Entrevistadora - Nós tínhamos pensado, mais ou menos, primeiro falava um da sua infância e… até ao momento em que se conheceram…
José Carlos Almeida - Não, era isso que eu ia… naturalmente, interessa saber e… a origem social.
Entrevistadora - Exatamente.
José Carlos Almeida - Eu, como digo… a família materna era de origem do campo, concelho de Mafra, a família paterna era operária e era da zona de Almada da… era de Lisboa. O meu pai começou por ser tanoeiro, mas depois levou com uma pedra, ainda jovem, nas costas, não podia ter profissões muito pesadas, aprendeu barbeiro e foi barbeiro, explorou… tinha uma barbearia, onde eu aprendi, eu ao início, aprendi a ser barbeiro, eu não queria, acabei o secundário… e queria estudar, mas aqui comecei a ganhar alguma consciência de classe, eu não podia estudar, porque os meus pais não tinham meios e… eu via outros estudar, outros que andaram na escola comigo, mas eu não podia e… aprendi a barbeiro. Aprendi a barbeiro e trabalhei numa barbearia em Sintra… trabalhei na barbearia do meu pai em Colares, depois trabalhei em Sintra e depois… arranjei trabalho para… para um banco, para o Banco Totta, em Lisboa. Fui para o banco, quem me arranjou para ir ao banco foi… o Jorge de Melo, que era um sócio [impercetível] da CUF… e… matriculei-me logo na Veiga Beirão, andei a fazer o curso de comercial geral de comércio, não cheguei a acabar, porque começo a ter atividades políticas e… a primeira célula do partido em que participei foi na Veiga Beirão, eu mais um camarada alentejano que… ele agora não me tem telefonado, não sei o que é que se passa, o Madeira… e outro camarada, e constituímos uma célula que… fazíamos trabalho lá na escola com outros estudantes e reivindicativo também… pronto. E então fui para o Totta…. era cobrador no Totta, fazia cobrança no Totta… e em 50 e… tive… quantos anos… tive 8 anos, ou 9, 8 anos no Totta, julgo eu…...
Continuar leituraEntrevistadora - Nós tínhamos pensado, mais ou menos, primeiro falava um da sua infância e… até ao momento em que se conheceram…
José Carlos Almeida - Não, era isso que eu ia… naturalmente, interessa saber e… a origem social.
Entrevistadora - Exatamente.
José Carlos Almeida - Eu, como digo… a família materna era de origem do campo, concelho de Mafra, a família paterna era operária e era da zona de Almada da… era de Lisboa. O meu pai começou por ser tanoeiro, mas depois levou com uma pedra, ainda jovem, nas costas, não podia ter profissões muito pesadas, aprendeu barbeiro e foi barbeiro, explorou… tinha uma barbearia, onde eu aprendi, eu ao início, aprendi a ser barbeiro, eu não queria, acabei o secundário… e queria estudar, mas aqui comecei a ganhar alguma consciência de classe, eu não podia estudar, porque os meus pais não tinham meios e… eu via outros estudar, outros que andaram na escola comigo, mas eu não podia e… aprendi a barbeiro. Aprendi a barbeiro e trabalhei numa barbearia em Sintra… trabalhei na barbearia do meu pai em Colares, depois trabalhei em Sintra e depois… arranjei trabalho para… para um banco, para o Banco Totta, em Lisboa. Fui para o banco, quem me arranjou para ir ao banco foi… o Jorge de Melo, que era um sócio [impercetível] da CUF… e… matriculei-me logo na Veiga Beirão, andei a fazer o curso de comercial geral de comércio, não cheguei a acabar, porque começo a ter atividades políticas e… a primeira célula do partido em que participei foi na Veiga Beirão, eu mais um camarada alentejano que… ele agora não me tem telefonado, não sei o que é que se passa, o Madeira… e outro camarada, e constituímos uma célula que… fazíamos trabalho lá na escola com outros estudantes e reivindicativo também… pronto. E então fui para o Totta…. era cobrador no Totta, fazia cobrança no Totta… e em 50 e… tive… quantos anos… tive 8 anos, ou 9, 8 anos no Totta, julgo eu… começo… frequento em Lisboa, vou para Lisboa, tinha quarto em Lisboa e formei uma coletividade, uma cooperativa em Lisboa, que a PIDE dizia que era a sede da PIDE…
Faustina Barradas - Do partido.
José Carlos Almeida - A sede do partido. [risos] E… passaram por essa cooperativa figuras… olhe, o Agostinho Neto, o Cândido Oliveira, que foi uma figura destacada dos meios futebolísticos, passou muita gente e… efetivamente, o partido dominava aquilo, fazíamos bailes, fazíamos colóquios… ainda me recordo que tínhamos os sócios, o Alexandre Cabral, que era um dos escritores mais conhecedores da obra de Camilo Castelo Branco, o Manel da Fonseca, alentejano, o Aquilino Ribeiro, fazíamos lá colóquios… daí até eu… o trabalho nas coletividades que o partido desenvolvia era um problema que eu chamava cá no Porto à atenção para a importância que tinha esse trabalho, porque… a gente quando… procurava logo saber a organização, se era sócio de alguma coletividade, se era disso… porque uma comissão cultural de uma coletividade vinha aí a desenvolver um trabalho interessante, cultural, de colóquios… essa cooperativa dos trabalhadores de Portugal, a gente tinha colóquios todas as semanas, lá, tinha. Eu ainda me recordo que me saiu na rifa apresentar o Manel da Fonseca um elemento da comissão cultural da cooperativa, apresentar o… a personagem que ia ser… ouvida, e o Aquilino Ribeiro, ainda me recordo, que me saiu na rifa esses dois, o Manel da Fonseca era um homem muito popular, era um homem excecional, o Aquilino Ribeiro era uma pessoa… de respeito… e tal… ainda me recordo, apresentei o Manuel da Fonseca, “toda a gente sabe quem é o Manuel da Fonseca”, eu tava a dizer para a assistência, “o Manuel da Fonseca, vocês se calhar sabem melhor quem é o Manuel da Fonseca do que eu, portanto, eu termino isto, o Manuel da Fonseca que fale agora” [risos] o pessoal começou a bater palmas “Muito bem, muito bem!” e tal… e o Manuel da Fonseca teve… e eram sempre conferências, debates sobre literatura, sobre as mais diversas coisas… o trabalho que se pode fazer numa coletividade numa comissão cultural e aí passou… era um trabalho de uma importância muito grande. Aí, essa cooperativa, que era nas Escadinhas?? de Lisboa, a PIDE sabia que uma grande parte da malta do partido era sócio, uma grande não, eram muitos elementos do partido eram sócios da cooperativa… dos trabalhadores de Portugal. Uma vez houve lá um baile e infiltrou-se lá um agente da PIDE e há um camarada que estava lá, que foi um dos fundadores, que esteve ligado à fundação em 1940, que é o Joaquim Campino, que tenho aqui, que tenho o material do Joaquim Campino, diz-me “olha, esse gajo é da PIDE” e eu tive que dizer a ele “olhe, convidava o senhor a sair, o senhor não é sócio da cooperativa, certamente, sai”, “mas eu vou para as colónias, vou para a guerra e porque é que…” isto já foi em 60, já havia guerras, “vou para lá, porque é que não posso estar aqui?”, “não pode, o senhor não pode” e tal, bom, e… lá foi… Esse tipo, era o Santos Costa, que me interrogou depois na PIDE e disse “Eu conheço” e eu disse “Eu também o conheço, não me esqueço de você” e sei de onde é que o conhecia, sem quem era… pronto. E comecei a ter atividades políticas, essa da comissão cultural já era uma atividade com cariz político e… fui convidado para… aparece um Avante, começo a ler o Avante, os meus tios paternos… havia duas tias que eram militantes do partido… o meu tio esteve preso quando foi das greves da CUF… eu tinha consciência, eu recordo-me perfeitamente quando foi a 2ª guerra e ia-se ouvir lá para casa a BBC, que era a emissora que se ouvia sobre a guerra, as notícias, ia à noite, eu era jovem, tinha 14 anos, não é, foi em 40… tinha 14 não, tinha 13… íamos para lá ouvir e ganhei consciência, tinha consciência política, sempre fui antifascista, então começo aí a receber o Avante e… e vêm-me convidar para vir para o partido… e eu disse sim… fiquei felicíssimo por pertencer ao partido, porque na altura eu tinha a ideia que passar a ser do partido era uma honra muito grande, lutar contra o fascismo, contra a ditadura, e eu disse logo que sim, e começo a ter… atividades do partido. Tive já em 58, ainda não era do partido nessa altura, quando foi da… mas já fazia parte da comissão de jovens para as eleições do Delgado, recordo-me perfeitamente… eu já tava ligado ao partido, já tinha… houve uma grande manifestação quando foi do Delgado aqui no Porto e quando foi o regresso a Lisboa, em Santa Apolónia havia muita gente à espera das pessoas que tinham estado no Porto… e eu já ia com uma tarefa do partido, era envolver-me nas manifestações e ia transmitir a um camarada para ir para a direção do partido informações de como estava a decorrer aquilo, eu andava na Veiga Beirão, ainda me recordo que levei com um cassetete da PIDE nas costas, fiquei com um vinco nas costas, e andava na Veiga Beirão e fui para um cafezinho que era mesmo em frente à Veiga Beirão e tiveram-me a pôr aguardente aqui [toca no braço], porque tinha aqui a marca do cabo da… da polícia e… dei informações ao partido, pronto. Quando foi o 1º de maio de 62, já fazia parte de uma comissão que coordenava a manifestação de 62, que foi das grandes manifestações contra o fascismo, e eu aí ia dar informações a um funcionário do partido… ao Gilberto e ia… canalizar isto para o Zé Mário, porque o Zé Mário era um membro de um dos organismos do partido que estava em Linda-a-Velha lá a receber informações que vinham de várias ligações sobre o 1º de maio, a manifestação do 1º de maio é uma coisa que fica sempre gravada na memória, porque foi uma coisa extraordinária, eles mataram um jovem na Avenida da Liberdade com um tiro, pronto. Depois vou para o setor militar, havia… o partido formou um organismo para o setor militar e era eu mais dois camaradas, eu controlava… era responsável, fazia trabalho junto dos soldados marinheiros, o outro era sobre os oficiais, oficiais da marinha… outro sobre sargentos e tal… bom, eu tinha aquilo e fazia… quando me davam uma credencial a mim para eu me apoiar numa pessoa que era a mãe desta [aponta para Faustina] [risos] que está aí, que era uma mulher excecional, e disseram-me assim “olha, vais agarrar uma mulher que é um exemplo de… que nós devemos aprender muito com ela, que já está ligada ao partido há muito tempo” e…
Faustina Barradas - Era analfabeta…
José Carlos Almeida - Eu, de facto, comprovei… controlei-a a ela, que viveu numa casa em Belém, depois viveu num bairro de lata… de noite, ia de noite, ali à volta de Caxias, e foi uma mulher que era… fazia parte do aparelho de agitação, da brigada… recebia… e… foi uma mulher, de facto, excecional, onde eu conheci a Faustina foi numa fotografia na casa dela, o cabelo tava tal e qual de quando eu a conheci aqui no Porto, e até quando eu a vi disse “olha, cortas o cabelinho, aqui no Porto, porque”... não foi? “Cortas o cabelo, modificas isso, porque não estás bem”, pronto, assim foi. Vim para o setor militar… depois há uma coisa que se dá, eu ia reunir junto ao organismo em Lisboa e vem um e diz “oh camarada, houve um… no Banco Totta houve um roubo de 14 mil contos” ou… 120 mil contos ou o que é… e eu digo assim “onde é que foi?”, “foi no Barreiro”, “ah foi e então onde foi?, “no Totta”.
[corte]
A minha situação conspirativa em Lisboa, a PIDE constou no Totta, soubemos através da informação do Totta que a PIDE tinha falado, lá no banco tinham falado… um tipo alto que andava com gabardine escura, que era eu, e que devia estar envolvido ali… a gente tem uma informação que a PIDE tinha este elemento e chega-se o Veloso e eu digo “epá, olha, disse uma coisa no Totta e foi para o partido”, “ah e isso é….” e tal, mas depois ele sai e depois telefona-me logo a seguir para lá ir a casa e diz “epá, aquilo foi verdade, tu tens que ir imediatamente, sair de Lisboa, porque a PIDE está aí” e vim para o Porto. E vim para o Porto, vim para a Rua Antero de Quental, tinha lá um quarto, ainda estive lá uns bons meses e depois tenho um encontro com o Carlos Pinhão e o Canais Rocha que me dão… que eu ia marcar, ia alugar uma casa… tinham-me dado ali a zona de Gondomar e ia agarrar a Faustina [aponta para Faustina], dão-me a credencial para agarrar a Faustina, quando eu vi ela… ah e íamo-nos agarrar à porta da Maternidade do Porto, eu tava num café ali na rua da Maternidade do Porto e vejo passar uma garota com uma mala que ia… que era muito gira a garota e digo assim “epá, eu tenho sorte, é gira”, mas não era ela [risos] fiquei assim atrás dela, até que… vejo esta depois e vou lá e agarramo-nos. E foi aí, depois discutimos, marcar uma instalação, alugar uma instalação, foi a primeira instalação do partido que nós tivemos aqui no Porto, foi no Largo da Venda Nova, entramos ali de Rio Tinto, encontramos ali um primeiro andar, novo, e alugamos por lá. Ela fez as alterações que tinha a fazer, cortou o cabelo, cortou… [risos] e eu… alugamos, pronto, dão-me logo a documentação falsa, porque a gente ia alugar uma casa, era uma etapa na atividade do partido, uma nova etapa, tinha o bilhete de identidade para ela e eu tinha outro.
Entrevistadora - Como é que se chamava?
José Carlos Almeida - Fernando Duarte Basto. Tenho aqui o relatório da PIDE, que eu mostro a vocês, era o meu nome, era Fernando Duarte Basto, no bilhete de identidade, não era? Pronto, estávamos na casa da Venda Nova, ainda estivemos lá, era uma belíssima casa, reunimos lá várias vezes, nasceu lá a minha filha mais velha, a Catarina, recordo-me quando ela nasceu… eu vou ao quintal enterrar a placenta, que a parteira disse para enterrar a placenta, escorreguei e caí pela escada abaixo [risos], torci o pé, fui para a cama [risos] fiquei… ela é que pariu e eu é que fiquei aqui… não vão contar estas coisinhas todas, estou a contar, a falar com vocês. Vão… vão lá… e então no rés-do-chão… havia uma inquilina que era de Baião, era muito gira, e que o marido era mecânico, era técnico de máquinas de escrever, e ela… não sei porquê, eu tinha uma figura… era um tipo alto, bem constituído, e ela começa-se a… assim atrás de mim e eu disse logo “não é uma instalação sua”, porque eu dava-lhe tampa e o pior que se pode fazer é dar tampa a uma mulher, não é, e… [risos] então houve uma reunião do partido e eu digo assim… foi com o Alexandre Castanheira, nunca me lembrava, o Alexandre Castanheira e o Carlos Pinhão, e o Castanheira era da comissão executiva do partido e o Carlos Pinhão era da direção regional do norte, e eu vou… e então mandam-me arranjar outra instalação, fui para a Rua do Taralhão, também em Gondomar, na Rua do Taralhão arranjamos lá uma casa que era uma belíssima casa, estivemos lá… onde estive bastante, estivemos lá bastante tempo, que foi a segunda filha, a Lisa, foi encomendada no Taralhão e foi nascer à maternidade em Matosinhos, não foi, ao hospital de Matosinhos, foi a mulher do [impercetível] que era parteira…
Faustina Barradas - Eu depois falo dessa parte.
José Carlos Almeida - A mulher do [impercetível] era… que era uma camarada muito experiente do partido de muita confiança e assistiu quando nasceu, pronto. Tivemos aqui no Porto… eu… controlei… depois… fui para a direção regional, controlava Coimbra, depois controlei o Minho, Viana do Castelo, alugamos uma casa na Meadela.
Faustina Barradas - Já foi depois, foi depois do 25 de Abril.
José Carlos Almeida - Ah, isso foi depois do 25 de Abril! Então eu é que tava em Viana e tinha lá uma pessoa, um camarada excecional, que era o responsável pelo Teatro e pelo Museu de Viana do Castelo, o Amadeu Cardoso, que eu ia lá a casa e tinha lá um quarto, Depois controlei as Beiras, controlei as Beiras, Guarda… e no Minho e as Beiras, Castelo Branco… conheci aí a organização, também era para romper, porque aí era tudo para… Pinhel, era a terra do Dias Coelho e… e a gente depois veio para o Porto, quando foi o 25 de Abril… ah não, estávamos em Espinho, vivíamos em Espinho, estávamos na clandestinidade em Espinho, numa casa, quando eu fui preso. Eu tenho um encontro aqui em Lisboa…
Faustina Barradas - Em Lisboa não…
José Carlos Almeida - Em Lisboa… em Baguim, ali na zona… vou para o encontro e quando vou para o encontro… vou a andar com o dono da casa… [corte] estes são relatórios da PIDE, isto é mesmo da PIDE, era o envelope… eles prenderam-me, fui para a Rua do Heroísmo… e perguntaram-me como é que eu me chamava e eu disse logo “não tenho nada a dizer”, tive da parte da manhã na PIDE, depois veio o Rosa Casaco “ah finalmente, apanhamos-te” e tal… e eu “apanharam? tá bem”, “como é que se chama?” e eu disse “não tenho nada a dizer, não reconheço qualquer autoridade à PIDE”, mandaram-me para Caxias, fui lá num automóvel, no meio… de dois gajos da PIDE e tá aqui [aponta para documento], tava na sala dos interrogatórios na PIDE, era o segundo dia, ou terceiro dia, e tinha os sapatos, chegou o Capela, que era o inspetor que estava a ver aquilo… “não lhe tiraram os atacadores” foi uma coisa tremenda, o tipo fazia a estátua e andar com os sapatos assim é uma coisa tremenda, tirou-me os atacadores, pôs no envelope e escreveu “preso sem nome”, isto era mesmo da PIDE, o envelope, uma fotocópia, aqui tá o relatório da PIDE, da minha prisão… fui preso às 9 e 10 da manhã, está aqui o nome dos agentes todos da PIDE, os inspetores diziam que eu era um preso perigoso, era um preso muito perigoso. Aqui, o chefe de brigada que foi para me prender era o Cunha escreveu depois, fez um relatório, uma carta ao diretor da PIDE a pedir [impercetível] e pediu louvor para os agentes da PIDE dado o comportamento que tiveram com a prisão de um preso que era bastante perigoso e que era este [risos], isto dá vontade de rir, está aqui [dá relatório a entrevistadora], se quiser depois fotocópias pode tirar.
Entrevistadora - E como é que foi a prisão?
José Carlos Almeida - A prisão? Eu vou a andar e chegam uns PIDE’s… quatro PIDE’s de pistola “mãos ao ar” e os outros carros… eram dos agentes, os outros carros assim à volta cercaram-me “como é que se chama?”, “nada, não me chamo nada”, mas fiquei sem pinga de sangue, a gente… a primeira reação com as pistolas assim, uma pessoa fica nervosa… e veio um autocarro de passageiros de Valongo, vem a chegar ali e pára e, quando pára, o inspetor da PIDE, o chefe disse assim “não faça barulho, não faça barulho agora”, pronto, foi um… choque, que tive, o gajo está a dizer para não falar, comecei a gritar… e diz isso aí “é a PIDE, eu sou democrata, sou… é um agente da PIDE, é PIDE” e deu-me logo uma coronhada aqui… deu-me um pontapé nas canelas e com a pistola agarram-me e metem-me dentro do carro, metem-me dentro do carro e vão para a Rua do Heroísmo, entro na Rua do Heroísmo, os presos entravam lá por aquela porta que não é na Rua do Heroísmo, é na outra, entro lá por uma sala logo ali numa porta à direita, entram lá e começam logo ali a interrogar… “não, não tenho nada a dizer, não reconheço qualquer autoridade…”, “como é que se chama?”, “não digo nada”, eles foram fazer telefonemas, telefonemas… porque era sábado, não havia muito movimento… aparece-me um tipo de automóvel lá dentro, assim um bocadinho, e diz “Ah é você e tal, han? Finalmente, apanhamos-te” e eu… “então como é que se chama?”, “não tenho nada a dizer”, era o Rosa Casaco, não sei se vocês sabem quem era o Rosa Casaco, que era dos gajos mais tenebrosos da PIDE, não é, que foi quem assassinou, que era do conjunto… está tudo ali, o conjunto de PIDE’s que assassinaram o… Humberto Delgado… telefonemas, telefonemas… pssst Lisboa, eu era um preso muito importante, mandaram-me logo para Lisboa, era logo… metem-me dentro do carro… eu no meio e agentes de cada lado do carro e vim para Lisboa, havia um jogo do Benfica, havia muita gente e eu disse “se eu pudesse saltar”, mas não podia saltar ali… chegamos a Caxias, não sei se conhecem Caxias, tem a mata de Monsanto e eles perderam-se, não sabiam… e depois assim “Ah você sabe o caminho para Caxias?” e eu disse “Era o que faltava, era o que faltava”, eu recordo-me isto exatamente… eles vão a andar, vão e vão parar a Algés e então veio um agente da segurança pública, eles dizem na na na na… ele indica e lá fomos para Caxias, cheguei a Caxias fsssst abrem aqueles portões todos, logo, e foi o primeiro interrogatório, e eu “não tenho nada a dizer aqui a vocês” era sempre a mesma coisa que eu dizia “não tenho nada a dizer, não tenho nada a dizer, não digo absolutamente nada e não tenho o nome…” pronto… “diga, diga…”, “não digo nada”, fui para a cela, isto foi no dia 21, foi no dia 21 que eu fui preso. No dia 22, logo de manhã, foi-se abrir a porta da cela… sala de interrogatórios, fui para a sala de interrogatórios, na data em que eu fui preso.
Faustina Barradas - Agora de repente baralhaste-me… Foi no sábado dia 20, aqui diz 21… efetuada no dia 21.
José Carlos Almeida - Foi no dia 21. Eu vou para a sala de interrogatórios, a sala dos interrogatórios é uma sala grande, sendo que o [impercetível] do norte em Caxias eram presos comuns, os do sul era a PIDE e era de uma residência da PIDE… tinha uma sala grande, com uma janela que se via o comboio, via-se o Tejo ali, mas… fusco, mas eu via por um buraquinho, andava assim em pé, andava e… uma cadeira estreita comprida, a parede assim com… a cadeira com, a mesa com nódoas parecia vermelho a imitar sangue, que era, faz parte, uma aparelhagem sonora na… na sala de interrogatórios e veio o inspetor e começa… começa o primeiro interrogatório com ele e com o PIDE bom, isso é a técnica, que você sabe que eles tiveram um curso, a PIDE, na América com a CIA e tiveram várias… e perguntam-me logo, era o PIDE bom, “ah teve aqui preso um camarada seu, o António Gervásio, você conhece, o António Gervásio disse tudo, colaborou connosco, foi um preso que gostamos muito de tar aqui, colaborou connosco” e eu… “filhos da puta, pá, se o Gervásio” eu conhecia bem o Gervásio e não foi… foi, pronto, este era o PIDE bom, eles querem estudar a personalidade do preso, pronto, e eu disse “não, não, não”, depois aparece o PIDE mau, que era o Santos Costa, que fazia parte da equipa, eram seis gajos a interrogar… aqui veio o PIDE mau e diz “Então como é que te chamas, pá? Como é que te chamas?” e vem… e dá-me um valente, foi aí que me deram, um pontapé na canela, uma coisa assim, eu espirrava sangue, tinha a camisa cheia de sangue, a gabardine tava… eu tenho pena que desapareceu aquilo, não sei, tava cheia de sangue, espirrei sangue e “não tenho nada a dizer, não tenho nada a dizer” e foi até ao dia 25… a ser interrogado lá.
Faustina Barradas - 27!
José Carlos Almeida - 21, 22… 23, 24, 25…
Faustina Barradas - E 26.
José Carlos Almeida - Não, isso já não havia interrogatórios. No dia 25 à tarde, fomos para o reduto norte e no dia 26 é que foi a… é que eu ouvi barulho, barulho… tava preso lá e ouvia-se um barulho, estava sozinho, bem, posso abrir assim as portas e digo lá vou eu agora para a sessão de porrada… e vejo o Palma Carlos, o Manel João, era irmão do Avelino que foi primeiro ministro, o Manel João e vejo o Salgado Zenha, vejo um oficial da marinha, vejo aqueles gajos todos… e perguntam-me “como é que se chama?” e eu digo assim, eu julgava que estava em alucinação, porque em alucinações a gente sonhava, quantas vezes, com alucinação… isto não é real… mas a gente tem sempre a presença que tamos perante o inimigo e que não podemos falar, isso aí era sagrado, e eu disse “não tenho nada que dizer”, “mas faz favor, foi derrubado o fascismo e estamos a tratar da vossa libertação” era o oficial da marinha e o Salgado Zenha… e eu depois vejo muitos presos no corredor, vejo o Mário Ventura que era jornalista, e vejo o que depois foi diretor da Caminho, o Mateus Branco, e vejo muitos presos… o ar a bater ali, vejo os gajos a estar lá na parte de trás com as G3, os marinheiros, os fuzileiros na parte de trás… e eu “pá, eu chamo-me fulano tal”, pronto, “é para dizer que tamos a tratar da sua libertação e vocês vão sair, há quem não queira que vocês saiam”, que era o Spínola, a primeira posição do Spínola era que alguns presos não podiam sair, porque ainda não tinha o processo elaborado e tal e os perigosos… eu era da lista dos perigosos e, portanto, não sai… e o Palma Carlos diz “saem todos, saem todos, vamos fazer para que vocês saem todos” e os marinheiros a mesma coisa, o oficial dos fuzileiros, e… saímos, saímos… fomos todos para um pátio, estávamos todos no pátio, abraços uns aos outros, uns choravam, outros davam abraços, e a gente via, ouvia cá fora “liberdade para os presos, liberdade, liberdade, liberdade” e então…
Faustina Barradas - E ficaram lá… vocês só saíram no dia 27.
José Carlos Almeida - Ficaram lá, voltamos outra vez para dentro, mandaram a gente tar no corredor e foi quando a malta decidiu que saem todos ou não sai ninguém, saem todos ou não sai ninguém, e então… saímos todos. Eu saí, ainda tou a ver o Palma Inácio a sair… e depois… eu saí… e… fui dormir a casa, como é que era o médico psiquiatra?
Faustina Barradas - Não foste para o César Abel?
José Carlos Almeida - O que foi diretor do [impercetível] depois… fomos para casa dele, estive lá e depois fui para casa, fui a Colares à minha família, toda a gente aqui andava atrás de mim, a ver onde é que eu estava, que não sabiam, e eu estava em Lisboa, agora esta parte eu conto depois, ela conta dela [risos]. Foi assim uma conversa, não sei se teve algum interesse…
Entrevistadora - Claro que sim, imenso interesse! Se calhar, não sei, se calhar voltava só um bocadinho ao início, que nós esquecemo-nos de pedir… que pudesse dizer o seu nome, data e local de nascimento.
José Carlos Almeida - José Carlos, 10 de agosto, eu nasci no dia 4, mas… ainda hoje faz aí, salto, por causa da multa, 10 de agosto de 1931, no Barril, freguesia de Encarnação, concelho de Mafra, pronto. Depois aí vocês já sabem, fui para a escola, fiz a primária… comecei a aprender barbeiro, depois fui para o Totta, fui cobrador do Banco Totta e… fui para a Veiga Beirão, não acabei, eram 5 anos ou o quê, não acabei por causa das atividades políticas e depois entro na… na…
Entrevistadora - Na clandestinidade, claro. E tinha irmãos?
José Carlos Almeida - Tenho uma irmã.
Entrevistadora - Mais nova?
Faustina Barradas - Mais nova três anos.
José Carlos Almeida - Uma irmã… que a minha filha mais velha viveu com a minha mãe, porque… quando andávamos na clandestinidade punha-se um problema a quem tinha filhos…
Faustina Barradas - Eu falo nisso…
José Carlos Almeida - Então falas tu. [risos] Daqui podem fazer as perguntas que quiserem mais.
Entrevistadora - Então a ligação que teve com o partido foi por via do tio…? Como é que começou… disse que começou a ler o Avante e que só depois…
José Carlos Almeida - Comecei a ler o Avante… fui convidado para o partido…
Entrevistadora - Mas como é que foi?
José Carlos Almeida - Foi o… o moço que me dava o Avante, que também andava no Totta, que foi preso, dava-me o Avante e eu lia o Avante, já tinha consciência, porque eu tinha, eu como lhe disse a minha família paterna era tudo gente de esquerda e tinha uma tia que o marido era marítimo, que era do partido, e eu recordo-me que tinha uns 10 anos e ia lá a casa, abro uma caixa de taralhão e eles dizem “queres ver o menino jesus?”, porque a minha mãe ia à missa, mas não era… era os católicos que andam, pronto, ia e tal… “queres ver o menino jesus?” e eles puxam-me lá da gaveta a bandeira com a foice e o martelo, tinha eu 10 anos ou 12 anos, e ela tava em Alfama, era uma mulher excecional, excecional. E tinha uma outra tia que era mesmo de esquerda, trabalhava no Laboratório dos Azevedos, o irmão dela foi o segundo guarda-redes do Sporting, o Severiano Santos, foi lá, que era do partido também. Os meus tios eram todos… de esquerda, ouviam de quando foi da guerra, ouviam isso, tinha um tio que era um lunático, sonhava com uma sociedade justa, aquilo vinha aqui… e foi assim, tinha uma consciência anti-salazarista e depois no partido, começam a mandar-me o Avante, eu começo a ler o Avante, começo a ler e depois a dar o Avante… houve umas informações que eu vou-lhe dizer o seguinte [risos], houve um camarada, eu já estava com uns anos bons, e houve um membro que disse assim “sabes como é que a gente te conhecia no secretariado?” e eu disse assim “não”, “eras o trator, eras conhecido… isso é uma tarefa para o trator”, porque sempre fui muito ativo, muito ativo, fui em Lisboa, não é, na organização em Lisboa. [corte] E depois fui lendo o Avante, ganha-se consciência política e consciência de partido, ouve-se a Rádio Portugal [Livre], ainda me recordo, ainda me recordo quando começou a Rádio Portugal [Livre] aí, veio uma pessoa aí dizer, pá uma tarjeta, vai sair uma rádio do partido e convém distribuírem essa tarjeta a dizer que era Rádio de Portugal [Livre], às tantas horas e tal, foi a Graciete Casanova, que me deu um monte de tarjetas,e a gente ouvia a BBC, era a emissora que se ouvia no tempo da Guerra, era a BBC, porque não havia cá, é que dava as notícias da guerra, as vitórias da União Soviética e tal… pronto, e assim entro na atividade política. Entro no setor militar, conheci aquele GNR que fugiu… de Peniche, o Jorge Alves, com 10 camaradas, conheci não, eu conheci o primo dele que recebia correspondência que vinha do Jorge Alves, de fora, e era para o Jorge Alves, aí foi, eu não conheci pessoalmente o Jorge Alves, conheci o primo dele, e… e depois fui responsável pela organização do Porto, fui responsável… de todo o Norte, de Coimbra para cima.
Entrevistadora - Sempre com a função de organizar…?
José Carlos Almeida - Organizar, recrutar… lutar… a gente sabia quais são os problemas… eu até já tenho dito a funcionários novos, pá, ninguém pode ser responsável por um setor se não estudar o setor: qual é a população do distrito do Porto, a composição social do Porto, como é que é, o setor primário, o secundário e o terciário, como é que é, que coletividades é que são no Porto, quais são as coletividades mais importantes do Porto, quais são as classes profissionais… a gente sabia, havia os pescadores, havia os mineiros, havia os metalúrgicos, os têxteis, os metalúrgicos, eram… as classes assim mais setoriais… e depois quais são as grandes concentrações populacionais, isto, estou a dizer, um dirigente revolucionário tem de conhecer estas coisas e eu estou a dizer o seguinte… eu… tou velho, tou reformado, mas… isto é iniciativa minha [pega num conjunto de documentos], a formação do PCP, isto são fotocópias que eu tirei de edições do partido… a fundação do partido, a 6 de março, não foi fruto [impercetível], depois vem aqui a história assente em quê, depois tem aqui o primeiro documento do PCP, saiu… o partido comunista português ao país, o partido comunista português tal, tal, tal… está aqui, a data, está aqui. Depois… está aqui uma coisa que… os primeiros grandes dirigentes do PCP, Bento Gonçalves, teve um papel importante, o Bento Gonçalves, o Álvaro Cunhal… eu tenho isto aqui, isto é o Álvaro com um passeio no Tejo com os intelectuais, tá aqui o Soeiro Pereira Gomes, aqui, tá aqui o Alves Redol, tá aqui no passeio, este é o P Jorge, é o Sérgio Vilarigues, que foi um dos camaradas mais responsáveis do partido.
Entrevistadora - E contactou com quase todos eles?
José Carlos Almeida - Contactei, estes conheci-os todos, só não conheci o Bento, os outros conheci. A Sofia Ferreira… José Gregório, que era da Marinha Grande, que escreveu um relatório que foi dos primeiros dirigentes do partido, estes foi… este, Manel Guedes era marinheiro, foi do secretariado, foi um homem de uma importância muito grande no partido… eu, se quiser, depois tiram fotocópias disto, tenho aqui… Manuel da Silva, foi um homem que teve também 20 e tal anos preso… Dias Lourenço, Jaime Serra, Carlos Costa, que foi o camarada que trabalhei muito tempo com ele, Blanqui Teixeira, Joaquim Gomes, Carlos [Aboim] Inglês, Carlos Carvalhas, Dinis Mendes, este outra vez, bonitão… depois está aqui um partido com profunda… isto são coisas que eu tirei de jornais do partido, porque vêm, ainda hoje, vêm-me camaradas para o partido, não conhecem a história da luta e do povo português e do partido e aqui diz, isto é o livro do sexagésimo aniversário, um partido com profundas raízes no povo, aqui as atividades… um partido da alegria e da fraternidade, vem aqui as ilustrativas e… depois tem um partido com uma ação construtiva da vida nacional, aqui dos congressos, e depois tem aqui um partido solidário com a força revolucionária de todo o mundo, vem aqui os contactos com o partido comunista francês, com o partido comunista italiano, com o partido… pronto aqui, depois tenho aqui a clandestinidade, o que foi a clandestinidade… eu, por acaso, não tenho aqui, os meus balancetes aqui do norte, que cada funcionário tinha, os dados da organização eu tenho… o grande partido de massas, o primeiro comício no Campo Pequeno.
Entrevistadora - Isso era muito interessante nós podermos ver, não é… todas as pessoas que nós entrevistamos chegaram, entraram no partido, foi o Zé Carlos que os convidou para participar no partido, todos eles… portanto, era muito engraçado fazer essa… haver essa ligação…
Eu estou a dizer… eu estou a dizer aqui, para focar a minha ideia… por exemplo, as minhas netas… duas estão na JCP e o meu neto é muito inteligente, pergunta-me “O que é o Marx? O que é isto aqui?” tem 14 anos… eu tenho aqui, mas só eu… que é para dar a eles. Por exemplo, dos pensadores gregos, dos filósofos gregos… o primeiro que pensou numa sociedade, que falou numa sociedade mais justa e isso foi o Epicuro, não sei se sabia, está aqui, tenho aqui o pensamento do Epicuro, aqui tenho… tenho aqui o pensamento de Epicuro, depois tenho aqui uma revista que saiu aqui… a revolução industrial… Londres, uma cidade… Londres teve um papel importante, vem aqui, como nasce o proletariado, tem aqui os dados. Eu estou a dizer, a gente tem que estudar estas coisas… eu não compreendo, não compreendo, a maioria, coitados, não têm isto… a filosofia é uma ciência que nós temos que estudar, temos que saber, ora vamos lá ver…
Entrevistadora - Ainda vai a tempo se quiser tirar agora uma licenciatura…
José Carlos Almeida - Eu? Não, não… nem quero, a minha licenciatura foi a prática, foi a vida, foi isto, foi aquilo, eu ando a fazer isto que é para o meu neto. Depois tenho aqui… do Marx, a foto da casa antiga onde nasceu o Marx, o Marx, a casa onde nasceu, que é para ele ver aqui onde viveu o Marx, onde morreu… a primeira edição do Capital, a fotocópia, a primeira edição do Capital, depois tenho as obras do Marx que são fundamentais, que tenho aqui… e depois tenho aqui… o Bakunin, as figuras principais, o Bakunin… tenho aqui o… Kropotkin, tenho aqui o Lenin e tenho o Stalin, não me venham cá com coisas, o Stalin foi um dos grandes dirigentes… e tenho aqui. Eu estou a dizer isto, isto dá muito trabalhinho fazer isto… tenho aqui, depois tenho outro, são figuras, isto vocês deviam ter, é um livro, são pessoas que morreram ou foram assassinadas pela PIDE, mártires da luta, tá aqui o nome, Bento Gonçalves, depois tem aqui os dados biográficos, Bento Gonçalves… José Moreira, que era da Marinha Grande, foi responsável pelo aparelho de imprensa do partido, foi assassinado também… foi atirado da janela da PIDE e foi um embaixador brasileiro que denunciou isto, porque viu… depois temos o Militão Ribeiro, não sei se vocês já viram uma edição sobre o Militão Ribeiro, olha isto eram os documentos falsos… isto é o cadáver dele, isto é a carta escrita que ele fez… eu tou a dizer que uma pessoa, eu quero que os meus netos saibam e tenham uma consciência… Manuel Vieira Tomé, estão todos aqui, o Alfredo Caldeira, que morreu no Tarrafal, que teve… o Manuel Rodrigues da Silva teve 23 anos preso, o Zé Gregório teve 20 anos preso, e quando veem agora esses a falar aí… às vezes, na TV, falar pessoas disto e daquilo… falam tanto do Mário Soares, filho da puta desse gajo, pá. Depois tens aqui… Alfredo Caldeira, [impercetível] Gonçalves, Ferreira Soares, este Ferreira Soares era médico aqui em Espinho, sabem quantos tiros ele levou? A PIDE matou-o, assassinou, 21 tiros, diz aqui… Germano Vidigal foi assassinado, o Soeiro Pereira Gomes, o José Moreira, isto é para dizer… o Alfredo Dinis vinha de bicicleta em Bruxelas a descer, era operário da Parisol, foi metralhado pelo José Gonçalves, morto, o que eu tou a dizer… o Alfredo Lima foi morto em 50, o José Adelino dos Santos em 58, o Cândido Martins em 61, o António [impercetível] em 62, o Gil em 62, quer dizer, estes foi os que foram assassinados pela PIDE quando foi… o Alfredo Dinis, olha… eu tenho estas coisas que é para eles lerem e verem.
Entrevistadora - E o Zé Carlos não tinha medo? Não tinha medo que lhe acontecesse o mesmo? Na PIDE.
José Carlos Almeida - A mim? [Risos] Esse era o problema, a gente sabia… uma das coisas que aprendi no partido é que podia ser morto a qualquer momento… eu, sabemos, qualquer coisa pá… esta, quando eu não apareci em casa, se calhar pensou que eu que… opá, mas isso, faz parte da luta… da luta… olha que grande coisa, não tenho… a morte nunca me assustou.
Entrevistadora - E a família sabia onde é que estava quando veio…
José Carlos Almeida - No 25 de abril?
Entrevistadora - Não, quando veio fazer o trabalho para o Porto e… a família, o que é que achava?
José Carlos Almeida - Estava em Lisboa, estava em Lisboa.
Entrevistadora - Não, onde é que a família achava que estava?
José Carlos Almeida - A minha família…
Entrevistadora - O que é que lhes disse, quando veio embora?
José Carlos Almeida - A minha família quem?
Entrevistadora - Quando veio embora, o que é que lhes disse? Quando veio trabalhar, fazer as funções do partido para o norte, o que é que lhes disse, à família?
José Carlos Almeida - Não disse nada. Tava em Lisboa, trabalhava em Lisboa, fui para a clandestinidade e depois não disse… e depois fiz chegar através de uma carta, que… as minhas tias, que eram do partido, e os meus tios souberam, os meus pais não souberam. Tá aqui uma coisa que também tem muito interesse para vocês, o 25 de Abril ontem e hoje, uma conferência que o Álvaro Cunhal fez em 94… o povo e o MFA… Eu quero dizer o seguinte, estamos a conversar, antes do 25 de Abril, a direção regional do norte, eu, o Zé Bernardino… quem era mais… era o Carlos Luís e mais outro, tivemos um encontro na Rua da Aguda, na Aguda, ali nos arredores de Espinho, com o Carlos Costa, e fomos entravados… isto… um mês antes, que se poderia dar uma tentativa de golpe de estado, porque parte dos militares… e qual era o papel do partido? Ponderação, a analisar isso, mas assim que se desse o golpe militar, devíamos de sair e mobilizar as pessoas para irem apoiar o MFA, aqueles milhares de pessoas que aparecem e aquelas coisas, as palavras de ordem não foi por acaso que apareceram ali, porque havia uma orientação do partido, não é… e a gente… foi em Espinho, arredores de Espinho, que tivemos ali uma reunião na casa do camarada, que era uma vivenda que tava ali, fomos lá reunir e tivemos uma orientação do que é que se poderia dar, porque houve a tentativa das Caldas, em que Spínola tentou, a tentativa das Caldas foi nem mais nem menos que uma manobra do Spínola para abortar o 25 de Abril… o Spínola queria abortar, eu vou lhe dizer, o Spínola depois mete-se com isso, e houve um jornalista alemão, o Walraf, que escreveu sobre as atividades da história do 25 de Abril e que a gente recebe aqui… era na Rua, na Avenida da Boavista, já o partido tinha ali a sede, e recebemos um telefonema da embaixada da RDA a dizer que havia um jornalista alemão, Walraf, que vinha aqui ao Porto pedir ajuda nossa… foi da… parece que ainda estou a ver, da embaixada… que deu a informação, dêm toda a ajuda que é uma pessoa séria, é um grande jornalista e deu, e tivemos um encontro, eu e o Veloso com o jornalista, ali na Boavista, e ele diz “eu quero me infiltrar no meio da… desses terroristas, desses gajos todos aqui” e a gente só dissemos logo “olhe, não podemos dar uma morada, que não sabemos, podemos dizer que eles frequentam este café e este e este e este, na Póvoa, e deste e daquele” e eles foram, e o gajo era um jornalista extraordinário, da Alemanha, muito conhecido na Alemanha e… infiltrou-se e depois saiu um livro sobre o Spínola, ele entrevistou o Spínola, teve contactos com o Spínola, contactou com o Spínola, mas ele era… [risos] um jornalista, que nós é que tínhamos dado a entrada dele, no café, eu não me recordo onde é que era, mas era eu e o Veloso, eu e o Veloso que tivemos essas conversas com ele, e, quando ele acabou os contactos todos, escreveu uma informação para a gente, recebi a informação e até digo… até tenho cá a informação que o Walraf deu, a dizer isto, isto, isto, a informar, o resultado dos contactos com esses… esses sabotadores, o Spínola e isso tudo, o Spínola era um gajo… [risos] de… os gajos… os corrécios, que era os bombistas, aquele gajo general, que foi… que dispensaram, que morava, tinha aqui uma família em Gondomar, que era… que era chefe dos bombistas… pronto, eu tou a dizer, ser comunista e ser dirigente implicava estudar estas coisas e estas situações, não era só, agora a base disto tudo era o movimento.
[corte]
Entrevistadora - Eu ia-lhe só perguntar, porque falamos há bocadinho em off, mas para falarmos aqui um bocadinho mais, porque achamos que na nossa exposição e nas outras entrevistas o MJT também teve aqui um papel importante… para nos falar um bocadinho mais sobre a formação do MJT… os quadros que foram recrutados…
José Carlos Almeida - Eu acho… [risos], falar, assim em termos gerais, falo, é evidente que quando estava aqui no Porto, por orientação do partido, aqui era… eu vim para o Porto com a tarefa de reorganizar e ficar responsável pela organização do Porto e, naturalmente, que começamos a ver a juventude… a juventude é sempre um… uma frente de trabalho de uma importância muito grande, não é, e houve nessa altura aqui muitos jovens que se destacaram e alguns foram… e eu estou a dizer, começamos e fazíamos iniciativas, fazíamos picnics, fazíamos… ou uma excursão na Marinha Grande… e isto também correspondia a uma orientação que era dada noutras regiões do país, eu quando digo, o Timóteo que era dessa geração, o Zé Pedro Soares, o Horácio Rufino, era aí, e então a gente tinha ali… um dia se você quiser ver a casa… como é que a gente fazia chegar à direção do partido… as coisas que se passavam? A gente tinha informações, batíamos à máquina, era uma das tarefas das camaradas das casas, bater à máquina, em papel A4, tenho ali, as lutas dos sindicatos, eu tenho ali a última reunião do movimento sindical, a criação da intersindical, tinha ali, batida à máquina, aquelas coisas todas e das lutas, as lutas que havia na Empresa Fabril do Norte, que havia nos pescadores, que havia… e… havia da juventude uma iniciativa, era uma frente de trabalho e a gente mandava para o partido o resultado dos nossos esforços para agarrar a juventude e começa a haver muita movimentação aqui e… quando vos digo que era conhecido como o trator, houve muitas iniciativas aqui da juventude e houve tantas iniciativas que, às vezes, eu nem sei, houve uma reunião que foi na casa… havia um camarada que fugiu de Peniche, que era o Zé Carlos, tinha o meu nome, que era corticeiro, tinha duas filhas e uma foi criada na União Soviética, e depois veio para cá e foi viver com um camarada que era de Oliveira de Azeméis e tava numa vida semi-clandestina ali em Custóias, nessa zona, e então… foi visto, eu marcasse uma reunião na casa dele, eu não ia a essa reunião, com alguns camaradas, ia o camarada Carlos Costa, ia o Pato, ia o Carlos… como é que é, o…
Faustina Barradas - Carlos Brito?
José Carlos Almeida - Não, o… o que teve cá no Porto, pá… já disse aqui pá, aquele sacana que é Algarvio, pá…
Faustina Barradas - Que é algarvio ou que estava no Algarve? É o Carlos Luís?
José Carlos Almeida - Não, pá, é o da direção do partido, que teve cá no norte, o marido da… da… camarada, pá, eu sei o nome dele. E houve uma reunião ali para discutir a organização, o partido já tinha tido a união da juventude comunista, já tinha tido a organização, de que fizeram parte grandes intelectuais, fizeram parte e… o Bento Caraça e… e então o partido pensava organizar a juventude, dar uma coisa, reorganizar a juventude, e então há essa reunião ali, estão esses camaradas e daí depois até analisam isso, a gente fez uma informação escrita, um relatório, e eu tenho esse relatório das lutas que havia no norte e eram umas 30 folhas ou… de papel, com relatos das empresas e… e fizemos aqui, os camaradas juntaram, e depois houve uma reunião em Parma, na Itália, já de outro nível, que foi o partido que queria oficializar as juventudes comunistas e tal e foi assim que nasceu, pronto. O Ernesto Afonso teve um papel importante, o Júlio Pinho também teve, outro camarada de Oliveira de Azeméis, o Nelson Bertini [corte] e outros jovens aqui no Porto que tiveram um papel importante, há um que estava ligado a, empregado de escritório, houve tantos, aquele que era de cor, mulato, que era dali ao pé da Areosa, como é que ele se chama…
Faustina Barradas - Já falei e agora não me lembro o nome, outra vez… Libertário, era o Libertário.
José Carlos Almeida - Libertário, era o Libertário… que eram camaradas para apoiar jovens para fazer trabalho junto da juventude, pronto, como havia a frente das mulheres de camaradas mulheres, que organizavam iniciativas das mulheres e… era… como eu estou a dizer, quando se está… eu já estou meio gágá, já me esquece muitas coisas… fala tu agora.
Entrevistadora - Então vamos conhecer aqui a história da Faustina.
Faustina Barradas - Não chega, a não ser que… vamos fazer serão… [risos] agora cala…
José Carlos Almeida - Eu tou calado. [risos]
Entrevistadora - Se quiser começar por dizer o seu nome, a sua data e local de nascimento.
Faustina Barradas - Então eu chamo-me Faustina Condessas Barradas, sou natural de Vale de Vargo, concelho de Serpa, distrito de Beja. Nasci a 4 de setembro de 1944. Portanto, sou alentejana, filha de trabalhadores alentejanos, neta de trabalhadores alentejanos e os meus pais eram analfabetos, trabalhavam no campo, mas podemos começar por isto… Vale de Vargo era uma terra de revolucionários, eu nasci em 44, foi… com a guerra ainda havia a guerra… e… Vale de Vargo fica perto de Ficalho, que fica na fronteira, portanto, logo daí, os contrabandos, as idas para Espanha, a guerra de Espanha e, portanto, a casa dos meus pais já era ponto de apoio dos camaradas, portanto, a minha mãe conheceu o Álvaro quando ele ia para lá, portanto, já fui muito tempo antes, como a pescada, antes de ser, já era [risos] quando a minha mãe ficou grávida… [risos] ela já era. E, pronto, e tive sempre ligação com todos os camaradas, há uma coisa que, tudo aquilo que eu sou, tudo, isto é, já faleceu e faz-me falta… a minha mãe. A minha mãe era uma mulher como o Zé hà bocadinho disse, portanto, muito… muito revolucionária, mas não é assim que eu quero dizer, era o temperamento dela e a consciência dela, o meu avô tinha sido preso, portanto, vem já de… dos bisavós e… e a casa era ponto de apoio da direção do partido, portanto, tive esse privilégio, que já era da direção do partido, portanto, a minha mãe e os camaradas mais responsáveis, estes aqui… e, portanto, que ela conhecia, portanto, tiveram sempre ligadas ao partido. Havia… agora eu, pronto [risos], agora eu, eu em casa… comecei a ter mais consciência, de facto, já a saber… é mesmo assim, o que eu vou dizer é mesmo assim, eu tinha 7 anos e a minha avó morreu, a mãe da minha mãe, morreu no dia 4 de outubro e, portanto, e havia o 5 de outubro, a minha mãe… ensinou-nos desde sempre, portanto, eu tenho dois irmãos, o Manel, mais novo que eu dois anos, e o Sebastião, mais velho que eu três anos, portanto, a minha mãe e os três filhos… sempre juntos e a saber do que é que se tratava, os camaradas, camaradas e a orientação era esta, desde que nasci: o que se passa em casa, não se diz lá fora, em lado nenhum, não custa nada, portanto, se formos com aquilo já sabemos que não falamos, não dizemos nada… portanto, tive essa vida facilitada de pequena, por outro lado, sempre… em contacto com a vida que era. E no Alentejo passava-se muita fome, muita, muita miséria e havia… as praças de jorna nos largos das… das aldeias, isto mais no verão, que era antes da… foi por este tempo, portanto, antes de começarem as ceifas, e depois vinham os lacaios dos proprietários, portanto, dos agrários, para… ver quem é que vai trabalhar, aquela coisa… a praça de jornas. Na praça de jornas todos os anos acontecia a mesma coisa, portanto… praça de jornas, íamos todos para a rua, portanto, nós íamos agarrados às saias das mães ou ao colo das mães, conforme… e… os homens também, portanto, juntavam-se os homens e as mulheres, porque as mulheres também eram contratadas para a ceifa e… os agrários preferiam sempre o casal, porque a mulher ganhava menos de metade do que ganhava o homem, portanto, sendo um casal era um negócio bem feito, porque as mulheres ganhavam muito menos que os homens e ocupavam o lugar de um homem, em trabalho… isto assim, os meus alicerces.
No dia 4 de outubro a minha avó morreu, na noite de 4 para 5 de outubro… nós estávamos lá, porque os funerais era tudo em casa, na sala, o caixão, e andávamos ali todos à volta, pequenos, e a minha mãe sempre diz para as irmãs “olha, eu vou a casa, vou tratar dos meninos e depois volto”, isto era a conversa, mesmo aí, a consciência… vamos para casa, a minha mãe fez-nos uma açorda, deve ter sido, não lembro bem o que era, mas era uma coisa qualquer assim, vamos para a cama, para a minha mãe sair, mas a minha mãe não saiu logo, quer dizer, esteve ali assim, um bocadinho, ouviu os barulhos, e assim… e pronto… os meus irmãos estavam na cama, eu também estava na cama, mas estava assim a olhar, quer dizer, aqui há qualquer coisa que não bate certo, eu para mim, assim, não sei bem como é que era, via ali qualquer coisa que não…. e eu vi a minha mãe, já vestida, a minha avó tinha morrido, a minha mãe estava de preto, a minha mãe vestida de cor, com as roupas de cor, o lenço, o avental, toda a roupa que se usava no Alentejo, na altura, no Alentejo e nas províncias, nas aldeias, pronto, e então, fiquei assim, um bocadinho, há aqui qualquer coisa que não bate certo… e não batia certo, passado pouco tempo, a minha mãe chega a casa veste-se de preto [risos] e vai-se embora, a pensar que nós estávamos a dormir, depois que eu não estava, vai-se embora vestida de preto, pronto. No outro dia de manhã, e depois eu adormeci, no outro dia de manhã, 5 de outubro, e que era o funeral da minha avó, apareceu a aldeia toda, cheia de papéis, para o 5 de outubro, portanto, os manifestos, as tarjetas, aquela coisa toda, portanto, a imprensa, ora bem, a minha mãe era, mas nós não sabíamos, uma das pessoas, não sei se havia mais ou não, porque nunca sabíamos dos outros, e… que fazia a distribuição da propaganda, portanto, a minha avó morreu, mas a minha mãe fez na mesma a distribuição e, pronto, e andavam lá os papéis e aquela coisa toda, portanto, eu fiquei assim, quem será, quem não será, isto é, só pode ter sido a minha mãe, só podia ser a minha mãe… [risos], mas, aí nessa altura, fiquei assim… é, não é, entretanto, quando morreu… quando morriam os familiares, os homens usavam o fumo, uma tira preta no braço, e as mulheres vestiam-se de preto, e os miúdos também o fumo, e as miúdas com um bibinho preto, e a minha mãe fez-me um bibinho preto, logo a seguir, uns dias a seguir, logo a seguir, fez-me um bibinho preto, com os bolsinhos, uns folhos, e eu fiquei muito contente… embrulhou… [risos] dobrou o Avante, muito bem dobradinho, meteu-me no bolso, e a minha mão no bolso, a segurar o avante, e disse assim “agora vais para a prima Maria”, que era, pronto, que eram as nossas primas, e que era até do outro lado da aldeia “e vais levar isto e entregas-lhe, voltas para trás, vens ter comigo, que é para eu saber que tu entregaste, e depois, deixo-te ir brincar”, depois eu ficava livre e ia brincar, e eu assim fiz, portanto… e esta foi a minha entrada no partido [risos].
Depois a partir dali, pronto, assistimos às lutas, e já sabíamos o que era, o Partido Comunista era o partido dos trabalhadores, era quem nos salvava, tínhamos que lutar muito para termos pão para comer, etc, etc. Nas praças de jorna, havia sempre as prisões, e havia uma coisa que ainda hoje conto em todo o lado, porque está cá dentro, a GNR vinha depois para o Largo, com os cavalos, depois vinham pilhas, vinha para vários lados, depois a GNR, estava sempre, e vinham os cavalos, e, pronto, e toda a gente a gritar, e a fugir de um lado para o outro, e era mesmo assim, depois iam presos, e numa altura… em 53, talvez, 52, não, é mais pequeno, pronto, não, para aí em 50… não sei bem… numa dessas praças de jorna, vai preso o meu pai e a minha mãe, foram presos os dois. A minha mãe já tinha sido presa, o meu pai ainda não tinha sido preso, e foram presos os dois. Ficou a minha tia, que tinha quatro filhos pequenos, e mais três, nós, porque eles foram presos, foram para Beja,, não sei quanto tempo, acho que a minha mãe teve dois meses presa, e depois conta a minha mãe, e o meu pai, e as pessoas na altura, que lá o da, não sei o que, ela era capitão, qualquer coisa assim, da GNR, olhou para o meu pai, e disse assim “ó senhor Sebastião, você é um homem tão pacato, metido numa vida destas, a sua mulher nós já a conhecemos, agora, o senhor” e o meu pai disse assim “todos temos lá um tijolo, estou cá a tirar o meu”, eu não percebia nada daquilo, mas ouvia a conversa, pronto, sim senhor, e fiquei a saber o que era… pronto, aquela coisa toda, e fica aquela imagem da praça de jorna, ficou sempre aquela imagem. Pronto, entretanto, a vida ia continuando a mesma, lutas para aqui, lutas para ali, passar fome, apanhar chuva, ter, não ter, apanhar muito sol e muita chuva, pés descalços, pronto, era de facto uma miséria muito grande, e… vamos passando, portanto, depois eu não fui logo para a escola aos sete anos, porque morávamos num monte e que ficava muito longe da escola, e eu não podia ir, portanto, só fui com oito anos, e era a vida pobre, desgraçada, dos trabalhadores todos.
Em 1954, tinha eu ainda nove anos, porque aqui foi em 1954, foi quando mataram a Catarina Eufémia, portanto, também numa dessas lutas das ceifas, e eles a entrarem lá e tal, pronto. Nessa altura, a minha mãe também foi a Baleizão, depois foram as outras pessoas todas, juntaram-se, Baleizão, nós ficávamos na rua, os miúdos, a brincar uns com os outros, portanto, sem coisa nenhuma, sem apoio nenhum, e entretanto… depois foi visto, portanto, entre o partido e os meus pais, que tínhamos que sair de Vale de Vargo, pronto, e então fomos… viemos para Lisboa. Viemos para Lisboa, o meu pai ainda a trabalhar como... na... nas obras, na construção civil, na construção civil, e calhou-lhe logo ir fazer o campo do Belenenses, nós fomos lá para Belém, ele… para casa de um tio meu, que era guarda fiscal, ali na Rua dos Jerónimos, e então, fomos para lá, eu depois continuei a escola, em Belém, o meu irmão mais velho já tinha feito a quarta classe, o pequenino não, e depois… e começou ali outra vez, já ligados, pronto, ao partido, semi… portanto, não havia bilhetes de identidade, não era obrigatório na altura, mas já era assumir clandestinidade, portanto, já estávamos ali ligados. Depois saímos daí dessa casinha, que era uma casinha pequenina, que era do tio do meu pai, fomos morar para um quarto, todos os cinco, num quarto, também ali perto, na… na Rua da Memória, a Travessa da Memória, pronto, ficámos ali, que ficava ao pé dos… dos quartéis, Lanceiros 2, Cavalaria 7, pronto, ficava ali… ora bem, a minha mãe já estava ligada, que nós não sabíamos, mas já estava ligada à imprensa, à distribuição da imprensa, e quando íamos para Lisboa, ficou ligada ao setor militar, e que, pronto, que continuou. A minha mãe era analfabeta, como já disse, mas fazia tudo, tudo, portanto, nunca tinha estado numa cidade grande, Lisboa… o metro era novo e ela metia-se em todo lado… e tinha tudo na cabeça, ia para a Rua X, para as esquinas X, para o encontro, ia para aqui, portanto, tudo, tudo, tudo… não sabemos como é que ela conseguia fazer, mas ela inventava muita coisa assim… e pronto, filha de uma mulher daquelas… aquilo foi… foi tudo muito… muito natural. Vamos, portanto, estou com os meus pais, os meus irmãos, cresci aqui na cidade, com muitos encontros, os camaradas iam lá, num quarto só, os camaradas iam lá, e às vezes, o Gervásio ainda ficou uma vez lá em casa, ainda ficou uma vez lá em casa, no quarto também, de maneira que aquilo era mesmo uma, pronto, não era vida, mas que não éramos os únicos, aquilo era normalíssimo viver-se assim, era normalíssimo. Tivemos, portanto, lá até… 58, e em 1958 foram as eleições do Humberto Delgado, e nós fomos morar para a margem sul, para Almada, portanto, fomos para a margem sul para a minha mãe fazer as distribuições, indo de lá a lá, portanto, a minha mãe foi a casa do Humberto Delgado, foi a casa do Arlindo Vicente, portanto, que era uma mulher do povo, uma saloia, uma alentejana, que tinha vindo para a cidade e, portanto… e entrava, pronto… na casa… fazer qualquer coisa, trabalhar, faz de conta, e, portanto, e fazia esses contactos.
Depois em… portanto, eu depois tinha… 58, 58… 14 anos, fui trabalhar para uma fábrica, já eram os camaradas, portanto, tinham os camaradas de direcção, portanto, os velhos camaradas todos que estão aqui, eu conheci-os em pequenina, o Álvaro não, o Álvaro não conheci… e… e vou trabalhar, assim, olha, nós só iríamos trabalhar aos 14 anos, porque podíamos ir, enfim, foi quando tirei o bilhete de identidade, acho eu… e fui trabalhar para uma fábrica, também em Lisboa, que era a Fábrica de Progresso Mecânico, que eles chamavam fábrica dos alfinetes, porque faziam só os alfinetes, fábrica dos alfinetes. Porquê que eu fui trabalhar para aquela fábrica? Porque era preciso fazer a agitação naquela fábrica, distribuir… distribuir os documentos. E, então, a minha mãe, o camarada, que neste caso era o… o… Blanqui Teixeira, e… e então tiveram-me a dizer como é que se fazia, e a minha mãe a ensinar como é que se fazia, que era, levava a imprensa, fazia três montinhos, e depois dizia assim “tens de ter muito, muito, muito, muito cuidado, mas eu sei que tu és capaz” e a minha mãe tinha uma coisa que… dava-nos logo confiança, porque ela dizia “tu és capaz, tu fazes, eu confio em ti” e, portanto, aquilo, aquilo nos miúdos, é bom, é bom, do que estás a dizer “não faças isso, ou fazes de outra maneira”, é mesmo bom. E, então, fui com a imprensa, um montinho na… na casa de banho dos homens, “vais primeiro à, vais cedinho, vais primeiro à casa de banho dos homens, depois à casa de banho das mulheres, e depois ao refeitório”, portanto, três montes “e no refeitório pões um monte maior, divides em três, no refeitório” e eu assim fiz. Portanto, comecei a trabalhar, no dia 6, portanto, no dia 4 fiz anos, no dia 6 comecei a trabalhar, e no dia 4, pois, e no dia 4 de outubro, porque é outubro, fiz a… a distribuição e saiu muito bem, e fiquei, pronto, fui para casa e a minha mãe “então, como é que correu?” e eu assim “já está” e pronto, enfim, depois, continuei lá a trabalhar, pronto, em… desculpem… portanto, estava na…. fiquei para o 1º de Maio, no 1º de Maio, portanto, repete-se o trabalho, e tal… repete-se o trabalho. E entretanto, também, fiquei incumbida de ouvir, o que é que as mulheres, portanto, o que é que as mulheres diziam, falavam, o que é que, pronto… e tal, tal, tal, tal…. portanto, o que é que fizeram, como é que fizeram, pronto, contava a história da fábrica, da vida da fábrica. No 1º de Maio, portanto, antes, fiz a distribuição, tudo bem, sem nada, portanto, continuei a trabalhar, tudo bem, no 5 de Outubro, a mesma coisa, portanto, sim senhora, a trabalhar, tudo muito bem, e sempre a… a ouvir o que é que as mulheres diziam, se reclamavam, se não reclamava, pronto, a vida da fábrica e, portanto… dizia em casa.
Entrevistadora - Como é que era a vida na fábrica?
Faustina Barradas - A vida na fábrica era uma vida diferente daquilo que eu tinha visto no Alentejo, portanto, no trabalho do campo, portanto, já era, já se levava a marmita, já… conversava-se mais, portanto, para mim, já era uma vida diferente da... e os problemas também outros, falam-se nos filhos, fala-se no trabalho, fala-se na fome, fala-se no jantar, não sabem o que é que vão fazer para o jantar, aquelas conversas, portanto, assim de... E se havia alguma, pronto, se havia alguma coisa, se tinha havido alguma coisa contra ou não, e eu… pronto, muito bem comportadinha. E, entretanto, estive lá quase dois anos, porque depois em março, tinha dezesseis anos, depois em março, já não fiquei para o 1º de Maio, porque… fui para a clandestinidade, tinha dezasseis anos, portanto, em março, foi a 17 de março, nunca mais me vou esquecer… e já tenho oitenta [risos].
Portanto, fui para a clandestinidade, que foi uma coisa completamente diferente. E agora sim, agora vamos mesmo entrar. Fiquei sem saber… portanto, separei-me dos meus pais e eu sabia que a vida era assim, portanto, quando se ia para a clandestinidade, deixávamos de ser nós e éramos outra pessoa, com outro nome, outra idade, outra família, e cada casa que mudávamos, éramos sempre outra pessoa, portanto, a clandestinidade é muito difícil de explicar… porque é uma tensão, uma pessoa vive sempre em tensão, e tem que ter aquela facilidade de… de um momento para o outro, ser outra pessoa… e de falar com as pessoas, aquilo que a gente quer que elas saibam, portanto, para ficarmos bem fixos na casa, falar logo com elas antes “sou assim, estou assado, fiz assim, fiz…”, que é para depois não fazerem perguntas, antes que nos perguntem, nós impomos logo aquilo que nós queremos, que somos lá, naquela terra.
A minha experiência de ir para a clandestinidade foi… fui para casa do camarada Dias Lourenço, portanto, mais uma vez, os camaradas da direcção do partido, portanto, das lutas de base, eu não tenho… as lutas de base, mesmo de trabalho, não tenho, pronto, o camarada Dias Lourenço. O menino, o Tonico, não sei se vocês sabem, conhecem o livro, mas pronto morreu com… 11 anos, o Tonico tinha um ano e a mulher estava grávida. E então, pronto, fui para a casa deles, fui aprender a escrever à máquina, começar a bater a máquina as informações dos camaradas… portanto, que vinham, aí já dentro, se uma pessoa está a datilografar, está a aprender, está a ler tudo, aquela informação encheu logo, não é, acaba por saber tudo daquilo que se vai passando, porque temos os papéis na mão do que corre e aí é uma formação muito grande e que também se faz naturalmente, como se fosse outro trabalho qualquer, como se faz naturalmente… portanto, os camaradas falavam muito comigo, falavam os camaradas, o que tinham e tal… pronto.
E um dia, o camarada Dias Lourenço e a Clélia disseram assim “vamos falar contigo, precisamos de ti, porque nós temos que sair os dois, vou a uma reunião, mas não podemos levar o Tonico, então vais ficar com o Tonico, será que tu és capaz de ficar?”, ficámos para aí duas horas a conversar… e eu… não chorava de coiso, mas ficava… cada coisa que me diziam que era assim… “tu vais ficar com o Tonico, se a PIDE vier, tu não dizes nada, nada, nada, mesmo que digam que matam o Tonico ou mesmo se baterem no Tonico, tu não abres a boca, não dizes nada, nada, nada, de resto, a tua mãe também já te disse como é que é, se um dia uma pessoa for presa, é não dizer nada, nem inventar histórias… não inventar histórias, é por isto, é por aquilo ou por outro... nada de nada, ficas muda” e eu pronto, mas depois, quando eles me disseram “pronto, estamos a entregar a vida do nosso filho” pá, para uma menina de 16 anos… aquilo, fiquei assim… de... mas eu cresci, amadureci, não sei explicar… naquela altura, porque fiquei contente, fiquei com medo, fiquei com muitas emoções, tudo muito junto… e dizer assim se os camaradas me estão a entregar a vida do filho, portanto, a coisa melhor que eles tinham ali, e que estavam a pôr na mão de uma miúda de 16 anos, eu não podia ser uma miúda, eu tinha que crescer, eu tinha que... e foi isso, quer dizer, tive assim, algumas… emoções, que não passam nunca mais e que amadureci, fiquei… fiquei confiante. E portanto, eles não foram presos, voltaram depois, no outro dia, e eu fiquei assim “pronto, esta já está” e ainda hoje é a palavra que mais gosto “já está” [risos]. E fiquei a pensar naquilo muito tempo, muito tempo… e ficava feliz, eu não sei explicar, porque era a confiança que aqueles camaradas, aquelas pessoas, que tinham sido presas, que continuavam a lutar, que me emprestavam livros, que me levavam livros para eu ler… e que tinha... e eu ficava muito contente, quer dizer, cada… cada passo que dava, eu ficava muito feliz, muito contente, porque eu tinha conseguido e era aquilo que a minha mãe me dizia para fazer e eu consegui. E pronto, e era... e foi assim, e foi doloroso, porque viver na clandestinidade… é muito... além de ser difícil, porque não somos nós, deixei de ser a Faustina, tive 14 anos sem me chamar Faustina, e cada casa que mudava tinha outro nome e era outra pessoa e, portanto, tínhamos que nos integrar em nós, cá dentro, que éramos outra pessoa, e cada vez que saímos de uma casa, aquela tinha esquecido e éramos… outra pessoa.
Passados uns poucos meses, portanto, eu fui em março… abril, maio, mais ou menos, aconteceu isto e depois em... setembro, acho eu, sim, fui então para a casa de outros camaradas e então os camaradas disseram assim “olha, agora vais para uma tipografia” e quando me disseram vais para uma tipografia, eu pensei assim “mas como é que eu vou? Eu sozinha, assim, uma tipografia, mas uma tipografia é uma oficina, portanto, como é que eu estou na clandestinidade e vou para uma oficina?” [risos], porque lembrei-me da fábrica, não era possível… Pronto, marcam-se os encontros e tal, tal… o Dias Lourenço leva-me ali ao... ali não, que isto não é Lisboa… ao Príncipe Real, ao Jardim do Príncipe Real, encontro-me, portanto, com o outro camarada, de quem ia para a casa do outro camarada e… pronto, despedi-me do Dias Lourenço e lá fui com o outro camarada. E cheguei... pensava eu que era para ir trabalhar para uma oficina, para uma tipografia, sabia que havia uma tipografia, mas nunca tinha visto, nem sabia como era… vou para casa... venho para o Porto, Oliveira de Douro [risos], aqui, Gaia… Gervide, Gervide, Oliveira do Douro, a tipografia. Chego lá, quem é que está? A companheira e um filho, mais ninguém [risos], uma casa normal, no primeiro andar, pronto, e então… a tipografia, mostraram a tipografia, era o Prelo, vocês já a viram? Já? Já… o Prelo... pronto… e começámos a trabalhar, eu aprendi... e pronto e lá estive um ano e tal com os camaradas. Naquela casa, eu era... naquela casa eu não me lembro o nome como é que era, não era Manuela, porque os nomes eram muitos nomes…
Entrevistadora - Mas lembras-te do primeiro nome?
Faustina Barradas - Do primeiro lembro-me que era Zélia, que foi em casa do Dias Lourenço [risos].
Entrevistadora - E o que é que eras a eles?
Faustina Barradas - Era a sobrinha, era a sobrinha deles. Ele depois foi o meu pai, mas era... quando eu estava na tipografia e que ele controlava a tipografia, aí era o meu pai, mas que já não tinha nada a ver com a família, que tinha sido de outra casa e outra gente, eu já era. Depois, na tipografia, portanto, com os outros camaradas, havia o Manelinho e era eu que ia fazer a entrada, portanto, o sinal, fazer o sinal para entrar em casa.
José Carlos Almeida - Explica o que é o sinal.
Faustina Barradas - Sim. Aprendi na tipografia, trabalhei, aprendi… quando era para pôr o sinal, já era o Pato e o… e o Pires Jorge, portanto, eram tudo os camaradas mais responsáveis. Bem, era fazer na porta do cemitério de… como é que aquilo se chama? Agramonte é este daqui… o cemitério… pronto…
Entrevistadora - Em Gaia.
Faustina Barradas - Em Gaia. No cemitério, fazer uma cruzinha, pronto, num determinado sítio, do lado esquerdo e tal, fazer lá uma cruzinha com lápis. A primeira vez... e várias vezes, fui com o Manelinho, ia com o Manelinho, íamos a pé, andávamos, andávamos, íamos a passear, andávamos, andávamos ao andar… pé, muito a pé… estava-me a lembrar do cemitério, agora do nome… bem, o Manelinho ia comigo, e uma das coisas que a camarada me disse assim “olha, sabes como é que fazes para ir com ele no andar? Desabotoas-lhe o… apertas-lhe mal os sapatos, que é para os sapatos se desabotoarem e depois chega àquela…” ela não sabia onde é que era, àquela altura, e… “paras para apertar os sapatos”. Vou com o Manelinho, vou fazer o primeiro sinal… e também era para o Pato, a gente reunisse lá e pronto… e então, os camaradas passavam pelo portão, do cemitério, apagavam a cruzinha e, pronto, e seguia-se o caminho e continuamos assim. Um dia, o Manelinho, que já estava mais crescidinho, diz assim “oh tia, sempre que passamos aqui, temos que parar para abotoar o sapato”, portanto, ele já fazia uma ligação, íamos passear e abotoar o sapato no... no dehrau da porta do cemitério [risos}. Pronto, acabou-se o Manelinho, acabou-se a companhia, cheguei a casa, pronto, eu disse, e os camaradas disseram “pronto, acabou-se, vais sozinha” e lá, pronto, eu comecei a fazer a minha ação. Isso aí foi logo a minha primeira experiência, que também não pode ser sempre a mesma coisa, com os miúdos, também não pode ser sempre a mesma coisa, pronto, aprendi. Nasceu lá a segunda filha deles, pois eu ainda tinha 17 anos… nasceu lá a segunda filha deles, o parto é em casa, e nós dizemos à parteira que eu tenho 18 anos, e a Fernandinha começa, assim que nasceu, veio para o meu colinho [risos] e foi o meu primeiro parto.
Dois meses depois, deixei o Manelinho e a Fernandinha, e fui para outros camaradas, aí já fui ensinar, pronto. E depois, já ia, era mais fácil deslocar-se uma pessoa sozinha, uma miúda, que entrasse na casa de um casal… e, portanto, e mais fácil do que ir os camaradas ensinar e etc., foi assim. Fui para... pronto, fui ensinar e andei por várias casas, em vários pontos do país.
Entrevistadora - Ensinar a tipografar?
Faustina Barradas - Ensinar na… na tipografia. Primeiro, a fazer, pronto…
Ora bem, em 63… 64, 65, 65, acabámos, pois… 64, 65… 63, 64, portanto, andei 3 anos e tal, portanto, vários, vários… portanto, pelo Alentejo, Montijo… portanto, vários camaradas, vários casais. E vem a Guerra Colonial em 61, aliás, já se falava na guerra quando eu fui para a clandestinidade, já havia a guerra, e vou para a casa dos camaradas, já naquela altura, a guerra começou quando eu saí de outros camaradas, portanto, a guerra já estava em força, mas era… era preciso termos uma tipografia livre, porque às vezes tínhamos um Avante, um Militante e, portanto, aí já fazia a imprensa toda no prelo, e vinha uma notícia com prioridade e nós tínhamos que desmanchar o que tínhamos feito, tornar a fazer a notícia, imprimi-la, portanto, fazer, compô-la, imprimi-la e depois recomeçarmos com o trabalho que já tínhamos feito. Portanto, era uma coisa que era, além de ser muito trabalho, era muito tempo, desmanchar um para fazer o outro, aquilo era letra a letra, e era muito tempo, e então os camaradas decidiram que era necessária uma tipografia para a imprensa contra a guerra, e o primeiro jornal chamou-se o Anticolonial, que é uma folha que é do Anticolonial, o número um… fui eu. Aquela tipografia foi toda feita de novo, aí eu tinha… tinha 19, e fiquei responsável pela tipografia, portanto, fui para um casal que são os pais, vocês não conhecem, não sei se eles conhecem ou não, da Noémia do Avante, não? Pronto, dos pais, eram os pais dela, e fui para lá, e assim, portanto, a tipografia, mas era preciso montar a tipografia. E, portanto, montar a tipografia, era uma tipografia toda… e foi… com o Veloso e então, vamos dizer assim, vamos montar uma tipografia, é preciso montar uma tipografia. Bem, foi preciso o prelo, que era feito numa oficina, sem saber, comprava-se uma chapa, e etc., depois era preciso as escalhas, no outro, e tal, tal, tal… mas não era eu que fazia isso, portanto, um camarada e ele… o Zé Carlos entrou, sem nos conhecermos, sem nos conhecermos, entrou nesse trabalho, na tipografia, a arranjar o material, e etc. e etc. depois havia que arranjar as madeiras para fazer as caixas, foi tudo lá feito em casa, tudo, tudo, tudo… em casa, numa, ao pé, mesmo ao pé de uma vivenda, da Lucília do Carmo, e assistimos ao casamento do Carlos do Carmo [risos]. Mas, portanto, a tipografia, como é que era? Eu passei noites sem dormir, até, pronto, como é que eu ia fazer a tipografia? Não sabia fazer coisinha… peguei numa folha de papel quadriculada, comecei mais ou menos a contar os quadradinhos para se fazerem os cacifos, para se meterem as letras lá dentro, isto para as caixas, e depois, para fazer as caixas, que vou já dizer mais rápido, isto levava muito tempo, e eu disse assim “olha, ó Veloso, as caixas, eu não sou capaz de fazer” carpinteira, pronto, fazer ali a carpinteira, e ele disse “eu vou te arranjar um camarada para ajudar, para te ajudar” e sim senhor, apareceu um camarada para ajudar. E eu tinha visto fazer as caixas, e comecei, portanto, para fazer os quadradinhos, os cacifos, e… a fazer de uma maneira que é, portanto, está a ripa, faz-se cortezinhos, e na outra ripa a mesma coisa, e ficam os quadradinhos feitos à medida que nós queremos e, portanto… chega lá o camarada, e começou a fazer assim as tabuinhas todas cortadinhas… e eu fiquei assim, pronto… e a partir daí, fiquei muito mais, muito mais modesta... porque se calhar já estava a ficar, a pensar que sabia tudo com 18 anos… o camarada chega lá e começa a fazer as tabuinhas… e eu disse “ó camarada, não é assim, camarada não é assim que se faz, portanto, faz-se os quadradinhos e tal” e ele “muito bem” e fez as caixas, como eu disse, portanto, eu ia avisando como é que eram as caixas… e paramos agora aí. Agora, temos as caixas feitas, o chumbo, as letras, os caracteres, tudo aquilo, que era feito a peso… e como é que eu vou fazer? As mercearias… tínhamos uma mercearia perto e as mercearias, naquela altura, eram… fabricados, já havia alguns, poucos…. e era o balcão, em cima do balcão estava uma balança, sempre e… portanto, da pessoa do outro lado, da merceeira, da merceeira…. pesar coisas que se pedia, que era tudo em sacos de plástico, de papel… e por baixo, normalmente, das mercearias, na parte de baixo, era o carvão, petróleo, batatas, as coisas sujas, como eles diziam, era para baixo… como nós pedíamos tudo “era arroz, feijão, etc.” e eu pedi também cebolas, batatas, carvão… que era para dar tempo à senhora ir lá abaixo… metemos… tinha meia dúzia de letras, que o Veloso me tinha trazido, como chegavam lá isso já não era da minha conta, eu só precisava ter lá as letras, não precisava saber mais nada, e mais ou menos a quantidade… os A’s e pronto… que se gasta mais no alfabeto, não é tudo igual, e então, meti… em caixas fósforas vazias… uma caixa de fósforos grande e uma caixa pequena… contei as letras, enchi as duas caixas, enquanto a senhora foi lá abaixo buscar o que eu tinha pedido da cave, pesei na balança… quando o Veloso lá foi, para saber qual era a quantidade, e tal… digo assim “olha, fiz assim” e ele começou a olhar para mim [risos], começou a olhar para mim… “bestial, bestial” era um homem extraordinário também, mesmo, mesmo, mesmo, mesmo. Bem, mais uma coisa que eu tinha feito, que tinha ficado toda contente, porque tinha conseguido, e montou-se a tipografia toda, toda nova. Pronto, começar a trabalhar, ensinar os camaradas, começar a trabalhar, sim senhor, tipografia em ação, as notícias que vinham das guerras… que nós, pronto, tínhamos ali em primeira mão, porque não éramos mais informados e vinham diretamente e tínhamos em primeira mão e depois… as emoções das notícias, porque a nós passava tudo pela mão, e as fotografias, portanto, os militares… as cabeças enfiadas nos paus, todas aquelas fotografias, aquele horror todo, todo que a gente via… e as notícias. Ora bem, eu aí tive, aí não sempre… tive um privilégio porque tinha… aprendi a tipografia, aprendi a tipografia e tinha todas as informações, portanto, estava num sítio onde eu tinha todas as informações, na tipografia passavam todas as notícias, as lutas, tudo o que se passava no país, para depois ser distribuído, portanto, em primeira mão tínhamos todas aquelas notícias e aí, de facto, eu era uma privilegiada, eu e os outros camaradas, tipógrafos e… e pronto, estavam as notícias da guerra… e uma pessoa sente… começa a sentir e a crescer… e com aquele tudo, mas agora vamos andando e vamos chegar a 1965.
Em 1965, os meus pais são presos, numa casa clandestina, numa casa clandestina, presos… aí, o Zé já pode dizer melhor porque… eu nunca mais vi os meus pais, quando nos separávamos, sabíamos sempre que… nunca sabia quando nos víamos ou se víamos ou se não víamos ou se nos víamos na cadeia ou se não víamos na cadeia. Eu tinha, como era um homem mais velho, um código, que é assim, se nós nos encontrarmos, por acaso, no transporte ou numa coisa qualquer, fazermos assim só um sinal… que ele fazia assim à gravata ou à roupa ou qualquer coisa assim, porque não nos podíamos falar… e nem podíamos saber nada de nada… e, portanto, nós perdíamos todos os laços… com a família, às vezes, lá vinha uma carta ou outra… por acaso, nunca as recebi, porque estavam na Torre do Tombo, porque os camaradas tinham sido presos [risos] e estavam na Torre do Tombo e, portanto, não havia ligações, os meus pais foram presos e nós vimos a notícia no jornal, nós, eu e os meus tios, eu era a sobrinha dos outros camaradas tipógrafos, do faz de conta. Aquilo tinha sido em... era em Barcarena que eles moravam, não era? Era em Barcarena que a minha mãe morava, quando foram presos?
José Carlos Almeida - Era. Era perto dali.
Faustina Barradas - Pronto. E a tipografia era em Odivelas, portanto, fica na mesma zona, digamos assim, e, portanto, os meus pais foram presos e nós tivemos que sair da casa. Mas, quando nós vimos a notícia, e agora já vão perceber um bocadinho… o camarada que tinha lá a ir da casa fazer as caixas era o camarada que também estava com os meus pais… e o Zé já tinha passado por lá, que ficou a conhecer a minha mãe ainda melhor que eu, porque foi naquela altura que eu tive 14 anos sem os ver e, portanto, o Zé… foi nessas casas, em que ele foi sobrinho dos meus pais também, portanto, o Zé Carlos já me conhecia, mas eu não conhecia ao Zé Carlos de lado nenhum.
José Carlos Almeida - Pois não.
Faustina Barradas - Agora, vamos lá ao meu sentir… vemos a notícia do jornal…
José Carlos Almeida - Espera aí, eu só queria dizer uma coisa que não sei se vocês aprenderam. Ela falou aqui, várias vezes, os sinais que se tinham. Sabem para que era isso?
Entrevistadora - Sim, sim, sim.
José Carlos Almeida - Era para dizer que a casa estava em condições. E algumas prisões que se deram, foi porque a pessoa não cumpriu essa regra conspirativa, uma foi o Domingos Abrantes com a Conceição Matos. A Conceição Matos, ao dar o sinal, o sinal não apareceu e o Domingo Abrantes ah e tal não sei quê… foi preso. Estou a dizer, o sinal era a coisa mais… era fundamental qualquer pessoa que andava na clandestinidade saber isso.
Faustina Barradas - Eu chego lá…
Entrevistadora - E o Zé Carlos passava essas informações, essas regras conspirativas, a quem recrutava? Que regras é que eram essas? Falam muito de regras conspirativas… que regras eram essas e como é que as passava?
José Carlos Almeida - Não, as regras conspirativas, as que eu passava era o seguinte… eu vivia com a Faustina, eu na organização das reuniões que se faziam lá em casa a Faustina não sabia muitas coisas... quantos funcionários é que existiam… quanto é que era isto, era aquilo… e mesmo se era onde o partido tinha ligações, em que empresas tinha… isto eram coisas compartimentadas, não sabia nem mesmo... eu, por exemplo, controlava o comité local, tinha a reunião com três camaradas, quando era discutir a organização, aspetos de organização era só com um, com um… e o do outro, discutia com o outro, porque isso… era rigorosamente compartimentado, as instalações eram rigorosamente compartimentadas.
Entrevistadora - Ok…
Faustina Barradas - Bem, vamos lá, vamos lá então…
Entrevistadora - Já que tinha sido sobrinho… os seus pais foram presos…
Faustina Barradas - Os meus pais foram presos… eu estava, portanto, tivemos que mudar de casa, mas...
Entrevistadora - Ah, o camarada carpinteiro que tinha ido lá a casa…
Faustina Barradas - Exatamente. Os meus pais foram presos, nós vimos a notícia no jornal, um dos camaradas, portanto, o camarada tinha sido preso com eles, que era o camarada Ilídio Esteves, de profissão… marceneiro, estão a ver agora a ligação? Eu a ensinar… eu, uma miúda toda, a ensinar um marceneiro [risos] a trabalhar a madeira. Agarrei-me à minha tia, que não é minha tia… já morreu… a chorar, a chorar mesmo “ai, que vergonha, que vergonha, que vergonha, ó tia, se eu agora me encontrasse com o camarada”, portanto, senti a minha modéstia, naquela altura, quer dizer, eu não posso tornar a fazer um erro destes, porque, de facto, foi… eu a ensinar o camarada… mais uma coisa que eu aprendi, que eu fiquei... e isto é difícil de gerir quando ainda não temos a cabeça bem feita. Portanto, eu fui com 16 anos, com 14 anos, comecei a trabalhar, mas a juventude e a cabeça e o cérebro, aquilo, é assim um bocado muito, muito, muito confuso, mais a mais quando não se tem uma vida normal, com convívio normal, que não se tem, portanto, somos três camaradas na casa e mais ou menos sempre, pronto, o mesmo trabalho e a mesma coisa. Portanto, a partir daí, portanto, nesta intervenção, eles foram presos e nós tivemos que sair da casa, da nossa casa, da tipografia e etc. Pronto, eu fui para Lisboa, eles depois foram para o outro lado, que eu não sei para onde nem nada, portanto, mais uns que eu deixei de ver, eu deixei de ver os camaradas, e… fui para o Porto.
Fui para o Porto para o encontro com o Zé Carlos, à porta da maternidade de Júlio Dinis, não o conhecia de lado nenhum e uma maneira de nós nos conhecermos era, eu contei lá na, anteontem, na coisa… a credencial, a credencial era um papel, vocês sabem o que é a credencial? Pronto, então é assim, temos um papel, qualquer, papel, escrita para fazer aqui uma credencial, vou já fazer aqui, vou já fazer aqui uma credencial… e uma esferográfica, uma esferográfica… uma credencial. O camarada que faz o controlo dele, ou dele, ou de quem passa, de uma pessoa para a outra, que vai ter um encontro na rua e que não se conhece, tem que levar para já um sinal de fora, para saber que é aquela pessoa e depois… e a outra pessoa a mesma coisa, cada um leva, “olha, vai aparecer uma rapariga com um lenço azul” como no nosso caso “e vai aparecer um rapaz” que eu já tinha tido, tínhamos tido, qualquer deles, muitos encontros que nós tínhamos e cada encontro é diferente, porque é combinado diferente, que não é combinado entre nós, é combinado por outros… portanto, eu com o lenço azul, ele que… quando estávamos no norte, era o Jornal de Notícias e o Primeiro de Janeiro, os dois jornais mais importantes, portanto, como eu vinha para o Norte, o Zé Carlos tinha o Século, ou o Século ou o Diário de Notícias, portanto, ao contrário, para ser diferente, porque se nós estamos no Norte e temos o Primeiro de Janeiro debaixo do braço, não chama a atenção nenhuma, se ele tiver o Século ou o Diário de Notícias debaixo do braço, é diferente e, portanto, já funcionava… e eu com o lenço azul… e naquela altura, naquela época, usava-se os lenços assim atados na cabeça, aqui assim… e agora vocês vão saber, porque ele já contou. Estava muito frio, muito frio, muito frio, estavam lá as castanhas e tal, tal, tal… eu chego num táxi com a minha mala, vou e espero… entretanto, vai uma senhora que passa, uma rapariga, muito bonita, alta, alta, muito bonita, mas com o lenço azul… mas não era na cabeça, era um lenço azul na mão. Passou e de aí a nada passa um rapaz, alto, bonito, um homem alto, bonito… passa… e passou assim com um passo apressado, nem vê, nem… com o passo apressado e eu fiquei, pronto, à espera que aparecesse com quem me ia encontrar. Nisto… [risos] e ele olhou para trás e viu-me… ah ele fez assim, que era para fazer a pergunta, não sei se chegou a fazer ou não, à rapariga, mas ela continuou a andar, ela não ligou nenhuma e ele… alto lá, pronto… e ele olha para trás e vê-me e conheceu-me, porque já tinha sido sobrinho dos meus pais. Bem, vem a pergunta, eu não o conhecia, e ele não disse que me conhecia, vem a pergunta “o doutor não sei quem está de serviço?”, “olhe, não está, ou está de serviço também”, que é, estávamos numa maternidade, perguntávamos a pergunta do doutor. Depois disto tudo, que já estava mais ou menos conhecidos, ele entregava-me, portanto, quem lhe deu o meu contacto e a fez… isto tem aqui uma coisa qualquer escrita, ou um visto ou uma coisa qualquer, não interessa, pronto, agora, ele tem uma parte, e eu tenho outra que me foi dada pelo meu controleiro, e a dele foi dada pelo controleiro dele, e depois, quando as conversas já deu certo, a pergunta deu certo e a resposta deu certa, vamos buscar a credencial, portanto, o papelinho tem que casar para termos a certeza absoluta de que é a pessoa certa, porque de outra maneira, podia não ser a pessoa certa.
E a Faustina passou a ser uma mulher casada. Encontrei-me com ele e disse-lhe assim “olha, não consegui arranjar casa, vais para uma pensão, porque eu ainda estou no meu quarto, vais para uma pensão e vamos procurar a casa juntos” pronto, e assim foi. Fiquei numa pensão, aqui na Rotunda da Boavista, que é agora a churrasqueira, dali. E eu morava, tinha o meu quarto, era por cima, que agora é feito a sala, já lá tive no meu quarto a comer na sala grande do restaurante… Fui para lá, estive lá 13 dias, foi para o dia 12 de Dezembro que nós mudámos de casa, eu com a minha mala, ele com a mala dele, fomos para a casa, íamos alugar casa. Ora bem, alugar casa era uma das tarefas mais importantes e difíceis, que era, não tínhamos fiadoras, tinha que se pagar, portanto, os 6 meses ou não, conforme se falasse, há uns camaradas tinham mais dificuldade do que outros para falarem com quem… os senhorios também… portanto, isto aqui era uma coisa muito complicada e isso eu assisti a vários… não era eu que ia alugar, mas assistia a vários problemas, pronto, com isso. E a minha mãe tinha-me oferecido um anel, quando eu me separei dela, e eu virava o anel ao contrário, que era para dizer que era a casada… e depois os camaradas decidiram que nós íamos mesmo comprar umas alianças, para não estar a coisa, porque o anel podia se virar a qualquer coisa e pronto, para estar mais sério… e então fomos comprar umas alianças, aqui à rua… Cabral, qualquer coisa Cabral…
Entrevistadora - Costa Cabral.
Faustina Barradas - Costa Cabral [risos]. Vamos comprar umas alianças, sim senhora, tudo muito bem, é esta aliança que eu tenho, portanto, eu não tenho aliança de casamento, tenho a mesma aliança que tinha, portanto, fiquei com a aliança. Fomos, alugamos a casa. O homem, eu pensei que nós não alugávamos a casa, porque o homem disse assim, era preciso fiador e não sei o quê, e o Zé responde, com esta cara assim que ele agora tem, e diz assim “então mas o senhor…” há muita gente que arranja fiadores… os… os comerciantes, que depois começa-se a gastar lá na mercearia, tal, tal, são fiadores… ou então pagar os seis meses adiantados… e ele olha assim para cima “olhe, então eu não conheço ali o senhor e… como é que aquele senhor vai ter confiança em mim e o senhor que eu estou a falar consigo não vai? Eu não vou pagar nada no fiador, pago-lhe os seis meses, se quiser” [risos], mas assim com uma cara… e, pronto, e alugamos a casa. Alugamos a casa, outra família, portanto, marido e mulher… marido e mulher, meus lindos… marido e mulher, dentro de casa… fora de casa, porque dentro de casa éramos camaradas e ainda por cima ele era o meu controleiro, portanto, nada de misturas, nada de nada. E continuei… eu não sabia que o Zé me conhecia, só na altura em que, sim senhor, se decidiu… e decidimos… tudo a frio, digamos assim, tudo muito bem pensado, não foi paixões, não foi nada, eu digo, não é tão difícil, não é difícil… portanto, e quando os jovens moram em quartos… em quartos alugados e que há rapazes e raparigas e não sei o quê, não é nada difícil e não é… porque nós sabemos que aquele é aquele e este é este, da porta para fora é que éramos marido e mulher. Quando decidimos, foi isso mesmo, bem, arranjamos outra casa, tal, tal, tal… e ele disse assim “eu conheço, conheço os teus pais porque eu vivi com os teus pais” e aí também foi uma surpresa... porque eu pensava assim… ele é mais velho que eu 13 anos, e eu pensava assim, nesta altura, se ele é casado, se não é casado, se tem filhos, se não tem filhos… não me há de tirar assim sem mais nem menos… mas quando ele disse que conhecia os meus pais e que tinha sido sobrinho, eu digo assim “Vê lá rapariga, onde é que te vais meter, mas se calhar é muito mais natural, para a defesa da casa e tudo, ser uma vida natural” e pronto e aceitamos [risos], foi assim. Depois começam outros problemas… e aí sim, são os problemas da Faustina casada, ficar grávida… e os partos… e os problemas das crianças e eu não sei se temos tempo para falar do problema das crianças, temos? Então… vamos ao problema das crianças.
Ao fim de 9 meses, de nos juntarmos, nasceu a Catarina. A Catarina nasceu, ele já contou uma parte do parto e, portanto, aí sim senhor, até a menina ter… portanto, em Rio Tinto, até a menina ter os 2 anos, portanto, ela nasceu no dia 22 e a… e a… a Lisa nasceu no dia 20, ela nasceu no dia 2 e a Lisa nasceu no dia 21, em… em fevereiro. Pronto, os primeiros dois… a primeira, foi uma vida normal, portanto, do casal, tinha o nome, ficámos lá… saímos dessa casa, porque a Guidinha [risos] apaixonou-se pelo Zé Carlos, saímos dessa casa e fomos para a casa de Taralhão, a casa de Taralhão. Fiquei grávida, vão-se rir, porque eu vou dizer como é que foi… havia… os preservativos que nós não conhecíamos, os anticoncepcionais que nós não conhecíamos e portanto… havia uns cones Rendell, eram cones Rendell que se chamavam, porque o que inventou, o médico, era Rendell… e que eram uns cones de introduzir, antes de, mas com um tempo limitado, pronto, e… e eu fiquei grávida, pronto, fiquei grávida. Aí metem-se muitas coisas, aí já é outra vida, que é uma vida de haver uma criança de dois anos, portanto, durante a gravidez não houve grande… mas depois com o parto. Mete-se aqui na vida clandestina…. problemas, pronto, que aparecem… em que o Zé Carlos tem um acidente com outro camarada, portanto, com o Carlos Pinhão, não falaste nesse acidente, em Trancoso, ele agora é que sabe melhor, não sei se conta ou não, pronto, teve um acidente, foram para o hospital e depois fugiram do hospital.
José Carlos Almeida - Não, deixa-me contar isso que eu conto… Eu ia de automóvel, tinha nevado muito, eu ia reunir com uma mulher, ia com o Carlos Pinhão, à saída de Trancoso, e o condutor que nos ia conduzir é realizador de cinema, mas não tinha experiência nenhuma daquela estrada nem nada, pá, vem uma camionete lá na curva, ele mete os pés a fundo no travão e aquilo começa a deslizar… deu uma pancada de frente, eu ia ao lado do motorista, fiquei com um ombro grande aqui, deitava sangue pela boca e pelos ouvidos e o Carlos Pinhão fraturou, teve uma fratura exposta no pulso… isto eram 11 horas… o hospital de Trancoso e tal, quem nos foi levar ao hospital foi o presidente da Câmara de Trancoso, que vinha ali, viu o acidente e quis dar uma boleia e foi-nos levar ao hospital de Trancoso. Depois estava lá, eu ficava internado, o Carlos Pinhão com a fratura exposta, andou todo o dia a tratar das coisas…
Faustina Barradas - Sem dizer que estava ferido.
José Carlos Almeida - E quando chegou, eram 7 horas da noite, ele disse “a gente quer sair do hospital”, “mas o senhor não pode sair do hospital, tem que assinar qualquer coisa”, não tinham visto a fratura exposta dele e a mim… julgavam que eu tinha lesões internas, porque deitava sangue pelos ouvidos e assim… e eu disse “saímos”, “ ah, assina qualquer coisa”, assinamos, assinamos, e ele apanha um táxi, tinha arranjado um táxi, o táxi vai de Trancoso, vai-nos levar, a gente morava no Taralhão em Gondomar, até o outro sítio, porque nunca, aqui onde estás, eu queria contar da clandestinidade… eu se morava ali, nunca ia de transporte para casa, ia para o lado oposto e depois ia a pé, eu cheguei muitas vezes a ir de Gondomar a Matosinhos a pé, com encontros, porque tinha que ir, a pé, a pé, a pé, a pé, e tinha que ir, ia para casa, ela não, ela estava em casa sempre… [risos], mas isto era assim. Apanhámos um táxi e quando chegámos à casa do Taralhão, eram…
Faustina Barradas - Era noite… 4 horas da manhã.
José Carlos Almeida - Eram 5… eu bato à porta… e levava a cara toda ligada, levava a cara toda ligada e quando vi aquilo… estava a Georgette em casa e o Dias Lourenço, não foi? Vieram aqui, ficaram aflitos… para ver quem era, seria a PIDE, porque quem bate às 4 horas da manhã era a PIDE…. era a PIDE… julgavam que era a PIDE e não era, era eu, que vinha para casa e então era preciso de assistência médica, eu fui a um médico… só para acabar isto… que vocês conhecem certamente, que nunca tinha entrado numa casa clandestina, mas que era um médico que tínhamos muita confiança, que a gente... tinha muita confiança nele, que era o Graça.
Faustina Barradas - António Graça.
José Carlos Almeida - Era o António Graça, ainda era estudante. Foi lá à casa para ver e visitar e diz que ficou impressionado de entrar numa casa clandestina, que não sabia como é que era, e ficou e… depois lá… foi lá, e tive em casa com a palhinha a chupar o…
Faustina Barradas - Pronto, então… teve o acidente e chegaram às 4 da manhã, ele e o Carlos Pinhão, e nós morávamos no primeiro andar, portanto, havia só uma escada estreita e, portanto, no primeiro andar e eu olhei para baixo, porque assim “então, mas é ele a esta hora? e não vem sozinho, não vem sozinho”, portanto, vinham os dois, eles estavam a falar e vinham os dois, e eu… olhei para baixo para ver quem vinha e o Zé Carlos, que já vinha a meio da escada, dizia assim “não te assustes, não te assustes”, quando ele disse não te assustes, foi quando eu lhe olhei para a cara, porque eu olhei e foi para baixo, para as pernas, para ver quem vinha com ele, e… não sei como, eu estava grávida da Lisa, a Lisa nasceu de sete meses e tal… portanto, aquilo ficou muito, muito, muito mal… e eu olhei e o que é que vi? Todo, todo, todo ligado, com um buraquinho para pôr a palhinha e os dois coisinhos dos olhos… isto às 4 da manhã.
José Carlos Almeida - E só um aspeto para quem está a ver... em Trancoso, viemos de lá embora, assinei um papel e veio a enfermeira, que era freira, “não quer vir ver o nosso presépio?”, era naquela altura, era no primeiro andar… “sim, vamos lá, vamos, vamos lá” e põe a bandeja para a gente dar qualquer coisa [risos], mas… naquela altura foi ainda… para os nossos salários e para as nossas coisas foi… mas depois aqui, então saímos, passei muito bem, ainda estava muito feliz e tal… e acabamos de dormir e… e no outro dia, o Carlos Pinhão foi a um médico que o Graça arranjou, tinha um braço partido, com fratura exposta, e o médico disse “mas você andou desde ontem assim?” e tratou… e foi isto.
Faustina Barradas - Pronto. A Faustina estava grávida, olha para o Zé Carlos e houve qualquer coisa que não ficou bem… não, não desmaiei nem nada, mas senti ali qualquer coisa que não ficou bem e, de facto, não ficou, portanto, a partir dali comecei a ter problemas… e depois o parto foi prematuro. Sabíamos que não ia ser um parto normal e, portanto, tomaram medidas e tomar as medidas foi através da… da Olivia Vasconcelos, que era a Olivia do Carlos, que era parteira, e que arranjou um quarto do Hospital de Matosinhos e pronto… e chegou a hora, portanto, isso preparou-se antes, porque já se sabia que ia ser mau e nós fomos… e aí mudámos três vezes de táxi para chegar a Matosinhos, porque parada não podia ficar, portanto, para chegar a Matosinhos… e depois o que é que íamos dizer no hospital? Porque ser internada tinha que se arranjar os nomes… tinha que se arranjar tudo aquilo que encaixasse, pronto, o Zé era guarda-livros, que é agora os contabilistas, era guarda-livros, veio ao Porto falar com os clientes… e… e veio de avião e eu vim fazer compras, portanto, ele era guarda-livros, já era de outra camada mais alta, não é, já tínhamos dinheiro e, portanto… eu vim passear, vim fazer compras, porque não ia ter a criança… e, portanto, o Zé lançou isto assim de repente e, portanto, lá fui eu [risos] para o hospital. E, portanto, que era tudo tensão, portanto, dentro do carro, dentro do táxi resolvemos pôr como é que eu me ia chamar… no registo do hospital, o nome dele no registo do hospital, portanto, todas aquelas coisas muito, muito complicadas e que nós dentro do táxi combinámos tudo, ele foi fazer inscrição, eu fui para as urgências, que não foram urgências, porque já me tinham lá um quarto à minha espera, que eu também não sabia, que eu também não sabia... que já estava um quarto à minha espera e… vai lá a parteira, que eu também não conhecia e… e pronto, e nasce a criança. E a criança nasce… anormal, portanto, nasce sem pés, logo a ideia… coiso, porque terminava, o bico era o calcanhar e o pé estava virado, portanto, colado à perna, tinha os dedos colados na perna e, portanto… E o parto foi muito mau e eles me quiseram dar anestesia, mas que eu não quis anestesia, porque sabia que com a anestesia depois... perdia a consciência e não sabia o que tinha dito, nem como é que era, se tinha comprometido… e acabava por ser presa na mesma, depois daquelas coisas todas, para ver se evitava ser presa… ser presa na mesma… de maneira que foi tudo a sangue frio, tudo. Foi muito difícil, foi muito mau, a Olívia, assim que a criança saiu, desapareceu, nunca mais soube nada dela, portanto… o médico devia ser camarada, que eu ainda hoje não sei quem é, mas era de coisa dela, porque fiquei no quarto, soube mais tarde, fiquei no quarto onde ela tinha tido a filha dela, portanto, houve ali aqueles arranjos todos, mas que eu não tinha conhecimento, o quarto tinha telefone, mas só que quando finalmente a criança saiu… embrulharam-na e levaram-na embora… e eu fiquei, pronto… não fiquei bem, mas... mas sempre a pensar assim “eu não adormeci”, portanto sempre ali, por causa da defesa e o Zé telefonou e… eu só disse, ele telefonou, para saber se eu estava coiso, ligou para lá, não sei se sabia alguma coisa, se não sabia, não sei o que se passou, pronto, telefonou e eu disse “se puderes, vem cá”, era um risco, se ele pudesse vinha, se ele não pudesse não vinha, mas ele foi, no outro dia, foi lá. Eles trouxeram a menina para dar mama, mas a menina vinha sempre arranjada, portanto, vinha sempre toda tapadinha e era só para dar mama e depois levavam-na outra vez, eu nunca tinha estado num hospital, pensei que era normal, não sabia, mas depois eu também quis ver a menina… e eu estive assim “opá, desembrulha a menina, porque há qualquer coisa que não está bem” e agora imaginem vocês… desembrulhamos a menina, toda, e vimos a menina como estava… sem os pés, cabeça e tudo… e o Zé disse assim “vamos mandá-la para a União Soviética”, logo ali assim naquela altura, lembras-te? “Vamos mandá-la para a União Soviética”, pronto. Estive lá três dias, estive lá quatro dias, era para estar três, e ele devia de me ir buscar… e entretanto houve uma gripe, tiveram gripe, já não sei qual era a gripe, porque ele tinha ficado com a mais pequena e com a Georgette Ferreira. E então fiquei mais um dia, porque ele não me foi lá buscar, nem me foi buscar, nem me disse nada e eu pensei assim “pronto, eu não sei o que vai ser de mim, mas alguma coisa há de aparecer” pronto, nada. Depois, sim senhora, foi ele, apareceu, tal, tal… mais ossos para roer. Não podíamos sair do hospital sem registar a criança, mas saímos, quisemos pagar e aquilo não era assim, portanto, nós tínhamos que dar a morada de Lisboa, depois eles faziam as contas e tal, tal, tal… depois mandávamos e etc., pronto, ali assim… lá começou lá a falar… lá fizemos, recebemos o recibo e ele pagou e quando pagou… [corte] pronto, o Zé pagou, não sei como é que ele fez, eu tinha a criança ao colo, pronto, fui-me embora para casa e acabou a história da Lisa e do segundo parto.
Entrevistadora - Mas foi para a União Soviética?
Faustina Barradas - Não foi para a União Soviética. O médico falou comigo, disse que tinha que ligar as pernas, a pouco e pouco, ir separando a perninha, porque tinha as duas peles, portanto, ela estava completa e, portanto, fazia tratamento, fazia fisioterapia, que não se fazia na altura. Entretanto a médica, que me tinha acompanhado, ficávamos grávidas, tínhamos assistência médica, tínhamos um médico que ficasse mais perto da nossa casa, portanto, havia camaradas que tinham outros contatos, mas cada caso é um caso e, portanto, a médica mais perto da nossa casa foi a que, é que viu depois a menina, que acompanhou, e o marido dela, era médico de crianças, de maneira que automaticamente a Lisa começou a ter as consultas do especialista, pronto, e aí tive a ajuda, e ele ia-me dizendo sempre, sempre, sempre como é que era, a Lisa começou a andar pouco tempo antes de nascer a Valentina, porque ficou… as ancas também estavam mal, andava assim com o rabo no chão, com as pernas para trás e arrastava-se e foi durante mesmo muito tempo, e até aos 13 anos teve o calçado ortopédico… foi assim um bocado... pronto. E uma pessoa aí fica a saber, portanto, o primeiro parto uma maravilha, o segundo parto veio-me muitas coisas à cabeça, porque a criança não estava normal, e depois… o que nós sabíamos que se dizia de uma criança e dos pais de uma crianças, “ai coitadinho, nasceu assim, Deus nosso senhor mandou assim, valia mais que não tivesse nascido” e etc. etc… e não é verdade, esse sentimento das mães… mais uma experiência, não é verdade, tive sempre esperança, sempre esperança e fui sempre fazendo… e a Lisa ficou uma miúda linda, que tinha 2 anos, numa das consultas e o médico para a mulher, que era a Manuela, e diz assim “olha, esta menina vai ser a Miss da Senhora da Hora”, porque ele media-lhe o esqueleto todo, os ossos todos, e ele fazia… são daquelas coisas, que vão passando… mas que passei por isso, portanto, passei por ter uma criança… mas passou. E eu fiquei um bocadinho mal e fiquei assim com um jeito da coluna, que não foi ao sítio, porque antes tinha sido… o processo normal não se fez e depois fiquei grávida. Da primeira, dessa, foi com os cones, deixamos os cones etc. etc. e passado pouco tempo fiquei grávida, com o quê? Com a pílula, porquê? Porque o primeiro mês não conta [risos], pronto e foi, de facto, uma exceção. Três partos… e mais uma experiência, de uma mulher, que foi… ou não nasce a criança ou a gravidez não vai avante, ou separar-me da mais velha, porque três filhos pequeninos na clandestinidade não se consegue, quer dizer, só em casos especiais, cada caso é um caso, mas… portanto. E foi posto o problema, foi posto o problema… e aí tomo, eu, mulher, consciência do que eram os abortos. E, ainda hoje, digo que… disponibilização, sim, sempre, sempre, a mulher a escolher, sim, sempre, porque é tudo muito complicado, cada um tem a sua opinião, mas no fim, mesmo no partido, com camaradas esclarecidos, as coisas não são tão fáceis como isso, as camaradas responsáveis, sim, caso fique és tu que decides, o Zé Carlos dizia… mas sim, mas sim… e foi preciso ser uma mulher e pôr os pratos na balança. As crianças, nós tínhamos que, e sabíamos isso e eu sabia desde sempre, estava preparada, não é, sabia que os camaradas, sabia que era assim, naquela idade, e por 5 ou 6 anos, tinha que… as crianças tinham que ser entregues, ou iam para fora, quem os pais não tivessem… a família não tivesse condições, ou ficava com a família, portanto, quem escolhia também normalmente era a mãe, pronto. E eu comecei a pensar, quer dizer, se eu me tenho que separar dela, portanto, ela tinha 3 anos, tinha feito os 4 anos mesmo, foi em fevereiro e foi-se embora em março, portanto… tinha 3 anos na decisão que tínhamos com a menina… Separar-me da Catarina, portanto, mandar a Catarina mais cedo, porque mais um ano menos um ano eu tinha que me separar dela… e não fiz o aborto, não fiz… [silêncio] e é uma coisa que ninguém devia estar presente, ser obrigada… porque logo que ficamos grávidas, sem querer, já estamos penalizadas, já estamos condenadas e, portanto, não é uma coisa de teoria, é uma coisa mesmo… de sentir e que, de facto, têm a ser as mulheres e as jovens, acompanhadas, acarinhadas, pronto, é uma coisa que ainda não está, ao fim deste tempo todo, ainda não está. Foi um problema que também se pôs, portanto, mais um problema ultrapassado, que foi o de... primeiro a criança, depois à outra fazer o aborto... portanto, mais… era tudo coisas, era experiências todas novas, passei por essas experiências todas. Pronto, então acabamos aqui, porque a seguir… o Zé já falou, portanto, nasceu a criança, ficámos com as três, separei-me da mais velha. Ao fim de um ano e tal tivemos a notícia que ela tinha morrido… a minha filha mais velha… que tava com os avós, não morreu, mas as notícias vinham tão atrasadas, tão atrasadas, tão atrasadas… ela tinha entrado no hospital, três meses antes, três meses antes, sim, três meses antes… depois chegou a notícia de que ela tinha morrido… depois o Zé deu as voltas que tinha a dar, que não sei como nem como não e pronto e ficamos a saber que não. Agora eu vou vos dizer, como é que eu… não podia chorar, já morava em Espinho, não podia chorar… porque tinha as duas meninas pequeninas e… enquanto o Zé chegou, que foi dia e meio… eu estava naquela coisa de… a menina morreu… pronto… e isso, eu vou-vos dizer, minhas amigas queridas, fica… uma coisa tão grande, tão grande, tão grande… que ela tem 57 anos [emociona-se] e eu olho para ela e… pronto, eu não sei explicar, mas de facto… em psicologia… eu acho que até tinha precisado de ajuda… foi tudo ultrapassado, passou, pronto, e já está… mas tivemos essa notícia. Portanto, os nascimentos… as crianças nascerem… depois o problema dos abortos… e depois o problema da… e eu disse ao partido, creio que foi a primeira, não é exigência, pedido, que eu fiz aos camaradas, pronto, “agora que sabemos que está tudo bem, eu quero ver a minha filha” e, entretanto, os meus pais tinham sido presos e já estava em liberdade, o meu pai teve 4 anos e meio em… Peniche, e a minha mãe tem uma história muito, muito, muito complicada, mas eu depois… digo-vos, porque sofreu muito e ela saiu da cadeia para morrer… e felizmente não morreu e, portanto, teve quase 2 anos, presa, em Caxias, e é ali já um outro capítulo, mas… vamos terminar por aqui e eu pedi ao partido se podia vê-los… com todos os camaradas que conheci, os camaradas… não, são diferentes, desculpa lá, dos camaradas que eu conheci, pronto, e pus o problema… e fizeram tudo. É que... vocês conheceram alguns, eu tive a felicidade, conheci muitos, mas eram homens extraordinários, humanos, ajudar… eram homens extraordinários… e… fiquei na… pronto, fiquei naquela fase, veio a resposta e veio a resposta, sim senhor, “vais ver a tua filha”, marcaram um encontro… íamos para Fátima, que naquela altura, ainda era a guerra e é um sítio onde não perguntam quem vem de onde e quem vem para onde e, portanto, alugamos um quarto por uma noite e quem aparece? Aparece o meu pai, a minha mãe, a minha filha, os meus dois irmãos…
José Carlos Almeida - Em Fátima? O teu pai não foi…
Faustina Barradas - Ó Zé Carlos, desculpa lá… pronto, e os meus dois irmãos… o meu irmão tinha 14 anos, quando eu saí, o mais novo e o outro tinha 19, quando me apareceram os dois, o mais novo tinha barbas e era mais alto que o mais velho e eu não sabia qual era o mais velho e o mais novo, eu não os conheci [risos] e pronto. Foi um encontro… que me… fez respirar e fez aguentar… e foi até o 25 de abril. E havia uma experiência que eu não tinha, fiquei com uma, felizmente, nunca fui presa, mas havia uma que eu não tinha, que era do marido também ser preso... e também passei pela prisão do marido, sem saber quando é que o havia de ver [risos], pronto. Estamos em… estamos em 74, pronto, chegamos a 74, o resto… fica para depois! [risos]
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