Memória dos Brasileiros
Depoimento de Emília Ramos da Anunciação Pires
Entrevistada por Thiago Majolo e Antonia Domingues
Inhai, 3 de Agosto de 2007.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_034
Transcritora Samira Nagib
P1 – A gente vai começar então, queria que você me dissesse seu nome completo.
R – Emília Ramos da Anunciação Pires.
P1 – E nasceu quando?
R – Dezessete de agosto.
P1 – Em que cidade?
R – É cidade, lá em Ansique né, na roça mesmo. Não foi na cidade não. No município de Senador Mourão.
P1 – E da onde surgiu esse apelido de Miliú?
R - Eu não sei como surgiu, eu pequeninha, ai eu chamo Emilia, então ficou Miliú. Então, todo mundo me conhece como Miliú, aqui na comunidade e então, varias pessoas que conhecem como Emilia, quando vou reconhecer algum documento, fala assim: por que te chamam de Miliú e seu nome é Emilia? Então eu falo, num sei, é apelido. E foi assim que ficou, como Miliú.
P1 – Ninguém te conhece como Emilia.
R – Não. É poucos que conhecem como Emilia, é mais a Miliú. Todo mundo chega na porta “ô Miliú, ô Miliú” eu já sei e vou lá atender.
P1 – Então tá Miliú, vou te chamar de Miliú.
R – Tá jóia.
P1 – Qual o nome dos seus pais?
R – José Bonifácio Fonseca, é José Bonifácio Anunciação. E minha mãe Maria da Conceição Soares.
P1- Eles nasceram por aqui também?
R – Minha mãe eu acho que foi sim aqui em Inhaí, e eu não tenho muito certeza, porque antigamente a gente nem, coisa que bem anos, quando não pegou assim os documentos pra nem saber certinho. Agora meu pai, eu também não tenho, mas é tudo nessa região de Inhaí.
P1 – E o que eles faziam?
R – Lavoura.
P1 – Lavoura? E o que eles plantavam?
R – Tudo de lavoura, cana milho, mandioca, feijão, arroz. Tudo plantava, tudo.
P1 – Mas eles vendiam ou...
R – Vendiam. Trazia aqui pro comercio, e vendia. A venda muito fraca, mas conseguia vender um pouquinho.
P1 – E quantos irmãos eram na sua casa?
R – Somos nove irmãos. Somos nove irmãos. Assim, minha mãe perdeu em aborto, mas não são contados. Mas o que viviam dentro de casa, era nove, são nove irmãos.
P1 – E como era essa infância, muita bagunça com nove irmãos?
R – A nessa época, era tão assim coisa que a gente não mexia era na lavoura, dava assim de manhã e todo mundo partia pra lavoura com os pais, só chegava à tarde. Então não tinha tanta bagunça assim, não era serviço, não tinha tempo de bagunçar não. Porque nessa época, os pais eram muito assim, queria que os filhos mesmos trabalhassem, não tinha folga que nem hoje, tem até mordomia de lazer, de brincar de bola, brincar de peteca. Não tinha, nessa época minha não tinha não. É por isso que acho que eu nasci, criei e vivo com isso, porque os outros mais novos, meus irmão já não aceito, então nós que fomos os mais velhos, que já aceito isso com os pais, quando foi os irmãos mais novo, já viu crescendo e já não quis ficar no ramo que tocava, já saiu pra fora, já foi trabalhar, foi pegar outro serviço, porque nessa época, trabalhava mas a gente não via nada. Não tinha nada, até pra comprar uma roupa, era dificuldade. Pra comprar um chinelo, tinha de fazer aqueles chinelinhos de couro pra por no pé. Pra poder, hoje ta tudo bom. Hoje trabalha mesmo, que nem eu to cuidando dessas netas mesmo, eu mexo aqui na lavoura, no engenho aqui, mexo na roça, mas elas ficam aqui, porque eu quero dar o estudo pra elas. Eu nem pude estudar mesmo, Deus apertava mesmo. Tinha que trabalhar, mas a gente criou isso. Mas fez isso.
P1 – Mas não tinha escola ou não dava tempo?
R – Tinha escola, mas morava lá perto de Senador, então tinha as férias, a gente ia embora pra lá. Havia época, o rio tava cheio, não tinha passagem. Então nós morava nessa casa ai que vocês estão vendo, que são de meus pais, a escola era ai, em Inhai nós estudava ou não tinha como.
P1 – Mas como era Inhai nessa época.
R – Ah Inhaí era, não era igual como é agora não, agora melhorou cem por cento, era terra, não tinha asfalto, era tudo cheio de mato, quando você chegou ai não viu que tem uma pracinha ai tudo cheio de mato, e a estrada que vocês vieram, não era aqui. Passava por São João da Chapada, aqui por dento de uma mata aqui. Não era essa estrada como agora não. Melhorou cem por cento. Inhai era tipo uma roça mesmo. Você chegava, era rancho tudo, poucas casas eram de ipê, todas era de pindoba. A maioria era tudo de pindoba. De pau assim. Pindoba é tipo assim, você não viu os coqueiros ai? São tipo coqueiros. Então corta assim a pindoba e lasca ela, e põe assim as três as três, e vai amarrando assim no telhado, tipo um telhado. Então era muito difícil, hoje melhorou cem por cento. Mas muitas pessoas já nem aceita que o lugar aqui é muito difícil pra nós. Muito difícil mesmo. Nós vivemos aqui pela graça de Deus e disso, porque não tem recurso não, não tem indústria tudo. Aqui em Inhai, era cheio de muitas famílias, esse ano mais de quinze famílias foram embora. É por causa de serviço, não tem serviço pra trabalhar não. Aqui o ramo é garimpo, o garimpo também. Com esse parque aí também, muita coisa. Então o pessoal está indo embora. Como diz o povo ai, quem vai ficar é os pensionistas e os aposentados aqui em Inhai. Mas não tem jeito não.
P1 – Quando você era pequena, tinha ainda muito garimpo aqui?
R – Tinha. Ai tinha garimpo, era liberal. Todo mundo que tocasse o garimpo. Agora não pode, agora não pode não.
P1 – E encontra muita coisa ai?
R – Encontra. Ouro, diamante, né. Tem o cristal agora né. Agora mesmo tava tirando pra sobreviver às famílias os cristais, veio a policia e embargo tudo. Prendeu um bocado, estava tirando pra vender pro pessoal manter as famílias e não pode. Então fico tudo preso, por causa do pato ai. Depois desse pato, acabou com tudo ai, agora piorou mesmo.
P1 – E como é que é, seu pai fazia lavrador e sua mãe garimpava de vez em quando?
R – Garimpava. De vez em quando garimpava, tinha umas criaçãozinhas, mas depois acabou tudo também. Ele faleceu e acabou tudo.
P1 – Como é que era se precisasse de um médico, ai tinha que ir até lá na cidade.
R – Era difícil. Era Deus mesmo que era o médico nosso. Cai, tossia, daí tomava remédio do mato, e Deus abençoava que melhorava. Mas era difícil, difícil mesmo. Até pra nós aqui mesmo tem ambulância. Mas se o paciente adoecer, tem que estar com os quarenta reais na mão, porque senão, não leva não. Que todo lugar ai tem ambulância que socorre da prefeitura e aqui não, é particular. Então é difícil demais, aqui em Inhai.
P1 – Como é que era a vegetação. Está diferente?
R – O rio?
P1- É, as árvores, tinha mais, tinha menos.
R – Mais mato, mais colhido. Com o garimpo, destruiu muita coisa, tinha muita margem bonita mesmo, mas agora, destruiu tudo.
P2 – E quem destruiu?
R – O garimpo, né?
P2 – Mas como é que é...
R – O garimpo vai, tem as lombas, as máquinas, e as mata que tive, elas vão roubando tudo pra cavar a terra e pra tirar o material. Então vai destruindo tudo. Agora que veio esse IBAMA pra cá, ele cortou os garimpos por causa disso, por causa da natureza, destruía a natureza. Mas destruía, está até certo, porque a gente sabe que não podia destruir a natureza, mas o comércio tinha que correr atrás de uma indústria pro pessoal poder trabalhar dentro da comunidade. Então fica ai, muita família foi embora, por causa disso. Porque não tem como eles trabalhar pra sobreviver.
P1 – E com que idade a senhora começou a trabalhar?
R – Desde os dez anos. Aos dez anos eu já fazia comida, já levava comida pro pai na roça. Usava nem marmita, era aqueles caldeirão de ferro pesado. Punha na cabeça, punha assim os caldeirão na cabeça e punha na gamela de pau né, tipo assim, mas era redonda. Ai punha tudo os caldeirãozinho de ferro e chegava lá tudo com o pescoço duro de ficar com aquilo lá na cabeça. Desde os dez anos que eu venho nessa luta. Desde os dez anos, hoje eu estou com cinqüenta e cinco.
P1 – E era longe...
R – Era longe. Bastante longe da roça. Chegava cansada.
P1 – E qual era a comida que levava?
R – Ah era, você conhece “maringondó”? Era um mato, um ramo que dava no mato, então a gente ia assim que dar na roça, não que roça essas plantas nascem então chamam de “maringondó”. Então a gente pegava, cortava, congava, mexia angu, abóbora, arroz, macarrão. Nem existia carne não. Só se a gente criasse assim um porquinho, matava, ai tinha carne, ou então criava as galinhas e matava, senão não existia carne não. É a luta mesmo. Tinha vezes que o rio enchia e não dava pra passar pra vim buscar o alimento aqui no Inhai. Quando a gordura acabava, a gente saia no mato e apanhava coquinho, coco quebrava e punha na água, depois socava no pilão e punha na água pra tirar a gordura pra fazer comida. Foi sofrida minha vida mesmo. Agora hoje, nem passam por isso, os netos né, todos os irmãos mais novo não passou a vida que eu passei. É, foi vida sofrida mesmo. E até hoje vive lutando.
P1 – Que mais que você fazia pra levar comida pra roça, ajudava na casa, que mais assim.
R - A casa lá era rancho de pindoba, pau a pique, de barro, hoje que existe adobro, boca, essas coisas, cortava madeira e ficava assim punha, trançava a varinha e enchia de barro. Então não tinha nem na roça não tem nem como ter assim armação de casa, mesmo, e não tinha cois,a não, a gente ficava naquela mesa, era só roça e mais nada, dorme tarde e cansada e no outro dia levantava cedo e pegava a enchadinha. A mão até calejada, agora a pouco tempo está acabando, minha mão ainda é calejada de enchada até hoje. De sete até as quatro da tarde capinando no sol quente. Hoje eles me atentam assim “tira esse lenço da cabeça” e eu falo “mas eu nasci com, me acostumei foi com o, põe o lenço na cabeça, se você fica nesse solão quente, era de sol de sete as quatro eu trabalhando na enchada. E eu pra essas coisas de lavoura, de enchada, é machado, é foi, tudo eu pego. Agora que eu to nessas idades, que o corpo já não está agüentando mais. Que eu tenho problema do braço, está doendo muito, a perna, a coluna sai do lugar. Tem dias que eles me deram até a mão pra entrar lá dentro. Que eu estou mexendo naquele forno, não agüento mais. Mas é sempre lutando, porque não tem como. Meu marido está com sessenta e quatro anos, é aposentado e eu não estou aposentada. É difícil, a gente luta mesmo e pedi a Deus pra dar força pra gente agüentar e levar essa vida.
P1 – E com que idade a senhora ficou na casa dos seus pais?
R – Fiquei na idade até os dezoito anos. Aí eu já casei e já veio os filhos, ai eu já precisei vir embora, pra dar o estudo pra eles, já vim morar. Comprei uma casa lá encima, muito lá encima. Compramos essa daí, e comprou assim, tudo caindo. Aos poucos, poucos, poucos, nós fomos reformando e pelo jeito que está ai, mas não acabou não. Foi como dezoito anos que eu saí. E tive que arrumar, pra por os filhos na escola.
P1 – E quando foi que a senhora conheceu seu marido?
R –Quantos anos? Foi com treze anos, lá na roça assim, como dizia que dia primeiro não é igual a hoje, que os namoros está tudo avançado. Os pais não deixavam nem sentar juntos pra conversar, era só chegar na porta e olhar e voltar pra trás. Não podia assim conversar pessoalmente mesmo. Ai quando foi com dezoito anos, que nós casamos. E ficamos lá na roça, como eu falei pra vocês, que eu tenho esse engenho aqui e tenho uma fazenda que eu moro que o fazendeiro contratou a gente, está lá. E eu planto a mandioca, planto milho, feijão, só não estou mais plantando arroz porque a área acabou lá. Mas crio minhas galinhas lá, tenho minhas galinhas, então eu não posso levar meu engenho pra lá porque, justamente lá não tem luz. É um lugar sem recurso. Então, até pra isso é ruim, que eu tenho que pagar o carro, sessenta reais pra trazer, pra trazer a mandioca pra mim pra fazer farinha. Então eu faço a farinha, e vendo. E tiro o dinheiro, pago o carro e o que sobrar que eu vou fazer...
P1 – Me fala uma coisa, tinha muito tropeiro aqui quando você era pequena?
R – Olha, tinha. Mas eu não me lembro não. Ficava mais pra lá, mas tinha uns tropeiros que vinha. Meu pai fala “animal com carga”, essas coisas. Não foi no meu tempo não. Tinha sim, mas não foi no meu tempo não.
P1 – E depois que a senhora casou, ainda foi trabalhar com roça ...
R - Ainda trabalho até hoje. Meu marido empregou na, já ouviu falar na Tijucana? De novo, meu marido trabalhou uns tempos, uns anos. E eles trabalhando pra lá na Tijucana e eu aqui com os meninos, plantei roça em vários lugares, aqui do centro aqui. Mas sempre que dava um ano, a mandioca já estava grandinha ali coisa, vinha os donos da terra e embargava, não vai plantar mais. Largava tudo pra lá e ia pro outro canto, até que o moço ai da fazenda me chamou que eu estou lá. Tem dezessete anos que eu estou lá dentro. Isso ai, eu fico lá a vontade, eles me dão oportunidade mesmo de trabalhar na terra. Mas agora vem a idade e a gente já não está agüentando mais. A gente quer ver se planta mesmo bastante, mas só vai diminuindo, porque as forças estão acabando. A gente não agüenta, e não tem aquele conforto pra gente, muitas pessoas não dá aquela força pra gente pra preparar a terra pra gente e tudo é braçal. Tudo é por dentro de enchada e os braços mesmo. Não tem jeito. Porque aí pra fora a pessoa tem uso maquinal, prepara a terra pra plantar, o negocio aqui é braçal mesmo.não tem ajuda de nada.
P1 – Quando foi que a senhora começou a fazer farinha assim...
R – Na companhia de meus pais. Desde idade que comecei a fazer a comida, foi idade de dez anos, e comecei a trabalhar mesmo assim pesado, foi com idade de treze pra quatorze anos, que eu já peguei a ajudar meus pais, a mexer com rapadura, com farinha tudo, eu mexi.
P1 – Seus pais faziam farinha?
R – Faziam. Tinha um engenho lá, um engenho até tocado a água. Igual eu comecei com esse aqui mesmo, o forno não é ai não, o forno era aqui. Eu fiz um forninho miudinho. Ai enrolava no ralo, punha assim uma vasilha, você já ouviu falar no ralo, né? Pegar numa tábua, furar o folhão ai e pregava numa tábua ali e enrolava assim com a mão. Depois não estava dando conta, porque eles gostaram muito da farinha. É, todo mundo querendo, e eu não dava conta, o forninho miudinho demais. E eu peguei e comprei essa máquina ai que era braçal, então ela não era de coisa assim, era de roda e a gente observava a gente rodando e foi indo, até que eu também não agüentei mais. Ai veio o moço, que é até vizinho meu, veio e olhou e disse “oh, você não vai dar conta disso, você não vai agüentar essa coisa não porque...” ai foi e preparou ela pra mim, e foi pra Diamantina e botou esse motorzinho que tem ali pra mim, ai favoreceu ainda mais pra mim, né. Que ai se não fosse ele, não agüentava do jeito que eu estou. Comecei no ralo, a braçal assim e eu não agüentava. Os braços não davam mais...
P1 – Então você aprendeu com os seus pais?
R – Com meus pais. Nasci e criei minha roça. Então meus irmãos todos foram embora, só ficou eu aqui. Uns estão pra Belo Horizonte, todos estão pra Belo Horizonte. Só eu que fiquei aqui porque eu não gosto de cidade. Belo Horizonte fui uma vez pra lá porque meu filho casou lá e eu fui. Diamantina só o que precisar eu vou lá fazer alguma consulta e venho, mas é mais aqui na roça não saio.
P1 – E você faz farinha de milho, mandioca...
R – Não, farinha de milho, não. Tem assim, colhe o milho e tem o moinho de água aqui na região de baixo, então a gente prepara o milho e vai lá e troca por fubá. É, troca nas medidas. Então vai lá e entrega o milho e recebe o fubá. Agora eu mexo mesmo só com a mandioca. Tem sabão também que eu faço sabão também, só não vendo. Só pra manter ajudar as despesas. Porque se não for assim, a gente fazer o mínimo, não dá pra gente viver, não dá mesmo. Coisa que eu faço aqui mesmo é pra ficar meu marido tem, ele não é aposentado como já falei. Paga INSS setenta e seis todo mês. E eu pago meu sindicato, que eu mexo na área rural também pra minha aposentadoria tem que pagar. E então tem que fazer essa economia. Tem os telefones, que a gente tem que ter um conforto dentro de casa, porque tem a família, né. Então tem que manter esse conforto dentro de casa. A luz tudo, a gente paga. A água tudo a gente pagar. Ou então o que eu faço fica só nisso. Só isso. E no mais, fica os filhos de Deus, que tem muitas pessoas caridosas. No comércio, vê minha dificuldade e me dá uma força. Alguma roupa, alguma coisa, e vão me dando pra poder ajudar. Se não for isso, a ajuda do povo, das pessoas que são muito caridosas na comunidade, a gente não dava conta não.
P2 – Dona Miliú, conta uma coisa aqui pra gente. Pra que serve cada um desses equipamentos que a senhora tem. Fala pra mim, pra fazer farinha, que precisa pra fazer a farinha de mandioca.
R – A farinha de mandioca? É mesmo a mandioca e a lenha. A lenha e só. Bem ali, eu pego e trago a mandioca da roça, montou ali ai vem uma por uma rapando. Aí vem rapando uma por uma. Aí eu venho ali e ligo a mangueira ali e ponho ali e tem uma cordinha lá, que ponho a mangueira e ponho dentro de um carrinho, e lavo uma por uma, e jogo ali dentro daquela prensa. Daí dentro daquela prensa, vem uma por uma dentro desse motor aqui. Aí na hora que acaba de sevar, que a massa cai toda dentro dessa vasilha aqui, eu pego ali os tambor e encho um saco desse de plástico. Vou enchendo o saco. Ali vai um por um. Pode por até cinco ou seis sacos dentro dali daquela vasilha que está ali. E agora vem o ponto ali que estão ali naqueles paus, tampa ali e ali vem os pedaços de paus desse tamanho e põe ali, ai dentro e vem, tem um arame, aquele ali que vocês estão vendo ali, põe ali, põe ali encima e vem com essas pedras, uma por uma encima. Os braços, tem dia que se não tiver meu filho que vem do serviço me ajudar, agora eu já não estou agüentando suspender mais esse varal mais....Deixa eu ir explicar pra vocês direitinho. Aí tem a pedra, põe a pedra. No outro dia, ali a água cai todinha ali dentro daquela coisa, e eu paro com a vasilha, que essa vasilha, essa goma que cai eu já tiro. Eu já vou e já ponho pra secar e faço biscoito. O biscoito quebrador. No outro dia, tira esse saco, passo aqui pra poder passar a peneira, que não está dando mais conta de peneirar porque quebra muito. E venho e passo a massa toda ali dentro, dessa bulinete. E ali tem esse forno de secar e o outro de passar. Ao passa em um e seca em outro. Ai é o fogo. Tem que controlar os fogos. Porque se for muito fogo no inicio, a massa sai da linha e vai pra li. Se não saber controlar os forno, ela gruda toda. Que dá farinha é grossa. Então tem de ser em fogo lento, vai mexendo com aquele rodo ali, até ela afinar. Quando ela tiver já no jeito de jogar no fogo quente, ai agora você pode aumentar o fogo. Ai agora ela vai torrando até ela secar e virar pó.
P2 – Pra que tem dois?
R – Dois. Um de passar que a massa sai molhada, a gente passa com o forno frio e a outro de secar que é o forno mais quente.
P2 – Pra que serve a de passar?
R – Pra passar? Pois é, pra poder num, se for no forno quente, ela gruda. Então tem de se passar ela pra poder secar aquela aguinha que fica, aquela aguinha que fica na massa, pra poder passar pro outro. Porque ainda sai dali com água, então tem de ser com o forno lento pra primeiro ir passando, passando até ela virar aquele, quando você aperta assim, aperta e ela abre toda na mão, você já pode jogar no forno quente. É muito difícil pra fazer, dá trabalho demais pra fazer isso. Se for querer fazer uma farinha boa. Agora se for querer fazer a ruim e não der aquele pozinho, aquela coisa, num instantinho se faz. Taca fogo no forno e ajunta tudo ali. Aí não é farinha, é beiju. E ai já não rende também na massa, já não rende.
P2 – Tem dias que sai melhor...
R – É, tem dias. Mas sempre a minha farinha, sempre é igual. É que eu tenho amor por fazer mesmo. Na véspera da festa vocês chegam e já não tem mais nada ai. É procurada. É procurada mesmo. Igual eu falei, nos Estados Unidos, tem essa menina que mora lá nos Estados Unidos e nos dias que ela está pra vir pra cá, ela já liga pra cá e “deixa minha farinha”. È pra São Paulo, pra Belo Horizonte, tudo. Minha farinha é procurada.
P1 – Tem algum segredo pra esse preparo todo cuidadoso. Tem alguma outra coisa, que acha que é especial a farinha, pra tanta gente procurar. Por que será?
R – Uai, eles procuram porque dizem que é muito boa a farinha. Gosta muito da farinha. Porque tem muitos por aí que fazem aquela farinha grossa. Eles têm de tornar a peneirar elas outra vez. Tem muitas que escorra e deixa aquela crueira. E eu já preparo pra ter de o mais o trabalho de ter de passar na peneira e já sai ai do forno do jeito. Então é por isso que eles gostam da farinha, porque é um dinheiro que eles entrega pra mim e eles recebe a mercadoria. Não precisa mais de ter, é puro.
P1 – Dona Miliú, voltando um pouquinho agora o processo, a senhora planta também mandioca também.
R – Planto. P1 – E como é que faz pra plantar uma boa é, tem uma época ou cuidado?
P1 – Na época mais, nós plantamos na entrada das águas, de outubro a novembro. Porque quando tem a irrigação, tudo bem né. Quer dizer, molha ali a terra. Porque se plantar do jeito que a terra está ai, ela não pega. Porque a terra é muito seca. Então, nós plantamos mais na entrada das águas. Quando vem a chuva, molha a terra. Você vai e já está pronto. Pra ela pegar toda. Porque, pega e nós plantamos os pedacinhos. Abre a cova no chão e joga um pedacinho lá e joga terra. Ela molhada, ela brota ali e pronto.
P1 – E quando que colhe.
R – Ai é de dois anos, a um. Conforme seja a terra, se ela gostar bem da terra, é um ano e meio, mas provavelmente de dois anos a três, pra poder render. Ai já pode desmanchar ela, já pode arrancar pra poder fazer a mandioca.
P1 – E quando que sabe que está boa?
R – A raiz grossa, né. A raiz está grossa, a gente arranca o pé e vê as mandiocas grandes e grossas, então já está no jeito de fazer. E com dois anos também, conforme seja, pode desmanchar a mandiocão mesmo que já está pronto pra fazer.
P2 – E a senhora tem revezamento de terra aqui, uma está nascendo e a outra colhendo.
R – Tem, tem. Tem assim, todo anos nós plantamos. Agora esse ano, nós nem sabe se vamos plantar não, porque a idade está chegando e a gente nem sabe se vai agüentar mexer na lavoura. Mas não deixar de plantar, a gente não deixa não. Nem que seja pouquinho. Agora principalmente que ele vai colocar luz pra gente lá, ai vai ser melhor, que eu levo minha coisa pra lá e não vai ter tanta despesa de eu pagar ali pra o caminhão vir e época do rio, que nós moramos do outro lado do rio e essa ponte que vocês passou aí, então essa ponte, esse rio desce, é pertinho da onde eu moro. Lá embaixo, é pertinho. É aqui nessa ponte, vocês não passou por uma ponte?
P2 – Mas qual que é ....
R – É logo pra chegar num povoadinho, uma igreja. Esse rio ele desce e fica lá, passa perto. Enche mesmo e não dá passagem não. Ai nós passa perto lá de Maria Nunes, desce e sai a cá. Nessas estradas mesmo que vocês vieram, e a pé.
P2 – Qual que é o nome do rio? R – Ah, fala que é Catemirim. Fala Catemirim.
P2 – E tem muita água?
R – Agora não. Agora na seca, não tem, não. Fica pouquinha água, mas quando está nas águas, enche e não dá passagem não. A pessoa fica presa do outro lado.
P2 – E vocês irrigam assim, ou a planta e deixa crescer?
R – Planta e deixa crescer. Porque não tem o que a gente fazer uma irrigação, não tem. Aquele lugar seco e alto, lá eu tenho lugar mais úmido, é onde eu planto minha horta, planto alho, e uns leguminhos que eu planto lá. E nos mais é assim. A fazenda tem mais é pastagem.
P2 – Que terra é essa que a senhora planta. De quem que é a terra?
R – É a fazenda do João Pedro. Ele me dá muita oportunidade, até se não fosse ele, ele bateu o contrato comigo lá, já faz dezessete anos até o contrato final chegar na época da minha idade pra me aposentar. Porque se não for por isso, eu não me aposento. Tem que ter uma aprovação no terreno como eu plantando pra ele lá. Então é isso. Fez um contrato pra mim faz dezessete anos que eu moro lá. Mas não importuna eu com nada lá, não posso mais porque não estou tendo forças pra lidar na terra. Não tem uma ajuda.
P2 – Qual foi o contrato da senhora. A senhora dá um pouco de farinha pra ele.
R – Não. Ele fez assim uma casa na roça bem confortada pra gente. Só não tem a luz, porque eles, o povo veio e falou que logo ia trazer a luz. E até hoje não foi. Mas lá, a casa pra gente é confortável. Então eu planto, planto a meia com ele, então na hora que tiver as coisas, eu divido com ele, certinho. Mas as outras particulares, horta, galinha, esses trens que eu crio por fora, ele já é pra mim mesmo. Ele só me dá a oportunidade na terra pra plantar.
P1 – Me fala uma coisa Miliu, desde plantar mandioca até virar farinha demora três anos?
R – Demora, demora. Demora dois ou três anos pra desmanchar uma mandioca. Só plantar esse ano, ai agora quando completar ano e meio, dois ou três, que eu vou desmanchar. É por isso que a gente gosta de plantar variado. Porque não hora que uma está chegando, a outra até acabar que desmanchar aquela que já está completando pra fazer a farinha, quando acabar aquela, você já vai desmanchando. Então você não fica sem poder fazer a farinha.
P1 – E depois de colher, demora quanto o processo de ralar, até virar a farinha, demora quanto tempo? Um dia, dois dias...
R – Uai, dois dias quase três. Dois dias, porque hoje eu coloco aqui a mandioca, e vou preparar a massa. No outro dia que eu vou só torrar. Mais de dois dias, porque entre pra noite, tem dias que eu saio daqui é uma hora da manhã, mexendo porque, se eu for largar a massa aí, muito ar, ela vai azedar. A farinha não fica boa, fica azeda. Então a gente tem que preparar ela antes de ela azedar pra ficar uma farinha boa. Leva uns dois dias.
P2 – Quantas vezes por ano a senhora faz farinha?
R – Essa semana que eu estou parada, porque duas semanas que eu estou parada, porque problema do braço. Que eu não estava agüentando nem suspender o braço e a coluna saiu do lugar. Eu fui em Diamantina e eu estou parada. É que essa semana, semana direto que meu filho está parando. Entra mês e sai mês. Costuma e eu colocar mandioca no engenho ai, é de segunda a domingo, de domingo a segunda. É direto mexendo. Agora que eu estou parada que eu estou descansando, que eu estou tomando uns remédios. E a pressão também não estava muito boa, estava alta. Então eu estou fazendo repouso um pouquinho. Mas igual eu falei pra vocês, se desse, amanhã ou domingo, eu já estava com ela aqui mexendo. Porque vai vir pra mim, pra chegar pra mim ai. De domingo em diante, já vou mexer com a farinha, se Deus quiser.
P1 – E os fornos são feitos do quê?
R – Pedra. P1 – Que pedra que você faz. Sabe que pedra que é?
R – Pedra mesmo. Comum mesmo, legitima. Porque tem essas pedras mesmo que tira pra fazer calçamento na cidade, essas já não servem. Elas já não agüentam o forno. Porque se por ela aí, trinca toda e quebra. E essas aí eu já não quero.
P1 – E tem uma técnica também pra fazer o forno?
R – Tem que usar os tijolinhos, fazer coisa. Tem as pedras de baixo assim pra elas não cai. Ai vem pondo por cima. E ai forma o forno.
P1 – Você que faz?
R – Eu e meu marido que fez.
P1 – Me fala uma coisa, você falou que da goma faz o biscoito. Qual o nome do biscoito?
R – O polvilho. O biscoito de goma. E o quebrador. Que você faz ali aquela massa e não leva água, não leva nada. Então você vai, e esses dias mesmo eu fiz pra casa e acabou tudo. Que você vai pegando o biscoito e ele quebra todo. Por isso se chama quebrador. Vai pegando e ele esfarinha todo de tão fino que ele é. Que não leva água, só os ovos, a gordura, e não leva água não.
P1 – E esse a senhora não vende?
R – Não vendo não. É tudo costume dentro de casa. Consumo dentro de casa.
P2 – Com a água que sobra da mandioca...
R – Ai essa daí já não serve. Não usamos não, joga fora. Porque até uma criação que beber ela, morre. É forte mesmo a água. Então aquela água forte, não pode beber não.
P2 – A folha da mandioca também não.
R – A folha da mandioca é remédio. Não serve sim pra comer, mas pra passar em algum machucão, diz que é bom. Eu mesmo não faço, mas vejo fala que é bom.
P1 – Quando que a senhora começou a vender mais farinha pro pessoal de fora? Lá de longe pegar. São Paulo, Estados Unidos, quando que foi isso?
R – Ah, porque eles têm a festa. Tem a festa de Santana, tem a festa da semana Santa, tem o natal, que vem que, o pessoal que esta fora mesmo, que mora fora, então vem. Tem informação: “ ah, tem uma dona ali a Miliu que faz uma farinha muito boa”. Então vem, venha comprar em minha mão e chega lá e mostra aos amigos, então fica, liga pra cá e “eu quero a farinha da Miliu”. Manda, então já vem tudo “oh, a minha amiga encomendou, a minha amiga também encomendou”. E eu já vou. É coisa de já ir mandando. De um vai passando pra outro. Como é a farinha e de como gosta e já manda, já faz a encomenda. É assim que passou. Porque tem muita família daqui que mora aqui mesmo, mas trabalha fora. Então eles levam e vê os amigos lá e vê o como que é a farinha e já passei a vende pro pessoal de fora por isso. Através disso.
P1 – Mas, você começou a vender a farinha pras pessoas desde que era nova ou começou mais tarde a ficar famosa assim?
R – Desde que eu comecei. Como eu falei que era miudinha, fiz assim só pra minha despesa. Já não foi mais pra despesa, foi pra comunidade. Eles vieram e viram, e não tinha mais os pessoal mais de idade que faleceu, então eu mexia. Depois ficou só os jovens, então eles não sabiam nem o que era engenho de farinha. Então como eu já nasci e me criei nisso aí, meus pais, fiz a farinha junto com meus pais. Eu vou mexer com engenhozinho aqui, porque eu ia lá pra longe, saia de manhã e chegava a noite, minha filha mais velha que ficava olhando os meninos aqui pra mim, e chegava a noite. Quando eu falei “ah, mas isso não vai dar mais certo, eu largar meus filhos sozinhos aqui dentro de casa. Sai e ficar fora trabalhando”. Aí fui tentar fazer um engenhozinho aqui. Com forno miudinho, e como falei, comecei a ralar no ralo, de ralo já começou. Essa que eu fazia pra minha despesa, o povo já não deixava. A procura de mais, não deixava. Então eu fui pegando e já fui, ou metendo os fornos ou fazendo a casinha melhor. E isso ai está continuando.
P1 – Então vamos continuar de novo. Você disse que na sua época, ninguém já conhecia mais como fazer a farinha. Ninguém conhecia nada, engenho...
R – Ah, não. Porque acabou tudo o pessoal que mexia, faleceu. Então poucas pessoas aqui que mexia. De resto também ficou na idade que ficou também, já não mexeu. Tinha um moço ali que tinha um engenho também, faleceu também. Parou. Vários aqui dentro do comércio também tinha engenho, então quem continuou, veio e ai acabou tudo. Aí ficou sem, aí o povo comprava as farinhas que vinha de fora, ai quando eu peguei a fazer, ninguém procurou mais essa farinha, veio procurar foi mais aqui. Fui a única que comecei a voltar a funcionar o engenho aqui, de farinha fui eu. Então, através de eu de uns tempos pra cá, já surgiu outros engenhos. Já veio, já tem um moço ali que tem, uma menina ali de cima que já também tem. Tem um moço lá que depois de mim já montou um engenho. Mas o povo já prefere minha farinha. Se eu tiver aqui “ah, lá no moço não tem não, mas eu prefiro a sua. Eu prefiro a sua”. E eu fico feliz por isso, porque a gente fazendo as coisas e o pessoal gosta.
P1 – Já é famosa na região.
R – É. Eles falam que eu sou famosa na farinha.
P2 – Tem algum momento de ralar a farinha assim, que ela fica mais fininha.
R – Oh, o segredo é ali. O segredo é no forno. Que esses rolos você vai só sovando, quanto mais você sovar, mais afinar ela vai afinar. Então o segredo é ir no forno pra afinar ela e depois de lá seco, você vem na peneira, na peneira. Aqueles caroços tudo já fica.
P1 – Você sai pra vender em outro lugar?
R – Não. Dentro de casa mesmo. Nunca, o pessoal não dá conta também não. Não dá conta assim, tem um moço ali no comercial ali mesmo, que fica doido pra pegar minha farinha pra poder vender assim em mais quantidade. Em quantidade maior pra ele. Mas não dá. O pessoal costuma. Eu vou ali no forno ali e já estou com peneirando e as asinhas já está tudo por aí, está com fila. “Eu quero farinha. Eu quero farinha”. “Deixa tanto pra mim. Deixa um prato pra mim. Deixa dois prato”. Que eu lido, não é quilo não, não peso não. É medida de madeira. Igual essas madeiras que estão ai, tem uma medida de madeira. Não é quilo. Não é pesada não. Então já fica as asinhas tudo por ai. Encomenda dias, então quando eu vou fazer, já vem as encomendas. Deixa ali tudo. Tem que por até num caderno, de fulano, de fulano, de fulano. Pra poder não esquecer, porque se não “ah, você não deixou a farinha não”. Então não sobra mesmo.
P1 – Como é que é a medida da madeira?
R – A medida de madeira.
P1 - Como é que é essa medida?
R - Igual essa vasilha que esta ali em cima, ai enche uma quarta daquela ali. Uma vasilha daquela ali é um quarto. Aí tem um prato, tem meia quarta e tem a quarta. Tudo de madeira. As escalas, cada uma vasilha dessa tem um preço.
P1 – Pode falar pra gente?
R – Posso. Então, a quarta que são dez litros, que fala né, dez litros, são trinta reais. E o prato que é dois litros, é três reais. A meia quarta é quinze. E o meio prato, eu não tenho base de meio prato não. Aí já vendo essas completas aí mesmo. Mas o que eu faço ai assim, dá prejuízo pra mim. Eu compro a lenha, vem meu serviço, se eu for olhar isso, eu nem me mexo com a farinha. Mas não tem outro ramo aqui em Inhaí. Tem que mexer pra ganhar o dinheiro. Então a gente é obrigado, porque vem a força, vem lenha que eu compro, porque se eu for pagar, eu não tenho carreto nenhum. Então eu pego lenha de longe, então eu não posso trazer no ombro, eu pago o carro pra trazer. Que é sessenta reais pra trazer. Então, e o serviço, essa menina que está aí me ajuda demais, o meu marido também me ajuda. Trabalho assim sem fazer conta de nada. Se está dando prejuízo, se está dando lucro, mas está fazendo e está vendendo, está recebendo dinheiro. Está bom.
P1 – E você come sua farinha também?
R – Como. Como também.
P1 – Como ela é boa, conta pra gente. Como em cima da comida, faz uma farofa, como é que é?
R – Ah, fica gostosa demais. Muito boa, é diferente de todas. Porque a minha eu não tiro a goma. A minha é com a goma toda no meio lá. Porque tem gente, tem uns, que depois que rala, põe a massa dentro de um balde com água, e vem ali com outra vasilha e põe água dentro daquele saco ali. Espreme tudo e tira aquela goma e deixa aquela massa pura, então não dá aquela farinha boa. A minha fica aquela farinha engomada.
P1 – E se vende mais caro não vende? Se vender mais caro ninguém compra?
R – Ah ninguém compra. Se vender mais caro, ninguém compra. Aqui não compra não. Essa Lílian mesmo que veio aqui, num dia veio e eu estava aqui e meu marido ali torrando, ela mesmo comprou a farinha. E depois disso já mandou comprar mais. O moço do táxi já veio e trouxe o dinheiro, disse que gostou muito da farinha, e já mandou comprar mais.
P1 – Você imaginava quando era pequena que ...
R – Nem pensava. Nem pensava. Fiz mesmo porque os meus gastos aqui de casa não davam. Não pensava que iria dar certo isso.
P1 – E você não é boa cozinheira?
R – Faço comida normal. Arroz e feijão, eu faço. Eu não sei fazer comida especial mesmo, mesmo. Porque muitas coisas, a gente nasceu e criou aqui na roça, e não sabe, não tem preparo de comida não. Muitas coisas eu não faço igual aí pra fora, alguns tipo de comida que eu não faço. Agora o meu feijão e arroz e certeza. Angu, essas coisas assim, misturado com carne de porco, essas coisas eu faço. Faço biscoito. As broas de fubá, tudo eu faço. Faço beiju. Tudo eu faço no forno.
P1 – E você não tem nem placa na frente da casa.
R – Hã?
P1 – E não tem placa “Dona Miliú, farinha”. Não tem nada.
P1 – E o conhecimento de fazer a farinha, você passa pros filhos também?
R – Passo. Eles tudo faz, as neta tudo já, chamo elas e pra ajudar a mexer. Já passa, já torra. Elas também já sabe. Passo pra eles tudo. Tudo eu passei pra eles. É só porque, quando chegou num certo ponto, que eles cresceram, no que eu estou falando, não dá lucro. Pro que eu fazia, era tudo pra dentro de casa. Era pra pagar a comida, pagar alguma coisa, despesa por fora. Então eu não tenho como eles ficar comigo. Não tem uma renda boa. E não hora que acabar ali, que eu ver que deu dinheiro, divisão do dinheiro pra eles. Se não, não tem renda. Então foi nisso que eu falei, prefiro ficar aqui lutando sozinha, e vocês vão embora. Fazer sua vida lá fora, porque não tem como não.
P1 – Os outros instrumentos, fora o forno, as outras coisas que usa pra ralar. Quem faz isso, é você mesma?
R – Eu, tudo eu faço. Depois que eu montei essa maquina ai, já não precisou mais, de eu mexer com isso.
P2 – Pra espremer a mandioca, a senhora usa assim...
R – É ali, naquela prensa ali. Aqui fala prensa. Ali prensa a massa ali e tem de sair a água. Eu que faço. Ai não, ai não foi mesmo eu que fiz não. Meu marido que fez pra mim. Ele pregou as partes, fincou , fez um buraco. Se for pra mim fazer, eu faço. Faço tudo.
P2 – As madeiras elas vem...
R – É. Corta. Tiramos do mato pra e vem. Falo que é serviço de roça, tudo eu sei fazer. Tudo.
P2 – E rapadura?
R – Também sei fazer. Só não faço, porque não tem os preparos. Lá na companhia de meus pais, eu fazia. Igual mesmo aqui, eu faço a melada. Vai rodando a garapa que cai ali na vasilhinha de dentro. Aí agora vai, põe numa panela, vai fervendo, fervendo, fervendo. Até virar aquele melado. E a rapadura também, se for pra fazer, é o mesmo processo também. Vai fervendo, fervendo. Até dar ponto nele ali. Ai você pega um pouquinho, põe na água e agita toda dentro da água, e você já vira em outra vasilha, e vai batendo nela, vai batendo nela, até dar aquele processo, aí você vira numa forma. Já vira uma rapadura. Sei fazer também.
P1 – Você falou que sempre viveu na roça, mas o que você acha disso?
R – Nunca quis sair, acho feliz. Acho feliz de estar na roça. O meu dom é isso, nasceu foi pra mexer na lavoura. Porque você vê que dentro de nove irmãos, só ficou eu aqui, mexendo com isso. E os outros, tudo foi embora. E eles ficam me dando idéia“vem embora, vem embora. Não fica ai na roça não”. Mas eu não. Quero realizar o meu sonho é com a lavoura. E ainda quero ainda. Na hora que deus ajudar e eu me aposentar, eu vou arrumar aqui bem arrumadinho, limpa tudo pra tirar essa poeira. Porque quando chove, fica aquele lameiro aqui, né. Então fica muita mão de obra pra mim. Se eu não morrer daqui uns tempos, eu quero...
P2 – Qual o sonho da senhora na lavoura?
R – Eu quero acabar de arrumar minha casa, cimentar tudo aqui. Comprar uma máquina maior porque desembaraça mais. Porque aqui eu levo horas pra fazer uma a uma. Então comprar uma máquina que ali você rapa a mandioca toda e você lavou, você pode jogar aquele tanto, que some tudo. Então eu quero realizar o meu sonho assim. É de fazer mais um forno, porque aí eu já posso por as pessoas que queiram ajudar, eu já posso. Tenho uma renda boa pras pessoas me ajudar também. Por enquanto, vai ficando só eu mesmo, porque não tem como eu pagar uma pessoa pra me ajudar. Então eu quero realizar meu sonho assim. De criar meu engenhozinho aqui, fazer uma prensa bonitinha, tudo por enquanto é simples mesmo, é antigo. Como a gente começou a vida da gente na roça.
P1 – O que tem de melhor morar aqui na roça?
R – Uai, você fica tranqüilo, você fica tranqüilo. Você deita, quando você levanta, você vê só os passarinhos cantar. E você tratando ali dos bichos ali. Então você fica tranqüilo. Aqui já é uma roça. Então aonde eu moro lá, é mais roça ainda. Porque lá só vê os passarinhos cantar. Levanta de manha, vai lá pra horta, você fica tranqüilo. Então você dorme tranqüilo. Não dorme tranqüilo, porque tem a família fora. Você deita na cama, preocupa com um, preocupa com outro, até o sono vir. Mas aí é gostoso. Eu adoro. Quando chega a época de plantar, de quando dá uma chuva, ai já começa. Tem que ir embora pra lá, pra ir plantar. Plantar o milho, plantar o feijão. É gostoso. Quem gosta, é gostoso. É bom mesmo. Mas já pra quem não gosta, ai. Essa mesmo aqui não gosta da lavoura não. Quando vai pra lá” ai não vou não, não vou não. Não gosto de lá”. Então vai assim, porque a gente leva. Porque não gosta, não.
P2 – E a senhora gosta também de caminhar no mato...
R – Gosto. Gosto demais. Agora de uns tempos pra cá que eu não estou podendo porque é coluna, é muita coisa. Os ossos vão ficando fracos.
P2 – E quando a senhora ia, colhia alguma folha pra fazer remédio?
R – É folha, remédio. Vassoura, tem assim uma vassourinhas que corta e faz vassoura. Teço, vendo. Agora que eu não estou mais mexendo porque está muito difícil. Teço as vassouras, vendo, tudo. Faço muita coisa, de mexer na lavoura que eu gosto. Muita coisa que eu faço.
P2 – Tem algumas árvores na região, no cerrado, que a senhora usa pra alguma coisa?
R – Uso sim pra remédio.
P2 – Quais são as árvores?
R - Tem vários. Tem o que dá no mato que chama canguçu, você já ouviu falar? Canguçu, castanheira, que é bom pro coração. Tem agora a arnica, que eu estou tomando por causa do reumatismo, da dor. Tem muita coisa que a gente utiliza aqui pra remédio. Coisa que a gente pega no mato.
P2 – E a senhora conhece alguma outra cidade aqui no vale do Ipê?
R – Que eu conheço, que eu falei pra vocês, fui pra Belo Horizonte uma vez só, pro casamento do meu filho, que nem sei quantos anos faz. E Diamantina que eu vou mais por precisão, no mais. Essa região aqui, não conheço. Aqui mesmo. É aqui mesmo. Eu não conheço Rio Preto, não conheço Senador, não, Senador Mourão eu fui uma vez. Vocês conhecem Senador Moura não. Fui lá uma vez só. No mais, o que tem aqui por perto, não conheço não. Eu nasci e me criei nessa redondeza aqui e morro sem conhecer as coisas. Eu sou nervosa pra viajar, sou.
P2 – E as serras aqui?
R – A serra aqui a gente vai, tem uma serra ali que eu também não conheço, que é a Serra de Santana. Que diz que tem um cunho. Meu filho foi lá, mas disse que é alta, alta mesmo. Alta demais. Então essa aí eu não conheço não.
P2 – Tem alguma historia da serra, da região assim...
R – É, tem essa serra, que fala que é serra do Santana. Porque dizia que trazia ele pra igreja aqui, e no outro dia, quando é de noite, ela já estava lá. Então tem fuso, diz tem tesoura, tudo antigo que dizem que era dela. Mas ninguém sabe. Os antigos que conta, ninguém sabe. Inclusive, mesmo vieram aqui os ladrão e roubaram da santa. Ouro e diamante. Então trouxe uma outra aí, mas o povo tem fé nela. Tem fé na que foi roubada antiga. Então essa que trouxeram agora que foi feita de um monte de coisa, na o tem confiança não. E não achou mais, veio e roubou. Todo mundo dormindo e pegou essa santa. Ninguém viu. Entrou por perto, pegou a santa e ninguém viu. Não achou até hoje.
P1 – Tem alguma receita especial com a sua farinha, no modo de fazer? Tem alguma coisa que a senhora gosta de fazer com a sua farinha que é especial?
R – Tem. A farofa da carne. A farofa de ovo, que eles gostam de fazer com a farinha. Pega tudo e faz a farofa. Que dá aquele gosto delicioso.
P1 – Tem muita festa aqui em Inhai?
R – Tem. Agora mesmo, há umas duas semanas, dia 20 foi a festa de Santana. Foi muita gente. Gente especial que veio de Belo Horizonte.
P1 – A senhora participa, ajuda a organizar ou só participa.
R – Eu não. Eu nem chego na porta pra ver o pessoal. Fico aqui dentro mesmo. Eu não gosto de festa. Eu fico aqui dentro, cuidando igual eu falei pra vocês, que veio trinta e duas pessoas aqui pra casa. E então, esse fogãozinho de lenha funcionou. Eram tachos de comida, fui tudo eu. Então tem festa, eu quase nem vou. Nem vi esse.
P1 – Dona Miliú, só pra acabar com a entrevista, queria que a senhora dissesse o que achou de ter falado com a gente? De ter conversado aqui com a gente. Que a senhora achou disso?
R – Achei muito bom. Muito bom mesmo. Eu até falei ainda assim, foi você que me ligou não foi? E ligou e pediu informação sobre um lugar lá embaixo na pousada. Aí ligou pra cá pra saber se podia, ai eu disse “ah, não vou atender telefone dos outros sem eu saber”. Depois “oh, o moço está ligando, Miliú, é sobre seus engenhos de farinha aí.” E eu disse “É Lílian”. Deve ser Lílian que deve estar querendo ligar pra mim”e depois foi você,. E que desse depois, eu dava a palavra certa se podia vir ou não. Que eu ainda falei que sou muito tímida. Ai mais eu sou muito tímida. Mas não hora que começo a falar, como diz? Que é que nem rádio. Que nem rádio pra falar. Ai ontem eu também estava alegre, foi você que ligou?
P1 – Foi uma outra pessoa. R – Foi um outro que ligou pra cá. Ai eu falei que ia chegar aqui umas nove horas, que podia vir. Na hora que chegar aqui eu falo se pode ou não, se eu vou dar entrevista ou não. E disse não, tem que saber certa agora, porque já vai ai cabendo a certeza.
P1 – A gente agradece muito. A gente agradece muito pela entrevista. E por ter recebido a gente.
R – Obrigada.
P1 – Obrigada.
R – De nada.
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