossa ditadura militar e a PUC sempre foi dirigida pelos padres dominicanos, PUC é de origem católica, por isso que é Pontifícia Universidade Católica, são os padres dominicanos e os padres dominicanos sempre foram de esquerda. Então, eu peguei aquela nossa turma que fez UNE, que fez as manifestações da época, eu convivi com o José Dirceu, que foi meu presidente, né? EU só não fui para Ibiúna porque eu estava com pneumonia, minha mãe não deixou eu ir, senão, eu teria ido para Ibiúna, quando foi todo mundo preso, né, no Congresso de Ibiúna. Eu militei pela Juventude Católica, pela JUC, dos padres dominicanos, porque tinham divisões, né, eu fiz sempre Acadêmicos 22 de Agosto, trabalhei no 22 de Agosto, fizemos peças no Tuca, enfim, então foi toda uma geração muito engajada, nós passamos por aquela invasão da PUC pelo pessoal do Mackenzie, desculpe, da TFP, quando veio lá o Erasmo Dias, também invadiu a PUC, nós tínhamos fechado a faculdades, estávamos lá dentro, não fui preso. Fizemos muita passeata, não era manifestação, fizemos muita passeata estudantil, na linha de frente, os dominicanos, enfim, fiz muito movimento estudantil, participava, mas eu era da JUC, Juventude Católica. Tinha uma tendência para a esquerda, mas era mais socialista, tal e conheci Florestan Fernandes, a gente fazia assembleias, fazia palestras, então, convivi com todo esse pessoal. Muitos deles, alguns deles, aliás, fundadores inclusive do próprio PT, o verdadeiro PT que foi fundado naquela época, que era realmente o partido da tendência moderna do mundo inteiro, Paris, operariado lá de ____02:08:17_____, tudo, então, eu me engajei nisso, mas me engajei de uma forma de simpatia, não é que eu me tornei um militante, não, nunca fui militante, tanto é que depois, continuei meu apoio, meu apreço, fui seguir minha vida e nunca me filiei a nenhum partido, tive oportunidade, fui convidado, mas não. Mas eu sou dessa época. Então, a minha faculdade é essa, uma faculdade primorosa, por isso que essa me marcou demais, da minha turma estão aí grandes personagens que estão aí no mundo público nos dias de hoje, desembargadores, juízes, políticos, corruptos, enfim, tem tudo, né? E grandes cabeças, foi uma coisa fabulosa, a PUC foi uma coisa… essa me marcou… e ainda, nós estamos juntos até hoje, me formei em 1972. A minha OAB é 28.155, me formei em 72, em 72, saiu a minha OAB, fizemos o concurso, todos nós, todos nós passamos na primeira prova, era diferente, era prova escrita, prova oral, todos nós, enfim, e aí, eu não, eu já estava no comércio, eu não fui para o Direito, né? Mas grandes cabeças, pessoal totalmente culto. Nesse meio da faculdade, aí, tinha todo o movimento moderno do cinema, todo cinema francês, cinema inglês, foi uma maravilha! Esse sim, foi um período muito gratificante e eu fazia aquilo que eu mais gostava, né, sabe, você participava de cultura, de tudo. Sensacional.
P/1 – Fala um pouquinho dessa questão do cinema, o quê que vocês assistiam? O quê que te marcou?
R – O que me marcou chama-se Cine Belas Artes, às segundas-feiras, que eram a sessão maldita, então, tinha lá um filme, ascendia a luz depois do filme e aí, vinha o debate depois sobre o filme. Isso não existe mais em São Paulo, sessão maldita, começava a meia-noite, você ia até duas, três horas da manhã, ali debatendo, não existe mais. “Fahrenheit 451”, esse daí não vou esquecer nunca na minha vida.
P/2 – Você tem um diretor favorito?
R – Eu não me lembro do nome, não vou lembrar. Assisti umas quatro ou cinco vezes, já e eu sei que tem por aí, preciso comprar. Aquela queima de livros, pessoal queimava os livros pra ninguém ler…
P/1 – Falava muito do que você vivia na época, né? Queimar livros…
R – Exatamente! Mas aí, tem os romântico da vida, também, filmes franceses maravilhosos, enfim, cinema italiano, pô, Fellini, a gente não perdia um, francês, a gente não perdia um, claro, era muito bom. Tinha um pouco de ficção, mas era muito pouco, era um negócio… e a minha namorada que hoje é minha esposa também gostava muito de cinema, então, era perfeito, né? E depois, a gente ia ver os filmes também do cinema normal, né?
P/1 – Hollywood, né?
R – É, os Hollywoods da vida, comédias, dramas também… era muito bom.
P/1 – Tinha uma questão assim, meio de contra cultura esses filmes, né?
R – Exatamente.
P/1 – Sei lá, Godard ou cinema novo…
R – Fazia a gente pensar demais. Os próprios filmes nacionais, né, na época.
P/1 – Isso em tese não podia ter isso, né?
R – Depende, tinha muita censura, claro, tinha muito corte, né? Tinha muito corte, mas dava para assistir, você entendia o que tava acontecendo, claro. Tinha censura. Na época da minha faculdade, tinha censura, depois que caiu, né? A gente sabia que tinham cortes… os festivais de música brasileira…
P/1 – Você acompanhou?
R – Todos! Todos! Na Record, todos! Eu vi o Geraldo Vandré jogar o violão, quebrar e jogar… nós vimos tudo! Na época da faculdade, eu não vou precisar o ano, teve uma eleição do 22 de Agosto e saíram duas chapas, tinha a chapa do Zé Dirceu e tinha a chapa do Omar Laino, que era outro amigão nosso e por razões internas, eu estava na chapa… apoiava a chapa do Omar Laino e não a do Zé Dirceu e o Omar Laino e eu me engajei lá no 22 de Agosto, tal, algumas atividades culturais, eu gostava de fazer cartazes, cartazes de shows, fazia em silkscreen cartazes,
e aí, o Omar falou: “Vamos fazer…”,
a gente tava bem na época das bordoadas… “Vamos fazer…
P/1 – Já era AI-5 que tinha, né?
R – É. “Vamos fazer um show no Tuca?”, porque o Tuca era nosso, né, era da faculdade, “Vamos fazer um show de música no Tuca?’, tava todo mundo aflorando, tava todo mundo começando, Chico, Gal Costa, Gil, todo mundo, Nara Leão, tava todo mundo aflorando, era o inicio dessa nova música brasileira, né? “Vamos?” “Vamos, vamos fazer, o quê que a gente faz?” “Vamos fazer um show com jogral e vamos descer o cacete com esse jogral, vamos ver o que a gente pode fazer e vamos botar muita… vamos convidar esse pessoal que quer…”, todo mundo queria tocar em público, todo mundo! “Vamos?” “Vamos!”, por incrível que pareça, vocês podem não acreditar, eu não tenho os anais porque nós perdemos tudo isso, nem sei se tem nos arquivos da policia federal, não sei, mas foi um show chamado Tese. E fizemos um jogral de vários textos, de vários autores brasileiros, tinha o jogral… nós montamos o cenário, nós botamos os praticados lá, botamos umas cortinas, tudo muito simples. Aí, a gente convidou: “Vamos convidar o Chico Buarque?” “Vamos” “Vamos convidar a Gal Costa, Nara Leão, Gilberto Gil? Vamos convidar Paulinho Nogueira? Vamos convidar Toquinho? Bom, vamos convidar bastante, porque como não vai vir ninguém, vai vim pouco, então, a gente…”, foi lá no Tuca, mesmo. “Vamos convidar bastante, porque metade não vem, já fica um show”, vieram todos! A hora que a Nara Leão pediu um banquinho, microfone dessa altura, ela sentou, a saia dela veio pra cá, até… ela tinha um joelho, era o joelho… não sei se vocês… vocês são muito jovens ainda, o pessoal além de apreciar a Nara Leão como compositora, cantora, aquela suavidade dela, eram os joelhos mais encantadores da época, joelhos mais lindos, ela era admirada também pelos joelhos. E aquilo lá, a plateia veio para o chão, um negócio… veio todo mundo, veio Chico… é uma palhinha que cada um dá. Fizemos um show de músicas brasileiras, até isso, eu consegui me engajar com o pessoal. É claro que não fui eu que fiz sozinho, toda uma turma, colegas, todo esse pessoal que a gente encontra até os dias de hoje. Até isso nós fizemos. E não baixou policia, no baixou nada, fizemos do começo ao fim, não tivemos problema nenhum. E teve lá, lemos textos, vários textos que exigiam respeito à situação. Fizemos, conseguimos.
P/1 – E como é que era esse clima assim, vocês tinham pautas, quais eram essas pautas e como é que era isso?
R – Na verdade, o movimento estudantil acompanhava a tendência mundial, principalmente das manifestações da França, principalmente…
P/1 – Maio de 68?
R – Isso, por aí. Aí, teve aquele problema do calabouço no Rio de Janeiro, que morreu aquele garoto, secundarista, né, morreu dentro do restaurante do calabouço e aquilo ferveu. Então, não era tanto em termos de politica da nação, era muito mais em termos de politica da educação, da cultura mais realmente voltada para a educação, para o ensino, essa era a pauta principal. É claro, você assimilava também a pauta politica, problema da repressão, da censura, né, mas a censura era mais visualizada pelos jornalistas, pelos artistas, nós não, o nosso era a parte educacional, realmente, era o foco.
P/1 – E quem que eram os seus professores nessa época? Quem você conheceu, assim?
R – Olha, grandes nomes, né, então por exemplo, toda turma que se encerrava passava a ter um nome, nome de turma, que era o paraninfo, era o patrono da turma. A nossa turma chamava Agostinho de Arruda Alvim, que era o professor famoso Agostinho de Arruda Alvim que foi um dos maiores catedráticos do Direito Civil desse país, ele era nosso professor e esse foi o nossos nome de turma. André Franco Montoro foi meu professor, governador André Franco Montoro. Antônio Claudio Mariz de Oliveira, cujo filho é o… aliás, Waldemar Mariz de Oliveira, o filho é o Antônio Claudio Mariz de Oliveira, que o criminalista, nosso colega. Uma pessoa que me surpreendeu atualmente nesse último apoio contra o impeachment que é o Bandeira de Melo, o Bandeirinha, ele foi professor de primeira linha, o pai dele era o Reitor da PUC, Bandeira de Melo. Ele, advogado, mil livros escritos, tá aí engajado pró-Dilma, uma coisa que eu não entendi muito bem, respeito porque tem os dois lados. Quem mais? Adib Casseb, professor de Direito Romano, um cara… um árabe que vou te dizer, esse marcou a história do Direito Romano aqui no Brasil. Os criminalistas eram grandes criminalistas da época, enfim, gente de… nós tínhamos Direito Canônico, né, que é obrigado a ter, Dom Benedito Ulhoa Vieira, que foi arcebispo de São Paulo, hoje, não sei nem se ele tá vivo, mas era arcebispo… esse cara, ele promovia, além de nosso mestre, ele promovia na casa… do lado da PUC tinha a casa… não sei se ainda é, mas tinha a casa paroquial, ele morava lá, promovia saraus literários culturais com música clássica, com debates sobre os mais diversos temas, ele virou, mexeu, ele convidava o Florestan Fernandes para fazer uma palestra, tudo informalmente, não si, eu acho muito difícil a gente encontrar isso hoje em dia, tenho certeza que existem grandes mestres, mas os nossos foram os nossos. Eu pego o meu álbum, pena que eu não trouxe, nosso álbum de formatura… Emilio Marques Porto,
tinha gente que fazia fila para assistir uma aula dele. Pessoal… esse professor, o Agostinho de Arruda Alvim, ele era o catedrático do Direito Civil, todos eles tinham um assistente, que o cara tinha que viajar, tal, Montoro tinha também. Então, o Arruda Alvim, ele tinha o assistente chamava-se Antônio Mercado Neto, Direito Civil. O Antônio Mercado Neto convivia com a gente no Tuca, gostava muito de arte, era um cara muito novo ainda e cara atuante, brilhante, Antônio Mercado Neto foi embora do Brasil, foi para Portugal. Hoje, dizem que é um dos grandes diretores de teatro de Lisboa, é diretor de teatro, catedrático do ensino… foi nosso professor também. Incrível. E depois, o que aconteceu foi que alguns dos meus colegas, eles se engajaram no ensino também, se tornaram catedráticos.
P/1 – E vocês faziam peças de teatro? Viam muito teatro?
R – Não. O Tuca tinha… tinha a Companhia Tuca de Teatro, né, não é só o nome do espaço, tinha a Companhia Tuca que eram amadores, mas faziam teatro, tinha peças, tal. Enfim, eu não. A única vez que eu me engajei foi nesse show.
P/1 – E era meio contrastante com a sua vida de comércio, imagino, né?
R – Totalmente.
P/1 – Como é que era?
R – Veja bem, como eu falei, eu não era um militante de esquerda, nunca fui. Mas tinha uma simpatia pelo movimento da época, pelas coisas, pela Filosofia do movimento, que era outra coisa, era uma coisa muito seria, de altíssimo nível, tinha simpatia, mas eu tinha minha ambição, como homem, do que eu queria. Eu fui criado para casar, ter filhos, ser um grande pai e um excelente profissional de sucesso. Essa educação que eu recebi e eu fui procurar ser isso tudo. Nessa hora, eu, particularmente, eu achei que a minha opção teria que ser essa, porque se eu quisesse continuar dentro do movimento, seguir mais para essa linha politica, eu teria que abdicar do comércio, poderia eventualmente, sim, militar na Advocacia, que favorece muito a tudo isso, mas teria que esquecer família, namorada, casar, ter um bom apartamento, teria que esquecer. Eu optei ser um comerciante, optei em ter a minha família, eu era… era não, sou apaixonadíssimo pela minha mulher, quero casar bem, com um bom lugar para morar, quero ter filhos, tive e quero essa vida. Eu optei. Não deixei de simpatizar com todos os meus amigos, nunca eu cheguei a extremos em discussões, respeito a posição de todo mundo, tenho simpatia para quem é da minha época, né, então foi uma opção minha. Não era tão difícil não, sabe, porque começo de vida de todo mundo é muito difícil, não pensa que porque eu estava na zona cerealista tinha dinheiro, não, tudo era na base do trabalho. Então, não era tão… era gostoso, mas aí chegou uma hora que você utem que dar o corte: “Bom, o quê que você quer ser?”. Você vê que os meus amigos que continuaram no movimento, uns morreram, outros se tornaram grandes políticos, outros se tornaram grandes mestres, outros se tornaram grandes advogados, desembargadores, juízes. Então, foi… eu fiz a minha opção, nunca me arrependi, eu acho que eu fiz a opção certa.
P/1 – Agora, vamos chegar mesmo na firma. Você começou em 69, como é que estava…
R – De 69 até 99.
P/1 – Até 99. E como é que estava você falou: “Vamos mudar aí, vamos tentar todo mundo se erguer junto e tal”, era mais ou menos isso?
R – Não. Meu irmão já casado com filhos, meu cunhado, casado e com filhos estavam entrando em dificuldade no negócio deles lá, então, antes que desse algum problema “Vamos começar novamente, mas vamos começar nesse ramo”, meu pai nos orientou. Meu pai não era sócio da empresa, meu pai ainda não tinha remuneração nenhuma da empresa. Vivia lá com as coisas dele, com a renda dele, ele nos… trabalhava com a gente dia e noite nos ensinou tudo, até o fim da vida dele, ele ficou lá. Jamais largaria da cebola e do alho dele, então ele nos apresentou os fornecedores, nos apresentou aos clientes, ele ficava lá, ele trabalhava mais do que a gente, essa que é a verdade. Então, ali, a gente começou como eu falei para vocês, era uma outra época, a zona cerealista estava efervescendo, era uma coisa maravilhosa, então, se você trabalhasse direitinho, decentemente, tudo mais, sabendo trabalhar, como a gente sabia, o meu pai nos ensinou a base da coisa, não tinha erro, só podia ganhar dinheiro, não tinha como. E a gente começou ali, foi dando certo, foi dando certo, crescendo, crescendo, quer dizer, crescendo como empresa pequena, nós nunca fomos uma empresa média, nem média nós chegamos a ser, sempre fomos pequenos. Na zona cerealista, tinham empresas pequenas, empresas médias, depois, tinham os grandes também, tá, os grandes atacadistas, distribuidores, a minha era pequena.
P/1 – Me fala então, um pouco quem era grande, quem era médio e quem era pequeno.
R – Meio desagradável falar isso, mas…
P/1 – Mas quem você mais conhecia…
R – Por exemplo, empresas médias, até hoje estão lá, cresceram, grandes importadores, esse pessoal da importação, tinham as famílias importadores, que eram umas dez importadoras grandes, que eram essas empresas médias, tá? Mas vamos chamar de empresa grande, os distribuidores, Dias Martins, na época, tinha o Alô Brasil, ainda, veio uma empresa chamada CoFeSa – Comercial Ferreira Santos, Atacadão que começou lá, então, essas eram empresas grandes. E as outras, uma boa parte médias, mas a nossa era considerada pequena, pequena, mas eminentemente rentava para as nossas famílias, então, tranquilo. E fomos crescendo no alho, na cebola. Aí, vieram alguns grãos complementares, que os nossos clientes compravam, vamos agregar e depois, começamos a entrar na importação daqueles produtos que a gente já vendia normalmente, o alho, a cebola, eu cheguei a importar azeite, importamos panetone, nunca me esqueço, importamos rum cubano, quando o Collor abriu as importações, liberou, que antes disso era tudo contingenciado, para você importar, esse é um assunto… esse é um dos assuntos mais polêmicos da zona cerealista, as cotas de importação, que para você poder importar, você tinha que ter autorização governamental, eram cotas e isso era um comércio, era uma coisa… quem tinha uma cota de importar um produto, era dinheiro ganho na certa. Então, era uma briga por cotas, mas era tudo contingenciado pelo Ministério de Comércio e Indústria, pelo Banco do Brasil, setores de importação. Então, Collor abriu. Nós temos um amigo em comum, aí, que é o Telmo e ele sempre foi muito ligado a Cuba, as pessoas de Cuba, enfim, e ele falou: “Vai abrir a importação, vamos trazer rum cubano”, Brasil só tinha rum Bacardi e rum Merino, não tinha outro rum, “Vamos trazer rum cubano”, aí nós fizemos um consorcio, ou seja, não foi só nós, Arnone, Dadá, as nossas empresas, fechamos um pacote de rum cubano, foi a primeira importação de rum cubano, só que
gente… era tanto movimento, tanta coisa na época, que bom: “Vamos fazer o seguinte? Vamos trazer um container com rum cubano e vamos ver como que funciona?” “Não, vamos já trazer 50 containers de rum cubano”, ah rapaz, até hoje tem rum cubano na minha casa (risos), mas é uma coisa pavorosa. Prejuízo não deu, porque era tão barato, então trouxemos rum cubano. Panetone, a Argentina começou a mandar panetone para o Brasil, nós tínhamos muito relacionamento com os argentinos, né, muito comércio com os argentinos, aí trouxeram panetone argentino em lata, uma coisa maravilhosa, enfim, depois veio na sequência, veio o alho da China, veio… então, era uma loucura. Eu, por causa da cebola, nossa empresa, tudo era cota, tudo era contingenciado e uma coisa que era muito gratificante financeiramente era a semente de cebola, que toda cebola plantada, uma parte da cebola plantada no Brasil era semente natural, mas a outra parte só com semente americana, não tinha semente para plantar, o Brasil não produzia a semente, produzia a cebola. Uma lata de semente de cebola era uma fortuna! E tinha uma associação fechada e você não conseguia de jeito nenhum se associar para importar, era um monopólio. E um grande amigo nosso, um atacadista grande da família Ortega, foram fornecedores do meu pai e eles tinham uma cota de semente de cebola e aquilo salvava o ano. Já pagava as despesas do ano, o que eu lutei para obter uma cota e nunca consegui, a nossa empresa, não era para fazer com ninguém, empresa pequena e eu insistia, ia nas reuniões, bom, não saía a nossa cota. Essa família Ortega foi acabando, fecharam e sobrou um Ortega que ele ficou lá fazendo corretagem, tal e muito amigo meu, almoçava sempre com a gente, Antônio Ortega: “Pô, Toninho, eu precisava arrumar um cota de importação de semente, vamos trabalhar nisso?” “Vou te ajudar, você me dá uma parceria.” “Claro! Vamos embora”, fizemos que fizemos que conseguimos, eu importei sementes de cebola, três anos. Quer dizer, então, a zona cerealista era isso, de repente aparecia um vizinho com uma novidade, olha o que o cara foi descobrir e trazia, ia lá no fim do mundo e trazia alguma coisa diferente, era um sucesso, era uma… a importação passou a ser parte da nossa vida, entendeu? Depois, lá na frente, virou um desastre.
P/1 – Por quê?
R – Por causa da concorrência, todo mundo importou de tudo e você… foi o grande desastre da zona cerealista, muita gente quebrou por causa da importação.
P/1 – Por que abriu?
R – Não, o exagero! O alho chinês foi um deles. O alho chinês foi um que quebrou muita gente, foi um exagero, foi um absurdo. Agora, tá saneado, mas foi um absurdo. Navios e navios, não tinha onde por alho, alho sendo jogado fora, apodrecendo.
P/1 – Ele entrou muito no mercado e não tinha mercado para consumir?
R – Tinha mercado, mas todo mundo superou a necessidade, quer dizer, eu não ia consultar você e dizer: “Eu tô trazendo um navio”, eu não sabia se você também estava trazendo, a gente só sabia quando o navio chegava, então, aí não tinha onde por alho. Os três primeiros anos… a partir do quarto ano, não tinha mais. Estamos falando de um produto, isso aconteceu com vários. Mas a importação foi carro-chefe de muitas grandes famílias, empresas e esses eram os… porque com a importação, surgiu uma outra coisa, a representação exclusiva, ou seja, você importava um produto e você se tornava importador exclusivo desse produto no país, então é… eu vou te dar um exemplo, era na zona cerealista a representação de importação do whisky Grants, que tem até hoje, né? Era a família Andrea, os Andreas, eles tinham a representação exclusiva no Brasil e a importação, só eles podiam importar, não adianta e eles distribuíam para o Brasil inteiro.
P/1 – O azeite Gallo também, né?
R – O Gallo era do Gouveia de Oliveira, depois, eles perderam, porque aí, as próprias empresas montaram os escritórios aqui no Brasil, né? Quem pegou o Grants acho que foi a ____02:36:05____, não sei, então foi acabando. Então, a importação, os importadores eram vistos como empresas médias para quase grandes por causa disso, era uma coisa realmente era acima do nível. Da cebola, da batata, do alho, do arroz, do feijão, era um nível acima, realmente, eram empresas mais capitalizadas, mais fortes, realmente eram.
P/1 – E elas começam a aparecer em que década, mais ou menos? E por quê que elas apareciam?
R – O quê?
P/1 – As importadoras.
R – Apareciam ou desapareciam?
P/1 – Não, apareceram.
R – Estão lá desde o começo, desde os primórdios, vou te dar um exemplo. Na época da feira do meu pai e dos meus tios, eles iam lá para comprar as coisas da feira, já estava lá o azeite, não tantas marcas que nem hoje, né, estava lá o azeite, tinham vinhos, estava lá, sei lá, a azeitona, não tinha essa variedade de produtos importados, mas já estavam lá, os importadores estavam lá. Os mesmos atacadistas que vendiam o alho, a cebola, sei lá, já importava também.
P/1 – Agora, esse atacadista de produtos básicos, batata, cebola, alho, tal, você acha que ao longo do tempo, eles tiveram que mudar um pouco, ter uma variedade maior? Como é que fica isso aí? Se o cara não muda, ele perde…
R – Olha, eu tenho para mim, que já acabou na zona cerealista, ficaram poucos remanescentes disso. O alho, eu não vou dizer tanto, porque o alho me parece que ainda tem aí, uns importadores, alguns, tá, não é o que era na minha época, mas alho, a batata, a cebola tá tudo concentrado nos Ceasas, né, acabou. Na zona cerealista, praticamente, quase inexiste, tem? Tem. Tem lá uns batateiros, uns ceboleiros ainda, mas é muito… mas enfim, não existe… acho que não se considera mais hoje na zona cerealista o peso disso, né, acho. Tenho quase certeza, mais que o Ceasa, né, aliás, muita gente da zona cerealista foi para o Ceasa, muita batata, cebola foram para lá, alho… tem uma família de portugueses muito amigos, eu não sei nem se ainda eles estão, se um dos meninos esta na diretoria do sindicato, preciso ver, da família Louro, seu Louro morreu, um portuguesinho, feirante, fabuloso, só alho, só alho, muito alho e eu sei que eles montaram uma… que era uma filial no Ceasa, me parece que hoje é
matriz deles, eu não sei, não sei se hoje eles têm alguma coisa na zona cerealista, mas foram para o Ceasa. Acabou. Quando você falou em tempero, eu te falei que naquela época, tempero era complemento. Hoje não, hoje… você vê os sites da zona cerealista, você vê tempero, hoje o foco e os laticínios, né?
P/1 – Todos os naturais também.
R – Todos os naturais. Isso tudo era praticamente inexistente. Mudou, apesar que tem alguns atacadistas que estão lá, família Mendes de Oliveira eu sei que tem arroz, tem feijão, tá lá o Chicão, tá lá, mas acabou. Agora, vai acabar de vez? Eu não sei, isso eu não sei.
P/2 – Você falou desse dinamismo no auge, vocês iam atrás dos produtos, vocês viajavam muito para ir atrás de coisas novas? Como é que era essa procura?
R – Muito, muito. Tanto em âmbito nacional, quanto internacional. No âmbito nacional, todos aqueles produtos nacionais de ponta, principalmente cebola, o próprio alho, teve um programa de produção de alho no sul e era uma coisa meio exclusiva, você tinha que ir nos locais, você tinha que viajar, porque a produção era pequena, exclusiva
de altíssima qualidade, muito caro. Então, se você não fosse lá, se o cara não te conhecesse, se você não fosse lá e olhasse no olho do produtor, ele não te vendia. Então, muito. Cebola, eu viajei o Brasil inteiro, porque cebola, o Brasil produz de norte a sul. Então, eu viajava muito atrás, viajar os produtores, as cooperativas, tal e da mesma forma, produtos importados, sempre falando do alho, saíam caravanas, todo ano, tinham caravanas antigamente de importadores, saíam todos no mesmo voo: “Vamos para a Espanha?” “Vamos para a Espanha”, depois, chegou lá, cada um vai para o seu canto, para o seu exportador, tal, se viajava junto, ficava nos hotéis juntos e cada um ia trabalhar com o seu… Argentina, Chile, México, na Argentina, frutas, no México, grãos, no Chile, vinho, frutas, tudo isso. Você tinha que ir para buscar a sua exclusividade, às vezes, um produto exclusivo, uma marca só sua também, entendeu? Porque tinham as marcas, depois, começaram a chegar as marcas, né, então, Estados Unidos, milho comum, milho de pipoca, tudo isso, tinha que viajar, você tinha que correr atrás e muita gente conseguia essa exclusividade de marca por causa dessas viagens.
P/1 – Teve alguma viagem mais interessante ou mais marcante que você se lembra assim?
R – Noruega.
P/1 – Bacalhau?
R – Bacalhau. Nós trabalhamos quase um mês na Noruega, foi um turma nossa, tava lá o Dadá, o Dadá era presidente na época do sindicato, nós tivemos um problema no Brasil com uma médica veterinária de Belo Horizonte. Ela condenou uma partida de bacalhau em plena semana da páscoa, quando você mais vende o bacalhau, né, e chegou uma partida de bacalhau e ela condenou em termos de saúde pública, de conceito, de embalagem, de classificação, tudo quanto defeito, ela pôs, ela embargou o lote, um negócio grande e o negócio tomou um vulto e aquilo foi para os outros estados. Então, começou a haver um pressão muito grande sobre marcas de bacalhau, tipos de bacalhau, tal e a coisa começou a ficar meio incontrolado e os prejuízos começaram a ficar grandes em todos os estados, inclusive, principalmente, na zona cerealista, que era uma das maiores importadoras de bacalhau do Brasil e quem sabe, do mundo. O Brasil é um dos grandes importadores de bacalhau, era mais, né, e aí deu esse problema e nós começamos a discutir o problema na época com o sindicato e com os comerciantes também, é claro, em Brasília, no Ministério da Agricultura e depois, no Ministério da Saúde e não havia meio de desatar o nó, ela embargou, praticamente, não se podia mais trazer bacalhau nenhum por causa de embalagem, por causa de classificação, tipo de peixe, armazenagem, salga, tudo. Aquilo tomou vulto e o Ministério da Agricultura abraçou a causa, e não dá, não dá, vamos ter que mudar. Então, teria que mudar a legislação interna, mudar lá fora na Noruega, a embalagem, secagem, tudo, tudo.
P/1 – Nas vésperas da Páscoa?
R – Não, isso já tinha passado. A páscoa foi um desastre, aí começou a discussão, porque o problema se manteve, não foi só pontual daquela importação, começou com aquela importação em Belo Horizonte e disseminou. Aí, viemos a Brasília direto, aí chamamos o embaixador da Noruega, tinha Câmara de Comércio da Noruega, chamamos o embaixador, tudo sendo promovido pelo Sagasp, aí começamos a trabalhar nisso, nessa época, eu era Sagasp, todos nós, Dadá era o presidente, eu era o secretario e começamos a trabalhar com embaixada, Ministério da Agricultura, engenheiros, tudo e falamos: “Não tem jeito, vamos tentar resolver…”, o próprio embaixador falou: “Vamos resolver esse problema lá na Noruega, que aqui com esse povo vai ser difícil”, era muito difícil a tratativa do Ministério da Agricultura com o pessoal da saúde pública, tal, nada que fosse irregular, cismaram com a legislação e tinha que mudar tudo. O quê que nós fizemos? Em conjunto com a embaixada, nós fizemos uma comitiva de importadores, São Paulo, Rio e Minas, levamos entre Ministério da Agricultura e Ministério da Saúde e Vigilância sanitária, levamos umas dez pessoas, inclusive, a médica que embargou o primeiro lote, vamos trabalhar na Noruega para ver o quê que tem que fazer, então vocês vão junto. Levamos todo o pessoal do poder público para lá, nós ficamos quase um mês trabalhando lá, quase um mês fazendo visitas, visitas nas plantas, na pesca, na secagem, tudo, no Ministério de Comércio e Industria de lá, embalagem, foi, foi, foi trabalhando para chegar num conceito do que eles queriam e muita coisa eles mudaram de pensamento quando chegaram lá, que eles viram que realmente o erro era da legislação interna aqui, alguma coisa interna foi em termos de rotulagem de caixa, isso foi multado, tudo bem, mas o problema eles mudaram lá, quando eles viram a realidade, a seriedade, viram tudo. Então, me marcou de uma forma isso que foi uma coisa fabulosa! Eu levei minha mulher, eu falei: “Eu pago o da minha mulher, porque não dá para ficar um mês lá naquele fim de mundo”, aí não deu 30 dias, deu menos. Aí, depois, tivemos excelentes recepções, sabe, foi uma coisa, a receptividade, o pessoal convidada para jantares nas casas das pessoas, um negócio… fomos ver pesca, fomos ver cura, tudo. Frio desgraçado, mas uma maravilha, marcou muito, foi uma coisa que me marcou, me deu um salto na minha vida, graças a Deus. Aí, nós estávamos tão cansados, eu, o Dadá, esposa dele, a minha esposa, adiamos o voo: “Não vamos voltar agora não, vamos ficar mais cinco dias aqui”, pegamos um carro, fomos de Copenhagen até Roma de carro. Uma coisa maravilhosa, inesquecível! É claro, eu passei a adorar a Argentina, eu sou apaixonado pela Argentina, sou apaixonado por Buenos Aires, Buenos Aires era a passagem, a gente fazia Mendonza, Córdoba, Salta, eu fiquei apaixonado pela Argentina, a gente ia nos campos, uma coisa linda, maravilhosa. Mas Noruega… marcou.
P/1 – Ao longo desses 30 anos, quais foram as maiores mudanças que você viu acontecer na zona cerealista e no seu negócio, circunscrito no seu negócio?
R – É o seguinte, quando nós começamos, no mínimo, nos dez primeiros anos, ou 12, sei lá, o conceito de comércio na zona cerealista era o seguinte, era tanto negócio, era tanta venda, que você chegava, abria o seu estabelecimento de manhã, tinha lá a sua loja, o seu escritório para receber os clientes, para controlar entrada, saída, você ficava naquele balcão, normalmente, quem ficava era o meu irmão, eu ficava em compras, na parte financeira, o meu irmão que ficava ali, o meu pai recebendo… você não precisava tirar – desculpe o termo – a bunda do lugar. Os caras vinham. Daqui um pouco, fazia fila para ser atendido. Então, não fazia nada, o cara levava tudo, pagava direitinho, você emitia duplicata, tudo como o comércio normal, tem dias em que o cliente exigia isso, aquilo, precisava preparar, vinha o caminhão, entregava, mandava entregar, tudo isso. Mas você não precisava sair dali e aquilo se tornou um vicio, eu e o meu irmão, particularmente, não tivemos a visão de que isso ia acabar, os outros que tiveram, essa é a diferença, os outros que tiveram e que se tornaram as médias e grandes empresas, começaram a colocar vendedores em outros estados, em outros municípios, representantes e começaram a fazer a venda, não só a venda local, mas a venda com vendedores lá, do balcão na praça e nós não fizemos isso. Quando a gente acordou, era tarde, não dava mais tempo, porque não tinha mais mercado pra gente, pra quem ficou no balcão, não tinha mais mercado. Essa foi a grande mudança das empresas que sobreviveram bem na zona cerealista, colocaram seus vendedores, colocaram suas filiais, quando o comércio começou a se descentralizar, eles acompanharam, porque eles foram se descentralizando também. Nós não. Nós e alguns outros amigos nossos, nós ficamos ali naquele balcão e aí, o cliente não veio mais, o cliente estava sendo atendido lá na casa dele, no estabelecimento dele e aí, não deu mais. Recentemente, 90, 95, acabou. Assim mesmo ainda, dava, porque você tinha clientes cativos, né, a gente teve uma época, uma boa época, senão a maior… parte da nossa clientela eram supermercados, então, esses, a gente não tinha o contato sempre, então, tinham algumas redes de supermercado que a nossa empresa servia, por exemplo, no alho, na cebola. Então, era tudo via telefone ou via fax, computadores se usava muito pouco na época. Então, esses ainda nos mantiveram nesses últimos anos, você entendeu? Você fazia as entregas direto nas lojas, com os nossos caminhões e tudo, então isso permaneceu, mas não foi suficiente. Não teve mais jeito.
P/1 – E aí, em 99, teve que…
R – Em 99… não, entramos em recuperação judicial em 98, em 99, fechamos. Meu irmão adoeceu muito e tal, eu fechei a porta, entreguei a chave.
P/1 – Entendi. A gente tá quase chegando no fim, tá?
R – Fica à vontade, eu tô muito à vontade.
P/1 – Que bom.
R – Não adianta. Falar disso, são 30 anos, é uma vida! Quase tudo que eu tenho na minha vida, as minhas filhas são grandes profissionais, de onde veio? Como é que eu consegui todas essas faculdades? Pagar tudo? saúde das minhas… da zona cerealista. Agora, veja bem, todo mundo, todos que eu falei, foi muito trabalho. Chegava quatro e meia, cinco horas da manhã, ia para casa sete, oito, nove horas da noite. Sábado, não tinha horário, sábado, três, quatro, cinco da tarde se trabalhava. Então, sempre todo mundo trabalhou muito na zona cerealista, era muito trabalho, mas compensava, era uma coisa gratificante. E as amizades, né?
P/1 – Então, vamos falar das amizades, então. Quais são os amigos que você fez mais lá?
R – Todo mundo… a grande vantagem desse comercio que não é de gabinete, né, não é de escritório é esse, porque as lojas eram todas abertas, os balcões eram odos ali, todo mundo ficava na loja, ninguém ficava nos escritórios, a não ser na hora de fazer banco, aquela coisa toda, então todo mundo circulava na rua. Café, você tinha que tomar pelo menos uns 30 por dia, mas você não tomava Nespresso, ia no boteco tomar, passava o… o Isobata era na nossa rua, mesma rua, mais para cima, ele vinha: “Jorginho, vamos tomar café”, para o meu irmão, taça tomar café. Aí vinha o Dadá: “Zé, vamos tomar café”, vamos tomar café, então, todo mundo… era a manhã inteira, à tarde menos, porque à tarde, depois do almoço, pessoal já tava meio cansado, ia fazer suas contas. Mas de manhã, era incrível, todo mundo se cruzava e no almoço, né? A gente almoçava não só nos restaurantes, mas durante muito tempo, na Bolsa de Cereais, onde… no prédio da Bolsa de Cereais tinha a Bolsa, onde é o prédio do Sagasp, embaixo tinha o pregão e tinha um excelente restaurante. Todo mundo comia no restaurante da Bolsa, que a gente já ficava no pregão, descia do sindicato, ia para o pregão da Bolsa, ficava lá e ia para o restaurante, todo mundo junto de novo, além da manhã, também na hora do almoço, todo mundo junto. E aí, surgiram as grandes amizades… ah, e no final do dia, no final da tarde, começo da noite, happy hour nos armazéns, a maioria das vezes era sempre no que tinha mais, mas ou era no meu, ou no Clovis Marchetti, ou era do Dadá, tinham lá as garrafinhas de whisky, as cervejinhas e todo mundo sentava para beber junto, conversar. Saiam negócios, além de… jogava-se baralho, coisa maravilhosa… dava-se risada, jogava-se muito truco e enfim, então também, a gente se reunia no fim do dia, antes de ir para casa para tomar um whiskynho junto. Aí, pegava. Saiam brigas, de vez em quando umas discussões, né, mas era um espetáculo! Então, essas amizades permaneceram, né, então… tinha dissidências? Tinham, por causa, às vezes, da concorrência. Teve depois de um certo período, começou a concorrência predatória entre os comerciantes, quando começou a dar problemas para todo mundo, principalmente, nos importados, aí começou a concorrência predatória, neguinho vendendo mercadoria abaixo do custo para vender, para catar… vendeu para aquele sujeito, semana que vem vou chamar ele e vou vender mais barato para ele. E aí, começou a concorrência… e isso deu algumas dissidências de família, principalmente, que eram muitas famílias e começou a dar algumas dissidências, algumas pessoas deixaram de se falar e tal, mas na maioria, não, era uma festa. E era todo mundo conversando com todo mundo, passeando junto, andando junto. Eu, todo dia, ia bater ponto no armazém do Dadá, ele vinha bater no meu, a gente ia no outro, no ceboleiro, ia no Ortega. Bárbaro! O que favorecia ser comércio de rua, né?
P/1 – Era uma coisa única isso?
R – Era. Eu tenho para mim que isso continua acontecendo, em menor escala hoje, no Ceasa. Às vezes, eu dou uma passada lá e o pessoal ainda se vê, estão naqueles boxes, um tá vendo o outro, se cruzam, vão tomar um café, isso acontece, na zona cerealista era uma festa.
P/1 – Nessas amizades… parece uma pergunta meio boba, porque com certeza você tem alguma história com essas amizades, com esses papos, tem alguma que você queira contar, que você queira registrar que se lembre por qualquer motivo, assim? Sem pressão, mas…
R – Tem. Você sabe muito bem que nós passamos por muitas enchentes lá, né? Enchentes terríveis e a gente saía dessas enchentes numa boa. Foi a de 75 que foi pavorosa, né? Tiveram várias. Nós pegamos uma de 75, eu me recordo que a água bateu naquele portão maior do Mercadão, aquele da entrada, a água bateu ali, encheu até lá de água. Então, a gente chegava, conseguia chegar só na Senador Queiroz lá em cima onde tem lá perto da Prestes Mais, a gente enxergava lá, era um rio só. Então, a água ia abaixando quando parou a chuva, a gente ia indo e no Mercadão bateu. No mesmo nível, um pouquinho acima tava lá a rua Santa Rosa, os nossos armazéns, a gente não conseguia chegar nem de barco. Mas quando foi baixando a água, nós fomos indo, indo, indo até a hora que chegou aqui, a gente entrava nas enchentes com a água por aqui, tinha bota dentro dos armazéns, a gente já tinha até os equipamentozinhos para sair, principalmente, porque quando a água enche, enche de uma vez só, que ela vinha pelos ralos, vinha pelo vaso sanitário, que era vasos comunicantes, rio Tamanduateí, jogava água pra lá de volta. Então, quando nós entramos, a gente entrava por aqui pra poder ver se salvava alguma coisa, mas na maioria das vezes, você não salvava nada, principalmente produto fresco, tinha que jogar tudo fora, a prefeitura vinha, limpava tudo e levava. Por causa das enchentes, todos os armazéns, depósitos, a gente tinha tudo tablados dessa altura no mínimo, toda mercadoria era colocada em cima de tablados, não no nível do chão, pelo menos para evitar um pouco a enchente. Então, você tinha escadas de madeira, as mercadorias eram colocadas para cima, no mínimo, numa altura dessa para cima e ficava toda aquela armação de madeira em volta, embaixo, água saía, você limpava, desinfetava, tudo bem. Assim como enchia para a gente, enchia para todo mundo, lá na benjamim de Oliveira, enchia tudo e todo mundo tinha esse negócio de madeira. Nessa happy hour que a gente fazia, a gente gostava muito de tomar um whiskynho, tal, whisky era a bebida preferida de todo mundo lá e a gente comprava as caixas, tudo que vendia lá, e deixava, a gente se cotizava e tomava, mandava buscar gelo, acabou. Ali perto, Dadá estava na Benjamim de Oliveira, nessa época, do lado dele tinha depósitos, não era empresa, La Pastina, que é a famosa La Pastina, ele já tava lá com o imóvel dele, grande, bonito, seu Vicente La Pastina, faleceu lamentavelmente, hoje é o Celso, filho dele. E tinha do lado do Dadá os depósitos do La Pastina, um armazém fechado e o La Pastina sempre trabalhou com muita bebida, muito vinho, muito whisky, muita coisa e aqueles armazéns lotados de mercadoria e por razoes, acho que, de espaço, ele tinha mercadorias, às vezes, quando vinha a época que no era de chuva, ele punha até embaixo desses tablados, ele punha caixas de bebidas e tudo mais, quando chegava época de chuva, tirava e punha para cima e veio uma dessas enchentes bravas e tal, aí um dia, nós estamos lá fora, tal, ele falou: “Pô, meu armazém encheu de água lá, molhou um monte de bebida, tô tirando, tal”, tirou, depois vendia no varejo a garrafa, o que não estragou, pode vender. Passados uns dois anos dessa enchente, acho que foram dois anos, Dadá sabe melhor, falou: “Zé, vem aqui”, me ligou: “Corre aqui”, ele falou: “O La Pastina encontrou no fundo lá desses tablados, umas dez caixas de Whisky Haig que molhou na enchente e ele me deu um e falou: ‘Dadá, experimenta esse whisky, você que é conhecedor e vê se você gosta’, vamos experimentar hoje à noite?”, eu falei: “Vamos, ué”, fomos e abrimos uma garrafa do tal Haig, que foi olhado pela chuva de dois anos. Era um licor whisky, o whisky virou um licor, uma coisa de um sabor, de um aroma, toda manchada a garrafa, uma coisa assim, ele falou: “Você tá sentindo o que eu tô sentindo?”, eu falei: “Eu tô” “Vamos comprar?” “Compra tudo”, arrematamos todo o lote do whisky molhado do cara depois de dois anos, dividi com o Dadá, a gente deixou também para beber lá, a gente chamava de cheirosinho: “Vamos tomar um cheirosinho hoje?”, pergunta pra ele, eu nunca tomei um whisky tão bom na minha vida, arrematamos por preço de banana o whisky molhado lá, Haig, nunca me esqueço. Eu sei lá qual foi a reação química daquela água, depois ficou dois anos parado lá, secando, não sei. Sei que virou um licor, pena que acabou, tomamos tudo. “Dadá, tem cheirosinho pra tomar aí ainda?”, fora o rum, né, que tomamos rum a vida inteira.
P/1 – Aquele rum cubano?
R – Aquele rum cubano. Se tiver tempo, eu vou te contar uma historinha bem rápida, posso?
P/1 – Fica à vontade.
R – Do rum cubano. Eu, nessa época, no fim de semana, comecei a praticar um esporte e eu sempre gostei do tênis, então eu joguei tênis aí uns dez anos com uma turma lá no Play Tênis, uma turma muito boa, não tinha nada a ver com a zona cerealista. Todo sábado e domingo, eu ia jogar tênis, depois ia para casa e tal. E quando nós importamos o rum cubano, né, lá no Play Tênis, acabava o jogo, você tomava uma cervejinha, caipirinha, ia para casa, tudo bem. Todo mundo gostava de beber. Aí, chegou o nosso carregamento de rum, eu peguei… era uma turma de umas dez pessoas, médicos, advogados, eu peguei, pus uma caixa no meu carro para dar de presente para os meus amigos do tênis: “Importação nossa, experimenta, rum cubano, gostoso”, e dei uma garrafa para cada um, tal, um colega nosso, um garoto tenista também, ele morava perto de mim, lá nos Jardins, ele veio de moto, gostava de moto, André, mochila tal, pôs a garrafa na mochila, capacete e foi embora. O André é meio maluco, né, apesar de tudo, era meio maluco, gostava um pouco de velocidade. E fui para a minha casa, estava no meio da tarde, me liga um outro colega nosso: “Zé pô, o André sofreu um acidente, tô indo lá… a mulher dele…”, era um casalzinho, não tinha parentes, “Ele sofreu um acidente de moto, se arrebentou inteiro, tô indo buscar o André lá no hospital, que ele vai ser liberado e a mulher tá pedindo ajuda lá”, aí foi buscar, ele só não ralou a cabeça, daqui pra cá, ele tava de calção, ele ralou inteiro, virou uma coisa… pôs ele no carro deitado, não podia pôr roupa, não dava, mas o engraçado da história, levaram ele para o Einstein, entrou no pronto-socorro, o médico, quando o médico chamou o Doutor Ari que é o nosso colega que foi buscar ele, falou: “Esse rapaz só podia ter caído de moto, o que ele deve ter bebido, que ele tá cheirando álcool, isso é um absurdo, andar de moto”, a garrafa de rum que estourou na mochila dele, o rum cubano estourou e aquilo molhou, ele ficou fedendo… rum cubano.
P/1 – Vou perguntar outras coisas, mas se você se lembrar de alguma outra história, fica à vontade para falar, a gente tem tempo…
R – É aquilo que eu te falei, sabe? Foi um período de tanta história, que não tem fim, as viagens, as festas, tudo… depois, teve tudo que foi feito através do Sagasp, né, o Sagasp foi outra fonte de atividades…
P/1 – A gente chega lá.
R – Vieram as feiras, feiras de alimentos, enfim, todas as comemorações do Sagasp, as autoridades e principalmente, a representatividade do Sagasp quando tinha ingerência governamental no comércio, porque foram muitos anos em que tinha a lei dos tabelamentos, congelamentos, tinha o problema das importações, das cotas, tudo você tinha que ir para o Rio de Janeiro ou para Brasília para… as autorizações, problemas de tabelamento, isso tudo são outras histórias, mas já geridas no âmbito do Sagasp. Sagasp sempre trabalhou nisso.
P/1 – Vamos entrar no Sagasp, então. Você se filiou lá, entrou quando?
R – Na verdade, sócios nós somos desde o primeiro dia, sócio do Sagasp, como associado desde 69. Eu entrei para a diretoria em 80, junto com o Dadá, foi a primeira vez, nós começamos em 80 e foi até o fim.
P/1 –Como que era o Sagasp nessa época?
R – Sagasp nessa época era muito atuante, era o Sindicato do Comércio Atacadista atuante, ele era não só representatividade ao que diz respeito a dissídios coletivos, trabalhista, não, isso sempre teve porque… o Sagasp que faz os acordos trabalhistas com os comerciários do ramo, mas a principal atividade do Sagasp era perante os órgãos públicos, governo, porque realmente, para você trabalhar com alimentos na zona cerealista, importação, tudo tinha ingerência governamental. Eram estoques reguladores, tabelas de preços, os tabelamentos, planos todos que vieram, então, tudo, tudo, você tinha que correr, você tinha que discutir com o governo do estado, prefeitura, ministério, você tinha que… então, a gente vivia em Brasília, Rio de Janeiro. Primeiro, no Rio, depois, em Brasília, quando foi todo mundo mudando para Brasília, não tinha jeito, era o Sagasp que ia lá brigar, ia discutir e até no âmbito da prefeitura, né, tiveram as intervenções da prefeitura, problemas de trânsito, problema geográfico, viadutos, tira a zona cerealista daqui, fecha a zona cerealista, muda horário, tudo era o Sagasp, tudo! Tributação de ICMS pelo Estado de São Paulo, alíquotas de impostos, tudo o Sagasp que ia lá ter que discutir, brigar, falar, arrumar. Esse é o Sagasp que eu conheci.
P/1 – Essa história do bacalhau foi pelo Sagasp, né?
R – Pelo Sagasp. Tinha outros sindicatos, por exemplo, Sindicato do Comércio Atacadista do Rio de Janeiro era bem atuante também lá no Rio de Janeiro, mas o Sagasp, como São Paulo era a concentração do comércio, então competia… foram lutas e lutas. Época de congelamento de preço…
P/1 – Como é que foi isso aí?
R – Foi uma coisa terrível, porque é uma questão de custos, né, o sujeito baixava lá da Superintendência Nacional do Abastecimento, não sei da onde, baixava: “Você vai vender feijão a dez reais o saco”
“Custa 12, como é que eu vou vender…?” “Se vira” “Tenho o problema da tributação, tem o frete…”, então era uma coisa assim, muito difícil.
P/1 – Em que ano foi isso? Esse problema com a SUNAB?
R – Olha, vários planos econômicos trouxeram… na época do Sarney teve os fiscais do Sarney, lembra? Não sei se vocês eram nascidos. Na época do Sarney, vieram os tabelamentos e os congelamentos de preços, era tudo tabelado no mercado, você não podia vender fora daquele preço, tabelado, congelado, os fiscais do Sarney era o próprio povo, você via que o preço estava em desacordo com a tabela baixada pelo governo, você prendia o cara, você era fiscal, você dava ordem de prisão, chamava a policia, o cara ia preso, o gerente da loja. Então, no plano Sarney foi terrível e depois… fora isso, fora os planos econômicos, existia uma entidade fiscalizadora que se chamava SUNAB – Superintendência Nacional do Abastecimento e ela também, para certos produtos básicos, ela estabelecia parâmetros de preços, você não podia ultrapassar aquilo. O tabelamento nem era para o atacadista, mas era para o varejo. Se eu te vendo e você tá confinado naquele preço, você tem que brigar comigo para arrumar, não tem como, então era uma coisa muito difícil. Depois, tinham campanhas governamentais de venda de produtos básicos nas ruas, que te obrigavam a vender nas ruas feijão, arroz, planos contingenciados do governo. Para você arrumar o produto e vender naquele preço que o governo te mandava vender era muito difícil, tinha embalagem, tinha custo operacional. Então, teve muito disso em termos de preço, nem foi… quer dizer, essa liberdade que hoje existe, não existia, não era assim. Tudo era muito fiscalizado, você era fiscalizado na sua empresa, se você estava com superfaturamento, não tava, se você estava vendendo dentro dos parâmetros governamentais, você era fiscalizado, não era só fiscalização fazendária, era também, em termos de preços. E no que diz respeito à importação, o problema do contingenciamento, só podia importar aquilo que te autorizassem a importar. Aí, era guerra, para você obter seu quinhão, a cota – a gente chamava de cota de importação – você precisava viajar o Brasil inteiro, conversar, aí eles faziam um plano: “Vamos liberar para importação, si lá, um milhão de sacos de feijão que o Brasil… saco de feijão preto” “Tá, quem vai importar?” “Comércio” “Como é que vai distribuir isso?”, aí tinha que dividir o pacote pelos importadores, tinha alguém que tinha uma benesse governamental, recebia mais, mais cota do que o outro, assim foi com o alho. Então, era… isso tudo, briga do Sagasp. Muita briga, muita luta, o Sagasp tinha representatividade e quando tinham problemas de legislação, tudo, embalagens, o Sagasp era chamado também para opinar, para dar… o Euclides Carli, que você vai entrevistar amanha, ele era tão conhecedor de tudo, era um comerciante tão conhecedor, ele era mais importador, né, de fruta também, ele é presidente do sindicato de frutas também, ele é tão engajado nisso, ele foi presidente do sindicato, ele se tornou secretario de abastecimento do Estado de São Paulo, foi convidado pelo governo para ser secretario pelo conhecimento, pela expertise dele. Então, é uma coisa… sindicato, Sagasp.
PAUSA
P/1 – O Felipe lembrou de uma coisa, de perguntar para o senhor como é que o senhor entrou no Sagasp, que estava filiado em 69, mas…
R – Associado, é, eu era associado.
P/1 – Associado, mas esse pulo para virar diretoria, como é que se deu?
R – Convite do Dadá. O Dadá foi convidado também… O Dadá é sobrinho de um antigo comerciante, seu Antônio Marchetti, já tinha sido presidente do Sagasp, tal… e ele aspirou ser diretor do sindicato e quando ele entrou, nós entramos junto. Nós éramos muito amigos, muito ligados, e eu e uns amigos
também nossos, entraram em 80. Então, entramos todos juntos e eram eleições de verdade, chapas eleitorais, ele falou: “Quero ser presidente”, formamos chapas e competição, que era
muita gente e começou, foi eleito, fez todos esses anos de trabalho, enfim, então teve oposição, várias eleições teve oposição, oposição de fato, boca de urna, faixa… eleição pura!
P/1 – E me fala um pouco então, desse processo da eleição, quais que eram as posições, o que era a oposição a quê?
R – Aí, entrava um pouco do antagonismo comercial, né, era mais problema comercial, é claro. Era poder, poder para controlar, porque por hipótese, os diretores, presidente, a diretoria do sindicato teria primazia, eventualmente, algum negócio comercial que não era verdade, né, mas essa era a visão de quem era oposição, então, não era nada disso, ao contrario, era muito trabalho. É claro que você sendo diretor, presidente, ou sei lá, viajando, você tinha uma visibilidade um pouco maior do que outros, enfim, amanha você esta no exterior: “O senhor também é comerciante? O senhor tem um produto? Quero vender…”, mas era pela concorrência comercial esse antagonismo, e às vezes, pessoal também, teve algumas eleições que foram de caráter pessoal, por causa de certos resultados do comércio. Era oposição mesmo, não era tão politica, era comercial. Você imagine que o Sagasp não só nas gestões do Dadá, mas todas, o Sagasp sempre fez a relação comercial com os outros países, os exportadores de produtos alimentícios e tal, eles vinham bater onde? Na porta do Sagasp. O Sagasp fez interação com embaixadores, representações comerciais, Sagasp fez comitivas comerciais de brasileiros no exterior, então, isso tudo sempre organizado pela diretoria. Então, era uma coisa muito atuante, só queria ser diretor, mas depois, vai sedimentando, espera aí, deixa pra ele que ele sabe como faz, eu não quero… deixa ele ser o presidente, deixa ele ser o secretario, esse pessoal tá trabalhando, então, foi sedimentando, ficou muito tranquilo.
P/1 – E ele tá até hoje, tá ha um bom tempo, já, né?
R – Até hoje, não sei como ele aguenta. Até hoje. mas ele tem uma paixão por aquilo que ninguém… teve presidentes aí que ficaram várias gestões, o Amauri Jereissati ficou várias gestões, Doutor Euclides ficou não sei quantas, mas ele superou, né? Incrível. Se não fosse o Dadá, não sei, é claro que o sindicato tem a importância por toda diretoria que tem, são todos diretores, quem tá no Sagasp é quem tá atuando no comércio e tem a ligação direta com a Federação do Comércio do Estado de São Paulo, que o sindicato é praticamente uma extensão da Federação do Comércio. A Federação do Comércio, ela não existe sem os sindicatos, né, os sindicatos não existem sem os comerciantes, seus membros, então, mas tem que ter alguém que queira conduzir, não é só ter… claro que todos são representativos, prestativos, todos eles, gostam, mas o Dadá é o Dadá, ele que topa, né, continuar lá, que é diferente. Eu tenho certeza de que hoje é diferente a coisa. Não é mais o nosso Sagasp… quer dizer, o Sagasp é o mesmo, mas não é a mesma atividade, aquela atividade era uma coisa muito envolvente.
P/1 – E o que aconteceu com o Sagasp que perdeu essa atividade?
R – O Sagasp não perdeu a atividade, foi o comércio que foi mudando, mudou o comércio na zona cerealista, o comércio atacadista mudou. O Sagasp não é o sindicato da zona cerealista, ele é do comércio de atacadistas do Estado De São Paulo, né, ele representa o atacadista no Estado de São Paulo, mudou porque mudou o comércio atacadista. Isso é um reflexo de que o comércio atacadista diminuiu e muito e grande parte, motivado, pela ascensão do varejo, as grandes redes de supermercado, isso aí é da minha época, as grandes redes de supermercado, elas abafaram muito o comércio atacadista, porque elas começaram a fazer uma série de atividades que só o atacadista que fazia, né? Então, isso é o reflexo.
P/1 – Tipo o quê que eles começaram a fazer?
R – Tudo, concorrer direto com o atacadista, compras direto, monopolizaram, muito dos grandes produtores de produtos que eram distribuidores aos atacadistas, não são mais. Então, varejo, ele massacrou de uma certa forma muito o atacadista. Agora, se a gente levar em consideração que por exemplo, um permissionário do Ceasa, ele é um atacadista? Ele é um atacadista. Então, espera aí, se em São Paulo tem tantos Ceasas, tem tantos permissionários é porque existe sindicato concorrente, existe o sindicato dos permissionários do Ceasa, quer dizer, também isso descentralizou, as instituições, as entidades também se descentralizaram, isso gerou algumas brigas dentro da própria Federação do Comércio, para reconhecer um, não reconhecer o outro, mas o Ministério do Trabalho reconhece como sindicato, acabou cara, é sindicato. Também teve essa diversificação de sindicatos. Então, por hipótese, qualquer permissionário do Ceasa é um atacadista, deveria ser filiado aqui, não, porque abriram outros sindicatos. Vai fazer o quê?
P/1 – E a ascensão dos supermercados, você disse que viu acontecendo, né? De certa forma, foi uma das trajetórias da sua vida, você que começou vendo o seu pai com feira livre… como é que foi…
R – Nós começamos no varejo, por hipótese, nós éramos varejistas, né, então… aí que tá, como a gente foi fornecedor de supermercados, nós fomos fornecedores dos varejistas, essa era uma opção que nós tínhamos que ter tomado, eu e o meu irmão, continuar no atacado, mas começar a olhar também um pouco para o varejo. Teve vários atacadistas que fizeram isso, mantiveram o atacado e abriram as redes varejistas. Nós, com a expertise que a gente tinha, conhecimento e efetivamente na época, capitalizados para isso, nós devíamos… já que a gente trabalha com alimentos, não quero montar uma construtora, uma fabrica de moveis, não, então seguinte, vamos montar um varejinho, sei lá, vamos começar com algumas lojas de varejo, mini mercados, sei lá, alguma coisa no mesmo segmento, nós não fizemos. Nós temos vários amigos da zona cerealista que foram inteligentes e descentralizaram os seus negócios, tem atacadistas que abriram concessionarias de veículos, outro abriu incorporadora de imóveis, enfim, gente que teve essa visão, lamentavelmente, nós não tivemos, não fizemos e acabou. Isso é uma realidade, é um fato, eu não vou negar isso.
P/1 – Entendi. Mas quem são essas pessoas que abriram supermercado? De onde elas vieram, como é que foi isso aí?
R – Supermercados de São Paulo, no Brasil, né, eu acho que primeiro, se fala em Grupo Pão de Açúcar, foi um dos pioneiros. A história do Pão de Açúcar é muito conhecida, Brigadeiro Luiz Antônio, seu Valentim dos Santos Diniz, que é o pai do Abílio, ele tinha uma confeitaria, Confeitaria Pão de Açúcar, na Brigadeiro Luiz Antônio, onde hoje é o supermercado matriz, era o escritório matriz, ali na Brigadeiro, subindo. Era uma confeitaria, que virou lá uma mercearia, tal, vieram os filhos e virou esse monstro que é o Pão de Açúcar, que era deles, hoje é lá do… no nordeste, Mamede Paes Mendonca é uma pessoa muito simples, ele frequentava muito a zona cerealista, era muito amigo nosso e viajava com a gente, que eram os supermercados Paes Mendonça, também começou tudo com varejinho, coisas pequenas. Eu acho que o exemplo melhor são os atacadistas da rua Paula Souza, nisso talvez, aquele nosso amigo saiba muito sobre a história. Dias Pastorinho, Supermercado Dias Pastorinho era um atacadista, na rua Paula Souza. O Martins, todos eles viraram redes varejistas. Verissimo, o Verissimo era atacadista de São Paulo na rua Paula Souza e no interior ele já tinha o atacado no interior, aí virou supermercado Eldorado.
P/1 – Que é o shopping, hoje?
R – Que é o shopping, ele vendeu, não é mais Eldorado, é Carrefour, não é isso? Enfim, foi essa evolução. E outros, no Rio de Janeiro, eu não conheço a história pessoal, Casas da Banha no Rio de Janeiro é uma grande rede de supermercados, mas Casas da Banha eram lojas que vendiam banha e viraram Casas da Banha, rede de supermercado Casas da Banha, que eram atacadistas de banha e assim vai. Foi essa virada aí. E lá na frente, depois, eles se tornaram essas grandes incorporações, inclusive, com eixos internacionais, começaram a comprar as pequenas redes e eles têm o poder de compra junto à indústria e junto ao produtor nacional. A indústria de alimentos, hoje, depende deles, não tem… vai vender para quem? Então, eles mandam na indústria, eles mandam no produtor, produtores de todos os níveis, pequenos, grandes e aí, veio também os exportadores dos produtos que o Brasil compra. Então, é realmente, esse também foi um dos fatos que diminuiu o atacado em termos nacionais, aí não é só problema de São Paulo, não.
P/1 – Mesmo assim, você apontou muitos caminhos dos comerciantes que eram atacadistas na zona cerealista, já que a gente tá falando dessa zona, você apontou muitos caminhos que eles tomaram para se diversificar e tal. Como é que tá hoje a zona cerealista?
R – Na verdade, essa é uma pergunta difícil, não vou tentar responder porque eu não sei. Eu encerrei… terminamos em 99. Eu tenho certeza que a situação já é diferente em relação a 99, mas qual é essa situação, essa é uma pergunta que não me atrevo, porque eu deixei de ir na zona cerealista, raramente voltei. Uma coisa meio difícil de explicar, dói, uma coisa que nunca fechou, nunca cicatrizou, então, eu prefiro não ir. Fui umas duas ou três vezes nesses anos todos, mas é muito difícil. No sindicato, eu fui, fiquei, até fui convidado há uns dois, três anos atrás, não me lembro, fiz uma assessoria lá para o sindicato e um trabalho diferenciado que eles precisavam, mas eu ia à noite lá, trabalhava à noite, ia à noite lá para o escritório do Sagasp, ficava lá, pegava minha mala e ia embora para casa. E não foi fácil trabalhar lá dentro do sindicato, que a gente construiu juntos, fez juntos, mas tudo bem, me senti à vontade, me senti em casa. Mas não sei como é que tá. Sei dos temperos, isso eu sei, sei da Casa Flora que são meus amigos, mas não sei… sei que o Dadá tá lá, mas não sei a situação, se tem movimento, não tem movimento, vem, o que vem, não sei. Realmente, não…
P/1 – Mas essa questão aí, foi o quê? Foi um trauma que você ficou, você acha, de fechar?
R – Foi. Foi um trauma, porque a gente não fechou numa situação confortável, foi numa situação muito desconfortável, foi uma coisa drástica para mim e para o meu irmão. Meu irmão adoeceu e morreu, morreu pouco tempo… não aguentou. A gente tem que suportar, tem que trabalhar, tem a vida que continua, mas não cicatrizou. Sabe o que é? É uma paixão, né, você se apaixonou, uma vida de 30 anos, não é um negocinho que você teve dois, três anos e fechou, 30 anos, uma vida, cresci minhas filhas com aquilo, minha família, eu, foi um… meu pai. Por incrível que pareça, não sei, é uma coisa que eu não fui nem no psicólogo e nem psiquiatra ainda, eu sonho, tenho nos meus sonhos, pelos menos duas ou três vezes no mês, está lá o meu pai, caminhão de cebola chegando, a mercadoria não cabe, ou que tá vazio o armazém, eu sonho com a nossa empresa, eu continuo sonhando e alguns sonhos, inclusive, me fazem mal no dia seguinte, é uma sensação de dificuldade, eu nunca consultei, nunca me mediquei nesse sentido, mas eu até hoje; e olha que são 17 anos, né? Não cicatriza, não passa, não passa. Tá lá o meu pai sempre, o meu irmão, os funcionários, os amigos. Até os amigos desses estão no meu sonho.
P/1 – E você tá sempre na loja?
R – É. E nem sempre é bom o sonho, às vezes, é bom, mas…
P/1 – Quando é bom, como é que é?
R – Quando é bom é lá, as mercadorias chegando, os caminhões, não vai caber… as veze, vem o vazio também, né, um vazio, cadê? é muito estranho.
P/1 – Sei, quando é ruim é assim?
R – Muito ruim. Muito ruim.
P/1 – Entendi. Então, se você não sabe como tá muito hoje, não adianta perguntar qual vai ser o futuro, então, né?
R – Não sei. Aliás, eu me encontrei algumas vezes aí com o Dadá, me encontrava bastante com o Paolo, outro dia, eles vieram almoçar comigo aqui e a gente fala de amenidades, sabe, a gente fala de tudo, das famílias, fala de vocês, enfim, eu nunca me atrevi
fazer esse tipo de pergunta, tá? Eu prefiro ao fazer porque eu acho que talvez… não sei, eu não tenha esse direito de perguntar, como é que tá? Estão vendendo? O que vocês vendem? Não, eu não pergunto.
P/1 – Mas você também não tem curiosidade, mais, né, você falou.
R – Às vezes, eu tenho curiosidade, já me perguntaram: “Como é que tá lá?” “Não sei”. Depois que você tem dificuldade para rever um amigo, quando você revê, eu tô dizendo, no último almoço, nós falamos de todas as amenidades possíveis, falamos do whisky cheirosinho, falamos das nossas viagens na Argentina, falamos da… sei lá, das brigas no sindicato por causa das cotas, a gente fala… agora, da situação atual, eu me sinto como se tivesse perguntando: “E aí, você tá vendendo alho ainda? Ainda tá dando dinheiro?” “E você, tá vendendo muito whisky, como é que é? Você tem cota?”, é a mesma coisa que perguntar sobre a vida intima da empresa, então, eu não pergunto. Agora, do nosso passado, isso aí a gente fala direto, mas não me atrevo a perguntar.
P/1 – Entendi. Agora, vamos voltar bastante no tempo, assim. Me fala como que você conheceu a sua esposa, qual foi a primeira vez que você viu ela?
R – A minha esposa é fácil, ela é da nossa turma da molecada, do bairro, né? Você acaba fazendo a turminha do bairro. Um dos garotos da minha turma, que inclusive, estudou comigo no Colégio Santo Alberto é o primo dela, é da minha turma, é primo dela, da igreja, tal, jogava bola, o Sergio, estudamos juntos, tudo e ele frequentava a minha casa e eu frequentava a casa dele, eles moravam todos juntos, ela morava… a minha sogra é irmã da mãe do Sergio, então, ela tava lá, Arlete, a irmã dela, o irmão dela, eles moravam todos numa mesma casa. Eu ia para a casa do Sérgio, estava lá as meninas, minha falecida sogra, a mãe do Sérgio, a tia da Arlete, então, a gente se conheceu lá, da turma. Nos bailinhos, aqueles bailinhos da molecada, a gente fazia bailinho cada fim de semana na casa de um e eu gostei dela. Então, a gente já tem essa amizade, né, ela estudava no Dante Alighieri, às vezes, eu ia na porta do Dante Alighieri para vê-la, eu sabia onde ela passava, tinha a missa de domingo, todo mundo ia a missa aos domingos, as famílias, ela tava lá, tinha as festas de aniversário, tal, as famílias se conheciam, então, conheci. Foi crescendo junto, eu parti pra cima, né, eu que parti, eu que comecei a correr atrás, né, quero porque quero, ela não queria.
P/1 – Ah é?
R – Não queria.
P/1 – Você namorou muitas pessoas antes, assim?
R – Ah sim, claro.
P/1 – Mas você sempre pensava nela?
R – É claro!
P/1 – Sempre?
R – Também. Então, mas aí,
quando ela entrou para a faculdade, a gente ainda não era namorado, tal, mas depois chegou um dia, família ajudou, né, eu insisti, ela falou: “Vamos lá, né, vamos tentar”, deu tudo certo.
P/1 – Quantos anos vocês tinham quando começaram a namorar?
R – Vamos ver, vamos fazer essa conta. Se eu casei em 72, eu tô com 69 anos, então, eu casei com… nós estamos em 2016, 28, 44, eu casei com 25 anos.
P/1 – Mas você começou a namorar ela?
R – Se eu casei com 25 anos, eu comecei a namorar ela antes de terminar a faculdade. Então, põe aí, sete anos, eu devia ter uns 18 anos quando eu comecei, 18, 19 anos quando eu comecei a namorar. Mas a conheço desde criancinha, né?
P/1 – Entendi. E ela fazia que faculdade?
R – Ela fez Sedes Sapientiae, da PUC, mas aqui, na Marquês de Paranaguá. Sedes Sapientiae, que é da PUC também. Aqui na Marquês de Paranaguá.
P/1 – Que curso?
R – Ela fez Licenciatura em Ciências.
P/1 – Dá aula?
R – Não dá. E ela, inclusive, entrou depois na faculdade, então nosso começo de casados, nos dois primeiros anos, ela estava terminando a faculdade ainda à noite.
P/1 – E vocês tiveram filhos?
R – Tivemos três filhas. Eu tenho uma filha arquiteta, a filha mais velha, Alessandra. Tenho a filha do meio, a Glaucy, que ela é formada em Economia e Administração e a minha filha Tarsila, mais nova, ela fez Propaganda e Marketing. São as três filhas.
P/1 – Quantos anos elas têm?
R – A minha filha mais velha nasceu em 73, então ela está com… vai fazer 44, não é isso? É. A do meio, 41 e a mais nova, 38. E tenho dois netos.
P/1 – Dois netos? Como é que foi o dia de nascimento da primeira filha?
R – Da primeira filha? (risos) Uma loucura, isso aí é inesquecível, um negócio assim, muito doido, muito doido.
P/1 – Como é que foi esse dia?
R – Sabe o que é? É uma coisa… na primeira filha, você não tem experiência, então é uma correria, um desespero, eu não sabia se eu segurava a mulher, se eu dirigia o carro, se eu segurava a barriga, uma coisa maravilhosa, mas é assustador, né? Mas chegou, quando chegamos na maternidade, aí veio a família, veio mãe, veio sogra, veio todo mundo e foi fabuloso. Uma coisa assim… sabe o que acontece? É uma experiência indescritível gerar um filho, uma filha, e aí, vai. Mas mais do que o gerar, é o crescimento, sabe, você dando vida para aquele ser humano, as coisas boas, as dificuldades, as doenças, enfim, uma coisa maravilhosa, principalmente, quando a gente consegue ter sucesso, como eu tive, todas hoje são profissionais de sucesso, tudo mais. Mas meu amigo, quando vêm os netos, não tem dinheiro que pague. Isso da aí, que a gente tá mais sensível, tá mais… sabe, mais frouxo, né, tá mais velho, aí vem neto, ah… você esquece tudo. Não tem nada que pague, não tem sensação melhor nesse mundo do que os netos, nascimento dos netos, os netos são uma coisa assim, aí você esquece os problemas, supera tudo. Filho é bom, mas neto é melhor ainda (risos).
P/1 – Quais são os seus sonhos, hoje, para o seu futuro?
R – Difícil…
P/1 – Planos?
R – Sabe o que é? Eu sonho sempre, eu não paro, porque eu acho que se parar de sonhar, você tá ferrado, então, eu tenho por obrigação sonhar sempre com sucesso profissional, que você chega num ponto na vida que fala: “E aí? Como é que vai ser amanhã?”, que tem toda uma geração para te substituir aí, preciso trabalhar, eu não posso parar de trabalhar. Então, o meu sonho é sempre eu ter sucesso profissional, eu não tô falando empresarial, veja bem, eu tendo capacidade, saúde e ter sucesso, ou seja, ter sempre uma profissão, ter sempre o que fazer, porque senão… esse é o meu sonho, assim, não é ambição, é sonho, eu preciso ter sucesso profissional, senão eu tô ferrado. Esse é o meu sonho. Não penso em outra coisa de melhor para mim, a não ser trabalhar, ter trabalho, poder trabalhar e preciso e é sonho, e eu vou levando no sonho, quer dizer, hoje não é sonho, hoje é tudo realidade pra mim o que eu faço, graças a Deus. Mas o amanha é sonho, então sonho com isso, com aquilo, tem que sonhar. Às vezes, alguém fala: “Eu tô pensando em fazer isso, fazer aquilo, conforme for, se eu fizer, você vem comigo?”, eu já começo a sonhar com isso, hoje eu tenho o que fazer, tenho trabalho, graças a Deus, tenho dois trabalhos, mas eu sonho com o que o cara me falou lá atrás, mesmo que eu saiba que não vai acontecer mais, mas eu sonho. Profissional, porque o resto tá tudo estabilizado, tá tudo realizado.
P/1 – E você é sindico no edifício, aí?
R – Sou. Hoje eu sou sindico aqui do edifício.
P/1 – Quanto tempo você é sindico?
R – Já terminou o primeiro mandato de dois anos, foi renovado o meu mandato agora em março, mais dois anos.
P/1 – Você começou em 2014?
R – Em 14.
P/1 – Como é que é ser sindico do prédio?
R – Prefeito. Isso aqui é uma cidade, né, prefeito. Uma prefeitura. Tem que ter os seus secretários, seus assessores, senão, não vai.
P/1 – Ah é?
R – Claro! É muita coisa. Gigante. São dez mil pessoas por dia que transitam aqui dentro, tem clube centenário, tem restaurantes, tem lojas, tem o que você possa… então, é um edifício que fez 50 anos no começo do ano, então, 50 anos de construção, edifício precisa toda hora ser readequado, então, é uma prefeitura.
P/1 – Mas é gostoso? Você gosta, é legal?
R – Eu fui convidado, eu não pedi nada. Eu fui convidado pela família que eu assessoro aqui no edifício, que são os donos desse escritório, inclusive. Eu assessoro essa família, como eles têm vários negócios aqui dentro do edifício e é um amigo meu de muitos anos, o patriarca e ele têm interesses dentro desse edifício, e eu tô com ele aqui há quase dez anos, como o outro sindico muito amigo dele estava… não tinha mais condição, ficou muito velho também e ele não pode, ele não poderia assumir, porque ele não fica quase em São Paulo, fica nas fazendas e tudo mais, ele falou: “Eu queria que você assumisse como sindico em nome da nossa família, você aceita?” “Aceito, vou fazer o quê? Só que eu vou ter que conjugar as duas coisas, não posso abandonar aqui”, e eu aceitei o convite meio temeroso, porque não é fácil, tem toda uma… tem problemas aqui dentro, é claro que a gente sabe que tem, eu já sabia, como usuário, eu sei, conheço. Eu assumi e por causa de tanto problema que surgiu, de tanta coisa ruim que veio, que eu tive que solucionar, eu passei a gostar. Hoje, eu gosto, mas eu gosto mais do edifício do que ser sindico. Aqui é diferente, é um prédio antigo, mas bom, sendo modernizado, o astral aqui é muito bom, eu gosto, eu venho com prazer para cá, para o edifício. Muito bom. Fiz amizades, muitas amizades. Então, fala muito da nossa… porque tem o Circolo Italiano aqui do lado, tem o Clube Social Circolo Italiano, que foi quem construiu isso, eu sou sócio do Circolo Italiano, então, aí passei a ter mais relacionamento com os italianos no Circolo, então, tudo também pela condição de ter me tornado sindico, né? Então, eu adoro isso aqui.
P/1 – Tá aprendendo bastante com isso?
R – Todo dia. Todo dia! Eu jamais poderia imaginar que eu iria mexer com obras, com tecnologia, você tem que fazer, tem que aprender, você tem assessores, tudo, é claro. É uma maravilha, tô aprendendo todo dia.
P/1 – Que problemas você enfrenta aqui, geralmente?
R – Olha, todos aqueles problemas de qualquer condomínio, mas os problemas solucionáveis eu não chamo de problemas, quando você tem problemas elétricos, problemas de hidráulica, problemas estruturais, isso tudo tem solução, você vai, manda fazer, manda consertar, né? Nós tínhamos um problema gravíssimo de elevadores aqui, são cinquentenários, elevadores com ascensoristas, você viu, né? Nós começamos, a partir de hoje, uma obra de troca dos 14 elevadores do edifício, tudo elevadores modernos, automáticos, vai ser uma obra de um ano e meio, isso não é problema. O problema é a oposição. É uma oposição de dois, 3,5% de condôminos que não te aceitam e te fazem uma oposição, te atrapalha o seu trabalho, picuinha, sei lá, ódio, ciúmes, é uma coisa inacreditável, gente de alto nível e fazem um inferno na minha vida, um inferno! Vêm ao prédio diariamente só para prejudicar o trabalho da gente, só isso. É de gente de uma malvadeza e gente… sabe? É uma coisa inescrupulosa e você tem que trabalhar, tem que cuidar do edifício e tem que também, cuidar dessa gente.
P/1 – Entendi.
R – Mas isso aí não vem ao caso para o nosso livro.
P/1 – É. Tá certo. O que você achou de conversar com a gente?
R – Achei fabuloso e eu acho que tomara que vocês tenham muito sucesso, no que a gente puder ajudar… tenho certeza que partindo do Dadá e da equipe dele, agora, vai ser um sucesso. pena que eu não posso colaborar mais do que isso, a única coisa que eu vou amanha mesmo falar para o Dadá, eu acho que diante de toda essa nossa conversa, talvez, eu veja agora com bons olhos, entrevistar o seu Claudio Ferranda, tá? Então, eu vou recomendar ao Dadá, se o Dadá aceitar, a gente faz a aproximação, vocês conversem com ele. Tem algumas recomendações que eu vou fazer ao Dadá sobre isso, que eu acho que ele vai falar de uma coisa muito mais especifica e referenciada, pelos que estão sendo entrevistados, eu acho que ele vai agregar muito, a não ser o Euclides, mas como o Euclides deve falar muito pouco, pelo o que eu tô vendo, eu acho que ele vai complementar muito os depoimentos do Euclides, que é a parte de lá, que eu chamo, da zona cerealista. E são primórdios, viu, da zona cerealista. Ele começou garoto, tem muita coisa para falar de muitos anos atrás. Eu acho que isso vai enriquecer o trabalho de vocês aí.
P/1 – Você gostou de contar a sua história? Um pouco dela?
R – Gostei. Eu não imaginaria que eu iria contar, nunca imaginei isso. Mas vamos contar, ué, não tem nada de errado, uma história boa. Essa história, eu já contei pra tanta gente, amigos meus, assim, de forma resumida. Minhas filhas sabem dessa história de forma resumida, minha mulher sabe, me acompanhou sempre. Então, foi ótimo. Me sinto lisonjeado, quando eu fui convidado, falei: “Dadá, tô lisonjeado, quero, vamos nessa”.
P/1 – Tá certo.
R – E eu acho que acima de tudo, tem que marcar aí para a posteridade todo esse trabalho do Sagasp, acho que… da zona cerealista, né, fala Sagasp, mas entenda-se zona cerealista.
P/1 – Entendi.
R – Pena que… eu gostaria que muita gente conhecesse o que nós conhecemos nesses anos todos da zona cerealista. Um exemplo, uma coisa maluca, mas… tomara que não acabe, se acabou, eu não sei.
P/1 – Tá certo. Obrigado.
R – Imagina. Disponha!Recolher