Histórias Que Reciclam
Depoimento de Léo Voigt
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo
Realização Museu da Pessoa
HQR_HV01_Léo Voigt
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Léo, fala o seu nome inteiro, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Léo Voigt. Eu nasci em Porto Alegre em junho de 1959.
P/1 – E qual é o nome do seu pai inteiro e local e data de nascimento dele
R – O pai chama-se Adroaldo José Voigt. O pai nasceu na cidade de Estrela, na zona rural, na colônia alemã.
P/1 – E a sua mãe?
R – A mãe igualmente nasceu em Santa Clara, que era distrito do município de Lajeado, hoje é município. Ela se chama Erna Marina Voigt, a mãe é de 1934. Ambos são vivos.
P/1 – E conta um pouco mais da origem do seu pai. Você falou da comunidade alemã, né?
R – Então, todos nós somos da mesma origem, todas as minhas famílias, não há muita miscigenação. O Rio Grande do Sul é um estado intensamente colonizado na primeira metade do século XIX pelos alemães e na segunda metade pelos italianos. O Rio Grande do Sul, portanto, é um estado que têm praticamente três grandes zonas geográficas étnicas e culturais que são a zona da campanha, que é luso-espanhola toda ela, ela é imensa; a zona da colônia alemã, região dos vales, e, como os italianos vieram depois ocuparam a serra, já que todos os vales estavam ocupados. É um estado com um baixíssimo volume das demais populações, inclusive população negra, já que não foi um estado que teve mão de obra escrava usada em larga escala, o percentual de população de origem afroascendente é inferior a 10%. E os alemães, praticamente todos, são pessoas pobres, católicas, rurais que vieram na primeira metade do século XIX. E assim são todos os meus familiares, cada um vem de uma subregião da mesma região do sul da Alemanha; são sobrenomes semelhantes, são famílias de culturas compartilhadas, o dialeto era igual, era semelhante, com pequenas ênfases locais e se localizaram todos próximos, né? E os filhos e as filhas da colônia alemã casavam-se entre si e assim foi sucessivamente. Eu sou a quinta geração no Brasil e todos os meus sobrenomes são sobrenomes alemães, mas não são nem alemães do norte, nem alemães luteranos e nem alemães urbanos, são todos eles rurais, pobres, da zona do sul da Alemanha. O meu pai nasce no interior, num lote de terra de um colono e, embora os pais dele eram comerciantes, ainda assim eles tinham terra. E a minha mãe é de uma família que não tinha terra porque o pai dela era professor, professor de comunidade católica, então a minha mãe tem uma origem cultural um pouquinho mais diferenciada porque eles nunca foram trabalhadores de campo, não obstante residiam na zona de campo, residiam na zona rural. Toda a minha herança cultural é assim, ela tem uma forte influência rural da pequena propriedade familiar do interior do Rio Grande do Sul, notadamente católica, fortemente católica. Meus pais foram aprender falar português, como vocês já ouviram falar isso muitas vezes, na escola. Agora, nós que nascemos na cidade, somos a primeira geração que nasce na cidade, nós não aprendemos a falar alemão salvo alguns fragmentos, porque isso era considerado um sinal de atraso. Até porque a linguagem alemã deles é uma sublinguagem, é uma linguagem não gramatical, é uma linguagem de tradição oral não escrita, então também eles tinham na cidade certo pudor desta linguagem.
P/1 – Era um atraso pra quem?
R – Pra cultura dominante. Pra cultura dominante urbana ser do meio rural é sinal de caipira pra vocês aqui em São Paulo, né, pra nós é colono. E não falar a língua erudita da cidade era também um sinal de atraso, então isso era evitado sempre que possível. E portanto os filhos na escola falando português pra logo se encaixarem no padrão do modo de vida urbana. Eu não só sou a primeira geração a nascer na cidade, dessas cinco gerações, sou a primeira geração que casa fora da colônia. E por incrível que pareça a minha mulher é de origem alemã. O meu cunhado também, a minha irmã casou na cidade mas também com um descendente de iguais famílias como nós. Então isso é a introdução nossa, dos meus pais e minha, no mundo urbano e na cidade, eu sou um sujeito totalmente urbano mas com vínculos rurais e com a cultura da tradição alemã, da pequena propriedade familiar rural muito fortes.
P/1 – E os seus pais, você sabe como eles se conheceram? Eles contaram essa história pra você?
R – Sim, sei tudo (risos). Eu sei tudo, eu investigo. Eu tive uma sólida formação antropológica, então eu entrevisto eles até hoje. No meu penúltimo encontro com eles sentei a tomar um chimarrão, conversamos duas horas porque meu pai está ficando senil pela idade, então eu estou mais do que nunca, eu estou como uma esponja perto deles, eu tiro tudo o que eu posso. Eu fico durante a semana, durante a quinzena lembrando o que é que eu ainda não sei, que eu ainda quero saber e tento tirar deles. Sei como eles se conheceram, sim. Eles se conheceram na cidade de Estrela, ambos são famílias que deixam a zona rural e vão, que é bem narrado isso pelos sociólogos brasileiros, a pessoa vem do campo primeiro para uma cidade de tamanho médio e só depois pra grande capital e isso deve acontecer também aqui no centro do país. Os pais deles deixam o campo por pobreza e vêm para o meio urbano, que é a pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, e ali eles se conheceram. Eram jovens razoavelmente bem sucedidos, a minha mãe já trabalhava porque era de uma família muito pobre, o meu avô morreu muito cedo, então a minha mãe com 15 anos já não tem mais pai e não tem provedor da casa, então os sete filhos tiveram que ir trabalhar pra sobreviver, então uma baixa renda. E o meu pai não, meu pai é filho de comerciantes então eles já são uma classe média alta. Tanto que meu pai, surpreendentemente, é o único que eu conheci em toda geração dele, que quando jovem tinha carro, isso nos anos 40 era um diferencial muito grande, né? Então o pai tinha carro, significa que ele era de uma família um pouco mais abastada. E era um jovem que podemos chamar de pequeno burguês, de uma vida muito aventureira e muito sapeca, tanto que houve muita resistência de que a minha mãe namorasse ele porque a minha mãe era filha de uma viúva com sete filhos, pobre, e isso era um risco. Então houve uma série de advertências, mas houve uma reunião familiar que acabaram aprovando o namoro e o vigário da paróquia também não obstaculizou. A minha mãe foi consultá-lo e ele disse: “Olha, o Adroaldo é de boa família, ele foi meu coroinha lá no interior quando ele era pequeno e se ele hoje é da pá virada isso na maturidade passa”. Eu acho isso de uma sabedoria genial naqueles tempos conservadores, a igreja de tradição tão restritiva e autoritária. Isso eles me contaram recentemente. Então a minha mãe procurou o vigário, conversou com ele, com o pároco e ele aliviou a culpa de que era um risco namorar aquele rapaz. E isso virou logo um casamento. E ela era a alemã mais bonita da cidade, uma das mais bonitas. A minha mãe era uma alemã de olho azul, jovem, alta, jogadora de vôlei e trabalhava, então tinha a sua renda. Eu acho que ele ficou muito apaixonado por ela. Se vocês verem a foto da minha filha Celina dá pra ter uma ideia do que era a Marina hoje (risos). Celina hoje tem 17 anos, a minha filha do meio, ela é muito parecida com a minha mãe, muito.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho uma só irmã. A família Voigt é uma família de poucos filhos, todos eles são sempre muito cuidadosos na reprodução. Sempre foram, isso das gerações passadas. Tanto que eu sou o último descendente do meu ramo Voigt, o masculino. O meu sobrenome termina comigo, os Voigts tem poucos filhos e uma predominância absurda de mulheres. Eu olhei isso por cinco gerações e era assim, quem tinha muitos filhos, os primeiros migrantes tiveram 11 filhos, os migrantes que deram o nosso sobrenome, nove mulheres. Um desses três filhos que sobraram teve 11 filhos depois de novo, que é a segunda geração no Brasil e ele teve também nove mulheres, então tem uma predominância de mulheres. E depois todas as famílias são pequenas e predominantemente femininas, tanto que eu tenho primas mulheres, mas homens eu não tenho nenhum na minha geração, o meu pai só tem um primo com sobrenome Voigt. Por fim eu e minha irmã temos cinco meninas, eu três e a Eneida duas. E o meu primo que é Voigt pelo sobrenome do meio, porque ele é filho da minha tia, ele também tem duas meninas. Então meu avô Voigt, o Carlos Henrique, ele tem sete bisnetas mulheres.
P/1 – Qual o nome da sua irmã?
R – A minha irmã é Eneida. Ela é enfermeira, dois anos mais velha que eu, mora em Porto Alegre. Casou em Bagé, morou 30 anos em Bagé e agora mora em Porto Alegre, é separada. E as sobrinhas têm a mesma idade das minhas filhas, um pouco mais. Mercedes tem 24 anos, Clara tem 18 e as minhas filhas são 20, 17 e 16.
P/1 – Ela nasceu na mesma cidade que você?
R – Sim, a Eneida nasceu na mesma cidade que eu, em circunstâncias diferentes.
P/1 – Como assim?
R – Quando o pai e a mãe vieram eles vieram mais ou menos bem pra Porto Alegre porque o pai tinha ido bem na primeira atividade dele na cidade de Nova Petrópolis. E aí se mudaram pra Porto Alegre e ele estava bem economicamente, então a minha irmã nasceu na Beneficência Portuguesa. E quando minha mãe engravidou de mim eles estavam muito mal economicamente, muito mal, então eu nasci de parteira em um bairro bem pobre de Porto Alegre. E é muito curioso porque eu não conheci nenhuma pessoa na minha geração que nasceu de parteira em Porto Alegre, isso era um fato muito raro. Já na minha geração todo mundo nasce hospitalizado. Outros lugares do Brasil eu sei que não, mas em Porto Alegre todo mundo já nasce em hospital. Eu nasci de parteira. Então foi uma circunstância da vida do pai e da mãe muito peculiar, foi uma situação difícil, mas depois deu tudo certo, o pai se saiu bem e a gente se criou numa classe média típica portoalegrense, média, com uma certa tradição cultural que é um elemento que eu acho que ele é diferenciador, competitivamente ele é diferenciador e foi tudo bem.
P/1 – Como é que foi crescer em Porto Alegre? Você cresceu em que bairro, como é que foi?
R – Então, a minha vida se divide só em dois bairros. Até os sete anos eu morei no bairro Quarto Distrito, que era o primeiro bairro operário de Porto Alegre. Mas quando eu nasci a zona industrial já está migrando pra zona norte da cidade, já é uma zona de migração, então o Quarto Distrito é um bairro de classe média, trabalhadora, já sem indústrias. Ali eu vivi até os sete anos e tive uma vida maravilhosa, estudei em escola privada, tinha uma vida comunitária forte, um vínculo com a paróquia muito forte. Depois o pai comprou pela primeira vez na vida dele a casa própria. E aí nós fomos morar na zona norte de Porto Alegre, que é a segunda zona industrial de Porto Alegre, lá onde ficava a Eberle, a Matarazzo, o Albarus, a Taurus, nomes todos que vocês conhecem. Nós fomos morar neste bairro e o pai e a mãe vivem lá até hoje na mesma casa, que é um bairro tradicionalmente operário a partir dos anos 60 e 70 em Porto Alegre. Hoje de novo já não tem mais indústrias lá, todas foram embora de lá e esse virou um bairro de classe média, classe média alta, que está tendo uma reformulação. Quando a gente foi morar neste bairro na zona norte de Porto Alegre aconteceu uma coisa curiosa: a nossa rua é uma rua que não tem mais do que duas quadras, mas todos os moradores eram operários, o meu pai era o único que era comerciante, meu pai vendia produtos agrícolas, então era o único que não era operário, de carteira assinada, com férias, FGTS, essas coisas todas, ou estabilidade no emprego. E todas as casas eram casas de madeira tradicional, operária, com uma sacadinha na frente, uma cerquinha com roseiras entre a casa e a cerca, todas. E a única de alvenaria era do pai e da mãe. Passado 20 anos, terminada a ditadura militar, a única casa da rua que não tinha dois andares era a casa do meu pai e da minha mãe (risos). Isso significa que o operariado mudou de condição de classe durante esse período do governo militar. Todas as casas, os trabalhadores desfizeram a casa de madeira e construíram casa de alvenaria de dois andares, só a casa do meu pai não tem dois andares. Isso é um fenômeno sociológico muito significativo.
P/1 – Mas voltando um pouquinho, como é que era a casa que você nasceu e cresceu até os sete anos?
R – Era uma casa muito própria. Era uma casa alugada, tinha a ver com os anos de vacas magras dos meus pais. O meu pai trabalhava na Cooperativa Languiru, que é uma cooperativa de laticínios, ele era vendedor dessa cooperativa e esta casa então era alugada, uma casa muito pobre, muito ruim, muito próximo da cooperativa, ali na zona do Quarto Distrito. O pai trabalhou na cooperativa, conseguiu acumular a ponto de comprar uma casa pagando 70, 80% à vista e depois financiou o resto com o próprio proprietário, na época não tinha BNH. E foi ali que ele conseguiu mudar de condição de classe, o pai teve ali uma ascensão de classe. Isso se firmou nos anos seguintes, essa ascensão de classe deles, que ele mudou para uma classe média mais alta, tanto que a partir dos meus 11 anos o pai compra uma casa na praia, aos 12 ele compra o segundo carro e aos 20 chega o telefone.
P/1 – Mas um pouquinho antes como é que eram as brincadeiras que você tinha na infância em Porto Alegre? Você brincava do quê? Brincava na rua ou não.
R – Sempre na rua, tinha a turma da rua. A turma se dividia, era turma pertencente a dois colégios que eram bem próximos, que era um colégio público, Souza Lobo, e o outro colégio era o colégio privado Santa Família. Os alunos dessas duas escolas que moravam naquelas quadras ali próximas do Souza Lobo eram a nossa turma de rua. E era uma turma muito consistente, sempre a mesma, muito amigo, os pais se conheciam todos e a vida se dava na rua. E as brincadeiras eram mais ou menos padrão, a gente brincava, vamos lá, se brincava então de esconder, de pegar, que vocês têm outros nomes aqui. Se brincava muito de taco e de sela. Taco é com a bolinha que tinha que correr atrás e cruzava os tacos e batia. E sela tu tem que acertar no outro a bolinha e era uma bolinha que se jogava em três ou quatro buracos, cada um era dono de um buraco, quando caía no seu tu tinha que correr porque quem jogava a bolinha tinha que jogar em ti, era por pontos. Outra brincadeira muito comum era com as meninas, daí brincadeira com as meninas eram brincadeiras de cantar e contar. Que era aquelas: “Oh! meu belo castelo, mata-tira tirarei”, isso existe aqui? Se faz então duas filas mistas de braços dados e uma fila vem cantando e recua e a outra responde cantando e assim sucessivamente até que uma pessoa desta corrente passa pro outro e assim fica trocando de pessoas, cantando e dançando o tempo todo. Essas eram as brincadeiras mistas. Ah, outra brincadeira que se fazia muito nessa minha primeira infância era de fita. “Quem bate?” “É o Fulano” “O que queres?” “Quero fita”. Então cada pessoa tinha uma cor de fita, tinha na memória uma cor. “Ah, eu quero fita rosa”. Ele olha: “Rosa não tem, bate o pé que ninguém te quer”. E aí então se acertava este da fita tinha que correr atrás e pegar o diabo, esse aí. Brincadeira de fita. Isso se brincava toda semana, era a brincadeira preferida das meninas, que a gente participava e nos envolvia. A gente não jogava bola, neste primeiro bairro não existia bola, não se jogava, era rua, era uma zona muito urbana, não tinha cancha. Não se jogava bola e os meninos éramos todos muito pequenos, até sete anos de idade. No novo bairro, quando eu vou a partir dos sete anos de idade as brincadeiras eram mais brincadeiras de guris, sempre tinha futebol, tinha muita sela e taco. E aí tinha uma brincadeira que como era uma zona que tinha mata, nesta zona tinha e tem mata até hoje, a gente brincava de combate, que era aquele filme da televisão, era de guerra, brincadeira de guerra com arma de ficção, de brincadeira, e aí tu tinha que matar o outro, quando matou é quem vencia. Isso brincava-se muito, de combate. É isso. E muito futebol. A gente teve um campinho, depois teve um segundo campinho, teve dois campinhos. Se jogava futebol o tempo todo. Se brincava muito de funda neste bairro, era um bairro que tinha a cultura da funda. Até porque tinha animais silvestres, foi lá que eu conheci cobra, sapo, aranha, tartaruga (risos), tinha no bairro. Então se brincava muito de funda. Também se brincava muito com canudinho de cinamomo, bolinha, pra espetar os outros.
P/1 – E futebol você falou que você gostava. Você torcia para algum time?
R – Sempre torci pra um time, sempre fui sócio de time.
P/1 – Qual time?
R – O Grêmio, até hoje.
P/1 – Qual era o seu ídolo na época, tinha um?
R – Bom, na primeira infância o ídolo era o do Grêmio, o Alcindo, grande goleador da história do Grêmio. Depois todos os jogadores foram meus ídolos porque eu sempre fui apaixonado pelo Grêmio, eu gosto de todos os jogadores, talvez alguns mais. Talvez eu destacaria os grandes jogadores da história do Grêmio, Tarcísio.
P/1 – Você tem alguma história com Grêmio?
R – Sim, desde os quatro anos eu frequento o estádio semanalmente. É uma coisa tão forte quanto a religião. Eu vou à missa semanalmente e vou ao estádio semanalmente. Sou sócio desde que nasci, pelo meu pai, e depois eu comecei a trabalhar muito cedo, eu me proletarizei aos 14 anos de idade, e aos 16 eu comprei o título do Grêmio, comprei meu próprio título, embora eu ainda tivesse direito ao usufruto do título do meu pai por ainda dois anos. E as minhas filhas vão a todos os jogos comigo e se eu não vou a algum jogo porque eu estou com preguiça não tem manha, tem que ir igual. Então o vínculo com o clube de futebol é demasiadamente forte. Tanto que essa semana eu estou deprimido, a gente perdeu domingo (risos). A família toda fica deprimida, é assim. O vínculo é forte, a gente frequenta o Olímpico, agora Arena, toda semana.
P/1 – E tem algum jogo que você se lembra mais, que te marcou?
R – São tantos. Nossa.
P/1 – Se quiser pescar algum.
R – Pescar algum. Bom, o jogo mais marcante foi aquele bate e volta contra o Palmeiras, né, que o Grêmio faz 5 e leva depois 5 a 1 aqui e com isso o Grêmio se classifica e acaba campeão da Libertadores. Vencer o Palmeiras foi, na minha juventude, o maior prazer, foi um prazer tão intenso como as mais belas namoradas. Tanto que nós gremistas não, eu me importo que o Vasco vá para a Segunda Divisão, eu me importo que o Coritiba vá para a Segunda Divisão, eu não gostaria que o Inter fosse para a Segunda Divisão, meu adversário, mas o Palmeiras eu não me importo.
P/1 – Mas é um ódio grande assim mesmo? (risos)
R – De minha parte é, acho que dos gremistas quase todos. Porque aconteceu o seguinte, é traumático um pouco essa história. Uma, nós só vencemos o Palmeiras. E foi sobre o Palmeiras porque grandes disputas se deram ao longo da história do futebol brasileiro. Quando o Grêmio se torna um clube grande é o Palmeiras que é o grande no centro do país, então o adversário que valia a pena, que dava prazer ganhar era o Palmeiras, né? E aí nós tivemos cinco anos de embate direto com o Palmeiras e cinco anos de vitória pro Grêmio. Compreende? Tanto que ao final do quinto ano qual é que foi o resultado? A diretoria do Palmeiras que era rica, o Grêmio é um clube, Porto Alegre é um décimo da cidade de São Paulo, um décimo, compreende? Do ponto de vista de mercado, do ponto de vista de população, do ponto de vista de riqueza. Ao final do quinto ano a diretoria do Palmeiras, poderosíssima, riquíssima, com financiamento da Parmalat, como não conseguiu derrotar o Grêmio nenhuma vez nos cinco anos ela foi lá e comprou o time do Grêmio. Ela comprou cinco profissionais do Grêmio, quatro jogadores e não bastou comprar os quatro jogadores contratou, tirou do Grêmio, finalmente, o nosso grande campeão, Luiz Felipe Scolari. Pegou então a mecânica, a lógica, a inteligência, o jeito de jogar e trouxe pra cá. E de fato, os dois anos seguintes o Palmeiras foi campeão do Brasil e campeão de uma Libertadores. Tirou os cinco jogadores. Foi lá e o poder do dinheiro se interpôs. Então se o Palmeiras for pra Terceira Divisão não tem cristianismo com o Palmeiras.
P/1 – Voltando um pouquinho de novo, Léo, você ouvia rádio na época, a TV chegando lá, como é que era?
R – Sempre tive uma sólida cultura televisiva e radiofônica, sempre ouvi rádio e sempre ouço rádio. Tenho rádio em todas as peças da casa e é uma cultura da minha família. Na minha família ao meio-dia se almoçava ouvindo rádio, ouvindo noticiário do meio-dia, que naquela época não se dizia noticiário, se dizia noticioso. E televisão também, a gente teve TV desde os meus quatro anos de idade. Então a primeira imagem de televisão que eu vi eu me lembro. E o cara que estava na tela é vivo até hoje e continua na TV até hoje, olha que eu sou um cara que não sou jovem.
P/1 – Quem é?
R – Francisco Cuoco, ele fazia a novela ‘Redenção’ com uma atriz que eu não lembro de fato qual era e ele era o galã da novela, o nome dele era Fernando na Redenção. Eu não sei se era da Tupi, da Record, isso eu não sei, e a novela durou dois anos. E o galã da novela era o Francisco Cuoco. Eu não vi o início dessa novela porque eu era bebê (risos), mas aos quatro anos eu me lembro de ver essa novela e o Francisco Cuoco lá. Francisco Cuoco pelo visto é mais velho do que a Hebe Camargo.
P/1 – E você ouvia música também no rádio ou não?
R – Sim. A tradição alemã é uma tradição de grande tradição oral de canto, então se canta muito na família, se canta muito na casa. E os cantos são cantos religiosos, cantos tradicionais alemães e cantos folclóricos brasileiros. Eu tenho uma cultura dos cantos dos anos 40 e 50 de São Paulo bastante sólida, que é da tradição oral da minha família, Irmãs Castro, Alvarenga e Ranchinho, essas músicas todas a gente sabe. Então tinha a tradição de canto. Além disso, se ouvia música. Eu sei tudo da Jovem Guarda e do Tropicalismo desde pequeno, de trás pra diante. Sim, sempre foi muito valorizado e sempre esteve muito presente: música, TV e também jornal. A vida toda teve jornal diariamente em casa e revistas. Como a minha mãe foi balconista quando jovem em Estrela quando namorava meu pai, ela conheceu este mundo das revistas. E eram revistas que vinham do centro do país ou mesmo revistas importadas. Então no bazar que a minha mãe trabalhava tinha revistas e ela olhava, folheava e criou muito cedo o hábito de acessar a imprensa. E passou isso pra nós.
P/1 – Nessa época você se lembra como funcionava algum sistema de reciclagem, se tinha essa questão, como é que era trabalhado?
R – Não, lixo era lixo. Não existia isso. A única coisa que tinha nessa direção de sustentabilidade é que a colônia alemã é extremamente, qual é a expressão correta? Cautelosa no uso das coisas pra não botar fora, pra não haver desperdício. A cultura rural imigrante é uma cultura exageradamente do não desperdício. Então tudo é guardado e reaproveitado, nada é descartado. E o que era descartado na área rural, inclusive, virava adubo. Então isso é uma cultura muito sólida na minha história, da minha infância e da minha casa hoje. Na minha casa tem compostagem, tem separação de resíduos e sempre teve desde que isso começou a ser uma coisa importante. Mas não havia reciclagem, reaproveitamento, reutilização a não ser isso, quer dizer, uma garrafa você não botava fora, um vidro não se botava fora. Quando surgiu o plástico todo plástico era guardado, mas sempre na ideia de reutilizar. E não havia esses conceitos de ambientalismo, sustentabilidade.
P/1 – Você já tinha alguma coisa que você queria fazer quando crescesse?
R – Sim, eu sempre soube o que eu quis fazer, foi mudando muito, mas eu sempre fui muito decidido e sabia o que eu queria fazer. Quer saber tudo?
P/1 – Eu quero.
R – Bom, a primeira coisa que eu idealizei na primeira infância era Medicina. A segunda coisa que eu idealizei foi vida religiosa, ser padre, por muito tempo. Isso chegou já àquela fase de latência e depois a primeira adolescência eu achei que eu seria religioso, até porque eu sou sobrinho de um padre, o meu nome, inclusive, é herança desse tio, meu nome é herdado. O meu tio é ordenado padre antes do Concílio Vaticano II e aí o sacerdote e a religiosa mudavam de nome, então o meu tio, em 56, deixa de ser Léo Ruschel e passa a ser Frei Roque. E aí eu nasci em 59 e ganhei o nome do meu tio, em homenagem a ele. Depois de querer ser padre, quando a adolescência já se avançou, o meu grande sonho que eu mais queria ser era oceanólogo, tanto que eu cheguei a prestar vestibular depois, aos 18 anos, prestei vestibular para oceanologia em Rio Grande, na FURG, Universidade de Rio Grande, e cheguei a ler uma enciclopédia inteira sobre Oceanologia. Eu não passei no primeiro vestibular, mas eu já tinha daí uma forte influência dos movimentos de juventude da igreja católica de fazer militância juvenil, militância política, militância social e militância eclesial, era muito forte. Então eu vivi aqueles fenômenos que vocês sabem da história aqui da zona leste de São Paulo, nós vivíamos igual, semelhante, em Porto Alegre, inclusive acompanhando aqui os movimentos dos bispos da zona leste de São Paulo. E aí este ano que eu não passei no vestibular é o ano que eu ganho tempo livre pela primeira vez pra ler e eu comecei a ler muitos livros na área da Política, da História e da Sociologia, foi aí que eu decidi fazer Sociologia. E de fato eu acertei porque eu gostei desde o primeiro dia, eu fui um aluno que nunca faltei nenhum dia de aula nos seis anos da UFRGS, fiz Bacharelado e Licenciatura e depois fui automaticamente aprovado pro Mestrado em Ciência Política e eu li tudo o que me caiu a mão e eu gostei o tempo todo disso. E eu lamento não ter descoberto um pouquinho antes pra ter lido um pouquinho mais, aprendido um pouquinho mais. Eu realmente me realizei como sociólogo e me realizo, e trabalho nessa área. Quer dizer, eu consegui gostar de uma área e fazer ela ser sustentável, porque às vezes tu gosta, sei lá, tu gosta de ser filósofo mas filósofo não te sustenta. Eu profissionalizei a minha militância. Então entrei na Sociologia e aí me encontrei, fui feliz desde o primeiro dia. Com Sociologia, Antropologia, Ciência Política eu sigo sendo feliz. Tem outras áreas que eu não sou feliz, viu, pra não parecer ufanista, mas nessa está tudo bem (risos).
P/1 – Voltando um pouquinho então, qual foi a sua primeira escola que você frequentou?
R – O primeiro é um colégio de freiras franciscanas, é o Colégio Santa Família deste bairro ali do Quarto Distrito. Aí eu estive dois anos num colégio público, que meu pai achou que colégio era uma coisa muito cara e botou no colégio público. E pro meu pai a educação nunca foi uma prioridade, ensino nunca foi uma prioridade, sempre foi uma obrigação. Botou na escola pública. Até que a minha avó, a mãe do meu pai, minha avó paterna, que era uma alemã muito sabichuda e que eu tenho uma gratidão muito grande a esta avó, ela chamou a atenção do filho dela dizendo: “Escuta, tu vai deixar teu filho num colégio de periferia, desqualificado?”, e meu pai obedeceu a mãe dele. E aí fui pro melhor colégio da zona norte de Porto Alegre e ali eu tive o desabrochar da vida porque ali eu participava de coral, eu canto em coral até hoje, participei de coral, passei a ter uma rede de relações fora do pequeno mundo e da localidade do bairro, passou a ser a zona norte de Porto Alegre. Passei a ter contatos muito mais intercultural, interétnicos, interclasses, aquilo ali me colocou num mundo muito mais dinâmico, que foi revolucionário pra mim. E eu usufrui cada momento desse colégio. E a gente foi privilegiado, viu? O colégio era uma coisa que nos botava no mundo, nos levava. Aquilo que a gente aconselha os projetos sociais hoje a fazer com os jovens, eles já faziam isso, por isso eu sou tão grato também à cultura católica, viu, que é essa turma aí. Esse colégio é um colégio de Irmãos Lassalistas e eu estive lá dez anos, saiu dali um homem já com personalidade consolidada.
P/1 – Em que ano você entrou?
R – Eu entrei em 69 e saí deste colégio em 1974 e aí eu fiz o segundo grau num colégio de freiras perto de casa porque ganhei uma bolsa, mas foi porque eu comecei a trabalhar. Isso é um dado importante, que é o único pequeno trauma que eu tenho na minha vida (risos), creio eu, que é o seguinte, quando eu termino a quarta série ginasial, eu sou a última turma do ginásio, o meu pai decide que eu deveria deixar o colégio e ir trabalhar. Porque na cultura do pai homem bota dinheiro dentro de casa, esse negócio de estudar é bom pra mulher, mas pra homem não. Ele bota no trabalho. E aí como eu queria continuar a estudar ele me colocou num colégio à noite. Mas daí perdeu a prioridade, esse negócio de educação. E a chateação que eu tenho, eu sou capaz de compreender meu pai, mas foi que eu não me rebelei, que eu não disse: “Olha, mas eu gostaria de fazer diferente”. Naquele momento estava acontecendo uma liminaridade muito importante na minha vida que é o seguinte, eu estava deixando o coral porque eu já estava com 14 anos e eu estava mudando de voz e eu não podia mais ficar no coral de vozes brancas, que era o coral de meninos. Eu estava transitando pra entrar na banda do colégio, que é uma banda de sucesso provavelmente, até aqui vocês conhecem, que é a banda do Colégio São João, que é a banda que ganhou todos os prêmios da Globo, do centro do país e de fora do país até hoje. E essa banda existe até hoje. Então os irmãos estavam me transitando do coral, aonde eu tinha sete anos de participação, e indo pra banda. E com isso eu passava a receber aula de Música, aula de instrumento, estavam me transformando num trompetista, estavam me ensinando Música. O meu pai interrompeu isso, compreende? Quer dizer, o fato dele interromper e o fato de eu não me rebelar é uma história que eu gostaria de ter refeito na minha vida se tivesse a chance de retroceder a fita.
P/1 – Nesse colégio você teve algum professor que te marcou? E situações também.
R – Sim, muitas. O problema é que eu tenho boa memória, viu? E o vídeo acaba, a energia elétrica também. É o seguinte, a minha primeira professora no colégio foi uma professora inesquecível e da qual eu tenho uma gratidão. Ela foi maternal, ela foi muito disciplinadora, mas ela foi como mãe, a mãe disciplinadora, compreende, que era feito com carinho e não com raiva, nem nada, e nem com muito de me tolir. Esta professora foi marcante. E é ela que vai dizer pro regente do coral o seguinte: “Escuta, presta atenção, tem um menino que vale a pena vocês conhecerem”. Tanto que no ano seguinte, primeiro dia de aula, o irmão me chama: “Léo Voigt venha aqui, nós vamos fazer um teste”. E vou pra sala da banda e faço um teste. Então essa professora foi marcante. Bom, no quarto ano primário eu tive uma situação bastante traumática com um professor que era um irmão lassalista que estava em crise vocacional e quem sofria a crise pessoal dele, que era de grande sofrimento, um homem jovem, do interior, colono, que estava ali naquele colégio na condição de irmão não querendo mais ser, quem sofreu foram os alunos. Então foi um ano terrível. Tanto que o meu boletim é o boletim que não é gremista, é um boletim colorado, totalmente vermelho. Se meu pai fosse colorado ele teria orgulho daquele boletim. E ao final do ano houve o conselho da escola que eu repetisse o ano. Eu tinha chegado arranhando nas médias, depois de todas as segundas épocas, mas o professor regente que substituiu o irmão, o irmão abandonou em outubro a aula, abandonou a congregação e aí assumiu o prefeito do colégio que é o disciplinador do colégio, que também é uma pessoa inesquecível e maravilhosa, um homem de grande autoridade moral, aposentado, depois professor de Artes da UFRGS. E ele é que chama meus pais e diz: “Olha, o Léo alcançou a nota mínima, é decisão de vocês, mas eu aconselho que pra ele não patinar daqui pra frente, que ele repita o ano”. E gozado, aí perguntaram a minha opinião (risos). Meus pais perguntaram a minha opinião, eu dei a opinião que eu não queria repetir e fui para o quinto ano primário. E a condição foi um ano sem coral, o castigo foi esse. Eu fiquei um ano sem o coral, voltei só na primeira série ginasial. Bom e depois todos os meus regentes me marcaram porque eu sempre fui, uma característica minha, eu sempre fui um aluno que se destacou. Então eu, por exemplo, sempre ocupava cargos de direção, sempre se elegia o grêmio estudantil e os líderes de turma, eu sempre era o líder de turma, não há nenhum ano que eu não fui líder de turma. Às vezes quando tinha muita oposição a mim ou ao meu perfil de personalidade eu era diretor social, diretor esportivo, diretor cultural. Não era o presidente de turma, mas os outros anos era o presidente de turma. Isso sempre foi assim. Então eu sempre tive uma relação muito forte com a direção da escola e uma relação muito forte com os regentes. E relações sólidas, boas, positivas. Há regentes que eu tenho notícias e vínculos até hoje, até hoje, normalmente religiosos, os que são vivos eu tenho vínculo até hoje. Teve de novo uma situação bastante desagradável que eu passei que foi o seguinte: eu não lembro se no segundo ou terceiro ano do ginásio a turma se rebelou contra a professora de Geografia, que era uma grande amiga minha, eu gostava muito dela. Mas ela era uma pessoa de estilo autoritário. E como eu era filho de pais alemães autoritários aquilo em nada me oprimia, mas os alunos reagiam muito intensamente. E aí fizeram uma reunião pra reclamar da professora de Geografia com o nosso regente, que era o professor AléxiusFollmann. O professor Aléxius, um diplomata, um irmão lassalista, o que ele fez? Ele ouviu a queixa dos alunos e ele disse: “Olha, o que eu aconselho é vocês conversarem com ela. Quando ela vier vocês digam: ‘Professora, queremos conversar’. E aí contem pra ela isso, conversem com ela”. Bom, o que aconteceu? Imagina que no segundo ou terceiro ano ginasial nós éramos crianças, sei lá, de 12, 13 anos de idade, nós éramos muito imaturos. E aí quando a professora disse, ela já era uma pessoa autoritária, era uma pessoa difícil, ela não tinha fleuma, que outros professores teriam diante de uma crítica. Chegou diante dela, professora Classi, os alunos: “Tá, disseram que vocês querem falar comigo. O que é?”. E fez-se o silêncio e ninguém falou. Bom, e eu era o líder de turma, eu disse: “Professora, eu vou dizer”, boi de piranha, né? “Eu vou lhe dizer. Olha, o que os alunos estão dizendo?”, porque eu não falei com raiva porque eu gostava dela. Pra vocês terem ideia de como eu gostava dela, que no ano anterior ela tinha me levado, cinco alunos, para almoçar na casa dela, ela tinha casado e ofereceu um almoço pros líderes de turma que ela tinha uma boa relação. Eu fui um dos cinco, eu almocei na casa dela no ano anterior. E eu achei que eu tinha uma intimidade, tipo, sei lá, madrinha, afilhado, ou mãe e filho, mestra e aluno, de contar pra ela o que os colegas disseram foi isso, isso, isso. E lamentavelmente ela interpretou que eu era o porta-voz e que eu endossava essas críticas. Eu devo ter dito, falado de um jeito, ou ela tem uma personalidade em que ela recebeu isso como um ataque. Aí a reação dela não foi boa, foi muito ruim. Não houve diálogo, os alunos não falaram, lembro bem, e aí começou boicote a ela. Você sabe que o Cornelius Castoriádis diz muito claramente no Destinos do Totalitarismo, a resistência se manifesta de um jeito ou de outro, não adianta tu colocar um sistema totalmente stalinista, opressor, de um jeito ou de outro vai aparecer o absenteísmo, a falta, a não adesão, o não comparecimento. É isso que aconteceu na turma dela, os alunos não aderiam a ela. Ela tinha um problema de insucesso, notas ruins, os alunos não faziam os deveres, tudo, até que um dia apareceu grifado lá um palavrão com o nome dela. Riscado no marco da porta. Os marcos da porta eram largos, colégio de freira e de padre, e ali riscaram. Nem sei se era exatamente da nossa turma mas ela leu aquilo, ela fez uma investigação, ela mandou todo mundo escrever palavra. Ela fez um ditado, todo mundo tinha que escrever porque ela comparou as letras. Ela entrou numa reação paranoide. Bom, ao final do ano meus pais são chamados e eu tive que assinar um termo de compromisso para permanecer na escola senão eu seria expulso, que é uma coisa absurdamente injusta, comigo foi injusto, compreende? Mas eu fiquei como o bode expiatório do cara que era o porta-voz desse movimento de resistência à professora. A verdade é que ela não permaneceu no colégio, mas foi um troço traumático eu olhar pros meus pais, eu tinha vários problemas na minha vida, mas eu não era insubordinado, desrespeitoso, deseducado, nunca usei palavrão na vida, jamais diria um palavrão pra uma professora, isso não faz parte da nossa cultura. Então aquilo pra mim foi uma vergonha. O diretor da escola conversar comigo e com os meus pais e enquadrar com muita elegância, muita classe e fazer o meu pai se submeter a assinar uma condição para eu permanecer na escola. Aquilo foi uma coisa bastante degradante. Então, como tu tá perguntando não só o sucesso, mas os insucessos, eis um deles.
P/1 – E pela data você cresceu na escola durante a ditadura militar, não foi?
R – É. Eu cresci durante toda ditadura militar.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Termina a ditadura militar eu sou um homem de 20 anos de idade, já tenho seis anos de carteira assinada.
P/1 – Você teve alguma vivência, se sentia isso em Porto Alegre, como é que é?
R – Olha, a verdade é a seguinte, viu, eu sou da geração que só se beneficiou da ditadura militar. Eu fiz oposição à ditadura pelo autoritarismo e porque toda a minha geração também se esquerdizou e fez oposição à ditadura. E eu dediquei anos a isso. Mas como classe social os meus pais ascenderam de condição de classe, todos os vizinhos ascenderam de condição de classe. Nós estamos naquele grupo narrado pelo Fernando Henrique Cardoso em uma de suas obras, de que o Brasil teve três grandes movimentos de mobilidade social ao longo do século XX, o terceiro foi durante a ditadura militar e que mais de 30 milhões de brasileiros ascenderam a condição de classe. Nós estamos nesse meio aí. Além disso, eu tive acesso a uma boa escola privada, mas acesso a materiais quase gratuitos, a ditadura subsidiava o material escolar de uma forma impressionante. Nós tínhamos acesso aos melhores materiais a preço de banana, a preço de pão quente, compreende? Além disso, era um período de expansão econômica, então o mercado só expandia no Brasil. Eu tive emprego, eu sempre tive trabalho, eu nunca tive falta de trabalho, eu aproveitei e estudei. Então o sujeito estudando, trabalhando e sendo de uma família com uma certa tradição cultural, ainda que de classe média, eu sempre tive acesso a empregos, acesso a trabalho e depois eu tive um magistral acesso à escola universitária pública federal. Então eu fiquei dez anos na UFRGS, dos dez anos que eu estive na UFRGS, seis anos eu fui pago pra estudar e os outros eu tive lá gratuitamente. E o resto eu tive bolsa pra estudar, compreende? As bolsas eram fartas, as oportunidades eram fartas, os professores vinham todos da Europa com mestrado e doutorado no exterior e todos nós pudemos acessar mestrado ou doutorado no exterior pago pelo governo brasileiro. Isso já é o final da ditadura, já é a redemocratização que acontece isso, mas as estruturas públicas e o orçamento público é aquele desenhado na ditadura militar. Por isso que eu digo, nós somos a geração que não sofreu nenhuma das idiossincrasias da ditadura, nós nos opusemos porque nós sonhávamos com democracia e porque nós fomos formados sujeitos com a questão da equidade, da igualdade, esses valores dentro da igreja católica foram muito importantes. E essa juventude foi investida nesses valores, por isso a gente lutou contra a ditadura, todos nós.
P/1 – Esse movimento dentro da universidade?
R – Não, eu comecei com o movimento de juventude aos 14 anos de idade, eu ingressei em movimentos de juventude. Em Porto Alegre surgiu um dos mais sólidos movimentos de juventude organizado por um pool de cinco congregações religiosas à esquerda. Enquanto que a história da igreja do centro do país é uma história de que são os setores diocesanos que são esquerdistas e os setores religiosos são mais conservadores, no Rio Grande do Sul é exatamente o contrário: o setor diocesano era o Cardeal Dom Vicente Scherer, extremamente conservador. Agora, os setores religiosos, as freiras e os padres religiosos eram progressistas, bastante progressistas, todos eles bebendo no Teologia da Libertação, bebendo no método Paulo Freire, todos eles são egressos da JOC, JEC, JUC, JAC. E todos eles se dedicaram a fazer movimentos de juventude pra formar essa juventude, muitos deles, para a militância social. Quer dizer, a noção nossa de que evangelizar não significava converter espiritualmente, significar engajar na vida prática. E o engajamento se dava na comunidade eclesial de base, na associação de bairro, no sindicato ou numa outra frente de luta. Eu fui metalúrgico e sou fundador da Oposição Sindical Metalúrgica de Porto Alegre. E viemos a São Paulo conhecer, a primeira vez que eu vim a São Paulo viemos conhecer os trabalhos eclesiais engajados na política popular de São Paulo e ficamos um mês aqui, ficamos 15 dias em São Paulo e 15 dias viajamos pelo interior de São Paulo. Fomos a Lins, a Ribeirão Preto e a Piracicaba conhecer movimentos de igreja que eram exemplares. Então a nossa formação de centro-esquerda, quem dá isso é a igreja católica. E a isso deu origem a um movimento, o movimento que a gente teve era um movimento que fazia 30 dias de imersão de formação, eram dez dias por ano e tu só terminava o curso ao final de três anos, tuficava janeiro dez dias em imersão num seminário na zona rural, no interior, recebendo formação, formação, formação. Naquela época nós, por exemplo, já lia toda essa turma aí, Frei Betto, Frei Tito, Frei Ivo Lesbaupin, a gente lia tudo isso. Paulo Freire, esses caras que ainda são vivos, o Boron em São Paulo, o Beozzo que é vivo e segue escrevendo, esqueci o primeiro nome do Beozzo. A gente lia esses caras, nós líamos tudo o que Dom Tomás Balduino e Dom Pedro Casaldáliga escreviam. Nós sabíamos tudo. Eu estive em São Paulo quando se fez o primeiro ano de assassinato do operário, o metalúrgico que foi assassinado aqui em São Paulo numa greve, o Santo Dias da Silva. Nós estivemos nas celebrações populares de periferia de um ano de assassinato do Santo Dias da Silva, que era exatamente um ano depois da morte da Elis Regina, que tinha lá no Centro Cultural São Paulo uma grande exposição do Elifas Andreato em homenagem à Elis Regina. Então isso a gente viveu e acompanhou, mas tu tá vendo que isso já não é mais um clima de perseguição, de tortura, não é mais um clima de clandestinidade, é um clima em que tu já tens jornais alternativos todos sendo publicados. Era época em que se fazia, botava fogo nas bancas de jornais e revistas, compreende? Foi nessa época que sequestraram o Dom Helder Câmara. Esta época é a época da nossa juventude e nós tínhamos engajamento político. E todos vínhamos do mesmo movimento de juventude de igreja católica de Porto Alegre. Pra tu entrar nesse movimento era assim, ó, todas essas escolas particulares selecionavam os jovens líderes e convidavam pra fazer essa imersão e quem fazia três anos desses curso e terminava ingressava num movimento chamado Peregrinos. O nome deste curso era Ceta, Centro de Treinamento para Ação. Nós somos uma geração de brasileiros do sul do Brasil formados no Ceta, quase mil jovens líderes. Todos eles, pessoal, estão ocupando posições importantes de protagonismo nas organizações e nos lugares onde trabalham. Três ou quatro deles trabalham hoje dentro do Palácio do Planalto.
P/1 – Mas os órgãos de repressão não chegaram a te procurar, alguns amigos seus?
R – Sim, sim. No Colégio São João houve uma denúncia contra o nosso grupo de jovens e aí os dois mais velhos foram chamados na Polícia Federal. Eu acho que isso é em torno de 79, 78, e abrem um processo contra esses dois colegas do grupo de jovens, dois colegas do meu movimento de juventude. Eles foram à Polícia Federal, deram depoimento e abriu-se processo contra eles. E esse processo é só com a Lei de Anistia. Sim, dois dos nossos colegas chegaram a ser de alguma forma constrangidos. Porque de fato nós éramos esquerdistas, católicos esquerdistas que pregávamos a resistência à ditadura e que estávamos dedicados à rearticulação partidária. Tanto que o nosso movimento acaba quando há rearticulação partidária. Porque nós nos dividimos, o grupo que vai para o PMDB e o grupo que ajuda a criar o PT. E essa divisão gera uma briga entre nós e acaba o movimento de juventude.
P/1 – Você ficou em qual lado?
R – Eu sou fundador do PT, fui direção. Porque como eu era metalúrgico, um jovem metalúrgico de classe média, bem intelectualizado, isso te dava uma disparada. Eu fui formado na época em que o PT perde a eleição de 82, daí o PT tem uma briga interna muito forte e é formado aqui em São Paulo o Grupo 113. E se constitui também o Grupo 113 em Porto Alegre e ele tinha três coordenadores, um coordenador representava os trotskistas, outro coordenador representava o movimento sindical e um coordenador representava os igrejeiros, esse que vos fala (risos), representava os católicos.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Acho que eu tinha uns 22 anos. Eu já estava na UFRGS, eu sempre fui empregado, continuava trabalhando. Acho que nessa época eu trabalhava numa indústria chamada Wallig, cujos pais de vocês todos tiveram fogões Wallig. É capaz de lá na casa do campo ainda o fogão estar lá porque o fogão é interminável.
P/1 – Você começou a trabalhar na metalurgia quando?
R – Não. Eu comecei aos 14 anos no Makro Atacado, perto de casa. Meu pai que conseguiu o emprego. Trabalhei dois anos nesse emprego e aí um tio meu conseguiu um salário melhor na Forjas Taurus, fábrica de armas, é bem perto da minha casa também, em Porto Alegre. E aí trabalhei dois anos na Forjas Taurus. Neste período nós fundamos a Oposição Sindical Metalúrgica e aí eu fui demitido. A gente fundou a oposição do sindicato pelego e eu fui demitido. Mas uma outra metalúrgica desavisadamente me contratou, que foi a Wallig, e aí trabalhei dois anos na Wallig. E a Wallig faliu porque a Wallig recebeu incentivo do governo militar pra instalar indústrias no Nordeste, o negócio no Nordeste não deu certo, gerou uma dívida e a ditadura não pagou a dívida, a empresa faliu. Então hoje se você for em Porto Alegre um dos grandes shoppings de Porto Alegre é o Bourbon Wallig, ali era a Metalúrgica Wallig e este era um bem que a Wallig deve ter ações ali, junto com os Zaffari, que existe aqui em São Paulo, Zaffari & Bourbon. É isso. Eu fiquei na Wallig dois anos, isso dá uma soma de seis anos, mais ou menos, que eu trabalhei no comércio em duas indústrias. Dali eu fui pra universidade, eu fui convidado por um professor pra ser técnico científico da universidade porque eles tinham ganhado uma verba da Capes e esse dinheiro pagava o salário pra técnico científico. Aí eu fui por quatro anos funcionário da universidade federal, foi o período que eu acelerei minha faculdade porque quando eu trabalhava na indústria eu conseguia fazer só três, quatro cadeiras da Sociologia; quando eu me tornei funcionário da UFRGS eu conseguia fazer aula em horário de trabalho porque eu compensava depois em casa, em horários alternativos. Então nesse período eu consegui acabar a universidade, a Sociologia, e imediatamente entrei no mestrado.
P/1 – Nessa época que você trabalhava estudando você aprendeu algo sobre reciclagem nas indústrias ou na escola?
R – Nunca.
P/1 – Nada.
R – Nada. A única coisa que eu aprendi foi Cipa. Teve uma época que eu, como eu trabalhava na madrugada na Wallig, eu era operador de minicomputador, vocês nem sabem que isso já existiu, computador Borus. Meu horário era das quatro da tarde, por causa da UFRGS o meu horário era das quatro da tarde às 11 da noite, então à noite no escritório eu era o único funcionário presente trabalhando e aí eles me colocaram na comissão de acidentes de incêndio, a Cipa, e aí eu tive que fazer treinamento pra Cipa, só isso. Nunca houve nada de reciclagem, nada disso.
P/1 – E essa época você falou que ouviu muito Tropicália, Jovem Guarda. O que você fazia pra se divertir na época, como é que as pessoas saíam, se namoravam, como é que era isso?
R – Como é que eles faziam ou como é que eu fazia? Porque eu era meio outsider, entendeu?
P/1 – Ah é? (risos) Como é que era a norma, então, e como é que você fazia?
R – Bom, ao sair do São João essa juventude segue uma vida bastante divertida, compreende? E eu não, eu sou trabalhador. Então eu não participo disso. Até andei conversando com a minha filha recentemente sobre isso, semana passada. Aí houve um período de dois a quatro anos em que eu fiquei muito só, dedicado só ao trabalho e ao estudo. Esse período foi um período muito difícil, foi um período mais pesado da minha vida. Minha filha está sentindo um período muito pesado agora, eu compartilhei com ela isso.
P/1 – Ah, é?
R – Pra dizer como eu saí disso, o que eu fiz pra sair disso. Bueno, essa foi uma fase difícil, mas a turma do Colégio São João continuou, essa juventude se divertiu, só foi trabalhar depois, na época da universidade. Diferente de mim que saí do colégio e me dediquei ao trabalho. E aí a vida do trabalho e de estudo, ela era absurdamente estafante, final de semana eu ficava em casa descansando porque eu tive estafa aos 16, eu acabei no hospital, eu tive um desmaio numa avenida e era por falta de horas de sono e alimentação. E eu me dedicava a estudar, compreende. Tanto que eu consegui passar na universidade federal não obstante meu segundo grau tenha sido um segundo grau muito fraco, eu fui competitivo e passei na universidade federal porque eu me dedicava a estudar. Fiz um cursinho durante um ano, paguei um cursinho caro, já que eu trabalhava tinha direito pra pagar o cursinho, fiz o cursinho durante o dia e trabalhava à noite na Wallig e passei na universidade federal. E eu estudei muito, eu tinha um sistema de estudo muito rigoroso. Então é o seguinte, eu queria também dizer isso lá, uma coisa que me caracterizou: as pessoas me consideram um cara muito inteligente, né? Isso não é verdade! Eu na realidade sou um cara altamente disciplinado, eu sempre fui muito disciplinado. E eu sempre supri toda a minha defasagem, toda a minha deficiência e limitações dedicando mais que a média das pessoas e aí eu conseguia ou empatar ou até disparar. Então a visão que as pessoas têm de mim, ela não é muito verdadeira. Na realidade eu sou um sujeito organizado, disciplinado, dou uma aula magistral, fui professor dez anos na universidade, 15 anos, dou uma aula magistral, todo mundo acha isso genial, mas essa aula foi muito preparada antes pra ficar magistral, senão não fica, não sai, não dá. Dou uma conferência, ai sai super bem na conferência, ensaiei antes às vezes na frente do espelho, isso é muito bem organizado. Então eu sou muito dedicado, muito disciplinado. Pra passar no vestibular eu fiz isso. Meu sonho é que minhas filhas pudessem seguir esse exemplo, mas não é exatamente assim. Eu combinei comigo mesmo que durante seis meses, além de fazer o cursinho, eu estudaria duas horas por dia pro vestibular. Se eu estudasse seis dias por semana duas horas por dia domingo era folga. E o que eu não fazia dos seis dias, duas horas por dia, domingo era recuperação. Então se faltassem quatro, se faltassem seis eu tinha que estudar no domingo. E este sistema funcionou muito bem, eu realmente cumpria as duas horas, raramente eu dediquei domingo uma hora a mais, duas horas a mais porque eu precisava recuperar, porque eu fui muito fiel a isso, funcionou muito bem esse sistema. E aí eu consegui passar na UFRGS, que era uma coisa pra mim inimaginável, eu nunca imaginei que eu teria argumento pra passar na universidade federal. Nunca. E passei. E adorei o curso e tive grandes professores.
P/1 – E quem te marcou de professor nessa época?
R – Ah, vários. Vários professores marcantes, professores inesquecíveis. Vamos lá, pelo menos uns quatro deles, né? Uma pessoa que não é generosa, mas que é sábia e que foi uma grande mestra foi a professora Sônia Laranjeiras de Sociologia, foi minha professora em quatro disciplinas. Professora Mercedes Loguercio Cánepa, foi professora em umas cinco, seis disciplinas diferentes entre graduação e mestrado, professora de Ciência Política. O professor Ruben Oliven, professor de Antropologia, um dos grandes antropólogos brasileiros; trabalhei com ele quatro anos, foi ele que me convidou pra ser técnico em pesquisa e ele sempre sonhou que eu me tornasse antropólogo. Mas eu era tão militante de esquerda que eu não conseguia me enquadrar na Antropologia, fui fazer Ciência Política. Talvez hoje eu revisasse essa opção. Trabalhei com o professor Ruben durante quatro anos e depois fiz todas as suas disciplinas no mestrado como opcionais. É meu amigo até hoje, sábado estou indo no aniversário de 70 anos do professor Ruben Oliven e vou comprar uma camisa bem bonita, bem cara e bem diferente pra dar de presente pra ele, porque é uma das pessoas que eu mais amo e que eu mais eu tenho gratidão. E por fim o meu orientador de tese, o professor João Carlos Brum Torres é um grande filósofo da escola de filosofia da UFRGS, foi cassado do regime militar e é um egresso reintegrado à universidade federal. Foi por três governos Secretário de Planejamento do Estado do Rio Grande do Sul, é um dos grandes intelectuais gaúchos e um dos grandes líderes do PMDB gaúcho. E o professor João Carlos é uma pessoa com quem eu tive aulas de graduação, fiz todas as disciplinas do mestrado, convidei pra ser meu orientador de tese, foi meu orientador de tese, já trabalhei com ele na vida profissional depois disso em quatro oportunidades diferentes. Nós já fomos parceiros de trabalho em governos, trabalhamos em três governos juntos. E somos amigos até hoje. Ele é uma das figuras de autoridade, de referência acadêmica e fraterna de quem eu tenho a mais elevada gratidão. E tive a chance de manifestar isso publicamente. Eu nunca tive festa de aniversário, não se faz na minha família festa de aniversário, aniversário é uma coisa que não tem importância – é diferente pra vocês aqui em São Paulo que é uma coisa tão rica e tão valorizada, né? Mas quando eu fiz 50 anos eu estava bem de vida e resolvi fazer uma grande festa, fiz uma festa pra 300 convidados, aluguei a casa mais chique que tinha lá no meu bairro em Porto Alegre e fiz uma festa pra 300 convidados. Foi o prefeito, foi o vice-prefeito, foi todo mundo, meus amigos todos. E lá eu disse: “Essa festa não é uma festa pra mim, tanto que não vai ter um Power Point aqui em minha homenagem, eu quero esclarecer a vocês, essa festa eu fiz para agradecer a vocês, todos vocês que estão aqui são importantes na minha vida e eu vou dizer por quê. E eu fiz um pequeno discurso, uns dez, 15 minutos, dizendo porque eles foram importantes na minha vida. E o professor João Carlos chegou a se levantar e veio me abraçar de tão lisonjeado que ficou. Porque de fato é essa gratidão que eu tenho. Então eu queria dizer isso aqui nesse depoimento, viu? Olha, eu fui um privilegiado como muitos da minha geração, talvez eu seja um dos que mais reconheça. Nós tivemos grandes professores, esses professores foram financiados pelo Estado brasileiro, pelo recurso público do Brasil, eles foram trabalhadores de organizações públicas e nós fomos organizações de espaços públicos, nós somos uns privilegiados. Sempre que eu ganho um pedido qualquer de uma aula, de uma palestra, de uma conferência ou de um curso em uma escola pública, num lugar popular eu atendo gratuitamente a todos porque eu nunca vou devolver a metade do que eu recebi, que o Estado brasileiro e a sociedade brasileira me deram. Eu ganhei tudo isso, eu só tenho o mérito de reconhecer e honrar, compreende? Não ter faltado à aula, não ter ocupado a vaga tempo demais pra que outro não entrasse, compreende? Quer dizer, esse é meu mérito, o de reconhecer de que eu estava sendo investido e portanto eu teria que honrar esse investimento. Tanto que eu não posso ver aquelas cenas, se é que vocês lembram, o filme O Resgate do Soldado Ryan, o final do filme, vocês lembram, é o garoto que foi resgatado, ele é um homem hoje de 60, 70 anos e ele vai na frente do túmulo do comandante que resgatou ele lá no meio da guerra, né? E ali na frente do cemitério ele lembra a cena final, em que ele está ferido de morte e ele diz pro soldado resgatado: “Faça por merecer. Você teve um privilégio, faça por merecer”. Eu choro nesse filme porque realmente é isso que eu acho, eu tenho que fazer por merecer, eu ganhei, os outros morreram no caminho (risos). É isso.
P/1 – Sobre o que foi a sua tese?
R – Minha tese foi sobre a formação do PT, a história do PT. É uma das poucas narrativas desde o início de como se forma o PT, quais são as matrizes ideológicas, quais são as diferentes metodologias que se casaram, o que deu certo e o que era inviável nesse projeto. E como nasceu o PT e qual a característica que ele tem, faço uma análise das características do PT. Ela não é publicada. Porque o PT é um fenômeno que só veio a ser, isso é nos anos 90, eu fiz a defesa em 90, então ela é uma tese de 87, 88, 90, 90, o PT era um assunto marginal, o PT só se tornou um assunto relevante agora. Seja por que motivo for. Um dia essa tese vai ser resgatada, ela é um documento histórico porque eu entrevistei as pessoas e eu fiz tudo pesquisa em fontes primárias. Então o que eu documentei não tem documentado em outros lugares. Eu li todos os trabalhos sobre o PT, conheço todos, da Rachel Meneguello, do Arraes Filho, eu li tudo. O que eu tenho ali é uma reserva pro futuro pros pesquisadores.
P/1 – E depois do mestrado o que você foi fazer da vida?
R – Bom, aí a minha vida teve um baita de uma virada (risos). É o seguinte, aconteceu uma super virada na minha vida, que eu perco inclusive os vínculos tão esquerdistas assim. Quando eu estou no mestrado, no primeiro ano, um professor meu de Ciência Política que é um personagem bastante conhecido no Brasil, ele se aproximou de um grande líder empresarial do Rio Grande do Sul que era um cara que desejava ser governador do estado, então é um cara que estava fazendo carreira dentro do mundo empresarial, entrou na política dentro do PMDB e ele queria ser o sucessor do governador Simon, indicado pelo empresariado gaúcho. Então esse cara ele formou um grande grupo político. E ele era um cara muito progressista, um dos maiores intelectuais do empresariado gaúcho. Lembrem que isso é época do PNBE, OdedGrajew, Klabin, toda essa turma do PNBE de São Paulo. Pois lá no Rio Grande do Sul tinha o Luiz Octavio Vieira que era quase sozinho, quase não tinha parceiros, mas ele juntou muito parceiro em volta. Um dos parceiros que ele junta é um cientista político da universidade federal, que é esse meu professor. E esse meu professor então, fazendo parte desse grupo, ele recebe o pedido desse candidato, desse empresário. “Olha, não era o caso de pegar um jovem cientista político e botar aqui dentro e ele crescer com a gente?”. E o meu professor disse: “Ok, vou pegar um cientista político lá que está fazendo mestrado na UFRGS”. E quem é que ele elegeu? Entre tantos alunos me convidou, eu aceitei o convite. E aí o que acontece? O Banco Meridional foi um banco federal, né? Este empresário se torna presidente do banco e me contrata pelo banco pra ser assessor dele e eu vou trabalhar no Banco Meridional durante dois anos vinculado a este grupo político que é do PMDB, vocês entendem? Então eu faço, em 1985, essa transição de um jovem esquerdista para um jovem da oposição e que dialoga com a esquerda e com o centro da oposição. Enquanto o PT e PMDB eram inimigos eu já não era mais, hoje são parceiros, né? Nisso eu tive uma antecipação histórica, eu tinha o vínculo com os dois partidos, duas organizações, e tenho até hoje. E tenho até hoje. Tanto que eu sou um filiado nunca desfeito no PT, mas trabalho há cinco governos pro PMDB. E aí isso me colocou na vida pública. Por quê? Porque o Luiz Octavio Vieira se tornou presidente da Cruz Vermelha, ele estava num carreirismo pra ser governador, se convidassem ele pra síndico de condomínio ele aceitava. Então ele aceitou ser presidente da Cruz Vermelha do Rio Grande do Sul e nesse meio tempo ele tem uma estúpida briga com o ministro da justiça, uma disputa política regional, o ministro da Justiça que era ninguém menos do que o Paulo Brossard de Souza Pinto, que derrota ele e esse cara entra em desgraça política. E aí o grupo me indica pra ser o sucessor dele na presidência da Cruz Vermelha e aí eu fui presidente da Cruz Vermelha do Rio Grande do Sul durante dez anos. E isso foi um grande sucesso. Porque era um jovem, eu tinha 28 anos de idade, um jovem com um discurso progressista, com formação na universidade federal, cercado de médicos e de militantes na área de álcool e drogas, que era o assunto da Cruz Vermelha, um sociólogo que se especializou em assuntos, tanto que eu tenho textos publicados sobre álcool e drogas, eu e Alba Zaluar somos cientistas sociais que mais trabalharam esse tema de álcool e drogas no Brasil. Dez anos fiquei ali numa função executiva, mas também de produção intelectual. Isso me deu uma grande legitimidade a ponto de, em seguida, me tornar diretor da Fundação Maurício Sirotsky da RBS. Ou seja, quando a RBS entrou numa crise com a sua fundação, eles procuraram no mercado alguém pra convidar. E a dona Ione Sirotsky, que é a mãe da família, ela disse assim: “Eu conheço o cara, aquele cara que preside a Cruz Vermelha. Esse cara aqui tem esse potencial. Conheço ele e acho que ele pode ser”. E aí a empresa me convida, me contrata durante consultor durante um ano e ao final de um ano me contrata como diretor. Aí eu virei diretor de grandes companhias no Rio Grande do Sul. Fiquei dez anos na RBS e depois fiquei outros dez anos na Vonpar, que é a Coca-Cola local, fiquei dez anos na Coca-Cola local. Então o que eu me tornei ao final dessa transição, essa passagem aí por uma vida pública, isso me levou a me tornar não só um intelectual da área das Ciências Humanas, mas também um executivo de organizações. E hoje eu vivo disso, eu dirijo organizações e eu sou consultor e membro de conselhos de diversas organizações. Eu sou o único, pelo menos no Rio Grande do Sul, o único sujeito do campo das Ciências Humanas, do campo da Ciência Política, que é executivo muito embora seja sociólogo. Tanto que houve uma pesquisa da universidade federal na época sobre mercado profissional de Sociologia e eu era o salário pico da pirâmide.
P/1 – Como é que foi trabalhar na Cruz Vermelha e como era a rotina lá?
R – Bom, era um trabalho voluntário, eu era presidente de um conselho. Era um trabalho voluntário. Para mim ali, eu dediquei muito do meu talento, da minha juventude, eu era muito admirado, mas eu me beneficiei muito porque eu convivi com um grupo de intelectuais de outro paradigma, aprendi coisas de Medicina que eu desconhecia, sou hoje quase um paramédico (risos), me especializei em temas de álcool e drogas, então eu tenho inclusive, quem escreveu a política de tratamento de drogadição da Prefeitura Municipal de Porto Alegre fui eu depois anos mais tarde, a convite do Fogaça, ex-prefeito. Então ali eu ganhei muito porque eu me especializei, me tornei um sujeito intelectualmente respeitado. Em vez de ser um jovenzinho de esquerda, um jovenzinho acadêmico dentro dos muros da academia eu passei a fazer esse vínculo entre a reflexão acadêmica das Ciências Humanas e o mundo prático da execução de políticas públicas. Eu comecei a, através da Cruz Vermelha, aprender a executar políticas públicas para atendimento, tratamento e recuperação de drogadictos. E quando eu fui pra RBS o tema só mudou, mas eu era executivo de políticas de proteção à infância e juventude. Então nós fomos a primeira organização a investir na implantação do ECA no Rio Grande do Sul. Fomos presidente do Conselho Estadual por dois mandatos e isso me alçou, inclusive, a ser membro da Ande em Brasília por 15 dias, Agência de Notícias dos Direitos da Infância de Brasília, então só mudou o tema, eu passei a ser executivo de políticas da infância, então eu me tornei um grande especialista em proteção à infância. Tanto que um dos meus últimos empregos há menos de dez anos foi no governo municipal criar política pra erradicar circunstâncias de rua pra crianças em vulnerabilidade. Porto Alegre hoje não tem mais menino de rua, nenhum. Então foi implantada uma política. Saí da RBS, da política da infância e aí fui pro Sistema Coca-Cola. É aí que eu entro na área da Sustentabilidade e Reciclagem. Quando eu entro na Coca-Cola, quer dizer, eu não entrei na Coca-Cola, eu na realidade estava fora da RBS, eu saí da RBS e fui pra Abrinq, eu fui superintendente da Abrinq por dez meses. Vim pra São Paulo à convite de Hélio Mattar, fiquei dez meses. Quando deu a briga na Abrinq o Hélio sai da Abrinq, com o Hélio saio eu também. E aí volto pro Rio Grande do Sul e estou desempregado. Foi aí que eu fui trabalhar no Governo Fogaça. Bom, eu estava no Governo Fogaça, com uma dedicação 30 horas quando a Vonpar pede uma consultoria para montar a sua fundação. A Vonpar, então, é a grande empresa Coca-Cola no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Eles querem uma consultoria para montar uma fundação e eu faço uma consultoria com eles até que chega o dia que eles perguntam: “Escuta Léo, mas qual é o tema que tu acha que a gente tem que trabalhar?”. Eu disse: “Olha, eu sou que nem psiquiatra, quem dá a resposta é tu. Eu crio a circunstância, mas o insight tem que vir de vocês”. Até que na terceira reunião, eu insistindo na minha metodologia de não dar respostas (risos), o presidente foi muito legal, o presidente da empresa foi muito legal e disse assim: “Tá bom, eu já entendi a tua metodologia, eu sei que tu quer assim, mas é o seguinte: te põe no meu lugar, se tu estivesse no meu lugar o que tu faria? Te põe no meu lugar, estou te pedindo”. Eu disse: “Olha, não tenho nenhuma dúvida que eu investiria no sistema de reciclagem, na inclusão de catadores, no desenvolvimento desses sistemas populares tão marginais e empobrecidos, de resíduos”. Daí ele disse assim, foi um insight muito legal, ele disse assim: “Não, mas nós fizemos projetos de sustentabilidade, nós financiamos aí, nós ajudamos alguns galpões de reciclagem. Nós temos a nossa área de sustentabilidade”. Eu disse: “Olha, só um pouquinho. Eu não acho que isso aqui é um projeto de sustentabilidade, eu acho que vocês deveriam fazer um projeto de inclusão produtiva de populações vulneráveis através do fomento ao desenvolvimento econômico e social de populações empreendedoras populares como impacto ambiental, porque vocês vão reduzir o volume. Mas o foco de vocês não é sustentação, não é ambientalismo, o foco de vocês é fomento econômico”. Aí ele deu a seguinte resposta: “Por isso que a gente precisa de consultor. Porque nós entendemos o que tu está dizendo e sabemos que o que tu está dizendo é absolutamente óbvio, mas nós somos incapazes de formular desse jeito. Quero te convidar pra ser o diretor do novo instituto”. E aí fiquei sete anos lá. E ali eu aprendi tudo o que tem a ver. E eu mudei de novo de tema, tu entende? Não trabalho mais com drogas e álcool, não trabalho mais com infância e juventude, não trabalho mais com prefeitura, mas trabalho com fomento, eu chamo cooperação técnico-financeira a sistemas populares de reciclagem, é esse o meu trabalho desde então. Isso começou em 2007.
P/1 – Mas pra você falar isso pro presidente você já tinha essa preocupação antes um pouco.
R – É, na Maurício Sirotsky a gente financiou alguns projetos de galpões de reciclagem, foi ali que a gente conheceu. Nós financiamos, no primeiro mês que eu estava na Fundação Maurício Sirotsky uns amigos de igreja nos procuraram lá e disseram: “Agora nossos amigos são poderosos, temos o sistema Globo. Vamos lá conversar com eles”. E nos apresentaram a necessidade de uma prensa de galpão de reciclagem. Daí nós fomos lá, isso é 1995 ou 96. Conhecemos uma grande liderança popular, a Ilma que é uma mulher que dirigia um galpão e mostrou quantas famílias viviam daquilo ali, que era triar lixo da pior espécie. Mas Porto Alegre em 95 já tinha coleta seletiva implantada. Coleta seletiva em Porto Alegre tem 28 anos. Então eles recebiam a coleta seletiva, triavam e comercializavam. Dezenas de famílias viviam disso. Foi ali que eu aprendi, na Maurício Sirotsky com essa turma da Wenceslau Fontoura, como é que funcionava esse esquema. E o meu amigo lá que era padre que trabalhava com eles. Mas esse não era o nosso foco, então a gente financiou uma, duas vezes e parou porque o nosso foco foi cada vez mais em direção ao estatuto.
P/1 – Mas isso chamou a atenção de você.
R – Eu achei mágico esse negócio de fazer as pessoas tirarem do lixo a sobrevivência, eu achei esse troço mágico. E vi que se tu desse alguns insumos básicos aquilo deixaria de ser uma renda marginal e passaria a ser uma renda digna, basta atender alguns pré-requisitos. E isso que eu exercitei na Vonpar, na Vonpar eu peguei esse pressuposto: nós temos pouco dinheiro, o que a gente vai fazer? Vamos botar na dignificação que signifique aumento de produção, que se aumentar a produção aumenta o dinheiro no bolso. Então eu tenho claro em todos os documentos da Vonpar é isso: a nossa estratégia não é focada na mulher, focada na educação da criança, focada no meio ambiente. Não. A nossa estratégia é totalmente focada na geração de renda, incrementar renda pro bolso da família. Está lá nos documentos escrito: se o pai e a mãe ganham dinheiro eles cuidam melhor do filho e o filho está mais frequente na escola. Cai o índice de alcoolismo, cai o índice de depressão familiar, cai o índice de agressão, compreende? Se o pai e a mãe têm renda mais ou menos digna todos os indicadores começam a melhorar. E todos os indicadores de violência começam a cair. Esta crença é o pressuposto básico. Tanto que eu digo sempre: nós é que somos marxistas porque nós somos economicistas sobretudo, nós acreditamos que a geração da mudança se dá pela conquista material. E conquista material é dinheiro no bolso do pobre. E desde lá só faço isso. E não é a minha última fronteira de trabalho. Do futuro não pode falar.
P/1 – Pode.
R – Minha próxima fronteira do trabalho quando eu tiver oportunidades, eu ainda vou ver forte o suficiente, eu quero trabalhar com saúde mental, quero ajudar o Brasil a mudar o patamar de saúde mental. Já mudamos a circunstância da drogadição, já mudamos a circunstância da infância, estamos mudando agora a circunstância da catação, da coleta, triagem, comercialização e beneficiamento de materiais, vamos mudar isso no Brasil nos próximos dez, 15 anos. Mas a próxima fronteira é trabalhar com louco. Louco, ninguém quer trabalhar e eu vou trabalhar.
P/1 – Mas antes de chegar nessa parte eu queria, se você pudesse explicar para quem não sabe como você pensa esses insumos, quais são, quais são os problemas mais comuns dessas famílias de catadores, quem eles são, se eles são cooperados ou não.
R – O que eu vou dizer é o seguinte, eu acredito muito fortemente por isso que minhas afirmativas vão ser muito cabais, embora a realidade não seja exatamente assim. Mas é o seguinte, hoje o sistema é assim, o cara coleta de manhã e tria de tarde, isso é totalmente inviável. Porque ele trabalha com uma escala tão baixa que nunca ele vai coletar, separar e vender num volume em que a renda dele vai superar 300 reais por mês. Nunca. Então tem que separar tarefa, coleta é uma atividade, triagem é outra, tá? E o catador, como ele é pobre, ele não pode ficar ao relento na rua fazendo a coleta. A coleta é uma atribuição pública paga por meio dos impostos pela prefeitura, então isso tem que ser contratado pela prefeitura, seja fazendo por cooperativas populares, seja por empresas privadas, isso é secundário na minha opinião. A prefeitura tem que fazer a coleta seletiva, é um dever público do Estado e tem que entregar esses materiais gratuitamente nas unidades populares de triagem. As unidades populares de triagem não podem mais ser amontoados artesanais, compreende, em que são pobres, condições de pobres, trabalhando de forma pobre, de jeito pobre, com resultado pobre e mantendo todos eles na pobreza, tem que acabar com isso. Ou seja, tem que ser unidades populares de empreendedorismo porque esses caras são empreendedores, são trabalhadores, eles trabalham muito, compreende? Só que daí tu tem que botar sistema, tem que botar um pouquinho de engenharia de produção aí dentro, só um pouquinho. Se eu botar um pouquinho de engenharia de produção nós conseguimos sair do 1,5, 1,8 ou 2 toneladas/mês que um catador médio tria no Brasil pra quatro, cinco que são os benchmark. Se os benchmark, os catadores benchmark que triam nos melhores lugares quatro toneladas pelo menos, por que os outros vão triar só 1,5, 2? Não tem por que. Então tu tem que trabalhar com eles, que eles comecem a chegar nesse paradigma de quatro toneladas/mês. Se eles triarem quatro toneladas/mês a renda deles hoje, em média, é superior a 1 mil e 500 reais por mês. Abaixo de duas toneladas a renda não chega a um salário mínimo, jamais vão pagar INSS, compreende? Jamais vão conseguir construir uma cooperativa. Então a primeira coisa é isso: é dividir a catação como atividade pública entregue a domicílio e de forma subsidiada. Dois, a triagem é um negócio minimamente profissionalizado, não mais artesanal, e sim manufaturado. O dia que eles conseguirem fazer isso de forma manufaturada e não artesanal eles começam a ganhar 1 mil e 500 reais, a triar quatro a cinco toneladas por mês. Assim que isso está organizado e tem uma cooperativa você já pode começar a colocar tecnologia, seja esteira, seja fazer ele parte de um sistema de beneficiamento desses materiais. Ou seja, dá para aumentar a renda dele automaticamente, seja colocando esteira, seja fazendo beneficiamento. Só que tu só pode fazer isso depois dele ter deixado a fase artesanal e estar estabilizado na fase manufatureira. Todo investimento feito no Brasil nos últimos 20 anos indo na fase artesanal e botando ali tecnologia, todos os equipamentos, sem exceção, estão parados, estão abandonados. Dar caminhão pra catador é o maior erro: todos os caminhões estão no fundo do quintal, sucateados, compreende? Porque ele não tem capital de giro. Se ele soubesse fazer logística ele não era catador, ele é catador porque ele não sabe gerenciar o sistema de logística. Portanto, não adianta eu botar ele como diretor da companhia se ele não sabe fazer gestão de companhias. Então, assim que ele está num sistema minimamente manufaturado você começa a levar pra área tecnológica, você começa a colocar tecnologia. Nossos galpões mais bem sucedidos da história da carteira Volpar, Braskem que hoje está sendo gerida pela Cooperativa Mãos Verdes que nós criamos, os galpões melhores geridos, o salário médio é 2 mil e 500 reais por mês. Com INSS pago, provisão pra férias e provisão pra doença, guardadinho o dinheiro. Se alguns caras conseguem isso por que os outros não conseguem? As pessoas não são diferentes, se uns conseguem os outros também vão conseguir, é uma questão de organização. Bom e o beneficiamento tem que chegar quando a fase já está avançada e tu precisa ter no mínimo quatro, cinco galpões, em média, de 40 trabalhadores pra poder botar uma máquina de beneficiamento. Se você botar beneficiamento aí a renda começa a passar de dois mil reais por pessoa. Porque o beneficiamento realmente agrega muito valor ao material in natura.
P/1 – E depois você foi trabalhar com a Braskem, é isso?
R – Não, então, quando eu saio da Vonpar a gente resolveu não desistir desta causa dos catadores e da reciclagem. E aí eu reuni todas as pessoas que eu conheci durante a carteira Vonpar Braskem, eu reuni e propus da gente formar uma cooperativa porque eu vi que os recursos eram abundantes nesse campo, não havia por que nós recuar. Se a empresa privada não está querendo investir nisso aí não quer dizer que a sociedade não esteja querendo, está querendo e muito. Aí nós criamos a Cooperativa Mãos Verdes dos especialistas de diferentes formações, tem engenheiro, tem educador social, tem quatro líderes de galpões de reciclagem dos quatro benchmark que a gente conheceu a gente convidou pra ser sócios, quatro presidentes catadores. Eu que sou cientista político, uma administradora financeira que era também da Vonpar Braskem, que geria a carteira Vonpar Braskem de prestação de contas desse financiamento e nós criamos uma cooperativa e desde o primeiro dia os recursos pra nós investirmos nessa área são abundantes. Nunca faltou recurso desde o primeiro dia. E os nossos parceiros são de três perfis diferentes. Primeiro, empresa privada, o grande parceiro, o grande mecenas aqui é a Braskem, desde o primeiro dia. Tanto que a gente criou a cooperativa já sabendo que a Braskem estaria junto conosco. Segundo, os poderes públicos municipais; nós temos um contrato grande com a prefeitura. Nós temos só quatro anos de vida, nós temos um contrato grande com a prefeitura de Porto Alegre, um contrato grande com a prefeitura de Salvador e amanhã estarei assinando contrato com o consórcio do ABC Paulista Sete Cidades. E estamos em negociação com Maceió e Vitória do Espírito Santo. Então o poder público é um grande parceiro. E a grande novidade que apareceu nos últimos dias, isso que nós não fizemos nenhuma busca ativa, na realidade a demanda está vindo, são esses órgãos de classe, associações dos fabricantes de plástico, associação dos fabricantes de comércio, associação dos fabricantes disso e daquilo. Essas umbrellaorganizations, essas organizações setoriais estão investindo nisso, elas têm orçamento pra isso, elas criaram fundos de sustentabilidade para investir na logística reversa. O número de projetos e de pedidos é maior do que a nossa capacidade de atender, é isso que está acontecendo. Uma, nós sabemos então que a Cooperativa Mãos Verdes, por causa da sua excelência, da sua especialidade e pela forma que trabalha, ela é uma organização que amanhã será maior que hoje, e hoje já é maior que ontem, é isso. Por quê? Porque está acontecendo muita coisa no Brasil nesse campo e tem poucos prestadores de serviço que conhecem esse tema com profundidade.
P/1 – Como é que vocês trabalham? Vocês vão fazer consultoria, é isso?
R – É o seguinte. Todas essas organizações querem fazer projetos, eles nos contratam pra fazer o projeto. Nós temos duas ou três metodologias que aplicamos na construção do projeto. Primeiro lugar, quando então uma cidade nos chama a gente faz o projeto com a cidade; chama todos os stakeholders do sistema, usa uma metodologia alemã chamada Zopp e faz uma concertação de qual seria o projeto ideal. Qual seria o projeto ideal? O projeto ideal pra nós é esse. Então tá, a gente desenha o projeto ideal e define com a prefeitura do ideal o que ela vai financiar nessa primeira fase, mas o ideal está consolidado, está ali, um dia ele tem que ser feito. E normalmente as prefeituras têm legitimado integralmente. Porque a gente busca recursos no BNDES e o BNDES tem aprovado integralmente, então a gente faz uma visão sistêmica da reciclagem, define os componentes e os produtos, os serviços, o tempo e o custo que isso vai levar pra implantar. E quais são os atores que vão prestar esse serviço, a gente define. Feito isso, isso vira um projeto e esse projeto busca financiador. Os financiadores sobram. Até hoje sobram. Nem a crise diminui os financiadores. O projeto é aprovado pelos financiadores, normalmente essas organizações nos contratam para executar. Porque tem um negócio aqui, quem contrata projeto, sempre depois na hora de realizar não é bem assim que foi idealizado, por isso que eles nos contratam porque é o seguinte: “Vocês inventaram esse negócio, agora vocês têm que executar”. Está dando super certo. O projeto de Porto Alegre nasceu com 19 de milhões de reais, ao final do ano ele já era um projeto por captação espontânea, 23 milhões de reais. E nós sabemos que até dezembro de 2016, quando termina o contrato com o BNDES, ele já é um projeto de 35 milhões de reais. O projeto de Salvador está sendo contratado, está em exame, 31 milhões de reais no nascimento. Por quê? Porque outros parceiros privados se somam e entram no financiamento. Agora nós sabemos de surpresa são essas associações setoriais.
P/1 – E esses catadores e cooperados, quem eles são, de onde eles vêm? E você tem alguma história com eles, contato com eles? De conhecer essas pessoas?
R – Bom, a Cooperativa Mãos Verdes tem quatro catadores dentro, são nossos sócios. Então nós temos vínculo, frequentamos a casa deles, conhecemos a vida deles e eles frequentam a nossa. Nós também temos um vínculo muito forte com os galpões de reciclagem que nós financiamos, que nós fazemos este upgrade, então com eles as relações são relações produtivas, são relações fraternas e das bases populares a relação sempre é de gratidão. Então esse vínculo é um vínculo muito sólido. Bom, além disso eu sou um especialista em populações excluídas porque eu só trabalhei com pobre toda a minha vida. Meu carro, inclusive, é um carro simples porque eu acho que eu não posso ser um cara muito exibido com um carro muito exibido porque eu vivo dentro de vila e dentro de galpão de reciclagem, compreende? Quer dizer. Então a minha relação é muito forte com essa população. Toda narrativa de qual é o perfil dessa população, como ela funciona, qual é a lógica, como é a sua estratégia social de sobrevivência, quais são suas resistências são narrativas que eu construo nos projetos, pessoalmente eu construo: “Ó, nesta população a característica dela é assim, tais e tais medidas não funcionam, não adianta tentar. Pra eles tem que oferecer tais e tais”. Quer dizer, eu que faço as propostas metodológicas, a análise e a proposta metodológica e os diagnósticos de propor medidas de inclusão nessa população porque é uma população bastante resistente, o que caracteriza ela é o autonomismo, não é só autonomia, é autonomismo. Ela não quer relação com ninguém, com nada e nenhum tipo de vínculo de obrigatoriedade e de continuidade, ela quer autonomismo, compreende? Como é que você faz isso virar assiduidade, produtividade e paciência pra trabalhar hoje e só ganhar ao final da semana ou só ganhar ao final da quinzena? Essa é a lógica anticatador. O catador é da mão pra boca, ele cata isso aqui pra vender daqui a cinco minutos ali, o dinheiro está no bolso. A lógica de todo catador é da mão pra boca. Nós temos que romper com isso, nós temos que mostrar que ele vai trabalhar, vai se organizar e vai receber só no final da semana.
P/1 – Você já sofreu resistência?
R – Isso sofre resistência, é muito difícil. Tanto que a rotatividade nos galpões é muito alta. A nossa rotatividade é mais de 50% ao ano, ela é muito alta.
P/1 – E você tem alguma história de uma pessoa, algum caso que te marcou com isso? Tanto no sentido bom ou ruim.
R – Olha, dezenas. Os caras estão mudando de classe social no Rio Grande do Sul. Sim, muitas, muitas histórias, muitas histórias pessoais. Tem um catador de rua no entorno do presídio central de Porto Alegre, foi abordado pelas nossas equipes e ele é um senhor de idade, a vida toda catador, analfabeto, fez um curso de capacitação, hoje ele é funcionário da Federação das Indústrias e já tem função de chefia apesar de ser analfabeto. E ele é um cara que está em todos os vídeos pra dar depoimento. Outra experiência que eu tive que foi muito forte, nós criamos um curso de preparar catadores para receber uma capacitação profissional. São catadores que são puxadores de carrinho de rua ou de carroças de cavalo. Quando eles foram abordados eles disseram que aceitavam receber uma formação profissional.
TROCA DE FITA
R – Bom, a segunda história que me tocou muito aconteceu no curso que nós estamos dando pra catadores que pediram capacitação profissional ou em padaria, marcenaria, manicure, coisas assim, que é dado pelo Senac. Mas eles não têm o mínimo de formação pra poder acessar o curso, então a gente faz um curso de preparação para ingressarem em programas de capacitação. Eles são puxadores de carrinho ou dirigentes de carroças de cavalo sentados numa sala assim, imagina uns 40. E tinha três mulheres negras, duas delas muito obesas, de mais de 60 anos de idade. E eu dou um dos módulos de aula, eu dou como funciona a sociedade pra eles. E num desses módulos de como funciona a sociedade eu faço eles falarem o que eles fazem. E quando eu perguntei pra essas senhoras o que vocês fizeram no trabalho ao longo da vida elas disseram: “Eu puxei carrinho e isso me levou a nada, estou eu aqui nessa situação”, dizem as mulheres. “A coluna destruída, eu sempre fui pobre, sou pobre e hoje eu tenho meus netos pobres e tenho que cuidar deles. Então de carrinho eu não quero mais nada porque o carrinho não me levou a nada, nesta vida não nos deu nada. Quero começar tudo de novo”, diz a mulher aos 60 anos de idade, com a autoridade da idade, da história de vida, vários netos, compreende? E aí tem que fazer uma transição complexa, fazer uma senhora dessas receber um curso de capacitação e ela tentar se engajar produtivamente nisso, um desafio muito grande e muito desafio. Mas a disposição ali era de fazer isso e você tem que dar essa chance, cada um constrói depois sua trajetória.
P/1 – É delicada a situação dessas pessoas, né?
R – Porque no fundo a intervenção que você faz na vida dela, de um jeito ou de outro você está desautorizando, está intervindo na sua estratégia social de sobrevivência. Pra você interferir na estratégia social de sobrevivência de alguém você tem que oferecer algo claramente melhor, senão você está desorganizando a vida dele.
P/1 – E você falou que você já sofreu resistências também.
R – A gente sofre muito, claro. Quer dizer, o absenteísmo, a não presença, não comparecimento, a não continuidade é a resistência. Mas a resistência não é mais ativa do que isso, compreende? Nós nunca fomos, nossas equipes, o nosso trabalho, nós temos um trabalho de busca ativa em Porto Alegre. Quando estou falando isso eu estou falando que existe 50 profissionais contratados fazendo busca ativa em Porto Alegre de catadores, carroceiros e carrinheiros, tá? Esse é um programa financiado pela prefeitura e pelo BNDES. Então nós temos um trabalho em todas as regiões, das 17 regiões da cidade, de busca ativa desta população, fazendo um convencimento a eles transitarem de atividade. E oferece cinco alternativas diferentes, ele escolhe e a gente financia e dá bolsa pra ele fazer essa transição. A gente nunca sofreu alguma resistência maior no sentido de negativa ou de desrespeito ou de ameaça, isso não existe. E olha que vários mocós, nós estamos mexendo ali existe criminalidade, ali existe tráfico e a gente está acessando, conseguindo dialogar e se relacionar. Até porque nós não estamos entrando lá com papel de polícia, compreende? Não nos interessa a vida privada deles, o que a gente quer é viabilizar passagem. E você sabe que mesmo em circunstâncias criminosas nós estamos conseguindo adesão? Há casos muito, muito emblemáticos no entorno do centro de Porto Alegre que nós estamos às vésperas de ter uma inovação, de fazer um desmonte de uma operação bastante perversa porque escraviza os puxadores de carrinho e este líder reconheceu o protagonismo dele e em vez de criminalizá-lo escravocrata e tráfico, reconhecer que ele é um sujeito dinâmico e gerador de resultados econômicos pra ele e praquela população, até porque a renda deles é boa, é melhor do que dos galpões de reciclagem, então ele gera resultado. E numa negociação com ele fazer com que ele se torne presidente de uma associação e seja remunerado dignamente pra isso e entre dentro da política pública. E ele disse que aceita dialogar. Se esse caso der certo tudo valeu a pena.
P/1 – A reciclagem, então, muda a vida das pessoas.
R – Dessas pessoas sim, até porque ela é tão danosa que mudar não é difícil. A resistência é difícil, mas com pouca coisa tu gera um impacto na vida dos caras, muito pouco muda a renda. Há galpões que só ao chegar lá e começar a fazer um sistema de educação popular a renda triplicou no primeiro mês. Vou dar outro exemplo de números: quanto mais você se afasta da cidade de Porto Alegre mais alta é a renda dos catadores. Os que estão em unidades de triagem, os que estão em cooperativas, tá? Quanto mais fora então mais alta é a renda, principalmente nessa zona do vale do calçado que é a zona do Vale dos Sinos. Então é lá que estão os benchmark, é lá que está a renda 2 mil, 2 mil e 500, certo? E portanto quanto mais tu te aproxima de Porto Alegre e mais dentro de Porto Alegre pior é a renda. A produtividade em Porto Alegre, 1,2, 1,3, 1,4 toneladas por mês. A produtividade no Vale dos Sinos, quatro. Tem um galpão e a produtividade é cinco toneladas por homem/mês. Não é que agora, com a nossa assistência técnica já temos galpões, Porto Alegre tem 18 galpões que são sistemistas da coleta pública seletiva que são inclusive remunerados pela prefeitura. São 18. Vão passar a ser 23 no final do programa. E sempre com péssimos resultados. Nós já temos, em poucos meses, em questão de menos de seis meses, nós já temos três galpões que a média de produtividade é quatro toneladas por trabalhador ou trabalhadora. Quatro. E o que nós colocamos ali? Ainda não entrou nenhuma esteira, ainda não consertamos as telhas direito, aí não tem nenhuma tecnologia. O que tem ali? Tem um educador social que fica seis horas por dia com eles lá fazendo gestão, organização, explicação, administrando conflitos, ensinando melhores metodologias de trabalho. Só isso, um educador ali dentro, já mudou o resultado. A renda que era 300, 400 reais já tem três galpões que a renda está superior a 1 mil e 500 reais. Sabe o que significa quatro toneladas por trabalhador em Porto Alegre? É tirar resultado da onde você menos espera. Nós não esperávamos nada, nossa meta em Porto Alegre, inclusive está lá no programa, é chegar a dois e meio. A nossa meta era dois e meio toneladas por trabalhador, já temos três das 18 unidades com quatro, compreende? Então muda a vida das pessoas e é pouca coisa, isso é que nem drogadição, pouco dinheiro gera grande resultado. Só que tu tem que ter uma política com método correto e com inteligência, método e continuidade. A política não pode se dar aos soluços, aí ela é descontínua e não funciona. A continuidade, a permanência da política, ela é o grande elemento de mudança, não é nem o volume investido, nem a quantidade de dinheiro. Todos esses galpões de Porto Alegre que eu estou falando pra vocês, eles vão receber investimentos em média de 600, 800 mil reais cada um deles em reformas, melhorias, redimensionamento, equipamentos novos, alguns vão ganhar esteira. Isso é no futuro, não está acontecendo ainda e nós já estamos com resultados surpreendentes.
P/1 – Queria passar agora pras perguntas finais. A primeira é o que você acha a que se deve essa mudança de mentalidade tanto do setor privado quanto do setor público em relação ao lixo e aos resíduos?
R – Isso se deve a dois fatores. O primeiro fator é a imensa e competente militância de todas as organizações ecologistas, ambientalistas e preservacionistas que durante mais de dez anos, durante quase 20 anos bradaram as bandeiras da sustentação e da sustentabilidade do meio ambiente e convenceram a todos. Então primeiro lugar foi pela efetividade e eficiência e alto poder de convencimento do movimento ambientalista, eles militaram nos anos 80 e 90 e transformaram a consciência do mundo sobre esse tema. Segundo, e isso se mantém e continua graças a lei. E vai mudar a realidade porque agora passa a ser compulsório. Tenha consciência ou não terá que fazer diferente.
P/1 – E como é que a reciclagem e esse tratamento mudou a sua vida?
R – Não mudou a minha vida. Eu continuo fazendo a mesma coisa numa nova frente (risos). Eu não vejo que eu tive mudança na minha vida. Eu não me tornei um sujeito diferente em nada, nem em renda, nem consciência, nem em trabalho, nem em legitimidade, nem em visibilidade do que eu já era, isso não mudou. Mudou é a causa, essa causa é mais atual, eu estou de novo identificado com uma causa que está na crista da onda, pra usar uma expressão da minha geração (risos), que está no fronstispício, compreende? Mas não mudou a minha vida, eu continuo sendo um cientista social trabalhando na execução de políticas públicas, e o que eu fiz, vocês estão vendo pela minha narrativa, eu faço políticas públicas não exclusivamente a partir do Estado, eu faço políticas públicas a partir do Estado, a partir do setor privado e a partir do Terceiro Setor. Então não mudou, pelo menos não consigo ver.
P/1 – E você é casado hoje?
R – Sim, sou casado com a Martha, fizemos este ano 25 anos de casados, jubileu de prata, e somos pais da Nathalia, 20 anos, da Celina, que tem 17 e da Isabella que tem 16.
P/1 – Como é que você conheceu sua esposa?
R – No trabalho.
P/1 – É?
R – É. Eu fui convidado pra chefia de gabinete pro Governo Simon e ela era Relações Públicas do gabinete. Éramos dois jovens já bastante maduros, eu com 28, ela com 26 anos e nos apaixonamos, em menos de um ano estávamos casados. Foi isso. Nós estávamos maduros pra casar.
P/1 – E a sua primeira filha nasceu quando?
R – Ah, Nathalia é de 95, 1995. Quando eu tinha 30 anos. Não, perdão, 35. De 35 aos 40 anos eu tive três filhas.
P/1 – Qual foi a sensação?
R – Qual foi a sensação? Pois é, foi impressionante, foi uma coisa impressionante. Primeiro que a gente foi pai com grande sacrifício, nós não tivemos facilidade de engravidar, então houve grande esforço, teve algumas perdas anteriores e ter a Nathalia assim realmente é uma coisa que eu não sei descrever, uma experiência de amor muito forte. A coisa mais forte e inesquecível que eu vou levar pra sempre é acordar domingo de manhã em casa, Martha voltou do hospital no sábado, aí fomos dormir, ajeitei todo mundo, deitamos. Acordar domingo de manhã e tinha um novo sujeito dentro de casa e esse sujeito era uma filha foi uma sensação tão bela, tão inesquecível. E acordei num domingo gostoso, bonito, frio, Nathalia é de julho, é inverno em Porto Alegre. Ensolarado, levantei e fui direto pra cama olhá-la dormir no berço. Isso é uma coisa muito bonita.
P/1 – E o que elas estão fazendo hoje?
R – Nathalia faz Direito na universidade católica, na PUC, e entrou numa seleção no Ciee pra estágio e você sabe onde ela faz estágio? Na Vonpar. E foi uma coisa absolutamente casual, não houve nenhuma indicação, nem nada. Só quando ela está entre os três últimos candidatos ela vai se entrevistar com o diretor, que o diretor diz assim: “Mas só um pouquinho, tu é filha do Léo”, disse o diretor, meu ex-colega e amigo. Daí ela olhou pro diretor e disse assim: “Tem algum problema?”, e aí ela está lá já faz um ano e é uma experiência que ela gosta muito. Ela tem um perfil que se adapta muito à empresa privada. A Celina tem 17 anos, é namorada do Lorenzo há dois anos e a única filha que tem namorado, esse namoro é um namoro continuado, desde os 15. Celina está terminando o terceiro ano do ensino médio, se preparando pra fazer vestibular na universidade federal e vai fazer o mesmo curto da Martha, da mãe, Relações Públicas.
P/1 – E hoje quais são seus sonhos pessoais?
R – E a Isabella, faltou. Isabella está no segundo ano do segundo grau, todas são do mesmo colégio. Por causa daquele meu trauma eu nunca troquei elas de colégio, desde do Jardim B sempre o mesmo, nenhuma delas mudou de colégio nunca. Isabella está num intercâmbio do segundo grau nos Estados Unidos, está numa zona rural em Wiscosin, no meio do milharal, feliz, feliz, feliz, feliz, sabe? Ela tem 16 anos e é também uma filha impressionante, é amorosa e tudo. Qual é a pergunta?
P/1 – Quais são seus sonhos pessoais pro futuro, planos. Você já falou um pouco, mas...
R – Pois é, eu não tenho muitos planos futuros, eu não tenho grandes desejos. Minha mulher perguntou: “O que tu gostaria de adquirir no futuro?” “Eu? Nada, viu?”. Eu gostaria, sim, de ter uma aposentadoria muito confortável com uma renda fixa da aposentadoria, diferente da geração dos meus pais, dos meus tios e dos meus avós que sempre empobreceram na aposentadoria, não quero isso, trabalho pra isso. Então eu quero ter uma aposentadoria confortável. E eu não tenho nenhum sonho a não ser continuar trabalhando nos próximos dez anos, ganhar dinheiro nesses dez anos, manter a reputação que eu conquistei como um prestador de serviço de excelência e de qualidade. E ver as minhas filhas se desenvolverem, que elas consigam fazer a universidade, que elas consigam fazer uma carreira, pra mim é super importante ter carreira. E que elas sejam de fato, acho que o meu maior sonho pessoal é que elas sejam herdeiras dessa tradição e dessa cultura que eu de alguma forma recebi, seja por tradição da família, por tradição da igreja e por investimento da sociedade brasileira em mim. Eu acho que a minha missão geracional é dar às minhas filhas tudo o que eu recebi melhorado, desenvolvido, melhor traduzido, compreende? Então eu tento aperfeiçoar os elementos de religiosidade, os elementos culturais familiares eu tento aperfeiçoar, enriquecer, pesquisar, dar mais informações. A questão da disciplina pro trabalho, eu tento fazer melhor e não cometer os erros que eu fiz. A questão da disciplina por uma carreira e por uma escolha profissional que te realize mas que também te sustente, que elas também se deem bem nisso e não tenham desvios. A gente vê na geração dos nossos colaterais muita frustração e sofrimentos, primos, irmãos, irmãs, tudo muito sofrimento, que elas tenham uma carreira razoavelmente bem desenvolvida, né? Bom e uma coisa que eu digo pras minhas filhas que eu acho que é uma idealização minha, que a única coisa importante na vida é casar, o resto tudo tu pode refazer, casar é mais complicado. Então eu costumo dizer pra elas, claro que num tom de blefe: “Filhas, vocês são livres pra escolher tudo, religião, preferência sexual, time de futebol”, claro que tudo isso é blefe, mas eu digo. “Vocês são livres, podem fazer o que quiser. Agora, pra casar eu aprovo”. Aí elas gozam, debocham, mas elas entendem a mensagem que a única coisa que eu acho que é uma decisão realmente séria na vida é casar. É a mais séria de todas. Todas as demais tu pode mudar. O casamento tu muda, mas dependendo ele deixa um inventário ali bem relevante, normalmente de filhos, de histórias e se tu não vai sofrer os filhos vão sofrer, alguém vai sofrer. Então o casamento é a única coisa que deve ser feita com muito cuidado. Por isso, eu aprovo. Mesmo que elas passem por cima de mim (risos). Eu acho que é isso, eu tenho um projeto bastante ambicioso não pra mim, mas para os meus, que no fundo é um pouco de vaidade minha. Eu acho que é isso, faz parte da minha vaidade, do meu auto orgulho. Eu acho que isso tem um pouco de autoelogio, vai ver que é isso, esse é o meu desejo. Bem egoísta, né?
P/1 – Como é que foi contar a sua história?
R – Pra mim é fácil. É que eu sou um sujeito das ciências humanas, é fácil, não tem grande dificuldade. Pra mim foi fácil.
P/1 – Então é isso. Obrigado, Léo, o Museu e a Braskem te agradecem.
R – Eu que agradeço a estupenda paciência profissional de vocês. Espero que não tenha sido tão desinterrante, que tenha sido aburrido, como dizem os argentinos.
FINAL DA ENTREVISTA
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