P/1 – Para começar a entrevista então, por favor, nos diga qual é o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Bom dia, com prazer estamos aqui no Museu da Pessoa. Meu nome é Ivan Souza Moraes. Origem: cidade do Rio de Janeiro.
P/1 – A data de nascimento?
R - Data de nascimento: onze de outubro de 1945, com o final da Segunda Guerra. (risos)
P/1 – Qual é o nome de seus pais?
R - O pai, Amâncio de Moraes e mãe, Maria Cecília de Souza Moraes.
P/1 - Você sabe o nome de seus avós?
R - Não, não me recordo mais.
P/1 - E quantos irmãs ou irmãos mais você tem?
R - Além de mim, mais sete irmãos.
P/1 – O que os seus pais faziam?
R - Meu pai teve a formação profissional como eletricista e trabalhava como mecânico dos transportes de bondes do Rio de Janeiro. E a minha mãe era chamada do lar.
P/1 – Você se lembra do seu pai? O que você lembra dele?
R – É como...
P/1 – Como ele era?
R - De um modo geral, dos dois, tive uma formação como era típico da época, uma formação muito rígida. Dentro dessa rigidez não tínhamos muita ou quase nenhuma proximidade com os pais, tinha uma barreira. Meu pai, me lembro [que] era muito rígido e eu tinha até medo. Existia uma relação de medo com o meu pai. Com a minha mãe também; embora fosse rígida, tínhamos mais um contato coloquial, mais que com o pai.
P/1 - Como era a convivência com seus irmãos?
R - Essa família, nós, oito filhos e nossos pais, tivemos uma relação, uma convivência familiar difícil porque, desde que me dou conta de que existo, meus pais tinham uma relação muito tumultuada. Isso atravessou muito tempo, ou seja, era um relacionamento muito tenso que prejudicou… Posso dizer com certeza, não vou entrar no mérito, mas prejudicou a formação de alguns de meus irmãos. Era um clima familiar muito complicado. Começou a surgir desde cedo, talvez desde a minha pré-adolescência ou...
Continuar leituraP/1 – Para começar a entrevista então, por favor, nos diga qual é o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Bom dia, com prazer estamos aqui no Museu da Pessoa. Meu nome é Ivan Souza Moraes. Origem: cidade do Rio de Janeiro.
P/1 – A data de nascimento?
R - Data de nascimento: onze de outubro de 1945, com o final da Segunda Guerra. (risos)
P/1 – Qual é o nome de seus pais?
R - O pai, Amâncio de Moraes e mãe, Maria Cecília de Souza Moraes.
P/1 - Você sabe o nome de seus avós?
R - Não, não me recordo mais.
P/1 - E quantos irmãs ou irmãos mais você tem?
R - Além de mim, mais sete irmãos.
P/1 – O que os seus pais faziam?
R - Meu pai teve a formação profissional como eletricista e trabalhava como mecânico dos transportes de bondes do Rio de Janeiro. E a minha mãe era chamada do lar.
P/1 – Você se lembra do seu pai? O que você lembra dele?
R – É como...
P/1 – Como ele era?
R - De um modo geral, dos dois, tive uma formação como era típico da época, uma formação muito rígida. Dentro dessa rigidez não tínhamos muita ou quase nenhuma proximidade com os pais, tinha uma barreira. Meu pai, me lembro [que] era muito rígido e eu tinha até medo. Existia uma relação de medo com o meu pai. Com a minha mãe também; embora fosse rígida, tínhamos mais um contato coloquial, mais que com o pai.
P/1 - Como era a convivência com seus irmãos?
R - Essa família, nós, oito filhos e nossos pais, tivemos uma relação, uma convivência familiar difícil porque, desde que me dou conta de que existo, meus pais tinham uma relação muito tumultuada. Isso atravessou muito tempo, ou seja, era um relacionamento muito tenso que prejudicou… Posso dizer com certeza, não vou entrar no mérito, mas prejudicou a formação de alguns de meus irmãos. Era um clima familiar muito complicado. Começou a surgir desde cedo, talvez desde a minha pré-adolescência ou do fim da infância, um sentimento de emancipação, de um dia sair, deixar a família - eu, particularmente.
Tem uns aspectos muito interessantes, marcantes na minha infância, nessa convivência com os pais, principalmente com meu pai. Ele tinha uma formação básica, tosca mesmo, porém meu pai tinha uma atividade política sindical muito atuante. Eu diria… Quer dizer, hoje eu pensando se isso teve alguma influência na minha trajetória também, que é um detalhe que a gente vai dizer mais adiante, se isso teve influência, já que a gente teve dificuldade de relacionamento. É possível que isso tenha tido influência, de alguma forma influi.
Meu pai tinha essa formação tosca, mas muito atuante [na] política, [na] vida política sindical, e daí surgiu... Era comunista de carteirinha, daí surgiu uma coisa, que é uma coisa que se pode dizer com certeza, um hábito da leitura diária de jornal. É um hábito que eu tenho hoje, surgiu daquela época, desde a infância. Como o meu pai lia jornal diariamente, já na minha infância eu comecei também a adquirir esse hábito. Um detalhe muito peculiar é que eu pegava os jornais do meu pai e surgiu um interesse que não é comum, estranho pra época: o hábito da leitura das crônicas de Nelson Rodrigues, já que Nelson Rodrigues tem um contexto literário pesado, tragédias. Tem o lado cômico também das crônicas de Nelson Rodrigues. Eu ficava ávido [para] todo dia pegar o jornal do meu pai pra ler aquilo que era “A vida como ela é”. Tinha duas crônicas: “A vida como ela é” e, do lado de esportes de Nelson Rodrigues - [ele] foi um apaixonado por futebol também - “ A sombra das chuteiras imortais”. E eu corria todos os dias porque… Estranho porque era “A vida como ela é”; “A sombra das chuteiras” era futebol, seria até interessante para todo mundo, mas “A vida como ela é” tinha algumas crônicas trágicas, cheias de tragédias. Eu via aquilo como algo que poderia acontecer com qualquer família, nossos vizinhos; a crônica de Nelson Rodrigues era assim. Mas era uma crônica escrita com uma peculiaridade que só o Nelson Rodrigues fantasiava e dava aquele contexto que o tornou célebre. E aquilo...
P/1 - Que idade você tinha mais ou menos nessa época?
R - Eu acho que nessa época, não sei precisar exatamente, deveria ter talvez uns treze, doze anos, por aí. E todo dia eu corria pra ler as crônicas do Nelson Rodrigues, então é um detalhe marcante da infância. Isso, lógico, acabou influenciando a minha preferência, então o escritor que eu mais li é Nelson Rodrigues. Assisti já a várias montagens das peças de Nelson Rodrigues.
P/1 - Como era o relacionamento com seus irmãos? Vocês brincavam, brigavam?
R - Como era uma família, conforme eu disse, tensa, [em] que não havia um convívio - não havia um clima, vamos dizer assim, para a convivência familiar - cada um de nós na verdade acabou se integrando mais com os amigos de fora do que com os próprios irmãos. Não havia muita proximidade entre nós.
P/1 - Como era sua casa?
R - Eu sou da época - essa data que eu mencionei, onze de outubro de 1945 - , da época que se nascia em casa. Eu nasci e me criei, passei a infância - e só saí dessa casa depois para vir para São Paulo - no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Era uma praça que, como as comunidades foram surgindo, acredito que em São Paulo também, era conhecida por letra. As ruas eram letras: rua A, rua B, rua C, então essa praça se chamou na época da minha infância praça H. Depois, em homenagem a um padre da comunidade… Hoje ela tem nome de um padre que existiu, já não existe mais, então ela hoje se chama Praça Padre Souza; era da Igreja de São Caetano, lá em São Cristóvão.
P2 - Sua família era religiosa? Seu pai, sua mãe?
R - Sim, a família era religiosa, daí a minha formação religiosa a partir da Igreja Católica Romana. Em termos da família, já que você colocou a família… Como existe muito essa… Como é que eu posso dizer? Esse choque da família, quer dizer, cristãos religiosos, igreja católica romana com formação, mas ao mesmo tempo cultuava umbanda. É um negócio contraditório - esse é o termo - já que a igreja não permite isso; se for ver o contexto da Bíblia, isso seria incoerente.
A minha formação é essa, católica romana. Fiz a primeira comunhão vestido de marinheiro, calça de brando. Mais adiante, na saída da infância para a adolescência, fiquei cético com relação à religião e depois, quando a gente foi conseguindo autonomia de vôo com relação ao domínio dos pais eu me afastei. Já na adolescência eu me afastei da religião.
P2 – Você tinha falado que pegava os jornais do seu pai. Ele discutia política com vocês em casa?
R - Não. Como eu disse não havia um clima, um relacionamento de troca. Deve ter sido a própria formação que ele teve também. Não existia essa troca, ele não sentava para discutir essas coisas. A gente sabia mais porque a minha mãe comentava.
É um detalhe interessante também que eu não mencionei, mas que cabe citar. Como eu disse, ele era comunista numa época que se não podia ser comunista. E cada um de nós dentro de casa, nós tínhamos atribuições domésticas. Uma que me cabia muitas vezes era comprar os tais jornais para o meu pai. Ele não passava o dia todo em casa, mas nos dias que ficava em casa de folga ele lia mais de um jornal por dia, então, lógico, alguém tinha que comprar o jornal. Eu ia comprar os jornais e tinha que adquirir um tal que não me lembro agora, infelizmente, seria interessante para registro… Um jornal que talvez fosse um porta-voz do partido PCB na época, e eu ia atrás desse tal jornal. (risos) E apesar da idade [havia] um clima de medo porque já nessa época se sabia que “comunista comia criança”! (risos)
Indo de volta à questão, não havia essa troca. Por isso que eu, como disse antes, me pergunto se isso teve influência, porque justamente não houve uma transmissão de ideais do meu pai para nós ou para mim particularmente. Mas de alguma forma isso deve ter influenciado.
P/1 – O que você mais gostava de fazer quando era criança?
R - As coisas que... Não se faz mais… Que _____ fala, as crianças de hoje (risos)
P/1 - Por exemplo?
R - Jogar bola de gude, jogar peão, jogar futebol. Eu era um peladeiro, como se diz, “peladeiro de marca maior”; nunca fui grande craque, mas passava muito tempo jogando futebol. Um lazer que o meu grupo de colegas tinha, acho que não se pratica mais hoje, deve ser muito raro… Nós jogávamos, não sei se vocês conhecem, malha. Conhece o jogo de malha? Eram discos de ferro e uma pista estreita em que se coloca nas duas extremidades dois tocos de madeira; de uma extremidade eu tento derrubar o toco lá da outra ponta. Pode-se jogar individual, [mas] geralmente [se] jogava em dupla. Essa era uma atividade interessante que a gente cultivava no meu círculo de amigos. Tinha - olha, o negócio era sério! - pistas muito bem cuidadas; embora os discos fossem de ferro, tinham relativo peso, a gente cuidava muito bem das pistas. Raspava toco de vela, parafina, para as pistas ficarem lisas, então era só habilidade, não precisava força. Não era prática de foca, era só habilidade de como soltar, deixar aquele disco sair da mão pra ir no ponto certo e derrubar o pau na outra extremidade.
Futebol, bola de gude, jogo da malha.
P/1 - Você imaginava o que queria ser quando crescesse?
R - Como atividade profissional nunca tive, nunca me ocorreu com certeza aquela projeção que é comum nas crianças: idealizar ser bombeiro, ser polícia, ser médico. Uma coisa que me ocorreu desde cedo por causa dessa instabilidade afetiva familiar [é que] eu tive interesse de sair da família. Apesar de sermos muitos é aquela questão: mesmo tendo gente ao redor você pode se sentir só. E é o que acontecia, eu me sentia só dentro da família, então tinha esse interesse de ganhar o mundo.
Isso me influenciou depois de eu estar lá na frente, na adolescência; eu tentei entrar no Rio de Janeiro para a… Me parece que existem duas escolas só no Brasil, uma lá no Rio e outra, me parece, em Belém do Pará: a Escola de Oficiais da Marinha Mercante. Na adolescência eu fiz um concurso para essa escola. Como não havia me preparado, acabei não passando nesse concurso. Estou dizendo essas coisas porque na verdade era.. Como uma atividade específica nunca havia pensado, nunca havia projetado sair pelo mundo; essa seria uma possibilidade através da Marinha Mercante.
P/1 - Como foi a sua escolaridade? Você fez... Quais foram...
R - O estudo básico então, da época… Existia o chamado curso primário, que eram cinco anos, bons tempos da escola pública. Eu estudei, tive a felicidade de estudar a poucos metros, a poucos passos da minha casa, nessa praça que eu dizia que na época se chamava Praça H. Existia uma escola - muito boa por sinal, é uma escola que existe ainda hoje - [que se] chamava Escola Cardeal Leme. Foi lá que eu fiz o meu curso primário. A escola pública naquela época exercia também o papel de… Bom, como hoje também, existia o papel do anexo da família, ou seja, na questão da rigidez na formação, então era uma formação rígida em termos de costumes e também da escolaridade; do contexto curricular também era uma escola muito boa.
Depois eu fiz o chamado curso ginasial, aí já foi um colégio particular em São Cristóvão, na Rua São Januário. Não sei se existe ainda, mas chamava-se Colégio Pio Americano. Na condição… Um detalhe econômico: como disse, meu pai era um operário, então de recursos parcos. Quem me ajudou nessa escola, aí cabe um registro (riso), não posso esquecer nesse depoimento: existia uma pessoa na família muito importante, que era irmã da minha mãe, Tia Odete. Uma figura extraordinária, que procurou ajudar, teve uma influência pra mim pessoalmente e pros meus irmãos. Quem começou a bancar a minha formação foi essa Tia Odete, então esse curso ginasial no colégio Pio Americano [foi] particular.
Em alguns aspectos, tanto no primário e particularmente no ginásio, nesse colégio, umas matérias tiveram influência até hoje e vão continuar até o fim dos meus tempos. Por exemplo, nesse colégio eu tive uma formação de português muito boa, pena que eu não me lembro mais o nome do professor. Era um professor muito particular porque era muito duro, rígido, mas tinha uma didática para transmitir as nuanças do idioma português extraordinária. Ele tornava a matéria assimilável, muito bom. Isso influenciou muito. Eu posso dizer que eu tenho uma, se a modéstia me permitir, uma formação de português muito boa - lógico, com algumas deficiências também. Outro particular nessa formação do ginásio é [que] na época fazia parte do currículo o francês. Eu tive aulas de francês, me lembro até o nome da professora (risos), [se] chamava Madame Dutel. Tive uma formação de francês que me influenciou, de modo que continuo tendo uma atração muito interessante pelo idioma francês. Estudo, não com preocupação acadêmica, mas para me manter em contato com o idioma; continuo estudando o francês. São detalhes dessa formação básica.
P/1 - Aí vamos passar. Você começou a pensar a sair de casa, é isso? A partir de que curso?
R - Desculpe, a partir de?
P/1 - A partir de quando você começou a pensar em sair de casa?
R - Tá, então deixa eu dar continuidade. Perpassa por essa continuidade da formação escolar, ao não ter sucesso depois para o ingresso na Escola de Oficiais da Marinha Mercante, aí fui buscar uma outra opção. Não foi por opção, mas uma porta que me apareceu aberta. Ingressei na Escola - ainda chamava-se assim na época - Técnica Nacional, da rede das escolas técnicas federais, vinculadas ao Ministério da Educação. Essa escola se situa no bairro do Maracanã, próximo ao Estádio do Maracanã. Lá eu fiz um curso técnico de nível médio, curso de eletrotécnica. Também foi uma passagem muito marcante, muito interessante, que me propiciou a ter uma ferramenta profissional: ao concluir esse curso eu fiz um estágio. Já entrando na formação profissional, eu tive um estágio num estaleiro no Rio. Na época a indústria de construção naval estava muito ativa, existiam dois grandes estaleiros no Rio, que municiavam o...
P/1 - Isso estávamos em que ano, mais ou menos?
R - Estávamos em... Eu terminei esse curso em final de 65, então no início de 1966 eu entrei nesse estaleiro japonês, Ishikawajima do Brasil, no Bairro do Caju. Existia na época um outro grande estaleiro no estado do Rio; era um estaleiro de origem holandesa, Estaleiro Verolme, que está fechado. Passando na cidade de Angra dos Reis, agora no período de férias, eu passei lá. Está um cemitério esse estaleiro.
Enfim, esse foi o início da minha trajetória profissional. Nesse estaleiro eu trabalhava como inspetor de qualidade, inspetor de equipamentos elétricos que o estaleiro comprava para instalar a bordo de navios. Isso fez com que naqueles idos de 66 eu viesse várias vezes a São Paulo para inspecionar equipamentos nas indústrias do ABC. Passei a tomar contato - isso para mim era muito distante - com a grandiosidade, a pujança de São Paulo, do parque industrial. Aí surgiu o bote para enfim eu buscar aquela autonomia com respeito a família que a gente vinha dizendo. Um pouco depois… Isso foi início de 66, quando comecei a trabalhar nesse estaleiro; quando foi início de 67, apesar de contrariar - quer dizer, contrariar em termos - os interesses da área que eu trabalhava, peguei meu boné, (risos) peguei minha mala e vim pra São Paulo. Então...
P/1 - Antes de virar a página desse capítulo, me explique como é o trabalho num estaleiro. Como é, o que vocês faziam, enfim...
R - Veja bem, eu não participava do trabalho, do projeto de construção naval. Lógico que a área que eu trabalhava, o departamento de inspeção, tem a ver com esse contexto, é um somatório. Eu trabalhava, conforme dizia, inspecionando equipamentos junto aos fabricantes, equipamentos que depois seriam instalados no navio: painéis, painéis de controles, painéis eletromotores, toda gama de acessórios para o controle, enfim, o controle dessa parte elétrica de um navio. Um navio é uma pequena cidade.
P/1 - Que tipo de navios eram?
R - Geralmente eram navios cargueiros. Esse estaleiro fabricava vários navios para a Petrobrás - navios graneleiros que [se] chama. Graneleiros pra Vale do Rio Doce, navios petroleiros para a Petrobrás. E na época uma construção interessante, que estava-se construindo e depois foi entregue: um chamado dique flutuante para a Inglaterra.
O que é um dique? É uma área onde os navios são construídos. Vamos pensar numa caixa de sapato sem água. Esse espaço, é ali dentro que é construído o navio. Depois que o navio está pronto aí abre-se ao mar, abre-se essas comportas, a água sobe e o navio vai ganhar o mundo. Esse dique flutuante o que era? Era justamente uma construção de uma… Era do mesmo modo, só que flutuante; seria uma caixa, vamos pensar numa caixa de sapato, que flutuaria em alto mar para receber navios em alto mar para manutenção, por exemplo. Era uma caixa que tinha seus mecanismos bombas e tinha também um dique para encher de água. O navio entra, fecha-se esses diques e depois bombeava-se essa água para então fazer os reparos no navio em pleno mar, em alto mar.
P/1 - Que companhia fez isso?
R – Essa companhia que eu trabalhava, o Estaleiro Ishikawagima do Brasil. Isso foi fornecido para a Inglaterra, lá pelos idos de... 1966, eu estava lá ainda quando isso aconteceu. Então era esse o tipo de.. Lá não se construía navios de curso para passageiros, até porque hoje o que existe são navios italianos etc. Eram navios cargueiros para indústria de minérios no Brasil, para transporte de petróleo etc.
P/1 - Ainda falando sobre o estaleiro, como era o clima dos trabalhadores do estaleiro? Eu me refiro a organização política.
R - Como eu dizia, na época a indústria naval vivia um boom na época por que o estaleiro tinha muitas encomendas. Esse estaleiro, se não me engano, trabalhava pra uma indústria no Rio de Janeiro. [Lá] trabalhavam acho que em torno de umas duas mil pessoas. Trabalhava-se à noite, para algumas atividades - no meu caso não, era só diurno.
Eu trabalhei quatorze meses, eu não tive... Quatorze meses é pouco tempo, mas em se tratando de Rio, era muito calor. Eu me lembro que existia um uniforme porque eu frequentava também as instalações do navio - é um detalhe que eu não disse, essas inspeções eram feitas nos fabricantes e também a bordo porque depois que os equipamentos eram instalados nos navios, nós éramos responsáveis pela performance desses equipamentos a bordo. E então aquilo era quente - um calor, aquela chaparia de navio, o interior do navio quente. A gente ficava com o uniforme de trabalho todo suado e ao fim do dia a gente guardava aquilo suado no armário. (risos) No dia seguinte pegava aquilo ainda úmido e ia encharcar de novo de suor.
A convivência não foi marcante pra mim, até porque eu nessa época ainda não havia aguçado, eu não havia despertado para a... Aquilo que a gente pode dizer mais adiante, para a participação político-partidária, eu, pessoalmente. Então talvez isso fizesse com que...
P/1 – Você não foi abordado por sindicatos para filiação, nada disso?
R - Não, não houve, não sei por que. Como isso ainda não aguçava a minha cabeça eu não participava, ou não havia, no caso do estaleiro, uma participação ativa. Talvez as duas coisas acontecessem, mas não houvesse uma participação ativa naquela indústria e também a ausência do despertar pessoalmente pra isso. Naquela época...
P2 - Você trabalhou quanto tempo lá?
R - Quatorze meses.
P/1 - E depois você saiu de lá para...?
R - Eu peguei o boné, mala e… Conforme eu vinha dizendo, comecei a ter contato nas minhas vindas a São Paulo a trabalho, isso me chamou muito a atenção. Um dia eu juntei uns trocados e desembarquei em São Paulo sem amigos, sem parentes, sem ninguém, com uns trocados no bolso. Como não tinha referência de algumas pessoas, minha primeira referência como moradia foi nas proximidades da antiga rodoviária que existiu ali, próxima do que é hoje a Sala São Paulo; ali perto da estação que foi a Estação Sorocabana.
P2 – [Estação] Júlio Prestes.
R - E era aquela avenida, como se chama? Próxima à rodoviária...
P/2 - [Avenida] Cásper Líbero.
R - Não, era bem em frente à rodoviária... Enfim, é porque eu não estou lembrando agora. Eu me instalei num daqueles hotéis da época que se prestava… Era uma época, 1967, [em] que muita gente estava chegando a São Paulo assim como eu, em busca do eldorado, as pessoas chegavam e aportavam naqueles hotéis. Foi o que eu fiz também...
P/2 - [Avenida] Duque de Caxias.
R - Avenida Duque de Caxias, exatamente. Esse hotel ficava na avenida Duque de Caxias.
P/1 - E seus pais? O que disseram de você pegar as malinhas e ir embora? Seus irmãos?
R - Volta aquela questão de falta de interatividade emocional. Minha mãe manifestou preocupação. Os meus irmãos, hoje eu nem lembro de algum comentário.
Abre um parêntese lá da adolescência: um fato marcante é que nessa ocasião meu pai já não estava na família. Na adolescência, meu pai, Amâncio, deixou a família afinal. [Por] um período passamos dificuldades. Sempre a famosa Tia Odete ajudando a segurar as pontas, como se diz, então nessa época que eu vim pra São Paulo, fechando esse parêntese, já não estava mais próximo do pai.
E aqui então cheguei, uma época que era eldorado mesmo. Fui buscar trabalho e dava-se até para selecionar: esse eu quero, esse eu não quero. Como eu tinha formação técnica de eletrotécnica, acabei optando por ingressar na Light - hoje a Eletropaulo, que também já está deixando de ser com a privatização. Vim trabalhar na área de transmissão e distribuição de energia - mais precisamente, eu trabalhava com manutenção de estações distribuidoras de energia. Isso é um trabalho que requeria atividades principalmente aos fins de semana, porque é [no] fim de semana que ocorre a menor demanda de consumo de energia, indústrias param. Nos fins de semana é possível fazer o que a gente chama de remanejamento de cargas da distribuição, do circuito de distribuição, então é o momento mais propício pra se fazer as manutenções preventivas. É lógico que a manutenção corretiva, equipamento que dá algum pane, não tem hora. E eu trabalhei nessa área de manutenção de estações.
Como carioca mocinho, fresquinho, chegado ao Rio, ter que trabalhar no fim de semana era duro. Ai, trabalhar no domingo! Tinha ocasiões que eu chorava, mas como foi uma vinda mais ou menos, como é que eu poderia usar o termo… Lógico que foi opção pessoal, mas não tão natural porque houve aquele desejo de emancipação de família. Existia na verdade uma inadaptação, não da família com relação a mim, mas inadaptação minha com relação à família. Eu chorava [em] fim de semana, se fosse uma coisa natural eu teria voltado pro Rio (risos), mas aí [pensava] “eu não vou voltar”, não podia voltar, e fui ficando. O ser humano se adapta.
P/2 - Me diga uma coisa, só pra aproveitar essa época: você estava com vinte e poucos anos. Quando jovem, o que você fazia? Amigos, lazer?
R - Sempre a música me despertou interesse. Sempre artes me despertaram interesse, então eu frequentava com regularidade o teatro nessa época. Tive a felicidade de assistir essa peça que é uma referência do arbítrio do regime militar, “Roda Viva”. Assisti aqui no palco do teatroi… Não me lembro como [se] chama. Existe ainda [o] espaço ali na Rua dos Ingleses, foi lá exatamente.
P/1 - Teatro Ruth Escobar.
R - Ruth Escobar. Assisti lá “Roda Viva”. Então cultuava já artes, principalmente teatro. Uma referência teatral muito importante que eu tive foi o chamado Vianinha, Oduvaldo Viana Filho. Ele é uma referência não só do Rio, ele é uma referência da dramaturgia brasileira. Até posso citar umas peças mais importantes da história do teatro [que [é] do Oduvaldo Viana Filho, só falta não lembrar o nome agora... (risos) É “Rasga Coração”, por sinal essa peça eu assisti duas vezes. “Rasga Coração”, um contexto, aí já começando a surgir o despertar político. Um contexto social e político... Vianinha, ele tinha muito a ver com a militância política. Assisti duas vezes por sinal, uma no Rio e outra em São Paulo, tal o contexto que ela tinha nessa época. Tanto no Rio quanto em São Paulo, um dos atores principais era o Raul Cortez. Então o teatro me despertava e a música me despertou muito. Cinema, teatro, música.
Já nessa época, [aos] vinte e poucos anos, começou a surgir essa questão que chamo de iniciação política, mas já foi um deslanche. Antes, ainda estando no Rio, uma passagem e uma personalidade que teve influência política na minha vida foram as chamadas “reformas de base” do João Goulart, isso lá pelos idos de 63. Mas aquilo vindo ainda, naquela época, em 63, ainda [era] um pouco distante. Em São Paulo atendi ao chamado da participação política.
P/1 - Em 63, já?
R - Em 63 houve um chamado já. Eu não atendi, mas tinha um despertar. Conforme disse, não houve uma transferência direta do meu pai, mas pode ser que o contexto familiar tenha tido influência.
O que me levou a essa caminhada que persevera até hoje? É uma afinidade mesmo, ou seja, é uma questão como meta de vida, a estabilidade do homem enquanto cidadão, enquanto ente social. Politicamente, lá pelos idos de 63… [Dos] Anos 60 até 70, eu tinha uma identificação com a política soviética. Eu vibrava ao enxergar a Praça do Kremlin nos dias das paradas militares, os desfiles militares cheios de bandeiras vermelhas que o Ocidente tremia de medo… (risos)
Poderia ter outro nome, poderia ter outro contexto universal. Acho que independente da posição, todas as pessoas deveriam ter conhecimento do Manifesto Comunista. Aquilo serviu como cartilha pra minha existência, pra convivências, em todo sentido: familiar, comunidade. Isso talvez tenha sido o despertar pra minha trajetória: a luta e opressores e oprimidos, que existe desde que o mundo existe. Eu vi através do socialismo essa possibilidade, acho que até hoje foi o meio mais próximo de levar o homem nessa direção.
P/1 - Só uma coisa, Ivan. Em 66 você ainda estava no estaleiro, você ainda não estava ingressando na atividade militante. Você até podia ter as ideias, mas não estavam formuladas ainda. Depois você veio pra São Paulo, trabalhar na Light.
R - Sim.
P/1 - A partir daí, quando começa a sua militância concreta? Como se materializou isso?
R - Isso foi... Eu diria até que começou um pouco tardio. Diria que foi lá no final dos anos 60, a partir de quando cheguei em São Paulo, mesmo. Comecei a ter atividades com o sindicalismo. Como eu trabalhava na Light, eu tinha contato com o sindicato dos eletricitários, na Liberdade. Foi a partir dessa proximidade com o movimento sindical em São Paulo.
P/2 - Você começou essa militância política dentro do sindicato. Você lembra quem era o presidente?
R - Eu não poderia precisar quem era o presidente na época, mas o que sucedeu foi o ministro do trabalho do governo Collor, Antônio Rogério Magri. Na época que eu comecei esse contato com o sindicato dos eletricitários ele ainda não era… Ele foi o presidente que sucedeu.
P/2 - Por quanto tempo você ficou frequentando o sindicato dos eletricitários, participando?
R - Peraí, acho que está me ocorrendo... Será que foi o Joaquinzão?
P/1 - Ele era dos metalúrgicos.
R - Exato. Não me lembro de quem era o presidente, desculpe.
P/2 - Quanto tempo você ficou militando dentro do sindicato dos eletricitários? Ou você até hoje é do sindicato?
R - Não. Isso [foi] até meados dos anos 70. Depois, em 1977… [Por] praticamente dez anos eu trabalhei nessa área de manutenção. Era um trabalho de campo, operacional: montar e desmontar equipamento pra fazer manutenção. Depois, com a experiência, isso me levou a outra atividade dentro ainda desse departamento de manutenção de estações. No final dos tempos, até onde estive na Light, trabalhei com treinamento de pessoal. Treinar, formar eletricitários para esse trabalho de operar e fazer manutenção de estações.
Hoje eu não sei, porque [na época] não tinha escola de formação pra isso. O SENAI formava eletricistas de modo geral, mas operar uma subestação distribuidora é um trabalho muito específico, fora que é um trabalho de risco. Vi muitos companheiros morrerem - não que eu tenha visto [propriamente], mas companheiros próximos morreram. Não existia escola de formação; não sei hoje como é, acredito que ainda não tenha. Eu era técnico [e] a formação era própria na vivência do trabalho, você chegava, ia aprendendo e ia passando para os outros. Depois o departamento, por causa disso, criou uma área de treinamento e eu vim a ocupar o treinamento de pessoal para formar os eletricitários.
Em 77 eu me afastei da Light. Uma característica pessoal: eu sou sempre uma pessoa ávida por mudanças, quero sempre mudanças na minha vida. Aí falei: “Aqui [estou há] dez anos. Vou alçar outro voo.” Na ocasião, me chamou atenção um anúncio no Estado de S. Paulo: uma firma suíça cujas instalações fabris ainda existem hoje na Avenida Interlagos, 4211. Uma firma suíça fabricante de equipamentos para transmissão e distribuição. Em 77 fui pra nessa firma, (Sprecherer Schul?). Queria mudança: fui trabalhar numa área de engenharia. Foi uma experiência magnífica pra minha formação profissional. Aquilo que eu tinha de conhecimento operacional serviu na hora de avaliação da seleção. Era uma única pessoa que estavam selecionando e eu fui o selecionado.
Fui trabalhar com projetos de equipamentos. Foi muito bom porque a firma me deu oportunidade de formação, fiz muitos cursos. Onde existia curso no Brasil eu ia fazer. Até que eu começasse realmente a desenvolver o meu trabalho, que me delegassem poderes, eu tinha uma formação, então foi muito interessante.
[Sobre] A questão inicial que você colocou, Marina, até quando militei no sindicato, foi até meados dos anos 70 porque depois de 77 eu já tive outros contatos, com o sindicato dos metalúrgicos. É uma indústria [em] que a relação é com o sindicato dos metalúrgicos; aqui em São Paulo [o presidente] era o Joaquinzão.
A gente foi acompanhando a vida do sindicato ali na Rua do Carmo. Assembleias [eram] na rua, não existia a sede que existe hoje. Aí disparou a atividade político-partidária, foi um pouco mais adiante; surgiu o movimento sindicalista do ABC...
P/1 - Você participou da oposição metalúrgica então?
R - Oposição monitorada, né? Joaquinzão, remember? Mas enfim, dentro do que era possível existir, sim. Ele tinha um poder muito forte para a manipulação do sindicato dos metalúrgicos. Foi aí que surgiu esse despertar para a política partidária. Desabrochou o sindicalismo do ABC e com o surgimento do Partido dos Trabalhadores, do PT, passei a atuar sem preocupação... Por muitos anos não tive preocupação de filiação. Com certeza [foi] um erro de estratégia, você deve ser filiado, sim. Participei muito com simpatizantes, sempre atuei em campanhas pré-eleitorais, boca de urna, sob chuva, sob sol, até hoje.
P/2 - Paralelo a isso tudo, sua vida pessoal, como foi caminhando?
R - Em final de 71, de 71 para 72, conheci aquela [com] que depois eu vim me casar, Lilia Maria Macedo Moreira. Ela era professora e foi uma união relâmpago: nos conhecemos e depois de alguns meses estávamos morando juntos, sem nos casar oficialmente. Depois nos casamos. Tivemos uma convivência de relativamente pouco tempo, quatro anos. Dentro desse período nasceu a minha filha, Paula Moreira de Moraes, em 73. Em 76 descasei. De 76 até hoje ainda [sou] descasado.
Em 76, sem referência familiar em São Paulo, conheci uma pensão na Rua Guaianases, nas imediações da Avenida Ipiranga, onde existia o Cinema Metro. Fui morar com a senhora Domingas Correia Pino, ela tinha uma pensão. Morei ali até 79. Com essa senhora depois passou a existir uma relação de amizade muito grande, passamos a ser amigos. Nessa época que eu morei com a Domingas na Rua Guaianases aconteceu uma tragédia. Ela tinha uma filha adotiva, Gláucia Correia Pino. Essa menina, em 79, [quando] tinha dezessete anos, suicidou-se.
A Domingas não era casada; teve relação com uma pessoa na época que adotaram a Gláucia e depois se separaram. Quando eu conheci a Domingas ela já estava só. Uma mulher muito pulsante, uma alagoana, como se diz, porreta. Ela foi construindo, como muitas pessoas na época, em São Paulo, sua vida. Ela teve essa pensão, depois teve lanchonete…
Morei com a Domingas de 76 a 79.
P/2 - Quando você diz que morou, foi na pensão ou com ela? Não com ela.
R - Ela morava [lá]... Não era convivência conjugal, não.
Em 79 eu saí. Foi quando adquiri um apartamento na Rua Armando Ferrentini, perto do Parque da Aclimação, usando os recursos do fundo de garantia da época que eu trabalhei na Light ainda, um fundo de dez anos que a gente teve possibilidade de ter acesso. Utilizei pra dar entrada no apartamento, depois a dívida foi amortizada pelo Sistema Financeiro da Habitação.
Continuando, essa atividade política com…
P/2 - Sua participação no PT, como foi se desenvolvendo? Você participa proximamente, já se afiliou?
R - Sim, já sou filiado. Não saberia precisar em que ano foi feita essa filiação. Tinha até dúvida, busquei ver se estava ou não. Cheguei à conclusão de que enfim estou filiado. (risos)
Hoje eu tenho uma ligação com o pessoal do diretório zonal da saúde e com o gabinete do vereador José Mentor.
P/2 - Você tem tarefas pra desenvolver? Como é sua participação?
R - Aí entra uma característica com respeito a esse contexto social, algumas atividades. Tive uma atividade numa comunidade na zona oeste, num bairro chamado Jardim Santa Fé, próximo ao bairro de Perus, [no] quilômetro 23 da Anhanguera. Outra guinada: eu tive uma ligação com a Igreja Presbiteriana do Brasil - uma dissidência, Igreja Presbiteriana Independente.
Houve um ceticismo na adolescência com respeito à religiosidade, mas surgiu um outro chamado. Nunca deixei de ter aquela existência com Deus. Comecei a sentir em um determinado momento uma carência espiritual.
P/2 - Estamos em que ano?
R - Estamos em 92.
[Tinha] Uma carência espiritual que eu não sabia como suprir. Um belo dia, passando num trecho da rua Lacerda Franco, no Cambuci, que não fazia parte do meu trajeto, eu vi um templo da Igreja Presbiteriana Independente.
Por que me despertou essa igreja? Por esses anos de 92, eu tive um relacionamento afetivo com uma moça em Santa Catarina, na cidade de Itajaí.
Saí da firma suíça - novamente o desejo de mudança - e trabalhei numa empresa cuja sede era em Santa Catarina, nessa área de energia. Hoje é uma firma francesa, mas era do grupo Lorenzetti, na época chamava-se Lorenzetti Inebrasa. Eu trabalhava no escritório de São Paulo e as instalações [eram] em Itajaí, então eu ia algumas vezes por trabalho e conheci uma moça que eu namorei.
Surgiu esse comentário de estar surgindo um vazio, uma carência espiritual e ela era frequentadora da Igreja Presbiteriana em Santa Catarina. Ela disse: ”Vamos conhecer a minha igreja. Se um dia você achar interessante e voltar a São Paulo, você busca uma.” Conheci, achei interessante. Estando em São Paulo, ocasionalmente passei na Rua Lacerda Franco, 646 - tem lá o templo da Igreja. Olhei [e pensei]: “Vou aproveitar o toque da Neusa.”
[Fui] muito bem recebido. Ficava escondidinho lá no fundo, depois voltei no outro domingo e passei a ter contato com essa comunidade. É chamada igreja histórica, como os batistas. É diferente dos chamados pentecostais, [que] seria [como] a igreja do bispo... Edir Macedo, da Universal. Tem um rito mais conservador.
Tive contato com esse povo. Me deram espaço e levei questões sociais para dentro da igreja. Falei: ”Gente, se Cristo pregou isso como ensinamento, nós temos que levar esses ensinamentos lá fora.” Tinha um detalhe interessante: era uma igreja de pessoal de nível médio. Eu desafiava, entre aspas, colocava para o pastor na época: Por que não frequenta o porteiro aqui de fora? O negro - na época eu era o único negro. Fica aí registrado, hein? - por que não frequenta o negro, por que não tem o desdentado? Por que não frequentam a igreja?
P/2 - Xeque-mate.
R - Xeque-mate. Ele me dizia: “Porque nós temos um discurso que não chega a essas pessoas”.
O mundo evangélico não tem essa participação política, partidária. A minha identificação com o PT, a esquerda, sempre souberam, mas eu queria a discussão como cidadão. Eu dizia: “O cristão tem que ter dois elos: um elo com a lei de Deus, a bíblia numa mão, e com a lei dos homens na outra, seja a Constituição, seja o contato com o jornal diariamente.” Eu levava essa discussão e foi aceita, até que - isso foi em 94 - eu promovi na igreja um evento que eu chamei de “A igreja é a cidadania”, em que foram convocadas outras igrejas. A comunidade achou salutar que eu levasse, porque não era comum.
P/2 - Ecumenicamente ou outras igrejas da mesma...
R - Da mesma denominação. Foram feitos convites. Promovi esse evento que não tinha conotação político-partidária, fiz questão que isso não se desenvolvesse dessa forma, embora eu tivesse essa identificação, era sabido. Nunca houve restrição, senão eu não ficaria.
Levei um professor da PUC, especialista em Direito Constitucional… Foi uma noite de sábado, foi muito bom.
P/1 - Você se lembra do nome dele?
R - Marcos… Ele tem um sobrenome italiano, não me recordo. Levei para a igreja para falar sobre essa questão dos direitos constitucionais de um modo geral, levar o conhecimento da importância disso para dentro da igreja. Teve pastor - não me lembro do nome agora - de uma igreja de São Caetano, que foi inclusive preso político...
P/2 - Pastor?
R - Pastor. Tô contando isso porque é uma discussão que eu levei pra dentro da igreja. Na Igreja Católica isso foi muito forte, é sabido, mas na evangélica isso não existia.
P/2 - A sua iniciativa deu frutos, mudou alguma coisa ou foi um evento e acabou em si?
R - Foi um evento isolado. Na verdade, isso é só um grão, tem que ser reciclado. Esse conservadorismo da igreja em não partir para atuações sociais… Levei sugestões, [mas] sempre aquilo: “Mas é difícil.” Isso fez com que em algum momento eu fosse buscar mudança de novo.
P/1 - Você saiu da igreja.
R - É, [mas] não da denominação. Tinha um pastor recém-formado em Teologia, Claudio Cavalhaes. Essa família Carvalhaes tem uma atuação nessa igreja do Cambuci. Ele teve uma identificação muito grande comigo. Não houve espaço lá; ele estava numa espécie de estágio nessa igreja e depois se deslocou para a comunidade do Jardim Santa Fé.
Acabou sendo uma coisa natural. Eu estava cético, insatisfeito na igreja do Cambuci com respeito a essa posição. Não que a igreja fosse uma instituição social, mas que praticasse aqueles ensinamentos de Cristo. Cristo esteve junto com os poderosos; entre os apóstolos tinha médico, pescador. Acho que isso não foi ao acaso. Cristo quis pegar como apóstolo cada pessoa de um segmento social da sua época, então participava de contatos com prostitutas, com ladrões etc. A igreja não fazia isso, eu questionava…
Saí dessa igreja e fui de encontro a esse jovem, o pastor Claudio Carvalhaes, e passamos a fazer um trabalho… Chegamos a levar dentista pra essa comunidade carente. Lá, aí sim, encontrei um campo fértil. Essa igreja do Cambuci, com todo o respeito… De vez em quando apareço lá e são sempre muito carinhosos comigo, mas é um pessoal meio elitista, de um certo estrato social. Lá no Jardim Santa Fé encontrei um campo para essa atividade social, é um povo disposto a trabalhar. Fiz algo nas atividades sociais. No final do ano, eu promovia, quer dizer, com a igreja o Natal das crianças da comunidade. Vamos dizer, era eu pessoalmente porque ia à região da [Rua] 25 de março, comprava os brinquedos pra levar pras crianças…
Isso tudo foi falado porque a Marina me perguntou qual atividade me delegaram no gabinete. Relativamente há pouco tempo [tenho] contato com o gabinete e agora estou aproveitando uma experiência que tenho com uma pesquisa que faço sobre gerenciamento integrado do lixo, essa questão [de] desde quando é gerado até o destino final do lixo. Isso é um problema sério que a sociedade não se dá conta. Nós colocamos o saco de lixo na porta, achamos que o problema está resolvido, mas ao contrário, estão surgindo...
P/1 - Esse trabalho seu está ligado ao vereador?
R - Não, este é um trabalho que eu venho fazendo, pesquisa como cidadão.
P/1 - Mas está ligado ao PT?
R - Não está ligado ao PT. É um trabalho como cidadão. Isto tudo se originou com a questão do desperdício. Tudo começou com a questão: como a sociedade brasileira pratica o desperdício? Temos essa cultura, infelizmente, no país. Isso já é nocivo em qualquer sociedade. Numa sociedade com problemas sociais imensos, na fissura social desse país, o quanto se desperdiça?
Só alguns números rapidamente: na alimentação se desperdiça da ordem de… Quer dizer, os números podem variar: cinco, seis bilhões de dólares por ano. Eu nem sei quanto isso representa. Quanto dá seis bilhões de dólares? Sei que é dinheiro, muito dinheiro. Em torno de seis bilhões de dólares em alimento, como?
P/1 - Quase doze milhões em reais.
R - Desde o campo, falando do setor agro, até nossas mesas. Seja de técnicas inadequadas no campo, seja perda no campo, seja perda no transporte, perda nos silos, nos armazenamentos e até nas nossas casas.
Hoje é sábado, estamos gravando este depoimento [em um] sábado. Amanhã, no domingo - já a partir de hoje, mas amanhã principalmente - nos rodízios de carne quanta comida vai ser desperdiçada, nos próprios restaurantes industriais, nas empresas. Alguns se preocupam com isso?
Bom, números rapidamente, o Brasil desperdiça - não sou eu que estou falando, [são] dados do Instituto de Engenharia de São Paulo, de 96, se não me engano. O Brasil desperdiça na ordem de 120 bilhões de dólares por ano, seja na energia, alimentos, na construção civil, na saúde.
P/1 - Concretamente, qual é esse trabalho que você desenvolve? É um grupo, tem uma sede?
R - Não, é um trabalho do eu sozinho, cidadão.
P/1 - Solitário assim?
R - Solitário.
P/1 - Como é? Como funciona? Explique pra gente.
R - [É um trabalho] A partir desta questão do desperdício, principalmente o desperdício do alimento. Onde vai parar isso?
P/2 - Você se lembra quando despertou esse interesse? Por exemplo: você saiu lá do trabalho da comunidade do Jardim Santa Fé.
R - Certo.
P/2 - Como foi essa passagem, esse interesse?
R - Pra mim - pode ser difícil talvez [de] entender para outras pessoas - para mim foi uma coisa natural porque eu trabalhei com uma comunidade classe média, média alta, aí [havia] desperdício. Paradoxalmente, mesmo nas comunidades carentes também tem desperdício, por que? É só abrir um armário que tem desperdício. Alimentos na comunidade carente, também tem desperdício. Um quintal que tem na periferia, que não está sendo aproveitado para um plantio, é desperdício também. E onde vai parar esse alimento todo, da ordem desses números que eu falei? Vai parar no lixo, é o chamado lixo orgânico. Eu comecei a pesquisar, a questão do desperdício me levou ao lixo e aí me dei conta.
É uma pesquisa solo em que eu vou buscar… As informações existem, a sociedade é que não se dá conta. Por exemplo, tenho aqui um trabalho que levantei ontem na internet, da Unicef, então são dados que você busca aqui e ali. Foi lançado em junho: “Crianças no lixo nunca mais”, [projeto] da Unicef juntamente com o Ministério do Meio Ambiente, em que estão fazendo um trabalho junto às prefeituras para desgarrar uma desgraça que existe nos lixões: famílias que existem nos lixões desse país afora, convivendo no lixo, vivendo no lixo, retirando sua subsistência do lixo. São dados da Unicef com o Ministério do Meio Ambiente no lançamento dessa campanha: existem cinquenta mil crianças nos lixões do Brasil, olha que desgraça!
Essa questão do desperdício me levou a esses trabalhos que existem. Tive proximidade com organização não-governamental, a EcoMarapendi no Rio de Janeiro. Enfim, você vai encontrando informações. O Cempre, com sede em São Paulo - Cempre é Compromisso Empresarial para Reciclagem. Então [isso] me levou a essas pesquisas do Brasil. No Estado de São Paulo existe um inventário dos resíduos sólidos, também da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, que é um diagnóstico muito bem feito por sinal. [Foi feito] em 97, de todos os 645 municípios do estado de São Paulo. Foi um levantamento de quais as condições do destino do lixo no Estado de São Paulo.
P/1 - Há quanto tempo você está nesta pesquisa, mais ou menos?
R - [Há] Mais ou menos dois anos. Então, voltando ao que isso possa servir para o gabinete. Como eu tenho uma proximidade como o gabinete há pouco tempo, o José Mentor falou: “Ivan...” A última reunião que eu tive com eles foi em junho, aí acharam interessante que… Estes diretórios zonais da saúde tem reuniões quase que mensais, na próxima reunião [querem] que eu faça uma apresentação desse tema. Nessa reunião ele falou: “Ivan, pra dizer que não é balela de político, olha aqui a minha agenda.” Aí marcou: “Amanhã eu tenho uma visita no Incinerador Vergueiro porque é uma preocupação que está começando a despertar no gabinete, então a sua experiência vai ser importante. Gostaria que você fizesse uma apresentação.”
Qual é o objetivo, onde estou querendo chegar? Existe um problema no município de São Paulo, gravíssimo, que pode se dizer que a administração se dê conta, ou até não se dê conta. Existem apenas dois aterros sanitários no município de São Paulo: um na região da Rodovia Bandeirantes e outro na região da Vila Ema. Aterros sanitários são aqueles onde as condições de armazenamento [são] satisfatórias para a saúde pública, para o meio ambiente. Estes dois aterros estão em vias de saturação. Acredita-se que em dois a três anos estarão saturados esses aterros. Como todos os problemas que existem nesse país, só virá à tona quando a tampa da panela de pressão explodir, levantar, e eu estou fazendo este levantamento.
O que fazer com as doze mil toneladas de lixo domiciliar coletadas diariamente? Só [de] lixo domiciliar [são] doze mil toneladas diárias no município de São Paulo. Construção de aterros sanitários é um problema inviável, caso de custos etc, então estou fazendo um levantamento do ponto de vista não só de saúde, de meio ambiente e econômico. O quanto se gasta? Dados de agosto de 96: gastou-se no município 35 milhões de reais com a coleta de lixo. Estou coletando essas informações porque eu quero, primeiramente, para a campanha que eu vir a adotar na próxima sucessão do município, do prefeito. Vou sugerir como meta porque é um problema eminente, vou levar esses dados para a próxima campanha.
O José Mentor achou interessante essa preocupação e não existe um projeto. Ele quer tomar, na verdade, conhecimento da situação, quer que eu apresente este diagnóstico. O que vamos fazer depois, ele, o gabinete, o projeto que virá a ser adotado não sei, não posso dizer. Mas ele, o gabinete, quer tomar conhecimento do diagnóstico. Pessoalmente eu quero oferecer isso para a campanha de um possível candidato, [para] candidatura que eu venha a adotar. Ainda que não seja o meu candidato, não venha a ser eleito, é um problema que não adianta ficar comigo. Eu quero levar isso para a próxima administração. “Pô, Ivan! Que pretensão é essa a sua, né?” Já estão aí essas informações.
P/2 - E essa atividade de pesquisa você faz paralela ao seu trabalho, porque você continua numa outra empresa?
R - Sim, continuo em atividade.
P/1- Como é seu dia a dia hoje?
R- Hoje eu moro… Na separação do casamento, a Paula, minha filha, ficou morando com a mãe. Depois, já moça, ela veio morar comigo, mas já acompanhada de uma neta. (risos) Então hoje é...
P/2 - Quantos anos tem a netinha?
R - A netinha tem nove anos.
P/1- Moram com você?
R - Moram comigo. A filha e a neta.
P/1 - E você distribui seu dia como? Trabalho, depois?
R - Não existe um programa rígido, mas trabalho, estudo inglês pela firma. A firma [em] que eu trabalho hoje chama-se Alstom, uma firma francesa.
P/1 - Você faz o quê nessa firma?
R - Então, [estou] sempre de mudança. Manutenção nas subestações da Light, depois passei para firma suíça na área de engenharia, depois um momento, bons anos de engenharia. Eu falei: “Agora preciso passar para a área comercial.” Lá pelos idos de 86 parti para aquela firma do grupo Lorenzetti, um grupo que foi comprado por um grupo francês. Eu quis partir para a área comercial, então hoje eu trabalho nessa firma francesa como coordenador de vendas de equipamentos de alta tensão. De 86 até agora na atividade técnica comercial.
Trabalho, o estudo do inglês e por interesses profissionais, se bem que sempre é bom. Francês nesse momento está interrompido por que onde eu estava estudando achei que não estava dinâmico. Eu me afastei agora em maio, junho, mas preciso retornar ao francês como terapia. E essas pesquisas… Neste momento a pesquisa está em que ponto? Tem um monte de coisa dentro da minha cabeça que eu estou juntando, isso vai ficar um documento. Na verdade seriam alguns tipos de enfoque do gerenciamento do lixo, mas para o contexto da prefeitura pode ser que tenha um conteúdo, para o contexto de uma comunidade pode ser que tenha um conteúdo, então estou reunindo informações para documentar isto.
P/1 - Agora, já encaminhando para o fim da entrevista, o que você considera que foi a coisa mais importante que aconteceu na sua vida?
R - Apesar de tudo, a infância foi marcante. A minha formação básica foi importante. E um dos pontos cruciais: a mudança para São Paulo foi importantíssima, que me deu experiência extraordinária como gente. Levou alguns anos para eu me sentir bem estando em São Paulo, levou anos mesmo. Eu falei: “Agora eu estou bem em São Paulo.” Isso foi um divisor de águas, a mudança para São Paulo que me deu essa vivência pessoal e a vivência profissional, isso foi muito importante.
Um detalhe [que] não posso deixar de mencionar nesta experiência profissional: hoje eu tenho a co-autoria de um livro dentro desse segmento de transmissão e distribuição de energia. Um grupo de pessoas estava trabalhando com uma elaboração de uma norma técnica; eu participei em comissões de estudo na ABNT, Associação Brasileira de Normas Técnicas. Num determinado momento, lá pelos idos de 86: “Essas informações que a gente tem, porque não vamos reunir isso num livro?” Nós tínhamos documentos, entidades internacionais. “Porque não vamos reunir num livro?” Reunimos essas informações, deu essa experiência de ser co-autor num livro. Então [foram] fatos marcantes, essa mudança de São Paulo foi muito importante. Ah, sim! Essa vivência e essa trajetória política são importantes, essa preocupação, contexto social.
P/1 - E o que você acha mais negativo na sua vida?
R - Difícil, né? Acho que...
P/1 - Que foi mais pesado...
R - Difícil em que sentido? Mais negativo em que sentido?
P/1 - Pesado. Uma recordação que você fala: “Puxa! Isso aí...”
R - A formação familiar, a convivência familiar acho que foi, talvez, o fato negativo.
P/1 - Você tem ainda alguns planos para desenvolver ou já está num caminho que já tem bastante coisa para fazer?
R - Neca de pendurar chuteira! Eu quero sempre ter objetivos na vida. (risos) Uma simulação macabra, mas eu quero ser radical na expressão desse pensamento para deixar claro o quanto isso é importante.
Eu costumo dizer o seguinte: hipoteticamente, no momento que eu não tiver os meus membros, se eu não tiver os meus braços, se eu não tiver juntamente as minhas pernas, mas se eu tiver a minha mente intacta, eu estarei produzindo.
P/1- Muito obrigado pela entrevista.
P/2 - Você quer falar mais alguma coisa para gente fechar?
R- Sim. Como fecho, estamos agora no final de 99 - um outro passo, sempre mudanças. Agora eu cheguei num momento que a minha vida em São Paulo é um ciclo. Estou ficando intolerante com a qualidade de vida da cidade de São Paulo. Estou me preparando para alçar voo, ou seja, estou me preparando para deixar São Paulo depois de 32 anos. Quer dizer, me preparando, por enquanto está na cabeça, mas eu não quero adiar muito isso.
São dois projetos de vida: essa mudança de São Paulo e o outro projeto é… Não foi falado aqui, mas eu tenho uma habilidade culinária muito boa. Quero aproveitar essa habilidade e estabelecer alguma atividade na área de alimentação, possivelmente um restaurante. Possivelmente numa outra cidade que terá que ser praia. (risos)
P/1 - Muito obrigado!
R - Obrigado pela oportunidade!
P/2 - Obrigado você por ter nos _____________.
P/1 - Maravilha essa de ir para a praia.
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