Projeto Pueri Domus
Depoimento de Celso Avelino Antunes
Entrevistado por Lenir Justo e Damaris do Carmo
São Paulo, 17 de agosto de 2006
Realização Museu da Pessoa
Código: Pueri_HV007
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Bom dia, professor Celso. Nós gostaríamos de iniciar com o senhor nos falando o seu nome, local e data de nascimento.
R – O meu nome de batismo é Celso Avelino Antunes, todos me conhecem por Celso Antunes. Eu nasci em São Paulo, capital, no bairro do Brooklin, no dia 5 de outubro de 1937.
P/1 – Qual a sua atividade no Pueri, que o senhor exerceu?
R – Eu entrei no Pueri Domus inicialmente como professor. Era pai de meninos e nessa oportunidade o diretor do Colégio Sion. Como o Sion não tinha espaço para meninos, eu procurei o Pueri Domus e matriculei-os. Essa relação de pai fez com que a Beth me chamasse para dar aulas de Geografia. Depois eu, sem abandonar a sala de aula, fui me tornando coordenador de Geografia e mais tarde diretor do Colegial, que seria hoje o Ensino Médio.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O meu pai Avelino Antunes e minha mãe Maria José Antunes.
P/1 – A origem da sua família, qual é?
R – Origem portuguesa, embora meu pai seja brasileiro, minha mãe também. O meu pai filho de português com alemão e minha mãe filha de pais e mães portugueses.
P/1 – E a atividade que os seus pais exerciam.
R – O meu pai começou a vida como oleiro, fabricante de tijolos. Depois mudou, tornou-se securitário, trabalhava numa empresa de seguros de vida. A minha mãe nunca desempenhou uma atividade profissional, sempre teve atividades domésticas.
P/1 – E a casa que o senhor morava na infância, o senhor lembra?
R – Perfeitamente, nos mínimos detalhes. Rua Brasil, 587. Hoje não existe mais a Rua Brasil, mudou de nome, acho que é Rua Eduardo (Saccab?), uma coisa assim. Mas a casa eu me lembro muito bem, muitos detalhes.
P/1 – Quer...
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Depoimento de Celso Avelino Antunes
Entrevistado por Lenir Justo e Damaris do Carmo
São Paulo, 17 de agosto de 2006
Realização Museu da Pessoa
Código: Pueri_HV007
Transcrito por Écio Gonçalves da Rocha
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Bom dia, professor Celso. Nós gostaríamos de iniciar com o senhor nos falando o seu nome, local e data de nascimento.
R – O meu nome de batismo é Celso Avelino Antunes, todos me conhecem por Celso Antunes. Eu nasci em São Paulo, capital, no bairro do Brooklin, no dia 5 de outubro de 1937.
P/1 – Qual a sua atividade no Pueri, que o senhor exerceu?
R – Eu entrei no Pueri Domus inicialmente como professor. Era pai de meninos e nessa oportunidade o diretor do Colégio Sion. Como o Sion não tinha espaço para meninos, eu procurei o Pueri Domus e matriculei-os. Essa relação de pai fez com que a Beth me chamasse para dar aulas de Geografia. Depois eu, sem abandonar a sala de aula, fui me tornando coordenador de Geografia e mais tarde diretor do Colegial, que seria hoje o Ensino Médio.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – O meu pai Avelino Antunes e minha mãe Maria José Antunes.
P/1 – A origem da sua família, qual é?
R – Origem portuguesa, embora meu pai seja brasileiro, minha mãe também. O meu pai filho de português com alemão e minha mãe filha de pais e mães portugueses.
P/1 – E a atividade que os seus pais exerciam.
R – O meu pai começou a vida como oleiro, fabricante de tijolos. Depois mudou, tornou-se securitário, trabalhava numa empresa de seguros de vida. A minha mãe nunca desempenhou uma atividade profissional, sempre teve atividades domésticas.
P/1 – E a casa que o senhor morava na infância, o senhor lembra?
R – Perfeitamente, nos mínimos detalhes. Rua Brasil, 587. Hoje não existe mais a Rua Brasil, mudou de nome, acho que é Rua Eduardo (Saccab?), uma coisa assim. Mas a casa eu me lembro muito bem, muitos detalhes.
P/1 – Quer contar um pouquinho para gente?
R – Era uma casa muito típica dos anos quarenta, aquela casa com terraço. Minha mãe com dois filhos homens, mandou envidraçar para que a gente estudasse. Tinha – como não poderia deixar de ser na época – um quintal enorme nos fundos onde tinha – claro – galinhas, hortas. Acho que toda a minha iniciação biológica se desenvolveu naquele quintal. Um inesquecível pé de pitangueira que era fruto assim de uma enorme paixão. E a casa, sala com as tradicionais cristaleiras da época, um quarto meu e do meu irmão Nelson, dos pais, corredor inclusive. Não era uma casa muito grande, mas era uma casa muito acolhedora, muito calorosa, muito simpática.
P/1 – E as brincadeiras da infância como eram?
R – Essa casa ficava numa chácara e eu me tornei uma espécie de marinheiro em árvores. Comandava os meus navios, as minhas fragatas pendurando nas árvores, pendurando nos galhos. Era também um fanático jogador de botão e julgava com presunção que não tinha adversários à minha altura. Então disputava campeonatos de botão sozinho, irradiando do começo ao fim.
P/1 – E as brincadeiras assim, existiu também na rua ou era só em casa?
R – A criança de hoje perdeu a rua, né, não sabe mais o que isto significa nas grandes cidades. Naquela época, ir para a rua significava brincar, não havia outra forma. E as brincadeiras mais frequentes da época eram bola de futebol, que a gente jogava na rua, nos muitos campos do Campo Belo daquela época. E quando as meninas apareciam, na época não jogavam bola. Então nós, mais para nos aproximarmos, participávamos dos tradicionais jogos de lenço atrás, passa anel, mas com uma concessão ao direito de ficar com as meninas. O grande prazer nosso mesmo era futebol, sempre acompanhado pelos cachorros que ao nosso lado caminhavam de lá pra cá.
P/1 – E as festas eram comemoradas na sua casa? Quais?
R – Intensamente, não só as festas convencionais, de aniversários, mas principalmente festas juninas, Natal, Ano Novo. Família portuguesa, uma tradição católica muito forte, então as reverências quando dos dias dos santos consagrados, Santo Antônio de Pádua, a quem simbolicamente fui entregue. Então sempre eram muitas festas, e o ponto central das festas era a comilança. Para nós crianças era um grande pretexto de sair daquele estreito regime, que o autoritarismo paterno e materno nos impunha, para comer de tudo e, o quanto mais possível, melhor ainda.
P/1 – O senhor tem algum fato marcante na sua infância que o senhor gostaria de nos contar?
R – Eu vivi uma infância muito solta, muito feliz, extremamente livre. E, hoje, a minha atividade profissional está muito voltada à educação infantil. Creio até que nesta atividade eu sou o propagador de muitos estímulos e suponho que esses estímulos que hoje propago, como sendo resposta do que a ciência neurológica determina, vêm da minha herança infantil, das brincadeiras nas árvores, dos jogos de botão, enfim, de tudo quanto naquela oportunidade se fazia. O estímulo era muito frequente, ainda que inconsciente. Nós éramos crianças que éramos incitados a apalpar, a cheirar, a lamber, e sem ter consciência clara disso. Desenvolvíamos, de uma maneira como hoje não se faz, o tato, o paladar, o olfato e até mesmo o falar, diferenciando da ideia do dizer. Havia sempre uma preocupação muito forte entre nós em que não bastava transmitir uma mensagem ou dar um recado, mas buscar talvez as melhores palavras para fazê-lo _____ infância. E curiosamente isto influiu na minha vida adulta, principalmente nos livros de educação que, ao escrever, estou rememorando parte daquela infância que eu tive e que se perdeu.
P/1 – E a sua primeira escola, o senhor lembra dela?
R – Perfeitamente. Era o Grupo Escolar de Ibirapuera que depois transformou-se no Grupo Escolar Mário de Andrade. Mário de Andrade morreu e se concedeu o nome ao grupo. Ficava no Brooklin Paulista, eu morava no Campo Belo e a gente ia a pé, embora o pai ou a mãe dessem o dinheiro para o ônibus, mas a gente precisava economizar para comprar figurinhas. Então, ao invés do ônibus ou do bonde se ia a pé. E nessa trajetória havia no caminho uma biquinha onde invariavelmente matávamos a sede ou tomávamos água, mesmo sem sede.
P/1 – E iam de uniforme ou era roupa comum, como era?
R – Não, naquela época havia assim uma camisa e um tipo de gravata que distinguia a série que se estava. Mas havia uma certa liberdade para usar ou não uniforme e boa parte das crianças no grupo iam descalças. Eu tinha sapatos, mas nem todos tinham. Então um bairro muito pobre, quase rural, eu creio que uniforme era assim uma utopia para aquela realidade. Muitas, muitas crianças iam descalças. Então eu creio que por isso eles faziam com que a camisa fosse o único elemento distintivo da série que estávamos.
P/1 – E as classes eram mistas?
R – No começo eram mistas. As meninas sentavam invariavelmente nas três primeiras fileiras, um espaço de duas fileiras vazias para que não pudéssemos tocá-las, e na parte de trás os meninos, mesmo os pequeninos. E como havia meninas mais altas, e tradicionalmente menina se desenvolve antes do menino, nós passávamos a aula inteira espichando o pescoço, virando de lá para cá para tentar enxergar aquilo que hoje se chama lousa, mas naquela época era invariavelmente o quadro negro.
P/1 – E cartilha, tinha cartilha? O senhor lembra qual era?
R – Lembro. Eu creio que a minha primeira cartilha, tenho quase a certeza que era a Cartilha da Débora. Até mais tarde os educadores diziam, fazendo um trocadilho, que era a Cartilha da Débora Quer, dando o nome de uma atriz norte-americana, porque diziam que todos os educadores queriam aquela cartilha. Então era Débora Quer, a cartilha que todos queriam. Eu sempre fui muito ligado à leitura e me lembro muito bem dos meus primeiros livros e de tudo quanto isso representou para mim.
P/1 – E caderno de caligrafia, tinha naquele tempo?
R – Sem dúvida nenhuma, com todas as linhas para capricharmos rigorosamente na execução das letras.
P/1 – Quais as atividades ou matérias o senhor mais gostava?
R – Eu fui, durante o primário, como se designava naquela época, um bom aluno, mas muito inseguro, muito apavorado e muito capaz de me desestabilizar quando das provas. E essa desestabilização acontecia mais na Matemática, eu tinha pavor de que talvez não pudesse passar de ano por força da Matemática. Não sei se por opção ou por ódio à Matemática, me voltei muito para Letras, para História, para Geografia, para aquilo que mais tarde passou a ser chamado de Ciências Humanas.
P/1 – E biblioteca, tinha na sua escola?
R – Não, não tinha. Tinha uma sala com alguns livros que os professores iam buscar eventualmente, mas o acesso não era franqueado ao aluno. Encontrei bibliotecas mais tarde quando passei já para o Ginásio, aí o Colégio Ipiranga. Mas o grupo escolar não tinha biblioteca.
P/1 – E os livros, esses que o senhor falou que vinham não eram para os alunos?
R – Não.
P/1 – Não havia o hábito de leitura entre os alunos?
R – Não, não havia. Os professores às vezes, alguns professores, nos convidavam para chegar-se à mesa e ver algumas figuras, mas o livro era tido como sendo uma propriedade dos mestres aos quais não tínhamos acesso, a não ser a nossa cartilha ou aqueles livros de leitura que se tinha.
P/1 – E os materiais que se usava naquela época, quais eram?
R – Essencialmente o giz, o quadro negro era o grande recurso. Alguns professores faziam uso de réguas maiores, de esquadro, mas nada além de recursos fabricados com madeira, o próprio giz, a própria lousa. Alguns mapas, e era muito comum na época cartazes, tipo de mapas, só que não geográficos, não cartográficos, contendo um conjunto de figuras ou sobre elementos da Biologia ou do corpo humano ou da própria Terra. Praticamente a sala de aula se resumia a esses recursos.
P/1 – O recreio como era, o senhor lembra?
R – Era realmente muita gritaria, muita correria, corredor. A grande brincadeira era brincadeira de correr, pegar, era essencialmente isso. Os meninos improvisavam bolas, às vezes com bolas de papel. Um ou outro levava, mas, se a professora pegava, acabava tomando. Então era uma poeira terrível, terrível. Nós voltávamos para casa coloridos pela diferente cor das poeiras que tínhamos. Muito alegre, mas muito pouco original.
P/1 – E a relação entre os alunos e professores, como era?
R – Marcada por muita autoridade, mas nem por isso sem afetividade. Eu me lembro muito bem da minha primeira professora, foi no primeiro ano, Dona Lourdes, jovem, talvez a minha primeira paixão, o meu primeiro amor que eu dividia com a classe inteira. Depois, no segundo ano, Dona Lili, nunca soube o seu nome inteiro, Dona Iaiá, a professora de terceiro ano, e Dona Ida, muito severa, professora do quarto ano. Dona Ida andava sempre com a sua régua escolhendo as juntas dos dedos para castigar, mas eu nunca tive os meus dedos castigados, mas morria de pavor.
P/1 – Havia educação religiosa naquela época?
R – Não, não havia. Na sala de aula não, na escola não.
P/1 – E que outras atividades, se é que havia, da escola?
R – Na educação primária as atividades eram sempre restritas à sala de aula. Quando não nos era pedido que se copiasse, nos autorizavam a desenhar, algumas poucas vezes a observar, mas nunca éramos levados numa atividade programada, uma atividade de observação. O professor dizia: “Reparem em tal coisa. Vejam, o ipê está florido, a primavera está chegando”, mas nunca presenciei nenhuma atividade que nos levava ao ambiente, ao espaço, ao contato com aquela natureza.
P/1 – Nem nada relacionado assim a coral, banda.
R – No grupo escolar não tinha. No Grupo Escolar Ibirapuera, mais tarde o Grupo Escolar Mário de Andrade, a única atividade ritualística que havia era antes da entrada, as classes perfiladas e tendo que dizer uma saudação à pátria, eu ainda creio que resquício do Estado Novo. Me lembro das primeiras palavras, com os braços esticados em direção à bandeira, e repetindo, o diretor ou a professora que lá estava, dizíamos: “Brasil, nesta casa de educação e ensino constantemente pensamos em si”, e por aí prosseguia a locução que as crianças, na maior parte das vezes, diziam sem entender o significado do que diziam.
P/1 – Decorado, né?
R – Decorado, totalmente decorado. Ou então repetir. Os que não decoravam, como a professora falava e os demais repetiam, repetiam, mas de uma maneira inteiramente mecânica, nunca sendo levado a refletir sobre porque diziam aquilo ou com que convicção aquilo era dito.
P/1 – E já quando o senhor entrou mais para fase da juventude, o senhor tinha um grupo de amigos, como era?
R – Dois grupos de amigos muito distintos, mas muito afetuosos. O grupo bairro, que era realmente o grupo dos folguedos, das brincadeiras, dos jogos de botão, dos jogos de futebol, e das aventuras nas árvores, que era o grupo dos moradores. E não sei se...
P/1 – Quer dar uma paradinha?
(Pausa)
R – Dois grupos muito distintos. O grupo bairro, o grupo Brooklin Novo, o grupo Campo Belo, que era o grupo de trepar em árvores, de tocar campainha na casa das pessoas e sair correndo, o grupo de jogar bola, o grupo de jogar botão, e o grupo escola. Esse já é um pouco mais formal, muito afetuoso também nas horas do intervalo, nos papos que tínhamos, mas que raramente programava atividades fora daquele horário escolar. Era claramente identificada a presença do grupo. Quando saímos para o intervalo nunca procurávamos outros que não aqueles que pertenciam àquele clã, mas não me lembro de atividades que tivéssemos fora do espaço escolar. Isso só comecei a vivenciar já em tempo de faculdade.
P/1 – E, nem com o outro grupo que o senhor tinha, não saía?
R – Com o grupo escola não se saía, muito dificilmente. Com o grupo bairro, havia poucos cinemas no bairro, e o cinema e o futebol eram a única grande diversão. Então se jogava futebol. Os que tinham algum dinheiro iam aos jogos de futebol no Pacaembu algumas vezes e de vez em quando ao cinema, mas não havia qualquer outra atividade, a não ser quando o Brooklin, Campo Belo, era invadido pela auspiciosa chegada do circo ou pela realização das quermesses. Aí a vida se transformava e um mundo de aventuras e de fantasias se abria pra nós. No circo, ____, os que não tinham dinheiro saíam caçando gatos na vizinhança para dar aos donos do circo – eles eram servidos aos leões – e ganhavam ingresso, até aqueles que ganhavam um dinheirinho engraxando sapato, prestando pequenos serviços para comprar a entrada e frequentar. E as quermesses, quando havia. Eram os grandes folguedos, as grandes diversões.
P/1 – E havia alguma atividade social na comunidade?
R – As famílias se reuniam muito. Os almoços de domingo raramente eram almoços de âmbito apenas familiar, sempre havia vizinhos, amigos que, sob o pretexto de vir juntar-se à família, vinham na verdade integrar aquele grupo. Era praticamente a única atividade que reunia. E me lembro muito que o meu pai invariavelmente chegava por volta de seis, seis e meia da tarde, mudava a roupa, trabalhava já nessa altura no escritório, e íamos para um armazém que naquela época chamávamos de venda. Não íamos comprar nada. E as pessoas conversarem, trocarem ideias, não havia televisão, e as crianças que acompanhavam os adultos ficavam brincando de pegador, correndo de lá pra cá. Essa era a única grande atividade social, a não ser os encontros nas quermesses ou então nas cerimônias rituais de casamento e de enterro.
P/1 – E quando o senhor resolveu estudar, ir para sua carreira, havia alguma expectativa assim na família em torno de qual seria a profissão que o senhor deveria escolher?
R – Havia uma quase obcecante ideia de que eu não poderia não fazer faculdade. Isto era uma norma, isto era um dogma familiar que jamais poderia não ser aceito. A opção de escolha era livre, eu poderia escolher o que eu quisesse. O meu irmão, oito anos mais velho do que eu, estava fazendo Veterinária na época, já na faculdade. Mas eu não me senti inspirado pela área de Ciências Humanas. Eu, nesta época, eu frequentava nas férias Ubatuba. E uma ocasião em que estava por Ubatuba parou um ônibus, mais tarde eu identifiquei como sendo um ônibus da USP, na época não sabia o que aquelas letras diziam, e uma das pessoas, que mais tarde eu vim a saber ser um professor, me fez algumas perguntas sobre como chegar a certas praias. E como eu conhecia Ubatuba como a palma da mão, eu indiquei. E ele se perguntou, e depois me perguntou, se eu não poderia acompanhá-los. Eu deixei a bicicleta e fui acompanhá-los. Aquilo era uma aula de campo, uma aula sobre natureza, e aquilo me deixou absolutamente fascinado. E, desde quando isto ocorreu, eu achei que eu deveria fazer Geografia. Aquilo passou a ser uma decisão inabalável. Eu não associava a Geografia ao Magistério, não pensava ser professor de Geografia. Pensava em fazer pesquisa em Geografia, mas desde a oportunidade desse encontro não mais me desviei da ideia. Fiz o terceiro ano colegial, ou cursinho, que na época se fazia. Prestei o exame vestibular na Universidade de São Paulo numa época em que havia exame oral, inclusive. E consegui entrar na faculdade no primeiro exame, no curso de Geografia. Então isso foi muito direcionado. A família não pressionou, mas exultou porque estava cumprido o desígnio de que eu teria que fazer faculdade.
P/1 – E como foi esse seu curso?
R – Foi muito bom. Eu me apaixonei realmente. Embora fossem aulas conservadoras, tradicionais, diferentes de como são as aulas de hoje, eu me tornei uma pessoa apaixonada. Nessa época eu já trabalhava, eu era carteiro. Eu tinha um dinheiro e eu comprava tudo em livros. Tinha muito mais livros do que habitualmente os colegas tinham, embora tivéssemos a biblioteca da Usp para frequentar, a Biblioteca Mário de Andrade. E creio que fiz um excelente curso de Geografia. Nunca, no Colegial, os colegas poderiam me considerar um bom aluno, era um aluno médio. Na faculdade, eles já me olhavam como sendo um aluno de algum destaque, de alguma proeminência. Até ganhei alguns pequenos prêmios assim, uma dedicatória de um professor, num livro, por ter sido o melhor aluno naquela série, naquela disciplina. Foi um curso muito bom.
P/1 – E o senhor tem lembranças marcantes dessa época da faculdade?
R – Muito, muito, porque coincidiu com um outro evento muito significativo na minha vida. Eu, por negligência ou ignorância, não me apresentei no Exército no tempo em que deveria me apresentar e fui convocado para servir como submisso. E esta convocação veio no meio do meu curso de Geografia e, portanto, eu convivi com duas facções antagônicas. Levantava às quatro horas da manhã para ir até _____ no quartel, chegava às seis horas da tarde correndo, quando não estava preso, não estava de serviço, para ir para faculdade. E realmente foram lembranças assim que eu as tenho intensamente vivas e muito claras. Sou capaz de descrever características de professores, tipos de aula, envolvimento com os colegas. Foi muito marcante a minha atividade acadêmica, muito mais do que outras ocorrências futuras que até talvez tenham se apagado da minha lembrança na intensidade completa. Mas os anos de Universidade de São Paulo, a migração pelos vários pontos onde tive que frequentar aulas, porque só no quarto ano a Cidade Universitária ficou pronta, são imagens que não se apagaram.
P/1 – Tem algum fato assim que o senhor gostaria de nos contar?
R – Tem muitos fatos. Um dos fatos marcantes, muito marcantes, eu inclusive descrevi num dos livros que mais tarde eu vim a escrever, se deu com um professor de Geomorfologia, o Professor Doutor João Dias da Silveira, por quem tenho um carinho muito grande. Por força de estar servindo o Exército eu fiquei em segunda época. E, ao ficar em segunda época, eu não sabia que matéria deveria estudar. E perguntei aos colegas – eu frequentava pouco por força do Exército. Como nenhum dos colegas ficou em segunda época, eles não sabiam também, e a minha única possibilidade de me preparar era perguntar ao Professor João Dias o que ia cair na prova. Eu fui advertido por alguns colegas que ele odiava ser interrompido na sua sala, no seu gabinete. Mas como as aulas já haviam terminado, era a única alternativa que eu tinha. Muito tímido, eu resolvi enfrentar e fui até a sala dele. A porta estava entreaberta. Pelo vão da porta eu percebi uma perna balançando, portanto, a certeza que ele ali estava, e bati na porta. Como não veio nenhuma resposta, eu a entreabri. Ele olhou para mim e com um ar sisudo interrogou: “O que você quer?”. Eu falei: “Olha professor, eu fiquei em segunda época e eu preciso saber o que vai cair na prova. E preciso me preparar para prova”. “Nesta minha matéria ninguém fica em segunda época.” Eu disse: “Pois é, professor, mas eu infelizmente fiquei”. Ele me perguntou: “Seu nome?”. Eu dei o meu nome, ele disse: “É, você tirou oito na primeira prova, mas como você tirou um e meio na segunda, realmente você não fez a média, você está em segunda época. Por que que você tirou um e meio na segunda prova?”. Eu disse: “Porque eu estou servindo exército, professor. Eu não estou de farda agora, mas estou servindo exército, levanto quatro horas da madrugada no quartel, eu poucas vezes posso vir à aula. Quando venho, tento pegar a matéria. Passei em todas as disciplinas, mas na sua disciplina eu não consegui passar”. Ele olhou bem para mim e disse: “Você tem uma caneta?”. Eu disse: “Tenho”. “Empresta aqui. Olha, vamos fazer o seguinte, vamos transformar este um e meio em dois porque daí dá cinco e você está livre. Então não precisa fazer segunda época. Vá embora e não me aborreça.” E eu me lembro que eu desci aquela escada injuriado porque na minha estreita visão do tempo aquilo era uma injustiça. Eu não queria ser premiado pela facilidade que aquilo representaria, eu queria conquistar a nota pelos meus méritos, e tive um sentimento de verdadeiro ódio pelo Doutor João Dias porque eu julgava que, para se libertar do compromisso de fazer uma prova, ele havia criado uma facilidade mas promovido uma injustiça. Muitos anos depois, estudando Vigotski e compreendendo melhor a educação eu percebi que a verdadeira avaliação é aquela que é feita considerando não apenas o desempenho intelectual, mas a circunstância do aluno. Um aluno é ele e a circunstância que o envolve. E, provavelmente, para aquele mestre deve ter se passado o pensamento: “Este menino é bom, ele é esforçado. Ele não tirou a nota porque uma contingência eventual o impediu, mas não será esse número que poderá detê-lo”. E ao compreender, numa época onde você pensava a avaliação num outro contexto, aquele ódio se transformou num sentimento de verdadeira paixão. Hoje João Dias da Silveira para mim é uma referência daquilo que deve ser a avaliação, o aluno e a sua circunstância e não apenas o frio e metálico resultado de uma prova que expressa talvez o que se sabe no momento, mas não todo aquele contexto que envolve as nossas circunstâncias. Foi um dos fatos mais marcantes entre tantos fatos marcantes que a minha vida acadêmica trouxe.
P/1 – E, fora esse professor, tem outros professores assim que marcaram?
R – Eu tinha paixão por todos eles. Eu gostava muito do Doutor Aroldo de Azevedo, de quem pouco tempo depois eu vim a ser o grande concorrente, porque o Doutor Aroldo de Azevedo escrevia livros didáticos, livros escolares. E eu, muito pouco depois de sair da faculdade, escrevi o meu primeiro livro escolar. E o meu primeiro livro didático, por um conjunto de circunstâncias de época, acabou sendo o livro mais adotado no Brasil. E eu praticamente alijei o mercado do Doutor Aroldo, de quem eu tinha uma enorme admiração, mas eram contingências de marketing, não eram contingências de qualidade. O meu livro não era tão bom quanto o dele, mas falava numa linguagem mais simples e mais popular. Mas eu gostei muito também do Professor Pasquale Petrone, do Professor Penteado. Cada um deles, ainda que autoritário e vindo de um contexto de sua época, deixaram marcas indeléveis, não me esquecerei jamais.
P/1 – E qual foi o seu primeiro trabalho? O senhor falou que foi carteiro, foi esse o primeiro?
R – É, o primeiro trabalho foi um carteiro não oficial. O meu irmão mais velho um dia chegou em casa e comentou com a minha mãe, eu estava num outro quarto, eu ouvi: “Mãe, o diretor da agência de Correio de Moema estava querendo um menino que pudesse fazer entrega de cartas e ele cobraria dos clientes o valor de uma mensalidade qualquer e tal. E eu pensei que o Celso poderia se oferecer”. Eu fiquei encolhido de medo porque era muito tímido e achei que entregar cartas não era nenhum problema, mas dizer: “Olha, eu sou um carteiro não oficial. Se o senhor me pagar uma importância por mês eu vou entregar a carta” era um desafio maior do que a minha timidez permitia. A minha mãe achou a ideia muito boa, eu não tive outro imperativo e fui, e acabou sendo um emprego admirável, maravilhoso. Eu conheci pessoas. Naquela época, a região, o perímetro que eu atendia, tinha muitos imigrantes italianos que esperavam no postinho o carteiro com aquela sofreguidão de quem trazia notícias da sua Itália, quando não havia Internet, naturalmente, para abreviá-las. E, portanto, a minha passagem pela vida de carteiro foi muito prazerosa. Numa das empresas em que eu entregava carta, já quando eu estava começando a pensar no vestibular, veio um convite para ser auxiliar de escritório, fazer notas fiscais, aquelas coisas. Foi o meu segundo emprego. Depois, tudo isso foi interrompido pelo Exército. E quando eu estava já no penúltimo ano de faculdade veio um convite pra ser professor do Alberto Conde em Santo Amaro. Passou a ser o meu terceiro e quase último emprego, porque todos os demais decorreram da função de professor. Fui diretor de grandes colégios em São Paulo, fui coordenador de ensino do próprio Pueri Domus, fui diretor do próprio Pueri Domus. E muito cedo me liguei ao mundo do livro. Até 1995, quando eu parei de fazer livros didáticos, eu havia feito já perto de cento e oitenta livros, entre os quais todas as primeiras publicações na minha área feitas pelo Pueri Domus quando começava a nascer o sistema de ensino Escolas Associadas, ainda sem esse nome. Mas as apostilas começaram a ser feitas e eu fui autor de todas elas que diziam respeito às disciplinas que eu trabalhava: a Geografia, a Política Internacional Contemporânea, a Política Nacional Contemporânea e a tão famigerada Educação Moral e Cívica.
P/1 – E como foi esse seu ingresso no Pueri Domus? O senhor até já falou um pouquinho que o senhor matriculou os seus filhos e depois o senhor foi convidado, não é isso?
R – É, o Pueri Domus na época estava ensaiando instalar o Curso Colegial, porque a Beth fez uma escola que caminhava progressivamente na medida em que os alunos iam caminhando também. Então ela tinha, por exemplo, terceiro ano primário. Quando os alunos iam chegando ao final começava a ter o quarto. Então ela não tinha o Colegial, ela tinha apenas o Ginásio, como na época se considerava. E quando o ginásio estava na sétima série, ela já sabendo que daí a dois anos iria ter o Colegial, me chamava como pai de aluno e como diretor do Colégio Sion, falar um pouco sobre o Colegial. Inclusive, uma vez me pediu até que fizesse uma palestra para os pais de aluno sobre o que é o Colegial, qual o vínculo com o Colegial e preparação para a faculdade, e eu, com a minha experiência de diretor e pai de aluno, claro que aquiesci. Dessa relação veio um convite para que eu assumisse algumas turmas de Geografia, e eu aceitei com entusiasmo, até porque naquele período o Sion começava a viver uma crise. As escolas religiosas estavam se tornando mistas. As escolas de meninos atraíam todas as meninas possíveis e nenhum menino queria estudar em escola de menina. Então o Sion perdia meninas, que iam para escola de meninos, e não recebia meninos. E isso fez com que eu tivesse que diminuir a minha atividade no Sion e coincidiu com o convite da Beth para assumir aulas de Geografia. Aí assumi essas aulas e daí passei a coordenador e a desenvolver outras atividades. Então foi um convite. A primeira turma do Colegial, eu fui professor e me mantive professor durante quase _ anos, quando depois eu, fazem mais de doze anos, quase treze anos, quando depois eu assumi a direção. Aí já não dei mais aulas e durante mais dois anos mantive a direção.
P/1 – E a direção foi de qual unidade?
R – Foi desta unidade, no Ensino Médio, aquele que na época era o colegial, diretor do colegial.
P/2 – Professor Celso, durante essas aulas do colegial, como que era desenvolvida a sua aula de Geografia dentro do método montessoriano?
R – O método montessoriano, a Maria Montessori disciplinava de uma maneira muito consciente como deveria ser o trabalho de educação infantil, dava indicações serenas para a continuidade disso no Ensino Fundamental, mas não havia uma interferência direta sobre o fazer isto no Ensino Médio, no Colegial. Nós professores tínhamos autonomia para desenvolver o sistema de ensino que queríamos visando o objetivo de colocar os alunos na faculdade. Só que isto não era exatamente assim porque estes alunos vinham de um método montessoriano. Então, mesmo que nós, professores do Colegial na época, tivéssemos ampla liberdade para desenvolver a metodologia que julgássemos conveniente desde que o objetivo se cumprisse, havia uma adaptabilidade em se adequar aquele ensino ao aluno de uma formação montessoriana. E eu tinha desenvolvido uma larga experiência em escolas, que trabalhara anteriormente com trabalhos de grupo, com estratégias de trabalho em grupo diferenciadas, e perguntei para Beth se eventualmente eu poderia usá-las e ela me disse que tinha toda a liberdade para fazê-lo, e realmente eu comecei a desenvolver diferentes estratégias de aula. Naquela época, quando se dizia a palavra aula não se tinha um outro modelo que não do professor verbalizando e o aluno escrevendo. O aluno protagonista, o aluno interativo não eram valores da educação na época. Como eu trabalhava muito em grupo e como as estratégias de grupo se diversificavam, a palavra aula para mim significava apenas um modelo dentre tantos outros que existiam. Então a minha primeira atitude ao entrar na classe, naquela época, primeiro dia do mês, era colocar na lousa os dias do mês e as aulas que iriam ser ministradas, não quanto ao seu conteúdo, mas quanto ao seu conteúdo e ao seu modelo. Então, por exemplo, tal assunto um arquipélago, tal assunto uma aula expositiva, tal assunto um autódromo. E o que era arquipélago, o que era autódromo? Eram nomes que eu havia criado para modelos diferentes de aulas que se ministrava onde os alunos disputavam, envolviam-se no conhecimento através das atividades em grupos que desenvolviam. Aquilo era algo assim original, mas despertou muito interesse, muito, muito, muito. Os alunos falavam muito, gostavam muito e isso me levou até a começar a escrever sobre isto e tentar passar aquilo que até então era experiência particular para a socialização daquela experiência em outros modelos. Hoje eu vejo que, por força de livros que eu tenho traduzidos em toda a Europa, em toda a América Latina, e pelas correspondências que recebo, e não são poucas, através de e-mail, e jogo de palavras, que arquipélagos, que autódromo, que o nome dessas situações de aprendizagem são nomes razoavelmente familiares em outras partes do mundo, extraídos dos livros que se escreveu mas experienciados dentro das atividades do Pueri Domus, embora não só simultaneamente a essa época, eu tinha também faculdade. De vez em quando algumas experiências eram feitas no curso de Pedagogia. Mas predominantemente o grande laboratório foi o Pueri Domus. E é claro, essas estratégias foram se aperfeiçoando com o seu próprio caminhar. Os defeitos foram corrigidos. Então quando eu digo que foi para mim uma grande escola, realmente foi, porque aquele primeiro jogo de palavras, aquele primeiro autódromo que eu fiz com os alunos, se tornou muito diferente daqueles que mais tarde eu comecei a desenvolver com esses mesmos alunos por força da própria avaliação crítica que se fazia, e eu creio que o modelo que hoje eu passo nos livros que escrevo, nas palestras que faço, são os modelos aperfeiçoados exatamente por terem sido livremente praticados durante muito tempo aqui.
P/1 – O senhor então desenvolveu um método, seria isso?
R – É, eu diria o seguinte...
(Pausa)
P/2 – Professor, o senhor então desenvolveu um método. O senhor pode explicar para gente como foi isso?
R – Eu quero esclarecer o seguinte. Método é um caminho, é um procedimento que induz à aprendizagem. Eu diria que todos os procedimentos que eu sugeri eram procedimentos construtivistas. Então eu não creio que eu tenha inventado um método porque eu trabalhava plenamente a concepção de aprendizagem construtivista de Piaget. O que eu inventei foram, digamos assim, jogos para viabilizar esse método. Só que estes jogos, não no sentido que se aplica hoje à palavra jogo, não jogo enquanto uma ferramenta competitiva, mas jogo enquanto uma estratégia de aula para tornar mais viabilizada a ação do aluno. Portanto, eu não creio ter inventado um método, mas ter assumido um método e ter criado estratégias para torná-lo mais concreto, mais realista, mais objetivo. E hoje percebo que, independente do método que o professor possa ter, ele pode se valer dessas estratégias. Então num aspecto a estratégia é menor do que o método porque ela é subordinada ao que o método determina. Noutro aspecto ela é até maior porque ela permite que diferentes métodos possam se valer daquela estratégia, daquele tipo de aula.
P/1 – E o que significa o copão, o autódromo, o arquipélago?
R – Todas essas estratégias os alunos eram organizados em grupos e os grupos se mantinham fixos durante a vigência do espaço de avaliação, que no caso era o bimestre. Os alunos poderiam mudar livremente de grupos quando o bimestre terminava, mas durante o bimestre os grupos eram mantidos. Então todas as classes tinham os seus grupos, todos os alunos, por um trabalho de sociograma muito bem feito, integravam diferentes grupos. O autódromo simulava uma corrida de automóveis disputada pelos diferentes grupos, onde a maior ou menor conquista da velocidade se dava por saber ou não saber melhor os desafios que eram propostos através de perguntas. Então, quando o autódromo se iniciava, todas as equipes estavam com zero pontos. A partir daí eu organizava desafios, perguntas, reflexões, usando diferentes linguagens, proposta conjuntamente a todos os grupos. Os grupos tinham alguns segundos para debater aquele desafio e para apresentar a sua resposta. E essa resposta apresentada caracterizava um avanço ou não, de tal forma que, depois de alguns minutos a equipe, tinha os nomes que eles escolhiam, mas ___________. A equipe “A” estava com duzentos pontos, estava à frente da equipe “B” que estava com cem. A equipe “B” entre a equipe “A” e a equipe “B” com cento e cinquenta, e aquilo prosseguia até o final da aula, quando se tinha a situação final do autódromo. Aqueles pontos eram guardados pelas equipes e iam se transformando ao longo do bimestre. Quando o bimestre terminava, aqueles pontos eram transformados numa das notas que os alunos tinham, juntamente com as notas tiradas nas suas provas individuais. A copa já era uma disputa entre equipes. Havia uma tabela e eu propunha a todos as mesmas perguntas, mas o resultado desta equipe tinha maior ou menor significado face àquela com que eles estavam jogando. Então eram todas estratégias que poderiam ser chamadas de jogos, mas jogos não no sentido apenas de um processo competidor, mas como uma intermediação de professor e aluno com regras muito claras e que eles conheciam muito bem e que eram autorizados a sugerir mudanças, a propor ideias, daí porque essas técnicas foram evoluindo, esses jogos foram crescendo.
P/1 – E a utilização dessas estratégias, o que despertava no aluno?
R – Em primeiro lugar, o aluno de uma aula expositiva era essencialmente um aluno expectador, essencialmente. O aluno que trabalhava numa das estratégias era essencialmente protagonista. Ele tinha o tempo inteiro de ação, debatendo, discutindo, conversando, falando, buscando aquelas conclusões. Então havia diferenças muito significativas. Eu costumava, para mim mesmo, usar um acróstico que marcava a característica de toda a estratégia, e este acróstico era a palavra “placa”. Isso não precisava dizer aos alunos, mas eu tinha intimamente. O que era a placa? Eram cinco letras que expressavam cinco condutas que deveriam caracterizar cada uma daquelas estratégias. O “P” era protagonismo, o aluno tinha que ser protagonista. O aprender não era algo que eu passava, era algo que ele construía a partir dos seus debates, da sua discussão. A aula precisava ter linguagem, era o “L” de placa. A aula precisaria ter, digamos assim, a atenção do aluno, a plenitude do seu envolvimento, a plenitude da sua entrega, de tal forma que quando, às vezes, a Beth tinha que dar um aviso nas classes, ela perguntava para o orientador: “Onde é que estava o Celso?”. “Ah, está na classe tal.” Se eu não estivesse dando aula expositiva, porque às vezes eu dava, ela nem ia dar aviso, porque ela sabia que na hora que ela entrava para dar aviso ou que qualquer orientador entrava: “_____ isto é um autódromo, sai, sai”. Eles estavam inteiramente envolvidos naquela intenção. O “C” de placa era a construção. Realmente, o aluno estava construindo o seu saber, estava desenvolvendo aquela construção. E o “A” final era o “A” do administrar as suas competências. Ele estava aprendendo a analisar, comparar, deduzir, a sintetizar. Então o aluno não tinha informação dessas prerrogativas, mas todo o meu jogo eu buscava saber: “Ele tem a placa? Ele tem todos esses cinco elementos?”. Se tinha, então ele era desenvolvido. E, numa análise crítica, eu procurava observar que mudanças nas regras deveriam ser introduzidas para exaltar o conteúdo desses elementos.
P/1 – Professor, isso foi no começo do colegial, do Domus, né? Isso refletiu paras outras matérias, essa sua forma de trabalhar? Ajudou, colaborou com a estruturação?
R – É muito interessante porque muitos professores se interessaram. Algumas vezes até as orientadoras, as coordenadoras pediam que nas férias eu fizesse com eles essas estratégias para que eles aprendessem e tal, e poucos fizeram. Eu creio que o fato de eu ter criado o jogo atuava como elemento inibidor. Eu tenho a impressão que se eu não estivesse na escola ou se eu não tivesse criado, os professores se sentiriam mais libertos para colocar em prática essas atividades. Mas a proximidade que eles tinham daquele que havia criado o processo criava um certo mecanismo de inibição. Talvez os alunos dissessem: “Mas o Celso faz diferente, com o Celso é um pouco melhor”. Então era não porque eles não tivessem esses requisitos, mas é óbvio, eles estavam se iniciando numa prática que eu já havia experimentado. Então eu creio que isso atuou como mecanismo inibidor. Mas, ao lado destes jogos voltados para o conteúdo, voltados para o ensino, voltados para a aprendizagem, havia muitos outros que eu conhecia para promover a sociabilidade, para promover a integração dos alunos. E de vez em quando, quando uma das classes apresentava problema de relações interpessoais, panelas muito fechadas, uma ou outra orientadora pedagógica que acompanhava a classe, que tinha vivência, pedia se eu não poderia fazer este jogo integrador, estes jogos integradores, num horário não curricular. Eu podia, e vinha, e os alunos vinham, e os resultados eram muito favoráveis, inclusive no que diz respeito ao objetivo. E disto nasceu a grande ideia da Beth e que eu acho que foi o que marcou de uma maneira indelével os anos oitenta na história do Pueri Domus, que foi o chapadão. Eu creio que foi a grande marca. Hoje, quando eu reencontro alunos daquela época, raramente eles se lembram da matéria que eu dava porque toda a força da lembrança está associada ao chapadão: “Oh, Celso, o chapadão mudou a minha vida. Me lembro daquela vez no chapadão”. Muitos poucos me saúdam dizendo: “Ah, foi inesquecível aquela aula sobre a (mata de floreada?) tropical”. Mas todos eles falam muito nesse chapadão. Chapadão também era uma atividade de jogos, mas não eram jogos voltados para o aprender, eram jogos para promover a sociabilidade do aluno para integrá-lo. Quer dizer, a ideia de que o papel da escola não é ser apenas um centro de aprendizagem, um centro epistemológico, mas sobretudo um centro social, um centro onde se pratica amizade, se constrói amizade e se desenvolve a solidariedade.
P/1 – O senhor quer contar mais um pouquinho para gente sobre o chapadão?
R – O chapadão nasceu de uma festa no Dia do Professor que a Beth deu num sítio de sua propriedade em Itapecerica da Serra, que era um sítio praticamente abandonado, não era um sítio frequentado. Quase ninguém ia _____ desses eventos, era um pouco assim decadente e tal. Após essa festa eu procurei a Beth e disse: “Beth, vez por outra as professoras, as orientadoras educacionais pedem para fazer um trabalho de socialização dos alunos, de sensibilização, aquele trabalho de uma outra escola que não apenas a escola que ensina, mas aquela escola que socializa. Eu não poderia usar o chapadão para fazer isso?”. Ela disse: “Ah, mas isso é ótimo, isso é maravilhoso. O que você precisa?”. Eu disse: “Nada. O que eu preciso é de uma casa. Se por acaso chover tem a casa”. Não tinha móveis, a casa estava vazia. “E, se por acaso estiver sol, o pessoal usa o gramado, tem gramado.” Ela disse: “Ah, então pode deixar que eu vou pedir para o caseiro dar uma arrumada, nós vamos fazer o chapadão”. E aí começou a se desenvolver esta atividade. Era uma vez por semana, no início às quintas-feiras, depois não obrigatoriamente. Eu recebia oito aulas. Eu ganhava, além das aulas que eu ministrava, oito aulas. Mas essas oito aulas não eram aulas para dar em classe. Nós saíamos aqui com um ônibus, íamos a Itapecerica quinze, vinte minutos depois, e lá eu desenvolvia uma série de jogos socializadores, que também têm os seus nomes. Aí é o “autógrafo”, o “quem conta um conto”, o “berlinda”. Enfim, são palavras, só que caracterizadas dentro de um outro objetivo. E ali o aluno não era convidado a falar de escola, de nota, de professor, de resultado, era convidado a falar dele, da família, com espontaneidade e muita liberdade porque no fundo, no fundo os objetivos desses jogos eram propiciar o dizer, era propiciar o falar, era criar pretexto para que ele se abrisse e numa catarse ele pudesse falar, ainda que nem sempre projetando em si mesmo, mas discutindo, debatendo, o que numa escola não era muito convencional. E esses chapadões fizeram muito sucesso, de tal maneira que a Beth os estendeu. Nós fazíamos, eu achava que ele não era muito conveniente antes dos doze anos, mas ela estendeu da sétima série até o segundo ano colegial, às vezes o terceiro ano colegial. E com isso uma classe acabava indo uma vez por ano, duas vezes por ano, muito menos do que eles gostariam. Mas era uma atividade muito marcante porque não era comum na época escolas fazerem isso. E de repente os pais até diziam: “É, o Pueri Domus é diferente. O meu filho aprende o que aprende filhos dos meus amigos de outras escolas, mas vocês não têm o chapadão”. E o chapadão passou a ser um sinônimo de uma atividade diferenciada. Do chapadão, e em um dos chapadões, nasceu a ideia de outro desenvolvimento do Pueri Domus muito rico e muito marcante que foi o Projeto Valor.
P/2 – Antes do senhor falar do Projeto Valor eu queria entender. O senhor como educador e também como ser humano, o que levou o senhor a ter essa percepção dessa necessidade extracurricular dos alunos?
R – Na época em que eu estava no Pueri Domus a Beth tinha uma ligação muito estreita com projetos de convivência internacional, alunos que iam para os Estados Unidos, para a Europa, ficar com a família hospedeira. Isto já vinha de outras entidades e a Beth tinha muito isso. Ela era, não sei qual a participação societária, mas ela era, digamos assim, uma diretora do Experimento. O Experimento era um organismo que recrutava alunos eventualmente interessados para cinco, seis meses viver como hospedeiro numa família nos Estados Unidos, assumindo o compromisso de que estudantes americanos também passassem igual período também em suas casas e tal. Então era um movimento muito interessante no qual o Pueri Domus não era original, outras escolas também o faziam. Mas a Beth, na discussão com a direção do Experimento, se deparou com um problema, como selecionar os líderes que iriam acompanhar estes alunos, porque cada grupo de alunos deveria ser acompanhado por um líder, geralmente um universitário. Como selecionar este líder? Que ele tivesse fluência na língua era óbvio, mas havia muitos que se apresentavam como líderes. E como selecionar aqueles melhores, como saber se eles tinham essa possibilidade de realmente liderar? E um dia lá me chamou e me perguntou se eu não poderia fazer o treinamento desses líderes. E eu tinha que estudar isso, de que maneira e tal, e discutindo muito com ela construí um conjunto de estratégias para, em três dias que ficávamos em um hotel em Atibaia, ter critérios para dizer quem poderia ser líder ou não para trabalhar no Experimento. Esta atividade, diga-se de passagem, era totalmente à parte da minha atividade como professor do Pueri Domus, era uma atividade extra que eu fazia, e eu ia lá com esse grupo e tal. Aí eu comecei a perceber que essas estratégias eram muito maiores do que a pretensão de escolher líderes, eram estratégias que criavam vivência. Quando este evento terminava, a maioria deles dizia: “Ah, se eu não for escolhido não tem importância. Eu criei amigos insuperáveis, eu aprendi a me conhecer”. E eu achei que aquilo que estava sendo feito nessas atividades do Experimento poderiam ser trazidas para os nossos alunos. Então eu procurei adaptar aquela estratégia que se fazia com pessoas de dezoito, vinte, vinte e cinco, trinta, quarenta anos para a faixa etária deles. Nunca antes dos doze, que é a fase da idade em que realmente o desenvolvimento da criança liberta para a sociabilidade, liberta para o outro. É quando ela se rompe daquele processo, eu diria, um tanto quanto egocêntrico, como Piaget o chamou, para a sociabilidade. Então daí veio a ideia de fazer isto aqui. Começaram a aparecer estas atividades e destas atividades veio então o sítio e a proposta do chapadão.
P/1 – Ainda antes do Projeto Valor, eu quero lhe perguntar o seguinte. Tudo isto que o senhor falou, os jogos que o senhor desenvolveu, isso tudo é fruto do seu trabalho como escritor?
R – Não, eu não escrevia sobre isso.
P/1 – Não escrevia?
R – Hoje eu escrevo, hoje eu creio que boa parte dos meus livros trabalham isto. Na época eu era apenas autor de livros didáticos e livros paradidáticos. Então eu não tinha livros pedagógicos. Eu tenho a única exceção de uma obra, nessa época, onde eu relatava essas atividades, muito menos para o público e mais para ter um registro. Creio até que se na época houvesse um computador confiável eu nem a publicaria, porque a minha ideia toda estava voltada ao livro didático. Em 1993, 1994, eu comecei a me cansar do livro didático. Eu estava completando, nessa época, trinta anos de livro didático. Meu primeiro livro didático foi publicado no dia do assassinato do Presidente Kennedy, em 1963. Então, em 1993 eu já estava com muitos anos de livro didático, trinta anos de livro didático, eu falei: “Eu vou parar de fazer”. E quando parei é que comecei a fazer livros sobre educação, ensino, sobre pedagogia. E aí eu fui bafejado pela sorte de três ocorrências simultâneas independentes do meu trabalho e que deram muita popularidade a isto. Era uma época em que começava a atingir o seu ápice a explosão educacional no Brasil. Era a época em que os governos investiam em escola, escola, escola, escola em toda parte. E isto precisava de muitas faculdades de Pedagogia, muitos cursos de Educação, que não tínhamos. E os meus livros começaram a aparecer e contaram com este público, e de repente as editoras começaram a ver que ali estava um filão rentável, que até então não existia. O segundo fato que beneficiou a popularidade destes livros é que, como decorrência dessa própria explosão educacional, começaram a surgir entidades que organizavam encontros de professores, simpósios, congressos, seminários, que até então eram anuais ou bianuais, passavam a ser mensais, em Manaus, em Teresina, em Recife, em toda parte. Eu comecei a ser chamado pra fazer palestras nesses congressos e aquilo também foi dando um outro empurrão ao livro porque, além das editoras terem publicado e ter divulgado em cursos, professores já formados passavam a saber que existia material sendo distribuído neste contexto. E o terceiro elemento que, de uma certa forma, popularizou isto, foi uma palestra feita aqui no Pueri Domus, já no caso da minha permanência feita por este hoje meu grande amigo, o professor Nilson José Machado, e que ele falava de inteligências múltiplas, não como tema mas como detalhes da palestra. Eu me senti absolutamente apaixonado pelo assunto, e quando eu me apaixono pelo tema eu devoro, eu fui lendo os livros e tal, e aquilo começou a ganhar uma certa popularidade. Então faculdade de Pedagogia comprando os meus livros, congressos, seminários, encontros, simpósios me levando para fazer palestra, divulgando ainda mais esses livros. E um tema novo no Brasil porque a ideia de inteligências múltiplas até então eram ideias somente de livros importados e _____, e de alguém que via nelas uma maneira de trabalhar na sala de aula, acaba dando uma popularidade muito grande, isto acabou mudando o enfoque. E eu teria parado de fazer livros didáticos mesmo sem que isto ocorresse, mas talvez não fizesse outros. E aí eu comecei a fazer sobre livros de educação. Hoje eu cheguei a, seguramente, uns cinquenta, sessenta, e eles estão publicados no mundo inteiro, em toda parte, na América Latina, na Europa. Eu também, às vezes, sou suscitado a fazer palestras em outros países, mais por força da explosão deste crescimento educacional e das consequências que isto gerou na popularização do livro pedagógico.
P/1 – Voltando então agora para o Pueri, o senhor pode nos contar um pouco do Projeto Valor?
R – Pois é, numa dessas discussões do chapadão, num desses debates, porque eu saía com o desígnio de falar pouco. Era um espaço para o aluno falar, eu era um provocador de situações, eu era um proprietário de pontos de interrogação. E num deles eu me lembro que um grupo de alunos começou a fazer uma crítica da escola, uma análise crítica da escola. O espaço permitia isso, podia falar o que queria. “É, porque o Pueri Domus está muito preocupado com o ensino, mas nós não temos (memória?) social. Tem tantas crianças carentes, nós somos de uma classe média alta e ninguém apóia as crianças carentes, e não sei o que e tal”. E no fim aquilo ficou muito forte naquela discussão. E eu tinha por natureza, até porque a Beth se interessava muito, quando terminava um chapadão eu ia expor a ela aquilo que acontecia, porque ela sabia que aquilo era uma radiografia da escola, pelo menos do ponto de vista de cada classe. E me lembro que eu expus isso pra ela, e ela falou: “Oh, você quer saber, Celso, isso não é crítica não. Eles têm toda a razão mesmo, nós não temos nenhuma outra atividade social. Nós temos uma energia desses alunos de querer se dar, se conhecer, se entregar ao outro, e nós estamos dando apenas conteúdos. Vamos desenvolver um projeto para trabalhar estes valores”. E aí nasceu a ideia do Projeto Valor. Então o Projeto Valor tinha várias estratégias, foram sendo criadas aos poucos. A primeira estratégia era: “Será que nós não poderemos atender crianças do Hospital Darcy Vargas?”, na época, “Será que nós não podemos atender crianças? Mas como nós podemos atender?”. Então eu fui ao Hospital Darcy Vargas saber se tinha alguma coisa que a escola poderia fazer. “As nossas crianças ficam muito tempo quietas. Se alguém pudesse vir contar histórias e tal.” Eu disse: “Bom, isso os alunos podem. Claro que precisam aprender, mas podem. Então vamos criar um grupo para contar histórias para as crianças não só no Hospital Darcy Vargas mas em outras entidades que eventualmente nos procuram”. E aí, sempre voluntariamente, os alunos eram escolhidos: “Quem quer participar dessa...”. E começaram a aparecer muitos alunos, só que alguns diziam: “Olha, eu não estou muito interessado em contar história, mas eu estou interessado em cantar”. Diga-se de passagem, eram os filhos da Elis Regina, era o João Marcelo, a Maria Rita ainda era pequenininha, mas era o João Marcelo, era o filho do (Simonal?), o (Simoni?) que nós chamávamos. Claro, eles tinham aquilo no sangue. Então por que não ter outra estratégia? Então, além de contar história vamos ter que fazer um show de vez em quando, até para arrecadar fundos para essas entidades. Como já havia duas estratégias, elas precisam ter um nome. Então a primeira de contar história, ficar com a criança, passou a chamar “Missão acalanto”, a segunda “Pró-show”. Daí: “Ah, mas será que a gente não pode fazer nada pelos índios? Eu gostaria de poder ajudar e tal”. Então daí começou a aparecer o “Pró-índio”, e começaram assim a aparecer diferentes estratégias. E eu não sei se por coincidência ou não um pai de aluno, conversando com a Beth, disse que ele ia receber na casa dele alguns índios: “Você não gostaria que os índios viessem bater um papo com os alunos?”. E nós já tínhamos aqui o “Pró-índio”. Que bom, eles vieram e percorreram as classes, e eles viram que o objetivo é de conquistar alguns afazeres, algumas prendas, levaram algumas prendas. Como o Projeto Pró-índio estava em andamento, nós começamos a fazer campanhas de arrecadação. Foi uma loucura, foi uma loucura. De repente precisava um outro Pueri Domus ao lado do Pueri Domus porque não tinha lugar para colocar roupa, brinquedo, comida. Bom, para se ter uma ideia, a Beth precisou improvisar um funcionário que dirigia para um pai de aluno que era proprietário de um comércio, um caminhão baú gigantesco para entupir de coisas para levar para aldeia porque nós não tínhamos onde colocar. Então o Projeto Valor passou a agregar estas missões, a Missão Acalento, o Pró-índio, o Pró-show. Porque não contar histórias para velhos, e ao invés de atender apenas a criança atender o velho. Quando eles foram escolhidos muitos velhos não sabiam escrever. Eles gostariam de ter pessoas que escrevessem para mandar cartas para os amigos. Então ele começou a atender a comunidade da, na época, chamada terceira idade, hoje melhor idade, a comunidade infantil. Daí o Pueri Domus tinha uma oficina aqui dentro para fabricar móveis, consertar carteira, tudo, precisava ter oficina. Daí: “Por que não usar a oficina do Pueri Domus para fazer brinquedos e doar brinquedos para o Darcy Vargas?”. Só que eles faziam muito mais brinquedos do que era possível. Os alunos aprendiam a fazer, serrar, cortar. “Ah, mas o Darcy Vargas não quer mais. Vamos levar para Febem”. Então levava para unidade Sampaio Viana da Febem, levava para lá. E assim foi desenvolvendo uma série de atitudes maravilhosas que acabou, creio eu, é um julgamento muito pessoal, alguns anos depois se perdendo, exatamente pelo gigantismo que isso alcançou. Nós não estávamos preparados para imaginar que essa ideia pudesse tomar a proporção que tomou, o volume que tomou, e aquilo que deveria ser uma atividade que tomaria um pouquinho do nosso tempo, porque tinha o chapadão, tinha as aulas, acabou de repente querendo absorver um tempo maior. A Beth disponibilizou outros funcionários, mas eram pessoas que não estavam inteiradas dos objetivos que geraram o processo. E com esse crescimento, com esta explosão de funções, de atividades, o projeto, não sei exatamente, cinco, seis, sete, oito anos depois acabou praticamente se diluindo. Mas foi indiscutivelmente um momento muito marcante, paralelo ao chapadão, que nasceu no chapadão, mas independente, o chapadão prosseguiu por mais tempo também. E também creio que o que levou a fragilizar-se foi também o seu gigantismo. Aí os pais pressionavam: “Ah, mas uma vez por ano chapadão é pouco, vamos fazer mais chapadões”. Mais chapadões implicavam mais pessoas, e aí: “Ah, mas tem o chapadão do Celso, tem o chapadão de fulano, tem o chapadão de cicrano”. Aquilo começou a perder aquela individualidade. Creio que a base desta diluição se deu exatamente pela explosão gigantesca que estes eventos proporcionavam.
P/1 – Tem também um núcleo de projeto no Segundo Grau, né? Foi ainda no seu tempo que ele foi implantado?
R – Foi, foi. Ele, se eu bem me lembro, estava muito associado à chegada da Informática no Brasil. O Pueri Domus, muito pioneiro nesta área, começou a ter os primeiros computadores e se buscou desenvolver, de início, aulas paralelas de Informática, mas depois se percebeu que seria possível estender isto para outras atividades. Eu me envolvi de uma maneira muito integral a algumas dessas atividades, mas aí já como convidado, não como mentor da ideia. É claro que todos nós curtimos muito isto entre nós mesmos, mas aí já como convidado. E aí desenvolvemos alguns projetos muito interessantes, um deles, no qual eu participei muito intensamente, era, começava a aparecer e se popularizar no Brasil os vídeos de filmes cinematográficos, o cinema começava a ser visto em casa. Então era fazer no Pueri Domus a apresentação de certos filmes de conteúdo muito significativo ou filosófico, ou sociológico, e convidava os alunos para virem assistir aos filmes não como expectadores, mas como protagonistas de uma discussão, de um debate e de uma tentativa de contextualizar o que o filme tinha de melhor na vida pessoal e particular de cada um. Então foi também esse projeto desenvolvido, também participei já depois, e _______ também foi um momento muito significativo.
P/1 – O senhor também implantou uma disciplina, pelo menos pelo que a gente pesquisou, Conscientização Política Nacional e Internacional.
R – É, digamos assim, eu recebi um desafio da Beth, um desafio realmente muito intrigante. Eu era professor de Geografia. Eu tinha uma formação pedagógica, mas a minha atividade no Pueri Domus, fora as atividades de gestão, era professor de Geografia. E nessa época nós vivíamos o calor da anistia, quer dizer, o país estava saindo da ditadura, o país estava tendo liberdade de poder dizer coisas que não poderia dizer, a imprensa já não tinha a censura que tinha antes. E num determinado momento a Beth achou que eu poderia fazer abordagens sobre isso. Eu disse: “Olha, Beth, eu tenho alguma dificuldade em fazer, embora me sinta apaixonado pela ideia, porque você quer que o aluno entre na Fuvest ou nos grandes vestibulares. O programa de Geografia é um programa apertado. Se eu me proponho a colocar o aluno no vestibular, eu não tenho espaço para trabalhar esta questão, para trabalhar este desafio, para abrir a cabeça do aluno e tal, a não ser que nós possamos criar outras disciplinas específicas, porque aí eu ___ que administro Geografia pode ter aquele foco voltado para preparar para o vestibular e paralelamente àquilo poderemos ter uma disciplina com estas prerrogativas”. Ela disse: “Olha, Celso, uma dessas disciplinas já existe, que é a Educação Moral e Cívica. As escolas agora estão tirando Educação Moral e Cívica até porque a ditadura acabou e já não é mais obrigado mantê-lo. Nós não vamos tirar, só que nós vamos fazer um programa conscientizador, anti-alienante dentro da Educação Moral e Cívica. Mas isso não impede que criemos outras disciplinas”. E aí então surgiu um núcleo formado pela Educação Moral e Cívica no primeiro ano colegial que não era uma Educação Moral e Cívica como a ditadura, como o decreto que havia instituído a disciplina estabelecida com um programa definido, mas era muito conscientizadora. Era assim uma leitura do mundo como talvez tivesse desejado fazer Paulo Freire, e sem aquele programa de vestibular e tal, e é uma matéria que os alunos gostavam muito porque também eram desenvolvidas as estratégias todas que se comentou antes. No segundo ano colegial eles tinham a disciplina PNC, que era Política Nacional Contemporânea, e era quase que uma análise dos anos anteriores, o Brasil um pouco antes da ditadura, o Brasil durante a ditadura, aquilo que era possível já saber se sabia para chegar no Brasil de agora. E no terceiro ano eles tinham a Política Internacional Contemporânea, que era a mesma proposta, mas agora vamos pensar mais profusamente no conflito árabe-judaico, vamos pensar mais profusamente na Guerra do Vietnã que havia terminado mas, enfim, nos tempos que se vivia e naquele clamor da Guerra Fria que se vivia. Então realmente foi um núcleo também muito singular no Pueri Domus no sentido que não era comum nas escolas. Aí a Beth disse: “Olha, você não vai fazer mais aula de Geografia, você não vai mais dar aula de Geografia porque Geografia eu ponho outro para dar”. E eu achei muito bom porque, embora eu gostasse da Geografia, eu sentia que isto era um desafio para que eu estudasse coisas que eu não tinha estudado, e essas disciplinas foram realmente desenvolvidas.
P/1 – E a receptividade, tanto dos alunos como dos pais, para essa nova matéria, como foi?
R – Foi muito calorosa, muito receptiva, tão receptiva que quando veio aquela história do Collor, dos caras-pintadas, a turma de Humanas aqui, que tinham mais aulas nessa área, que dividia-se Humanas, Exatas e Biológicas, pintaram a cara e foram participar dos desfiles. Então eles gostavam muito, muito mesmo, muito, muito, muito. É claro, nem todos os alunos gostam de todas as coisas que se propõe, mas a maioria se empolgava e _____. Havia, é claro, muita preocupação, na época, para entrar na USP, não do Pueri Domus, mas do conceito da escola em geral. Não se tinha, como hoje se tem, esta pluralidade de se aceitar fazer vestibular em qualquer lugar. Então aqueles que estavam mais obcecados pela Medicina, pela Engenharia, que são cursos mais competitivos, sentiam que, na idade em que eles estavam sendo solicitados, eles tinham que canalizar energia para pegar uma Politécnica, para pegar uma Medicina. E daí esse interesse deles pelas questões políticas não era menor, mas o tempo era menor. Mas para os alunos de Humanas e para outros aquilo era realmente muito marcante.
P/2 – Eu quero aproveitar e trazer uma questão. O senhor que acompanhou toda essa manifestação dos alunos, da juventude, dos caras-pintadas nessa época, desenvolvendo os professores, desenvolvendo essa aula de política nacional e internacional, como é que o senhor vê hoje esse comportamento completamente ao contrário? Quer dizer, o quadro nosso político dramático, ultimamente, e ninguém se manifestando, os jovens principalmente.
R – É, eu tenho uma posição firmada a esse respeito. Eu acho que todo procedimento que se tem, ou ele é fruto de uma carga hereditária, de uma carga genética, ou ele é fruto de um processo de educação. Sabidamente, esse estado de alienação, de letargia, de indiferença, de apatia não é genético. Isto não é opinião, isto é a ciência, realmente não é genético. Os seres humanos não nascem alienados, não nascem desinteressados, não nascem consumistas, não nascem apáticos. Ora, se isto não é genético e este processo ocorre, as raízes são essencialmente de natureza educacional. Agora, é preciso que quando se responsabilize a educação por esse estado, não se coloque apenas a educação escolar, mas também a educação familiar, porque um dado impressionante sobre isto, não particularmente sobre a questão da alienação, mas que responde esse estado de letargia e de desinteresse é que o Estado de São Paulo tem 1,3% da sua população constituída de asiáticos, e os asiáticos ocupam 19%, 18% das vagas das faculdades de melhor nível. Ora, mais uma vez esta maior capacitação de orientais não é genética. Então, por que eles alcançam? Porque eles possuem uma estrutura familiar diferenciada. Então veja, se este processo de letargia, de indiferença, de apatia, de alienação é comum a todos, como realmente é. Você colocou muito bem, nós estamos vivendo um período de extrema criticidade onde realmente se atirou pelo esgoto todos os valores. Nós estamos vivendo uma fase de convergência política horripilante e o jovem está literalmente interessado em comprar a sua grife e portanto se abstendo desse processo dentro de uma mesma entidade onde os alunos foram os primeiros caras-pintadas a parar as aulas para sair. Se percebe que a estrutura familiar se transformou e nessa transformação perderam o espaço da educação ______ desenvolver e que a própria entidade escola, e aqui eu não analiso obviamente esta ou aquela escola, também se desviou daqueles objetivos. Creio que uma das razões desse desvio, não a única, uma das razões desse desvio é que essa própria explosão educacional a que nos referimos tempos atrás suscitou muitos professores.
(Pausa)
R – O país sofreu uma explosão de escolaridade. Nós saímos de índices onde mais da metade das crianças brasileiras não frequentavam escola para trinta anos depois ter noventa e oito por cento dessas crianças frequentando escolas. Nesse mesmo período houve uma explosão demográfica muito grande trazida até por melhores condições de higiene, melhores condições de Medicina, uma seriedade maior no trato da pessoa e uma urbanização, que é o trazer a pessoa para cidade, o que trouxe melhores condições de vida. A população aumentou, a escolaridade aumentou. Isto significa que milhares de professores tiveram que ser feitos do dia para noite, preparados de uma hora para outra, sem a qualidade que era necessária para comandar esta letargia. Se entrava na sala dos professores no Pueri Domus nos anos oitenta, aquele intervalo era discussão de Filosofia, se falava de poetas. Havia, é claro, lazer, brincadeira, gozações, piadas, mas eram pessoas de lastro cultural. Se alguém por acaso mencionasse Dostoiévski, quem opinava a respeito não era apenas o professor de Literatura, era o professor de Química, de Física, de Matemática, de Geografia, porque era realmente um clamor pensante de vitalidade muito grande. Estes professores iam para sala de aula dar as suas disciplinas, mas esses alunos, tendo aquelas outras disciplinas que os conscientizava, os interrogava, e eles opinavam com conhecimento de causa, com clareza. Então é evidente que tudo isto desapareceu. Ora, se nós pegarmos as duas pontas, uma falência de uma organização familiar no sentido de que a família também é pólo de uma educação, e uma escola que perdeu o pé nesta realidade, até pela própria desqualificação inevitável que a história impôs a seu quadro docente, nós temos algumas das razões que explicam esse processo alienador. Eu não estou dizendo que isto não tenha saída, eu não estou afirmando que estamos inexoravelmente condenados a conviver com isto pelo resto dos tempos. Tenho esperanças de que, superado o desafio da quantidade, possa se retomar o apelo pela qualidade. Mas que o retrato momentâneo que se tem hoje é isto, uma educação em dificuldade muito séria. Alunos que completam o ensino público, as séries iniciais, não sabem ler. Professores que sabem repetir determinados conteúdos mas que leem pouco e que, se leem, nem sempre compreendem com clareza o que lêem, que não discutem. Então é um momento, eu tenho esperança que de duração relativa, mas que parece justificar exatamente esta letargia onde hoje se vê as instituições no país apodrecer e uma juventude sequer tomar conhecimento desses dados porque está preocupada ou com o consumismo desenfreado ou com valores que não são aqueles que realmente a sociedade brasileira reclama e precisa.
P/1 – Professor, quais foram os principais desafios que o senhor enfrentou no Pueri Domus?
R – O primeiro grande desafio que eu enfrentei era entrar para uma escola, que na época eu entrei para o colegial, que tinha compromissos com o vestibular, vindo de experiências onde estes compromissos eram muito pouco solicitados. Eu vinha de uma experiência no Sion. As meninas de Sion iam para faculdade, mas se dizia na época que estavam muito mais preocupadas em arrumar um bom casamento e não com empregabilidade. Então não tinha uma quantidade muito grande de alunas buscando cursos verdadeiramente competitivos. Eu vim para o Pueri Domus e eu descobri um cenário competitivo. Eu tive assim um impacto de alguns dizerem: “Errei a metade das questões de Geografia”, e aquilo era inconcebível. Então esse foi o primeiro grande desafio. Um outro desafio que eu enfrentei foi o desafio, este muito positivo, de saber que em cada disciplina havia literalmente um craque, havia realmente uma referência. Quer dizer, eu tinha que ser muito bom porque quem estava dando aula ao meu lado, na sua área, era muito bom. É até questionável se o conceito de bom hoje era o conceito de bom na época. Hoje nós não temos uma concepção de qualidade muito centrada no conteúdo, mas de qualquer maneira eu não podia ter dúvidas de que eu tinha que saber o que eu ensinava tanto quanto sabiam o que ensinavam os professores que eu tinha ao lado. Isso significava dizer que eu tinha que me refazer a cada aula para aprender a cada ano e recomeçar a cada dia. Um dos nossos professores dizia que no Pueri Domus tem que se matar um leão por dia, e o matar um leão por dia significava realmente isso. Creio que foram os dois grandes desafios que eu enfrentei. Depois, é claro, são os desafios ligados ao cotidiano, são os desafios inerentes à função de diretor, à função de coordenador e de não ter a equipe que eu gostaria de ter como antes, não porque o Pueri Domus não propiciasse condições para contratá-la, mas porque o próprio mercado já apresentava professores com qualificação não tão desejáveis quanto de alguns anos atrás.
P/1 – E as dificuldades?
R – Eu não creio que eu tenha tido dificuldades assim insuperáveis. Tinha dificuldades cotidianas, de vez em quando se deparava com incompreensão deste ou daquele pai por esta ou por aquela atitude, mas não sentia assim que vivi desafios extremamente atrozes e tal. Me incomodava um pouco no Pueri Domus alguma dificuldade por não ter a estabilidade do quadro docente. Havia muitas mudanças a cada ano e aquilo me incomodava um pouco, mas eu não creio que eu possa dizer que isto era dificuldade. Foi uma relação muito afetuosa, e, sinceramente, em nenhum momento, quando precisei sair do Pueri Domus, eu disse: “Ufa, eu estou me livrando de alguns abacaxis”. Não creio que isso tenha sinceramente passado pela minha cabeça.
P/2 – Professor, o que é (Ambex?)? Como funcionava esse departamento de projetos especiais?
R – Se eu me lembro bem, havia um coordenador da área de Informática, o (Cute?), que propôs a criação de uma forma de canalizar aos alunos que tivessem disponibilidade de horário, e voluntariamente, a oportunidade de aproveitar esta disponibilidade de tempo para que a escola lhe oferecesse desafios significativos em determinadas áreas. Então, por exemplo, o Pueri Domus tinha o seu curso colegial no período matutino, muito poucas aulas de laboratório à tarde, e os alunos tinham uma certa ociosidade à tarde. Não muito no terceiro ano, quando já iam buscar os seus cursinhos e tal, mas aluno de primeiro e segundo ano colegial tinham uma certa ociosidade à tarde, e essa ociosidade incomodava muito os educadores do Pueri Domus, os incomodava bastante porque nós tínhamos recursos, nós tínhamos espaço e não era concebível que todo aquele recurso ficasse aguardando a chegada do aluno no dia seguinte. Então esse Departamento de Projetos Especiais visava este tipo de canalização: “Você por acaso tem algum interesse na área de Robótica? Você por acaso gostaria de aprofundar os seus conhecimentos na área de Língua? Você gostaria de ter a oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos neste ou naquele setor?”. Só que o objetivo não era a repetitividade da atividade matutina, não era: “Bom, você vai ter aulas de reforço”. Não, absolutamente não era isto, até porque não visava este tipo de aluno. Ao contrário, era justamente aquele que podia disponibilizar a sua tarde porque era tão bom que algumas horas de estudo lhe bastasse. Então, como era um aluno especial, você tratava de dizer para o aluno: “Agora, você vai ter à tarde o aprofundamento que você teve de manhã. Então você vai ter uma outra descoberta em áreas diferentes”. Aí, inclusive, se insere aquela ideia do filme que era passado _____. Não era comum. E, assim como esta atividade, eles tinham uma certa liberdade para criar projetos diferenciados visando exatamente a canalização deste tempo, esta energia do aluno e esta disponibilidade de recursos materiais que o Pueri Domus se propunha a ter, que, diga-se de passagem, era extremamente, muito significativa, porque, até onde eu sei, o aluno não pagava nada por isso, mas os professores recebiam, os coordenadores recebiam, o investimento no material existia. Então era uma feição filantrópica do Pueri Domus. Se não filantrópica, para uma classe menos assistida, filantrópica no sentido de dizer: “Olha, por que você não vem à tarde aqui?”. E é claro, isso incluía área de esportes e outros campos também.
P/2 – Professor, eu gostaria de saber a sua opinião sobre a escola ampliada.
R – Ampliada em que contexto, em que sentido?
P/2 – A escola ampliada que o aluno passa o dia.
R – Olha, eu poderia dar uma opinião sobre a escola ampliada no contexto da educação, do Pueri Domus eu não tenho nenhuma informação. Eu, quando me desliguei do Pueri Domus, eu mantive laços afetivos com as pessoas e, é claro, com a instituição na medida em que ela se inseriu na minha história de educador. Mas, por circunstâncias outras, eu fui perdendo o pé no Pueri Domus, fui perdendo o acompanhamento do Pueri Domus. Eu não tinha por que fazê-lo senão por uma mera curiosidade, mas eu não tinha tempo de fazê-lo. Então eu fui me distanciando. Hoje, quando eu estou participando de palestras, de eventos: “O senhor não poderia falar da educação infantil no Pueri Domus, o senhor não poderia falar?”. Eu digo: “Eu não posso falar. Eu não posso porque eu posso falar de uma época, eu posso falar de um tempo. Eu sei da respeitabilidade que o Pueri Domus tem no contexto de outras escolas, mas eu estarei fazendo uma visão analítica muito imperfeita se eu julgar que o Pueri Domus que eu conheci é o Pueri Domus que hoje existe, até porque é a realidade, o país mudou, até porque a própria educação mudou”. Então eu sinto assim que uma escola ampliada é de uma validade inquestionável porque, se outras razões não existissem, o próprio fato de que os países que possuem uma tradição de escolaridade mais representativa que a nossa fazem. Então, não que eu seja um imitador de modelos, mas eu creio que se nós temos consolidado modelos de ações educacionais fora do Brasil com resultados significativos, não há por que não tê-los no país também. Mas é como eu digo, é uma visão generalista sobre esta possibilidade, não um conhecimento real porque eu estou voltando fisicamente ao Pueri Domus, excluindo épocas eleitorais onde, por coincidência, eu voto aqui, quase que depois de doze anos de ter saído e até corrido pela surpresa de ser reconhecido por alguns funcionários que eu sequer sabia se estavam aqui ou não. Então realmente houve esse hiato e, como eu digo, nenhuma razão pessoal para que existisse o hiato, nenhuma sensação de página virada, nada disso, mas contingências da vida numa cidade grande onde a gente é solicitado para outros afazeres e vai se distanciando desta realidade. Por isso que realmente eu me sinto assim um pouco um ET chegando aqui, de um planeta onde eu estive só nos períodos históricos mais antiquados.
P/1 – Professor, qual que o senhor considera a sua principal realização no Pueri?
R – A minha principal realização no Pueri foi em ter aprendido muito, foi nunca ter terminado nada da maneira como eu comecei. Nem todas as experiências foram bem-sucedidas, é evidente, mas algumas outras instituições por onde passei eu não sentia o imperativo do crescer. Poderia até ser um crescimento feito por desejos de natureza pessoal, mas pela qualidade da equipe, pela qualidade dos alunos, pela forma como eram solicitados, o Pueri Domus realmente foi um imperativo de crescimento muito grande. E eu sinto que, talvez, na época eu não percebesse isto como sendo um valor, mas foi um valor inegável. Eu creio que passei doze anos dentro do Alberto Conte, um colégio estadual, sem ter aprendido muito com o Alberto Conte. Aprendi muito, muito, com, digamos assim, a minha vida, as minhas leituras, mas não, aquele espaço não era suscitador deste crescer. E, esta referência, eu poderia, sem nenhuma preocupação de natureza ética, estender a outras instituições onde eu estive. No Pueri Domus esse leão por dia que você tinha que matar era sufocante mas era extremamente desafiador. E outro dia ainda, quando a Roberta fez o convite para eu vir aqui, eu disse: “Eu vou com prazer, Roberta, porque eu aprendi muito no Pueri Domus”. “Não, imagina, você não aprendeu nada, você veio nos ensinar.” E não havia naquilo expressão de cortesia, havia realmente um pleito de muita sinceridade porque foram anos muito desafiadores e não sei se esta alegria que tenho hoje de poder ser convidado, fazer palestras em todo lugar, em toda parte, de estar proferindo amanhã a centésima quinquagésima palestra do ano e ter uma agenda fechada até o final do ano, se esta solicitação tão gratificante, tão bonita, tão carinhosa, existiria se não tivesse sido a força do que esses anos de Pueri Domus representavam um desafio.
P/1 – Muitas alegrias nesses anos?
R – Nem uma tristeza. Claro, alguns acidentes geradores de desespero, de angústia, a morte do professor (Jolí?) foi muito chocante para todos nós, a morte de alguns alunos foi algo assim doloroso, o aparecimento das drogas que não era um fato até então cogitado na educação, ocorrendo e nos levando a se perguntar como agir, representaram momentos de angústia, mas predominantemente alegria. Não me lembro de cenas em que eu possa dizer: “Eu estou pensando em sair do Pueri Domus”, não. Eu, como eu disse, eventos circunstanciais marcados pela angústia, pela tristeza, mas que independeram da instituição. Enquanto instituição, só alegrias, muitas alegrias. As festas que o Pueri Domus propiciava quando da outorga do olho, do símbolo, aos cinco anos, aos dez anos, a maravilhosa festa que o Pueri Domus fez quando completou quinze anos e foi para mim muito marcante porque foi um instante em que eu, que até então tinha algumas horas no Pueri Domus, me desliguei do Sion para ter tempo integral. Assim quase que: “Bom, já que você veio com quase todo o horário, ajude-nos a organizar a festa dos quinze anos”. Foram momentos assim de tensão, de expectativa para que tudo desse certo, mas de profunda alegria.
P/1 – O senhor quer contar um pouquinho para gente sobre a festa do ano?
R – Era uma instituição muito interessante porque hoje a gente percebe que, apesar da legislação que é imposta às empresas para se descartar de professores antigos ou de profissionais antigos, não apenas porque são antigos mas porque, é claro, vão acumulando direitos que vai tornando inviável a sua manutenção, faz com que a gente veja que a primeira medida que qualquer empresa, não estou falando apenas na área educacional, quando precisa cortar gastos, trata de recontratar profissionais para se libertar dos encargos daqueles que foram acumulando tempo. Ora, numa contramão desta tendência que começou a se manifestar, uma escola que se festejava porque tinha professores fazendo cinco, fazendo dez, fazendo quinze, fazendo vinte anos era muito significativo, era muito marcante. Quer dizer, você não recebia o prêmio pela atividade e via aquilo apenas como um processo de atividade, mas como uma honraria que se prestava pelos anos que você tinha ficado dentro da instituição. Nós temos que convir que num país como o nosso isso não é tão comum, isso é muito pouco frequente. Então eram momentos muito marcantes, não pela festa em si, mas pela simplificação que essa festa representava, por aquela emoção de você perceber que você está numa instituição onde o seu envelhecimento não era apenas lamentado pelos anos de juventude que se perdia, mas pelo reconhecimento do trabalho feito. Foi muito marcante para mim e, institucionalmente, e se eu soubesse disso numa instituição que não estive, eu aplaudiria essa instituição. Eu estou querendo com isto dizer que eu me senti feliz não por ter sido contemplado com essas honrarias, mas porque eu respeito o significado das mesmas, mesmo em instituições que não me dizem respeito.
P/1 – Como o senhor compararia a escola que o senhor estudou, as que o senhor trabalhou, com o Pueri?
R – Até a minha chegada ao Pueri a qualidade de um professor era centrada no domínio que ele tinha do conteúdo que administrava, não se buscavam outros referenciais. Claro, era importante que ele tivesse postura, era importante que ele fosse pontual, era importante que ele fizesse diários de classe com alguma qualidade, era importante que ele tivesse uma certa sociabilidade, mas a essência da sua qualidade era o conteúdo que ele administrava. Grandes professores eram dominadores profundos do conteúdo específico desta ou daquela disciplina. O Pueri foi o primeiro lugar onde eu comecei a descobrir que outras qualidades passavam a ser requeridas. Eu me lembro que dentro do Pueri eu li para mim mesmo, para minha auto-avaliação, independente da avaliação feita pela instituição, eu criei uma, digamos assim, um acróstico onde cada uma das letras expressava um cuidado que eu deveria ter, porque dentro do Pueri esse cuidado era significativo. E isto diferia muito daquela visão conteudista de um bom professor que sabe o conteúdo. Então eu pensava que aqui no Pueri era preciso ser educador. Cada letra representava um dado, um elemento, um fato. O que era o “E”? Era preciso ter empatia, era preciso saber se relacionar, era preciso fazer amigos, era preciso excitar no aluno a solidariedade, excitar no aluno a sociabilidade. O “D”, era preciso dominar o conteúdo. Isto que era a prerrogativa única de outras escolas, aqui também era prerrogativa, ainda que não... O “U” era ter um sentido de equipe, ter um sentido de união, ter um sentido de corpo e não apenas cumprir a sua tarefa, ir para casa e achar que o papel estava desempenhado porque se cumpriu aquela tarefa. Era saber onde o outro precisava da ajuda e buscar no outro a ajuda que se precisava. O “C” era voltado à construção do conhecimento, era ajudar o aluno a obter aprendizagem significativa, ver refletir na vida o saber adquirido, não era apenas: “Saiba isto porque vai cair no exame vestibular”, mas: “Veja se na vida que você vive, se o supermercado que você frequenta, a rua que você atravessa, este aprender tem alguma significação”. O “A” era administrar o currículo, era sentir que o que se dava em fevereiro não podia ser aquilo que se dava em novembro, não apenas porque o conteúdo mudava, mas porque ao longo do tempo o aluno mudava. Ele ia crescendo, o professor tinha que crescer na medida em que ele crescia. O “D” era didática, era ser claro, era ser lúcido, era ser transparente, era ser literalmente um tradutor do saber daquela Geografia, daquela Biologia, daquela Matemática para aquela faixa que se destinava e para ensinar aquele aluno naquela condição. Então, o “O” era ter ordem, ter o sentido do seu programa, do seu cumprimento. Nunca tinha visto em escolas orientadoras pedagógicas me chamando a toda semana: “Onde o senhor está nessa classe, onde está naquela? Por que que o programa está atrasado aqui, o programa está ali?”. Então aquele laissez-faire comum nas escolas aqui não, aqui era um imperativo da ordem, daí vinha a letra “O” nesse acróstico. E o “R” era que toda atividade pedagógica se inspira em regras. Nós não tínhamos problemas de indisciplina, não porque os alunos eram outros, mas porque era muito claro que havia regras e que estas regras tinham que ser cumpridas e que o professor era tão indisciplinado quanto o aluno se ele as infringisse. Então eu creio que isto não teria acontecido na minha vida numa outra instituição e este paradigma foi assim muito significativo.
P/1 – Na sua opinião, qual a mudança mais significativa que a escola sofreu nos últimos anos?
R – Eu acho que nos anos noventa começou a se popularizar o conhecimento sobre o cérebro humano. Os Estados Unidos promoveu a chamada década do cérebro e isto fez nascer as chamadas Ciências da Cognição, e as Ciências da Cognição trouxeram grandes contribuições para a Educação e não apenas para a Medicina como a princípio se pensou. Hoje é possível observar-se a aprendizagem de um cérebro vivo, se a pessoa aprende, com um aparelho de ressonância magnética funcionando. Então, hoje, o conhecimento que se tem sobre a memória, o conhecimento que se tem sobre as emoções, o conhecimento que se tem sobre a linguagem, as formas de promover a atenção, os elementos geradores da motivação, a possibilidade que a pessoa tem de se autoconhecer abriram novos caminhos. Claro que nós estamos ainda no início desta era. Eu diria, como ______, que nós estamos tateando por onde nem os anjos ainda aprenderam a andar. Então, esta educação cognitiva, eu diria, esta neuroeducação, uma educação a partir do que o cérebro realmente aprende e não do que se supõe que ele deva ter, é a grande mudança. Nós estamos no início desta era. Ela ainda é conhecimento de alguns poucos, mas isso representa uma mudança muito grande e chega num momento muito importante, porque se não chegasse agora, com esta popularização da informação que você tem em toda parte, com esta possibilidade do aluno ter o que não tínhamos atrás, de conquistar na Internet a informação, da qualidade que ele quiser, da universidade que ele quiser, os professores estariam falidos. Morre de uma maneira muito rápida o professor proprietário de informações e começa a nascer o professor capaz de transformar a informação em conhecimento, capaz de abrir a memória, capaz de trabalhar a aprendizagem, capaz de sentir que, se ele quiser, ele pode ser um personal trainer de inteligências e competências. Não há mudança maior que essa.
P/1 – Como o senhor vê a introdução dessas novas tecnologias em sala de aula, que o senhor acabou de citar?
R – Como excepcionais veículos de informação, mas não mais do que veículos de informação. Eu acho que eu não consigo ensinar alguém se eu não tenho uma informação para passar. Então a informação dá início a todo processo de aprendizagem. Mas a parte mais importante da aprendizagem é aquela informação ser transformada em conhecimento, aquela informação ganhar a contextualização na realidade cotidiana. Então essas novas tecnologias, a lousa eletrônica, o computador e tudo quanto por aí existe enriquece a informação. A informação é muito importante, mas sem aquele recurso humano capaz de fazê-la transformar-se em conhecimento, isso sozinho não faz absolutamente nada.
P/1 – E como o senhor vê a relação dos pais com a escola?
R – Eu, minutos atrás, mencionei que eu sinto que a educação familiar está muito carente, muito preocupada. Nós temos uma classe média, uma classe alta, pais muito obcecados pelo conseguir, pelo conquistar. O conquistar não é apenas uma meta de suficiência, não se procura comprar um sapato porque se está sem sapato, mas porque a grife “X” do sapato não coincide com aqueles outros quarenta pares que eu tenho e, portanto, isto leva a uma conquista insaciável do ter. Insaciável porque isto é muito diferente de uma época onde o ter tinha simbologias claras. Eu vou assumir aulas à noite porque eu quero ter o meu apartamento próprio, e em um, dois, três ou quatro anos eu ia fazer aquilo. Mas, no momento em que eu tinha, eu tinha alcançado um patamar. Hoje isto mudou. Na medida em que isto mudou, mudou a relação do pai com o filho, mudou a relação do pai com a escola. Então, hoje, o pai poucas vezes vê a escola como um complemento da educação, mas como aquele espaço onde ele pode respirar na busca das suas conquistas durante alguns momentos porque ele não tem que estar ao lado do filho. Embora os pais não admitam de uma maneira verbal, muitos deles desejariam que a escola tivesse dezoito horas ou quinze horas para a criança sair de manhã e voltar à noite e ele não ter nenhum trabalho, não ter que desgastar-se no seu afeto. O telefone que ele desliga para falar com o patrão, ele não admite desligar para falar com o filho. Então é óbvio que se ele vê a escola como este depósito onde, quanto mais horas ela ficar, mais tranquilo ele estará, é uma relação que precisa ser transformada. Eu não creio que isto não seja transformável, não creio que não possa se fazer um trabalho contra isto, mas neste exato momento esta é a minha visão, uma visão não de pais como aqueles que eu conheci, que realmente vinham reivindicar da escola o complemento daquela educação familiar. E era muito frequente no final do ano não darmos conta como professor, de termos que participar de lanche aqui, coquetel ali e de café lá, de chá lá na casa dos alunos. Eles queriam ver os professores, receber os professores. Não era apenas uma amabilidade, de forma nenhuma. Eles diziam: “Não, a educação são mãos duplas e há um determinado momento em que essas mãos precisam se encontrar para o lazer também”. Isto era muito frequente. Mesmo aquele projeto de passar filmes, ____: “O senhor podia passar na minha casa? Eu moro perto”, e de repente não importava se a sala era aqui ou a sala era ali. Claro que isto, esta relação se perdeu por um conjunto de fatores, mas acho que ela pode ser retomada. Mas hoje, infelizmente, eu vejo como __________ relação. Claro que isto abriga admiráveis exceções, mas como a gente dá uma resposta generalista, não dá para fugir deste esquema.
P/1 – Como o senhor avalia as iniciativas governamentais para a educação? Tanto no âmbito federal como no estadual.
R – É, no âmbito federal de uma maneira absolutamente deplorável. Nove em cada dez educadores brasileiros não sabem quem é o Ministro da Educação. Os que sabem, sabem porque talvez devesse precisar. Antes do atual ministro se escolheu um outro apenas por um imperativo de natureza política, tanto que, quando as condições políticas internas do partido apertaram, vai se tirar qual? O ministro da mais desimportante área que é o Ministro da Educação. Então, eu diria que há uma falência justificável, uma preocupação em investir em Curso Superior e não atacar os problemas que deveriam ser atacados. No âmbito estadual as coisas são um pouco mais sérias...
P/1 – E o que o senhor acha que mais precisa, o que que falta assim na Educação?
R – Olha, essencialmente a coragem para investir onde é necessário. Se nós fizermos um gráfico de barras do capital investido nos diferentes setores de ensino, Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior, a soma dos investimentos em todos os segmentos não chega ao investimento no Ensino Superior. Claro que esse investimento em grande parte é por causa de uma anacrônica previdência. Então você tem que pagar salários incríveis para professores aposentados na universidade pública. Mas, independente de tudo isso, nós temos vinte por cento da população brasileira que frequenta faculdades e que pode pagar perfeitamente pelo seu curso. Então tudo isto precisaria de uma mudança constitucional. É óbvio, nós temos que ter uma outra constituição. Mas ter uma outra constituição é uma vontade política, não uma vontade eleitoreira de se lançar a ideia em época eleitora, mas uma vontade política realmente. Então, enquanto não se tiver coragem de mexer com essa equação de verbas, enquanto nós continuarmos a achar que a Educação é a Educação em Curso Superior, realmente nós estamos priorizando o que não deveria ser priorizado. Então eu creio que aí se coloca o ponto central das dificuldades da relação do poder público com a educação.
P/1 – Que função o senhor acha que a escola deve ter hoje?
R – Eu acho que a escola tem três funções importantíssimas e vejo as três funções, usando uma metáfora, como eu vejo as pernas de um tripé, de tal maneira que qualquer uma delas é tão importante quanto a outra porque, se uma das três fraquejar, o aparelho não se sustenta. A escola tem uma função epistemológica, ensinar o aluno a aprender. Não ensinar Matemática, História, Biologia, Química, Física, isso a Internet ensina, mas ensinar o aluno a aprender, usar a ferramenta dos conteúdos para ensinar a aprender, ensinar a pesquisar, ensinar a argumentar, ensinar a se antenar, a ler muito, enfim, um papel epistemológico. Segundo, eu creio que a escola tem uma função social, ensinar o aluno a se solidarizar, a fazer amigos, a estabelecer relações, a compreender o outro, a aceitar diferenças. E o terceiro papel, desenvolver competências úteis para o trabalho. Não se trata de ensinar a criança na Educação Infantil a trabalhar no aspecto de levá-la a se identificar com uma profissão, mas desenvolver habilidades que são cruciais no mundo do trabalho, assumir uma visão sistêmica, saber cooperar, saber se organizar, saber desenvolver um projeto. E sinto que algumas escolas estão muito obcecadas pela primeira perna do tripé, fazer-se um centro epistemológico, e nos seus discursos admitem a importância do segundo e terceiro papel, mas na ação pragmática não fazem. Mas para mim a escola só é escola quando ela ensina o aluno a aprender, quando ela ensina o aluno a se socializar e quando ela desperta e desenvolve capacidades para o mundo do trabalho, para o mundo das relações interpessoais.
P/1 – E aí ela formaria que indivíduo?
R – Um indivíduo que a sociedade precisa, um indivíduo que tivesse um olhar abrangente, uma sensibilidade para o seu tempo. O que lhe parece hoje muito crítico no jovem comum, no aluno comum que eventualmente poderemos apanhar aí no pátio, ele não está inserido senão materialmente na sua época. Claro, ele veste uma roupa que não existia vinte anos atrás, ele calça um tênis que não existia vinte anos atrás, não tinha ______ e não tinha ____. Ele usa um adereço que identifica uma época, ele é aquele modelo estereotipado do shopping, mas ele não sabe o que que está acontecendo ao lado dele, ele não sabe o que que está acontecendo no país, ele não tem noções do que está acontecendo no mundo. Então ele não é, no sentido pleno da palavra, um cidadão do século vinte e um. Ele é apenas um personagem que está transitando com os adereços desse tempo como um robô transitaria. E a educação tem um papel significativo nesse processo.
P/1 – O que o senhor acha do Pueri Domus comemorar os seus quarenta anos de vida por meio desse projeto de memória que envolve a comunidade escolar?
R – Eu acho extraordinário. Uma das coisas que mais me desencantam no meu país, e há tantas coisas que no meu país me encantam, é não se preocupar com a sua história, é essa volúpia da modernidade que leva a destruir amanhã o que se fez hoje. É esta fobia com que os prédios antigos são demolidos para se erguer caixas de concreto modernizadas e tal. Então toda a iniciativa de resgate da história é de um valor inestimável. Eu acho absolutamente extraordinário, quero realçar até para não parecer que o depoimento está voltado especificamente para este tipo de trabalho. Não, eu acho que toda instituição, e não apenas a instituição escolar ou educacional, precisa realmente saber olhar a sua história porque não há como pensar o futuro sem se ter conhecimento e solidez das nossas bases fincadas em nosso passado. Então eu acho admirável e apenas lamento que não seja uma iniciativa que se transformasse em algo comum à realidade brasileira e que, portanto, acaba sendo vista como uma exceção. Mas uma admirável exceção.
P/1 – O que o senhor achou de ter participado dessa entrevista?
R – Em primeiro lugar, quando eu recebi o telefonema da Roberta e o convite para vir aqui eu me senti muito lisonjeado. Eu pressentia que, por ter saído do Pueri Domus, e durante todo esse tempo não ter tido contato mais frequente, a não ser com umas duas ou três palestras que, convidado pelas Escolas Associadas, eu fiz, mas fiz em unidades distantes, no interior, e portanto era um contato mais com as Escolas Associadas do que com o Pueri Domus, que havia um certo sentimento de que existia da minha parte alguma restrição e que talvez os educadores de agora não fossem capazes de decodificar qual a mágoa que eu poderia estar levando por ter me mantido afastado. E, absolutamente, isso não existiu, o Pueri Domus sempre foi de uma referência muito carinhosa, de uma saudade viva e muito construtiva. Só que, como eu disse, mudanças na minha vida profissional, essa transposição de um autor de livro didático para livro de Educação, esta solicitação para palestras, essa correria, ocorreu um distanciamento. Mas eu sentia que das parte do Pueri Domus havia assim como que uma ideia de que havia algo direcionado neste processo. E senti que entre outras coisas, entre a alegria do depoimento, a riqueza das perguntas, a profundidade com que elas foram feitas, também foi uma forma de dizer que se alguém construiu essa imagem, ela nunca foi verdadeira. (Pausa)
P/1 – O senhor não concluiu ainda, né?
R – Não, se eu puder falar uma frase...
(Pausa)
R – É, eu quero reiterar que se porventura em alguém do Pueri Domus de hoje ficou uma vaga ideia de que esse meu distanciamento se deveu por alguma mágoa, por alguma insatisfação não claramente compreendida, que isto de forma alguma ocorreu, de maneira nenhuma. Eu sempre tive pelo Pueri Domus a mais agradável das impressões, as mais carinhosas das minhas lembranças quando sonho que estou dando aula no Pueri Domus, quando eu sonho que estou dando aula em outros lugares. Portanto, esse o meu afastamento é ditado por mudanças na minha vida profissional que me levaram a me afastar, possam, na imagem e na ideia de alguém ter ficado com algum sentimento de mágoa, liberte-se por favor dessa impressão porque de forma alguma ela é verdadeira.
P/1 – Professor, tem alguma coisa que a gente não perguntou, que o senhor gostaria de falar?
R – Não, eu acho que não. Eu sinto que, até pensava que era uma pergunta assim, uma entrevista muito frugal, muito rápida. Eu sinto que conversamos bastante.
P/2 – Mas eu tenho.
P/1 – Você tem. Desculpa, eu não entendi.
P/2 – Eu quero aproveitar esse conteúdo, gostaria que o senhor falasse da sua visão da Senhora Beth lá nos anos sessenta como uma mulher com tantas iniciativas importantes e tanto valor para Educação. Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco.
R – É, eu vou fazer esse depoimento com muita sinceridade, com muito carinho porque eu não vejo a Beth há dez anos e, portanto, não pode existir qualquer sentimento senão a verdade. Porque se eu dissesse: “Não, ela é minha amiga, ela frequenta a minha casa, eu frequento a casa dela”, poderia até ser induzido a querer que o meu depoimento era decorrente de laços que ainda estão vivos. Isto absolutamente não ocorreu. Eu creio que se eu tivesse que sintetizar em poucas palavras a imagem que a Beth me despertava e a imagem que eu guardei da Beth, é a imagem claramente voltada a algumas palavras, indiscutivelmente a palavra coragem. Sem dúvida nenhuma a palavra otimismo. A terceira palavra é a palavra confiança em si. Mesmo sabendo que naquela intuição havia possibilidade de erro, nunca se esquivando de assumi-lo, mas aquela confiança em si. Um quarto adjetivo que eu creio que caracteriza muito fortemente a Beth seria aquela afetividade, aquela angústia, aquela preocupação com o que às vezes o problema familiar daquele bedel, o problema familiar daquele pedreiro, com que o problema pessoal daquele funcionário realmente ocorria. Via a Beth dispensando funcionários que precisavam ser dispensados porque os seus erros eram injustificáveis, em prantos. E, à primeira vista, poderia parecer a alguém que não era algo hipócrita. Não, mas era confluência de um sentimento do dever que, entretanto, não abrandava, era o sentimento de ternura: “Eu preciso fazer isto”. Houve um caso de um funcionário muito comentado na época. Ele ingenuamente depositou na sua própria conta um cheque que um pai perdeu e, portanto, quando o pai veio reclamar a perda desse cheque, não foi difícil saber quem dele havia se aproveitado sem ter contado, sem ter entregue etc. A Beth chorou muito para demiti-lo, fazendo com que se confluísse este sentimento de afetividade com aquele sentimento de dever. Mas ao lado da coragem, ao lado do otimismo, ao lado da confiança em si, ao lado dessa atividade, com essa afetividade, uma força de vontade muito grande, muita iniciativa, portanto muita criatividade. E creio que, principalmente, uma enorme empatia, uma enorme capacidade de fazer-se igual, e para dizer numa palavra tudo, ser capaz de sentir o outro em si. Então são elementos muito marcantes. Tinha os seus defeitos, incontestavelmente tinha. Não há porque não saber da sua existência. Portanto, não vejo de uma maneira mitificada, não a coloco numa contingência de uma pessoa infalível. Muitas vezes desse defeito eu falava, ainda que ela tinha o hábito de dizer que eu era um príncipe, que eu era muito delicado para criticá-la. Mas ainda assim eu falava, eu criticava. Portanto não estou mitificando, não estou crendo que é uma pessoa que não se tenha hoje em atuais tempos e que alguém não possa ter essas características. Mas, incontestavelmente, esses elementos eram elementos marcantes na Beth que conheci e com a qual durante quase quinze anos convivi. Isto é absolutamente discutível.
P/1 – Então, professor, em nome do Pueri Domus e do Museu da Pessoa nós agradecemos a sua entrevista, muito obrigado.
P/2 – Muito obrigado.
R – Muito obrigado. Me sinto lisonjeado nesta oportunidade e volto a dizer que estarei sempre ao seu dispor.
P/1 – Obrigada.
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