Depoimento de Elsa Santos Andreolli
Entrevistada por Fernanda
São Paulo, 18/09/2020
PCSH_HV912
Projeto Mulheres empreendedoras - Zona Norte
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
P/1 – Olá, dona Elsa. Eu queria que você começasse falando o seu nome completo, data e o local de nascimento.
R – Eu sou a Elsa Andreolli, meu nome completo é Elsa dos Santos Andreolli. Eu nasci em Montes Claros, uma cidade até bastante próspera de Minas Gerais, e nasci 80 anos atrás, em 25 de novembro de 1939.
P/1 – E como eram os nomes dos seus pais?
R – Pedro Santos e Julieta Martins Santos.
P/1 – O que eles faziam?
R – Papai era eletricista, um excelente eletricista, conhecido, renomado, muito conceituado. Ele levava uma marca que ele considerava muito importante, a de que ele foi o eletricista que colocou a cruz na Catedral da cidade. Aquilo, na cidade, era muito comentado, e ele era muito empossado por conta disso. Mamãe era professora, e também muito prendada, costurava, e fazia uma porção de coisas. Ela também era metida a modista para as amigas. Dos filhos, ela que fazia todas as roupas direitinho, então ela também era uma pessoa muito ativa.
P/1 – Você tinha irmãos? Tem irmãos?
R – Sim. Eu não tenho hoje, já tive. Eu tive… Sou a sexta. Eu tive cinco irmãos.
P/1 – Você se recorda de como era sua casa de infância?
R – Eu me recordo sim. Me lembro de duas casas de infância. Duas?! É, exatamente, foram as que me marcaram mais. Eu morava no Centro da cidade. Uma das casas de quando eu era bem menor, era uma casa com um quintal grande, com muitas frutas, tinha caju, manga, limão, laranja... Uma porção de coisas. Era uma casa dentro da cidade, com os muros altos, e ali eu me divertia. Eu até subia na casa para chupar manga, escondida da família, se eu te contar a idade, você nem vai acreditar (risos). Acho que com cinco… Antes dos seis anos eu fazia essa proeza de subir no telhado para ficar lá em cima pegando aquelas mangas deliciosas, e ficava lá chupando as mangas. Quando o pessoal ia me procurar, eu estava em cima do telhado. Brigavam e xingavam quando eu voltava de cima do telhado.
P/1 – E além de pegar manga, quais eram as suas brincadeiras favoritas?
R – Olha, as minhas brincadeiras favoritas eram todas brincadeiras de meninos, porque os meus irmãos eram todos homens. Eu tinha que brincar e brincava com eles. Eram todas brincadeiras de meninos. Fora isso, eu gostava muito de ficar sozinha, brincando com aqueles bichinhos que tinha no quintal. Eu ficava horas brincando, conversando, acompanhando, ficava horas assim. Fora isso, eu jogava futebol com os meus irmãos, eu brincava daqueles pega-pega… Em todas as brincadeiras fortes de menino, eu estava. E eu era a mais nova da turma - mulher e mais nova - mas estava junto com eles. Eles até precisavam, porque faltava gente no time, então...
P/1 – Tem alguma história da sua infância que te marcou e que você queira contar aqui?
R – Então, eu estava falando da minha casa, e me lembro de uma outra casa que eu morei em um período, ali perto dos seis anos, de seis para sete anos. Eu morei naquela casa um tempo, e nesta casa, tinha… Era próxima de uma praça, de uma igreja. O pessoal costumava ficar muito na calçada no final da tarde, as famílias na calçada, a gente conversando, a criançada brincando, e eu tenho uma lembrança muito forte disso, bem forte daquele momento (choro). Mas essa outra casa que eu voltei… Essa casa que morei antes, morei durante muito tempo, desde pequenininha. Fomos morar naquela casa próxima dessa praça, que era um lugar muito gostoso, muito bonito. Eu me lembro da relação com a vizinhança, da meninada brincando ali na rua, eu no meio dos moleques, e o pessoal me chamando, porque eu tinha que brincar com as meninas (risos), e eu brincando com os meninos. Eu só brincava com os meninos, só sabia das brincadeiras deles. As brincadeiras das meninas eram aquelas de pular amarelinha… Eu brincava também, eu gostava, mas onde eu tinha mais espaço era com eles. Depois, nós voltamos para aquela casa. Não sei o motivo mas não moramos muito tempo nessa outra casa, não sei porquê. Eu estava naquela casa durante toda a minha infância, depois fomos para aquela… Não sei, mas voltamos para aquela casa. Você me fez uma pergunta, e não me lembro dela.
P/1 – Era para contar uma história que te marcou na infância.
R – Uma história que me marcou na infância? Eu tenho uma boa lembrança de que meu pai era uma pessoa muito participativa da igreja, das festas… Ali era uma cidade do interior, e tinha aquelas festas folclóricas, aquele pessoal vestido… Tinha todas as caracterizações. Tinha a caracterização dos índios, os indiozinhos todos caracterizados, tinha as damas, as rainhas, tinha tudo. Meu pai era muito participativo, era um festeiro. Ali na cidade, tinha o grupo dos festeiros, quem fazia a festa, em que época, como fazia. Disso eu me lembro muito. Lembro também que meu pai nasceu no dia de São Pedro - ele se chamava Pedro. Ele gostava muito, não deixava de festejar o aniversário dele. Eram festas, assim… Ele tinha muita amizade. Nós não éramos… Na verdade, ele era um trabalhador de uma empresa, então era de uma classe social, em termos de poder aquisitivo, baixa. Mas nós morávamos em uma casa boa, no Centro da cidade, e ele era muito bem relacionado por conta da profissão dele. Ele atendia todo mundo, era muito falante… Aliás, ele não era muito falante, mas ele era muito cativante, tinha muitos amigos. Ele era mais ou menos quieto, mas era cativante. Nas festas de aniversário dele, vinham os médicos, os doutores… Tinha gente de… Era um quintal enorme. Tinha um detalhe, eu digo que meu pai foi o precursor dos fogos de artifício, porque ele pegava os fogos de artifício e montava em umas paredes grandes que tinham no muro, porque as festas dele eram com direito a tudo. Tinha a fogueira, tinha o levantamento do mastro, tinha as cantorias, tinha aquelas brincadeiras em volta do mastro, tinha as comidas… Ele que cuidava de tudo isso. Ele gostava de fazer aquilo, gostava de cozinhar, gostava de fazer muita coisa. O que ele fazia com aqueles fogos? Tinha aqueles fogos que giravam. Acho que existem até hoje, mas eram bem rudimentares na época. Ele fazia uma instalação elétrica, colocava os fogos naquele paredão, ligava o interruptor (porque ele era eletricista), e em um dado momento, tinha um espetáculo pirotécnico lá no muro. Sabe aquelas coisas lindas? Aquilo para mim, era maravilhoso, maravilhoso. Me lembro muito bem disso.
P/1 – Eu queria que você me contasse um pouco de como era o seu bairro nessa época.
R – Então, o bairro… Eu morava mais ou menos… Era quase central, chamava-se… Era a Igreja do Rosário… Era um bairro central. Era tudo muito próximo. A gente fazia mercado, e tinha a praça de esportes… Era tudo muito próximo. Era um bairro central, com toda a movimentação, mas a gente vivia em um ambiente que não era de centro. Tínhamos um quintal grande, e a gente brincava dentro daquele quintal, fazia muita arte dentro daquele quintal. O bairro não mudava. Ah, uma história que me lembro e tenho que falar agora, se não posso me esquecer, é que de lá da minha casa, a gente via um bairro. Naquele bairro, tinha uma igreja mais ou menos no alto. Naquela época, aquela cidade não era asfaltada, ela tinha pedregulhos da própria cidade, e por incrível que pareça, eram cristais. Quando o sol batia à tarde naquela igreja lá em cima, com aqueles cristais, era uma coisa linda. Eu ficava horas admirando aquilo ali, para mim era uma coisa maravilhosa. Depois veio a modernidade e jogaram piche em cima de todos aqueles cristais, e a cidade virou uma cidade moderna. Uma outra coisa que lembro daquela época, é que a cidade era toda arborizada. Era interessante, que a maioria das árvores plantadas na cidade, eram de flamboyant e manga, mangueira. Quando chegava a época de manga, o povo na rua pegava as mangas, andava e pegava, era uma coisa incrível. Também foi uma coisa que a modernidade tirou, cortaram todos os pés de manga, porque sujavam a cidade. Quando chega a modernidade, retira algumas coisas interessantes da vida.
P/1 – E a sua primeira escola, você lembra como foi seu primeiro dia de aula?
R – Dentro da escola, essas coisas, não me lembro. Eu me lembro de eu vestida, preparada, com aquelas coisas, a mãe toda preocupada, e eu todos bonitinha. Ela gostava dos filhos bonitinhos, e ela que costurava. Eu me lembro desse momento da saída. Era uma coisa normal para mim, eu até queria ir. Meus irmãos iam para a escola e eu era doida para ir para a escola. Foi tão natural, que nem me lembro (risos).
P/1 – Teve algum professor que te marcou na época de escola?
R – Ah, naquela época… Olha, vou ser sincera, eu me lembro pouco dos nomes das pessoas daquela época. Eu não tenho professor daquela época que me marcou. Tenho professores de outras épocas que me marcaram, mas daquela época, da minha meninice… Eu vivi nessa cidade até os meus seis para sete anos. Eu não tinha feito sete anos ainda quando saí de lá, então eu era muito pequena. Foi um período que… Eu me lembro da escola, era uma escola boa. Não sei dizer se era escola pública, ou como funcionava aquilo lá. Ah, não era pública, era uma escola particular! Era o Instituto Norte Mineiro. A gente era pobre, mas meus pais se preocupavam muito com essas questões da gente. Acho que fiz o primeiro ano lá, e depois de lá vim para cá, e tenho outras histórias a serem contadas.
P/1 – Me conta, depois que você se mudou dessa cidade, veio já para São Paulo? Como foi?
R – É. Eu tive uma fase nesse período, onde meu pai sofreu um acidente, ficou sofrendo do coração e estava em um processo de licença ainda, e faleceu. E aí, nós viemos para São Paulo. Os meus irmãos mais velhos, todos ficaram lá, todos bem estabelecidos, com as suas profissões, muito bem relacionados. Minha mãe quis vir para São Paulo. Ela tinha familiares aqui, meu tio que era mais velho que era muito ligado a ela, deu esse suporte para ela, e ela veio para São Paulo, porque achou que aqui ela criaria os filhos menores. Assim, nós éramos três, o mais velho tinha 14 anos, o outro irmão acima de mim, e eu, que era mais nova. Ela veio com vista de trabalhar, ganhar a vida e nos criar. Na verdade, ela não quis ficar na dependência dos meus irmãos. Ela queria continuar a vida, e lá, para criar três filhos sozinha, a possibilidade era muito menor.
P/1 – Você se lembra como foi chegar na cidade? Quais diferenças você notou?
R – Eu me lembro assim, lá a gente não conhecia japonês, e a primeira diferença que notei foi ver as pessoas japonesas, falando diferente. Isso foi uma coisa assim, fantástica para mim. Mas a gente não ficou muito tempo aqui, fomos para o interior, porque na verdade… Fomos lá para a região de Bauru e ficamos pouco tempo lá. Lá era a região onde morava o meu tio, e foi um processo bem difícil, porque minha mãe que tinha uma vida tranquila, trabalhava tranquila com as costuras dela, chegou e não tinha essa condição de ser costureira ou professora, e ela foi cortar cana no canavial, ela e meu irmãos de 14 anos (choro). Disso eu me lembro muito triste, as mãos deles sangrando quando chegavam à noite. Eles não reclamavam, mas eu me lembro muito disso, é muito visível para mim. Acho que essa questão dos trabalhadores foi que me fez uma pessoa que busca lutar muito pelos direitos sociais das pessoas, porque esse foi um momento muito difícil para mim (choro). Mas em seguida, a minha mãe arranjou um emprego para ela e para o meu irmão mais velho, de 14 anos. Nossa, era o início da construção da Via Anchieta. Antes tinha o caminho do mar. Fizeram uma planta… Como se chama? Um canteiro de obras, e nós fomos morar lá. A minha mãe foi ser professora dos adultos e das crianças daquelas pessoas, e ao mesmo tempo era a cozinheira para todos aqueles peões. E meu irmão foi trabalhar como peão de obra. O trabalho era tranquilo… A minha mãe era de bem com a vida, sabe? Vivia cantando, vivia falando, ela não era uma pessoa que ficava resmungando e sofrendo, mas era muito brigona e trabalhadora pelos direitos dela, pelos direitos das pessoas, e isso eu tenho dela. Isso eu sei que é um veio ancestral. Trabalhar, ser independente e tudo mais, é de família. Minha avó também faleceu com mais de 100 anos. Ela nunca quis morar na cidade. Ela plantava, tinha trabalhadores que trabalhavam com ela, eles plantavam, iam para a cidade, para o mercado, vendiam, e ela vivia nesse espaço dela. Ela nunca quis ir para a cidade, e tinha uma saúde de ferro. Ela nunca ia ao médico, nem no fim da vida dela. Acho que ela viveu… Esse meu tio viveu acho que até os 101 anos, minha avó viveu até os 102, e eu digo que vou até os 103 (risos). Não tenho a qualidade de vida que ela teve, em termos de viver na natureza, e isso também traz muita longevidade para as pessoas. Mas eu tenho qualidade de vida, não posso reclamar da minha qualidade de vida. Agora, nesse período que falei que fomos para o canteiro de obras, se eu te disser que foi a fase mais feliz da minha vida, você não acredita. Eu ajudava minha mãe. Eu era pequena, nós moramos lá, acho que até os meus nove anos. Minha mãe dava aula para todo mundo e a gente era obrigado a… A gente era filho de professor, mas tinha que ser melhor do que os outros alunos, tinha que aprender, tinha que estudar, tinha que fazer lição. Eu era ajudante de cozinha, ajudava a lavar aquelas coisas e tinha que trabalhar, mas eu tinha a liberdade de andar no meio daqueles matos, aquilo que te disse de falar com os bichinhos no quintal, de estar lá. Para mim, aquilo era liberdade, a melhor coisa que tive no mundo. Tiveram coisas que aconteceram ali, e eu não sei se deixo para responder em outras perguntas, ou se já vou falando naturalmente. O que você acha?
P/1 – Vai falando naturalmente. As perguntas são para te relembrar, mas se você for despertando essas memórias, pode contar.
R – Nessa época, eu me lembro de quando eles estavam furando os túneis. Quando você descia pela Via Anchieta e tinha os túneis, o canteiro de obras era ali entre eles. Quando estava furando os túneis, preparando, você ouvia o tempo todo o barulho daquele martelinho, "tic tac, tic tac". Aquilo, para mim, era uma cantoria, porque tinha túneis lá embaixo, túneis lá em cima, e aquele som, naquele espaço, era uma melodia para mim. Fora isso, no momento em que eles colocavam a pólvora e se preparavam para quebrar as pedras, você ouvia um grito muito longe porque eles tinham todo cuidado. A gente não podia ir para aquela área, tinha toda uma prevenção. A gente ouvia um grito muito longínquo dizendo, "olha o fogo", e você escutava, "pá, pá, pá". Isso é uma coisa da qual eu me lembro bem dessa época. Fora isso, quando o pessoal descia para a praia… Quando eles subiam, nos automóveis da época, precisavam colocar água para não ferver o motor. E aí, eu comecei a ganhar direito, porque tinha pontos da subida em que você sabia que era onde fervia os motores dos carros. Eu, meus irmãos e uma turminha lá, pegávamos umas latas, uns latões e enchíamos de água. Eu não tinha força para encher um latão para levar lá, mas a gente colocava o latão lá e vinha com as latinhas menores para encher. Olha a criatividade da meninada. A gente vendia a água para o pessoal que precisava. Eu descobri que as pessoas gostavam das flores, e comecei a depredar. Eu tenho consciência disso hoje, mas naquela época, eu não tinha. Eu andava muito no meio daquela mata, pegava orquídeas, pegava umas flores lindas, comecei a trazer e comecei a vender isso ali. Eu guardo comigo uma boa lembrança, de que foi um meio de ajudar a minha mãe - depois te conto mais um pedacinho - para gente ter uma casa melhor. Isso a gente fazia, porque não tínhamos outra coisa para fazer. Para nós, isso era brincadeira, não era trabalho. As rotinas de trabalho, a rotina de escola, tudo isso, a gente fazia e era obrigado, era ali, em cima, na bucha. Então, não era uma coisa… A gente fazia, sabendo que estava ajudando às pessoas, porque com carro fervendo ali e sem água, o que eles iriam fazer? Já naquela época, eu tinha essa consciência, a consciência do "estou ganhando, mas estou ajudando" (choro), e essa consciência eu tenho até hoje. Minha empresa, eu montei com esse propósito. Estou aposentada, e não sei até quando tenho condições de trabalho, mas enquanto eu tiver condições de trabalho, quero colocar o meu saber a serviço dos outros que precisam do meu saber. Isso eu trago de lá daquela época, trago da minha mãe e trago do meu pai, isso para mim… Eu trago da minha avó. Essa questão de justiça social… A minha avó não era assim, "eu sou a patroa e vocês são meus empregados", era todo mundo uma família. Eram meeiros, o que eles plantavam, elas vendiam e davam uma parte para ela, e ela vivia daquilo. Ela não morreu rica. Na verdade, aquele pedaço dela, aquela fazendinha dela, ela nem deixou de herança para os filhos, ela dividiu entre os trabalhadores. Antes de morrer, ela fez a divisão dos bens dela, ninguém ficou com herança. Também iria dividir com uma filharada e iria ficar um tiquinho desses para cada um, então em vida, ela já fez aquilo. Essa questão de justiça, essa questão do valor humano, essas coisas, eu tenho essa história de vida. Isso para mim é muito forte, muito forte (choro). Eu estou chorando hoje… Eu não conto essa história com tristeza. Eu estou contando essa história com tristeza, porque nós estamos vivendo hoje um momento de muita tristeza. A minha tristeza é de hoje, não é uma tristeza de lá, não é uma tristeza do passado. Como era bom a gente ser bom, e como está sendo ruim a gente ser bom hoje (choro).
P/1 – E você tinha algum sonho de profissão que você queria nessa época?
R – Não, eu não tinha essa… Eu era muito meninona, era muito criança. Eu era uma menina grande, tinha porte físico para ajudar minha mãe (risos), mas a minha cabeça era de felicidade, de ver as coisas, de curtir as coisas, não tinha essa coisa de "o que vou ser quando crescer". Eu já era, eu já era, tanto é que eu já contribuía com a casa. Para mim, eu já era. Não era "o que vou ser", nunca passou pela minha cabeça isso.
P/1 – E o que você gostava de fazer nessa época de juventude?
R – Então, juventude já é outro pedaço (risos), porque nós vivemos lá, com essa felicidade, mas a minha mãe sim, tinha uma visão de melhora, de futuro, de ter o melhor, ela sim tinha isso. É o seguinte, minha mãe tinha essa visão. Tanto ela tinha, que foi para lá, porque era um momento da vida. Eu estava falando para você que eu ajudava e contribuía com a casa. Com o que eu contribuí? Naquela época, os carros eram importados, e eles chegavam em Santos, dentro de umas caixas de madeira enormes. A minha mãe, muito criativa, pediu para os empreiteiros que iam e voltavam e tinham essa relação, para comprar uma caixa daquelas para ela. Pagou para os trabalhadores dali, e fez uma casa de madeira para gente muito confortável, muito confortável. Ela fez uma casa de madeira! Quando digo que contribuí, é porque foi do salário dela e daqueles trocadinhos que a gente ganhava todo final de semana, quando os carros ferviam. A gente contribuiu com isso. Nós tínhamos lá uma casa muito confortável, muito confortável mesmo. A minha mãe tinha essa preocupação conosco. Bom, mas não era a vida que ela queria para nós, para os filhos, e aí nós viemos morar em Jacareí. Ela arranjou um trabalho melhor… Não sei se era melhor. Ela foi ser tipo "mordoma", tipo cuidar de uma… Não sei se era considerado hotel naquela época, mas era um lugar que tinha. Ela cuidava, gerenciava aquilo, orientava tudo aquilo, e nós tínhamos a nossa casa. Com o trabalho dela, ela tinha condições de… A gente estudava. Com muita pobreza, a gente era muito pobre. Nessa época, eu até estudei em uma escola particular, uma escola de freiras, porque a minha mãe era muito relacionada com a questão católica, de religião e tudo mais, e conseguiu uma vaga para mim. Era uma escola para meninas, e ela conseguiu uma bolsa para mim lá. Eu fui estudar naquela escola e era uma boa escola. Eu lembro da minha professora, a irmã Fidélis. O meu primeiro contato de lembrança, foi com a irmã Fidélis, porque ela era muito amiga, conversava demais, era muito atenciosa conosco. Tinha também umas artes que eu fazia lá. Como eu vivia em cima das árvores lá na minha casa em Minas, e eu vivia no mato lá no canteiro de obras, lá eu também tinha mania de subir e estudar em cima de árvore (risos). Ao lado do colégio tinha um terreno, que tinha frutas, e eu que sempre fui moleca, pulava o muro e ia estudar em cima das árvores. Por isso eu levei muitos castigos, e aí eu lembro da irmã Fidélis, porque ela vinha me consolar, e me dar conselhos (choro). Essa era a relação com a irmã Fidélis. Tinha um certo desconforto. Por que eu me isolava? Porque era um colégio de gente rica, e eu era discriminada. Eu nem conhecia essa palavra, mas sentia. Eu ia para lá, e para mim era melhor conversar com os bichinhos, estudar lá, pegar fruto direto da árvore, mas não eram as normas do colégio. Eu estava sempre infringindo normas e às vezes levava castigo. Quando começaram a me enquadrar, a coisa começou a ficar difícil (risos). Tenho essa lembrança. De lá, nós viemos para São Paulo e fomos morar lá na Vila Pirituba. Era a estação de Pirituba… A gente subia uma ladeira enorme e tinha um hospital de saúde mental. Nós moramos ali naquele espaço. Minha mãe alugou uma casa boa… Boa?! Boa assim, teoricamente, com todas as condições necessárias que precisávamos ter. Não era uma casa boa, não era nessa visão de "bom". Bom para nós, era ter qualidade de vida dentro da nossa condição, o conforto de higiene, o conforto da gente poder dormir direito, comer direito, e ter espaços adequados, essas coisas que… Nessa época, a gente tinha uma vizinhança. Eu lembro de uma vizinha que tinha uma porção de filhas, era uma família grande, e a gente tinha uma relação muito boa. Eu era mais nova e assim, era uma relação interessante, muito, muito de família, embora não fôssemos família, entendeu? Eles eram muito acolhedores. Também estavam dentro da nossa categoria. Não eram pessoas de posses que acolhiam assim, não. Eles eram do mesmo nível social, mas a gente tinha a relação que faz parte dessa nossa visão de mundo. Foi assim, ali naquele momento. Dali, nos mudamos para a Avenida Pereira Barreto, que ainda é Pirituba, mas que é um outro lado, que vai mais para a direção da Lapa. Eu ainda era pequena, a gente ainda ia para a escola. Teve um problema, porque sabíamos ler e escrever, mas não fizemos a prova e não passamos de ano, então eu e meu irmão tivemos que começar do zero. A gente conseguia… Na medida que estávamos passando na frente e mostrando que sabíamos, nós íamos mudando de nível, por conta do nosso saber, entende? A gente não fez primeiro ano, segundo ano e terceiro ano normais como os outros fizeram. Na verdade, estávamos atrapalhando os outros. A gente sabia fora daquele grupo e nós atrapalhamos os outros. Eu ia em um horário para a escola, e meu irmão ia em outro horário. Nesse tempo, foi que assim, eu comecei a frequentar a igreja, porque minha mãe era católica e começou a frequentar a igreja católica ali do bairro. Passei a ter aqueles… A participar da igreja. Eu fui cruzadinha, não sei se você sabe o que é isso, as menininhas de roupa branca e lacinho amarelo… Lá no colégio de freiras, tínhamos uma educação em que aprendíamos a fazer uma série de coisas sobre o que aquelas cruzadinhas faziam, então para mim, foi uma coisa assim... Era interessante, porque o domingo era um momento em que a gente convivia com outras crianças, em que a gente tinha um momento diferente, e foi muito importante para a minha formação. Dali, eu fui crescendo. O padre e aquele pessoal da comunidade ali, era um pessoal muito participativo também nas questões sociais da igreja e eu comecei também a participar dessas coisas. Ali eu fiquei adulta e pulei de cruzadinha para a filha de Maria. Eu fui filha de Maria. Eu sou até hoje, mas naquela época eu tinha… Como se fala? Eu tinha o card de filha de Maria. A gente participava de muitas questões sociais e discutia as questões políticas. Era uma igreja muito politizada, a gente discutia muito essas questões políticas. Eu não estou querendo falar de mais algumas coisas que… (Risos). Que tem a ver com a minha formação, que tem a ver com a forma que aprendi com os meus pais e a minha formação na sociedade. Foi muito forte aquele momento. Eu já era adolescente, já não era mais uma menininha. Nessa época que fomos morar em Vila Pereira Barreto, minha mãe comprou um terreno, e construiu uma casa nos fundos do terreno, uma casa pequena, com toda uma parte grande do quintal na frente da casa. Essa casa era cercada de arame farpado, não era nem muro, era arame farpado. Os altos eram todos… Tinha uma vizinha do lado, mas o restante era tudo mato. Foi outro momento em que assim, eu já tinha minha fase dos dez, doze anos, e também foi uma vida que eu vivi na natureza. Vivia naquele mato, comendo as frutas daquele mato, curtindo aquela natureza, vivendo aquilo, convivendo com os animaizinhos que via ali. Então, ali dentro da cidade, era um bairro populoso, mas compramos em um espaço que ainda não estava totalmente povoado, e que a gente tinha liberdade. O que minha mãe fez? Cercou uma parte do terreno que não era dela, e ali criava pato, criava galinha, plantava, e a gente comia do que a gente produzia - e produzia sozinha. Plantar o chuchu, ele subir na cerca e fechar a cerca, ele dar chuchu... A gente comia ovos, a gente comia frango, a gente comia daquilo que produzia naquele pedacinho nosso. Ajudava também, minha mãe era muito criativa com essas coisas. Vou te contar mais uma arte minha daquela época. Eu tinha responsabilidade, ia para a escola de manhã, eu não tinha… Como eu entrei na escola tarde, com 12 anos eu estava na escola ainda, porque não subi todas as séries. Nas primeiras séries, eu subi. Depois, tive que fazer as séries sequenciais. Bom, meu irmão ia para a escola em um horário e eu ia em outro horário. Eu tinha a responsabilidade de fazer o básico das refeições, que era cozinhar feijão… A gente cozinhava com umas grelhas com carvão. Eram uns fogões que tinham carvão para cozinhar. Então, você levava um tempo danado para colocar aquela brasa, para aquela brasa acender, para o feijão cozinhar… E eu, embora não saísse nessa época para a rua, não brincava com outras pessoas, e não tinha mais meus irmãos maiores… Eu brincava mesmo com as minhas bonecas, com as minhas coisinhas lá, dentro de casa e ficava desapercebida de que tinha um fogão com feijão cozinhando. Quando menos esperava, vinha o cheiro do feijão queimado. E o medo da minha mãe? Eu ia lá naquele quintal. No nosso quintal, tinha aquelas coisas de verdura, alface, agrião… No outro espaço, ela plantava outras coisas, plantava jiló, plantava berinjela… Eu ia lá no quintal, abria um poço, jogava o feijão queimado, escondia, tampava e colocava outro feijão para cozinhar. Às vezes, não dava tempo dele cozinhar e ficar gostoso, molinho, e minha mãe reclamava, "mas meninas, por que você colocou esse feijão tão tarde?", e eu não mentia muito, mas também não contava muito o que era e deixava para lá. Passava um tempo, e quando chegava final de semana, ela gostava de mexer com as plantas. Ela ia lá, limpava, tirava os matinhos, replantava, e achava uns lugares interessantes que tinham a terra tão boa, tão adubada (risos). "Nossa, mas esse quintal tem umas terras muito boas", e eu quieta, quieta. Mal sabia ela que quem fazia o adubo era eu, e o adubo era feito com o feijão que ela comprava. Outra coisa que ela reclamava, "meu Deus, não sei como esse feijão não rende, esse arroz não rende. A gente compra, compra, e acaba logo" (risos), porque eu cozinhava às vezes duas vezes o feijão e duas vezes o arroz. Gastava a unha limpando a panela para não ficar com as coisas. Eu me lembro dessas minhas artes. Isso eu não contei para ela, isso ela foi saber agora, depois de muito tempo, comigo já adulta, porque ela era muito brava. Se precisasse pegar o chicote e dar umas chibatadas, ela dava, então a gente era muito ali e eu não contava essa história. Nesse período, apareceu um cachorro lá em casa e ele entrou. A gente tinha uma pequena área de serviço… Não era nem uma área de serviço, era um hall pequenininho na entrada da nossa casa. Aquele cachorro entrou ali e ele era bravo para danar, não deixava ninguém entrar em casa. A gente ia chegar ali para entrar, que só tinha uma porta na casa, e o cachorro rosnava para todo mundo que chegava. Eu fui conversando, fui dando uma coisinha para ele, pulava a janela, entrava lá, pegava alguma coisa para ele comer, dava, dei água, cuidei dele, e ele terminou ficando meu amigo. Ele era um tipo de pastor alemão, mas não era puro, era um vira-lata misturado com pastor alemão. E aí, fiquei cuidando daquele cachorro, não aparecia o dono e ele foi ficando ali. Mas ele era muito bravo, tinha que ficar na corrente. Eu que fiz amizade, eu que conseguia tirar ele dali, conseguia colocar coleira… O meu irmão colocou uma estaca lá em cima do terreno e outra no portão, pôs a coleira do cachorro naquele fio, e o cachorro cuidava do quintal, subindo e descendo, mas preso. Era o Rex. Ele era meu amigão, muito meu amigão. Nessa época, eu andava pelos matos ali também e comia muita fruta, muita coisa boa. Foi um período também muito legal da minha vida. E aí, eu passo para um outro momento. Nesse momento antes da gente ter a casa, que morava ali, antes de ter construído a casa, a gente passou por momentos assim, bastante difíceis. Eu ia para a escola, às vezes sem tomar café, não tinha o café da manhã. Tinha dois dias na semana que tinha feira perto da escola. Eu passava naquela feira, olhava todas aquelas frutas ali… Às vezes, eu chegava bem perto do dono da barraca, olhava bem para ele, pegava uma fruta, olhava assim, e falava para ele, "posso?", geralmente ele dizia, "pode", eu pegava a fruta e ia comendo. Quantas vezes eu fiz isso? Algumas vezes eu tive mal estar na rua, desfaleci, e as pessoas vieram me acudir. As pessoas me passavam álcool para eu voltar, e eu já estava bêbada de fome, passando álcool, aí mesmo que eu não voltava, porque eu ficava bêbada. Isso aconteceu e não foi uma vez só (choro). Eu entendo bem essa história que muita gente vive hoje, porque só quem viveu isso, sabe o que significa isso. Mas minha mãe sempre foi batalhadora, ela sempre trabalhou. A gente ficava em casa, éramos moleques e fazíamos muita arte, eu e meu irmão, mas não eram artes prejudiciais, eram molecagens mesmo de criança. A minha mãe e meu irmão de 14 anos - que não tinha mais 14 anos, já era adulto, eu tinha crescido e ele também - trabalhavam em fábrica direto. Eles vinham trabalhar aqui na rua José Paulino. Foi com esse trabalho e luta deles que minha mãe conseguiu juntar um dinheirinho. Não se gastava com alimentação praticamente, porque nós… A gente gastava com esses outros produtos, mas o resto ela produzia naquele espaço vazio, que não estava sendo utilizado. Mas a gente era muito bem alimentado, com verdura, fruta… A gente se alimentou bem naquele momento. Bom, com 13 anos, eu já tinha saído da escola e meu irmão me levou… Minha mãe me levou, na verdade… Eles trabalhavam no mesmo espaço. Ela me levou para ser aprendiz naquela fábrica em que eles trabalhavam. Naquela época, precisava de autorização do juiz para o menor trabalhar. Até podia com 14 anos, mas eu tinha 13 ainda. Fui ser aprendiz e aprendi logo, aprendi bem o ofício. O meu irmão era muito criativo. Ele tinha uma função naquele tipo de trabalho em que ele idealizava as bolsas. Eram bolsas de senhoras, bolsas chiques. Ele idealizava, cortava, preparava as partes mais moles para costurar e tudo mais, e montava uma primeira bolsa, que era aquela que era mostrada e as pessoas faziam as compras a partir daquele modelo. Lá, eu era aprendiz para colar o algodão nos papelões e cortar uma coisinha ou outra. Eu ficava ali, queria ajudar, comecei a ajudar e aprendi logo. E logo eu passei a ser a pessoa… Aquele primeiro modelo que era feito, era eu que fazia junto com ele. Ele ia me dizendo, "faz assim, faz assim, faz assim", e eu ia fazendo os modelos. Bom, ele era muito procurado por todas as fábricas de bolsas de São Paulo. Acho que tinha umas seis fábricas naquela época que tinham nome e vendiam para as altas classes sociais, e lojas mais… Não sei se era boutique que se chamava naquela época. Ele era muito disputado. Para todo lugar que ele ia, ele exigia que eu fosse para fazer o modelo dele. Eu era criança, ganhava salário de menor, e para eles era muito interessante que eles não pagassem para uma… O título de quem faz esse trabalho lá, é oficial. O oficial que cuida de uma mesa, com alguns trabalhadores, e que tem que produzir o número X de unidades que deve fazer, então tem todo um processo. Eu passei a ser essa colaboradora do meu irmão, e ia com ele. E aí, eu comecei a ganhar mais, ganhar mais, ganhar mais. Ele mudava muito de fábrica, porque ele estava em uma, ofereciam mais e ele ia para outra, oferecia na outra… Depois, ele voltava para aquela primeira, porque pagavam mais alto para ele e pagavam mais alto para mim. A gente foi virando nesse ciclo e eu fui trabalhando nesse tipo de trabalho, em fábricas de bolsas. Bom, pulando esse momento, eu queria muito estudar, queria muito fazer o curso ginasial. Tinha os cursos ginasiais nas escolas estaduais, mas quem entrava lá, era quem tinha QI. Eram as melhores escolas da época, mas eram os filhos de políticos e de gente rica que entravam lá. Não pagavam nada, tinham as melhores escolas… Eu não conseguia disputar vaga em uma escola particular. Tinha um tipo de seleção, um tipo de cursinho, e eu não conseguia. Eu trabalhava em uma fábrica de bolsas. Nessa época, eu já não trabalhava com meu irmão, pulando para lá e para cá. Eu resolvi que queria estudar e fui estudar à noite, mas fui estudar em uma escola particular, paga. Eu lembro que fui estudar na escola… Como fala? Campos Salles, na Lapa. É uma escola particular, que hoje é uma universidade e era uma excelente escola. Eu fui fazer admissão ao ginásio lá nessa escola paga, para pagar com meu salário de lá da fábrica de bolsa. Minha mãe não gostou muito, primeiro porque eu iria chegar tarde da noite, sozinha. Eram essas questões, e a questão do gasto, porque eu teria que pagar uma escola. Eu fiz uma admissão ao ginasial, que era de alguns meses, e passei. Depois que passei, e comecei a fazer o primeiro ano… Tem uma organização social que vocês devem conhecer, que se chama… Me fugiu o nome agora, meu Deus. Bom, vou me lembrar do nome. Tinha uma organização social em que você se candidatava, participava de um processo, e ganhava uma bolsa. Você tinha que ter um aproveitamento acima de sete. Sete era alto para mim, na minha condição, mas eu encarei a brincadeira. Se eu não conseguisse aquele aproveitamento, eu perderia a bolsa, mas eu fiz a bolsa todos os anos do curso ginasial lá no Campos Salles. Tive bons professores, gostava muito dos professores. Dessa época, eu lembro de vários. Lembro bem do que dava Latim, ele era muito exigente, mas eu gostava demais dele. Me lembro muito do professor Abner, que dava Língua Portuguesa. Esses dois marcaram a minha vida. Tinha um professor de História também, que era muito bom, não estou me lembrando do nome dele agora. Mas quando digo "muito bom", é porque ele era bom no transmitir e era bom na educação, mas era bom enquanto um ser que nos formava por inteiro. Ele não dava aula para você aprender a língua portuguesa, para você aprender matemática, ele tinha aquela preocupação do todo, ele ia moldando as pessoas. Eu tenho grandes lembranças dessas pessoas. A partir daí, veio um momento que é bom lembrar, porque faz parte da vida. Não lembro disso com muito sofrimento, mas vivi isso. Na hora do almoço, os donos das fábricas trancavam as fábricas. Eu levava o meu alimento de casa, que não era uma marmita. Você já ouviu falar em filão de pão? Conhece filão de pão? Era um pão grande que era feito e eles chamavam de filão. Ele era muito saboroso, crocante e tudo mais. Eu levava um filão daquele com fritada dentro dele. Fritada com tomate, com… Engraçado, que a gente fritava até batata para pôr dentro do pão, e hoje fico pensando, "que coisa mais louca", mas eu fritava tomate, batata, cheiro verde, um monte de coisa… Pimentão… Colocava dentro daquele pão e partia em dois, um era para o almoço e um era para o jantar, porque antes de eu ir para a escola - porque eu saía de lá e ia direto para a escola - era o outro jantar. Eu não tinha lugar para tomar a refeição. Eu sentava na escadaria do prédio, e ali eu fazia a minha refeição. Essas histórias marcam a gente, para fazermos uma análise social e ter a posição da gente dentro do processo de vida, do processo político e tudo mais. Eu fiz com todas essas questões, de sair correndo da fábrica e ir correndo para o colégio. Chegar lá no colégio , assistir as aulas e ficar até tarde, já cansada, porque eu entrava cedinho. Eu entrava às sete horas da manhã. Para chegar ali no Paissandu, ali na 9 de Julho, ali na José Paulino que eram os lugares em que eu normalmente trabalhava, eu tinha que sair cedo de casa para chegar no horário nos lugares em que eu trabalhava. Mas assim, terminei o ginásio, consegui fazer o ginásio. Naquela época, tinha uma coisa assim, se você conseguisse ultrapassar essa nota mínima, essa nota sete, você não precisava fazer determinadas… Tinha um monte de provas, não era só um dia de provas. Tinha prova, apresentação de trabalho… E você era liberado daquilo. Então, só aqueles que estavam precisando de nota, que precisavam ficar ali. Para mim, era festa, porque a partir daquele dia, eu ia para o cinema com a turma. Todo dia era cinema, todo dia eu ia. Comecei a ficar fascinada com aqueles filmes. Naquela época, era minha adolescência já nessa altura dos acontecimentos, vendo o James Dean na tela dançando, sabe? Vendo quem mais? O James Dean, os artistas da época, aquelas danças, aquelas coisas lá, para mim, era o máximo. Eu sempre consegui juntar o prazer na minha vida. Mesmo com a dificuldade financeira, eu juntava tim-tim por tim-tim. Às vezes, eu andava em um lugar longe para guardar condução, para guardar esse dinheiro para meu período de festa (risos), que era para ir ver meus filmes… Por outro lado, eu e meu irmãos éramos muito amigos. Ele assistia aos filmes também. O processo dele era outro, mas ele também gostava e também assistia esses filmes. Não era junto comigo, não era na minha turma. Ele via aquele pessoal dançando e aprendia os passos. Chegava lá em casa e falava, "vem cá, vamos aprender", me ensinava, e a gente ia dançar aquelas danças, daqueles filmes, aquele rock… Ele aprendia, me ensinava, e eu aprendia. Quando tinha uma oportunidade de estarmos em algum lugar que… Ah, a gente se esbaldava, a gente se mostrava! A gente era muito amigo, mesmo assim… Crescemos e ele casou. A mulher dele não gostava de dançar, mas ele sempre foi meu parceiro de dança, a gente sempre dançava. Naquela época, a mamãe não deixava muito filha sair a noite, mas ele dizia, "não, mãe, pode deixar que ela está comigo", e eu ia com ele para os bailes. Ele me levava para o baile e a gente dançava. Já arranjei muita inimizade, porque as meninas achavam que eu era namorada dele, ficavam na disputa, e eu era a irmã (risos). Tinha todas essas coisas, essas coisas da juventude. Tive grandes amigos nessa época do colégio, nessa época da minha adolescência. Me lembro que a gente gostava muito de estudar, para passear no final de semana. Esses meus amigos, tinham um grupo bom de meninas e meninos. Nessa época, a gente morava no alto da Lapa… Ah! Nessa época, minha mãe se mudou para a Cidade Ademar. Se eu viesse morar na casa dela, teria que perder minha bolsa de estudos e meu tempo da escola, então fiquei morando na casa de uma amiga. No final de semana, mas nem todos, porque na maior parte deles, eu tinha que ir para casa, a gente ia para o Pico do Jaraguá. Naquela época, não era assim, que você vai até o pé do Pico com facilidade. A gente ia escalando pedra desde lá debaixo. Não era uma coisa fácil, mas a gente era jovem (risos). Nós íamos para lá e era muito bom, uma lembrança muito boa. Chegar lá, olhar e ver a cidade dali, para mim era uma coisa maravilhosa. Você vê que na minha história, a natureza está sempre presente, eu nunca estou longe dela. Nós tínhamos os amigos, combinávamos, "vamos para o Pico do Jaraguá?", "vamos". Não era cansativo… dizer que a gente ia para lá, escalava aquele pico e no dia seguinte não tinha condições, estava cansado, que não queria… Nada! A gente tinha uma força de dentro, que para mim, isso não era nada, e nem para os meus amigos. Eu tenho grandes amigos daquela época. Tenho um amigo que virou escultor. No primeiro trabalho dele, quando ainda estava fazendo, ele esculpiu em uma madeirinha uma santinha e me deu. Tenho até hoje aquele trabalho dele. Então, eu tenho essa escalada de vida. O que mais posso te contar da minha vida? Bom, terminei o ginásio. E aí, é aquele outro lado: científico, clássico, professor, ou outra coisa. Eu queria fazer outra coisa. Eu queria ser química industrial. Fiz a tentativa, já trabalhava, tinha meu salário, estava bem, e quis fazer a tentativa de fazer química industrial no colégio Oswaldo Cruz. Acontece que não deu, não deu porque tinha as aulas de laboratório, tinha muito material, o material era muito caro e eu não conseguia bancar, e abandonei no primeiro ano. Fiquei por um bom período sem estudar, só trabalhando. Fiquei trabalhando sem estudar, e quando fiz 18 anos, resolvi que não queria mais morar aqui em São Paulo, porque São Paulo era muito agitada, porque… E olha que naquela época… Eu tenho 80 hoje, você imagina com 18 anos o que significava agito (risos). Mas eu queria ir para um lugar calmo, e fui morar lá na minha cidadezinha de Montes Claros. Meus irmãos moravam lá, família grande e tudo mais. Eu falei, "vou morar lá, tenho parentes lá e tenho meus irmãos. Vou procurar um lugar e trabalhar lá. Me formei, tenho uma formação e vou arranjar um emprego", fui para lá. Primeiro, não arranjei um emprego, primeiro ponto. Segundo ponto, era calmo demais para a minha vida (risos). Voltei. Voltei, porque era calmaria demais, falei, "não, eu prefiro a confusão de São Paulo". Voltei, mas decidi que não iria mais voltar para trabalhar na fábrica. Eu tinha o meu segundo grau, e iria arranjar para trabalhar em escritório. A minha família morava aqui na Cidade Ademar, era perto do aeroporto, e eu fui batalhar uma vaga para trabalhar no escritório da VASP, ali no aeroporto. Fui, fiz um teste, passei e comecei a trabalhar no escritório da VASP. Eu sempre fui assim, muito falante, muito alegre, fiz amizade com todo mundo e tudo mais, comecei a participar dos grupos. Formaram um clube, que era "Departamento de contabilidade club", tinha as meninas da contabilidade que… Tinha futebol de salão, eles iam fazer competição no futebol de salão e as meninas iam para torcer, para fazer barulho, eu ia com esse pessoal e tudo mais. Foi um outro momento da minha vida. Eu sempre tive muito essa relação de amizades, isso de fazer coisas no coletivo. Trabalhei lá, ganhava bem e tal, mas teve um momento da minha vida em que conheci um namorado lá, e comecei a namorar, mas era um namorado extremamente ciumento, muito ciumento. Como entrei lá primeiro, todo mundo era meu amigo, os homens, todos os rapazes, "Elsinha, vamos almoçar?", "vamos". A gente sentava naquela mesa com os bandejões… No tempo em que eu estava namorando com ele, eu sentava com ele e mais uns amigos. Quando acabava o almoço, eu não sabia mais se ainda estava namorando, ou se não estava, de tanto ciúmes que o cara tinha. E aí, você tem aquela impressão de que você consegue, de que ele vai mudar e tal. Falei, "bom, mas isso é dele? Como ele vai conseguir? Mas como vou falar para os meus amigos que não quero que eles falem comigo? Se eu estiver afastada daqui, posso manter um relacionamento e não vai ser uma coisa tão agressiva". Eu resolvi sair de lá da VASP, onde estava bem. Saí por conta de proteger uma relação e fui trabalhar em uma empresa que existe até hoje. Era uma concessionária de carros, da Volkswagen, ali na Avenida Santo Amaro. Eu fui trabalhar na tesouraria daquela empresa. Outro choque de classe comigo (risos), outro choque de classe. A gente trabalhava na tesouraria. Naquela época, o pessoal não tinha cheque, nem nada, e chegava lá com uns pacotes de dinheiro. Você tinha que contar o dinheiro, bater os valores e tudo mais. Você trabalhava o dia inteiro naquela dinheirama e não tinha dinheiro nem para comprar um lanche melhor, uma coisa melhor. Essas contradições passaram pela minha vida o tempo todo. Eu terminei saindo de lá também, não gostei dessa história. Saí de lá e fui trabalhar no Hospital do Servidor público Estadual. Fiz uma seleção, passei e fui trabalhar ali. Foi um período muito bom. Era na área da saúde, uma área que gosto. Trabalhei com pessoas importantíssimas lá… Importantíssimas para a minha vida. Eles são importantes, mas para a minha vida, eles foram muito importantes. Eu trabalhei primeiramente na clínica de moléstias infectocontagiosas, que era dirigida pelo doutor Vicente Amato Neto. Ele era uma pessoa assim, muito inteligente, muito boa e muito, muito exigente também. Tive a oportunidade de conhecer lá uma enfermeira que se chamava Tamara Ivanovic, ela era russa, mas criada em Salvador, e se dizia russo-baiana. E ela era bem assim mesmo, tipo Salvador, era o jeitão dela. Ela era muito exigente, chegava e falava, "vamos conferir hoje como está" e não sei mais o que. Ela chegava e passava o dedinho assim, para ver se as meninas tinham limpado direito. Era maravilhosa e exigente, mas tinha uma qualidade, ela participou do processo de organização e implantação do Hospital Albert Einstein. Tinha uma outra enfermeira lá, que também era… Ela era menos assim, igual era a Tamara. A outra enfermeira falava baixinho...
P/1 – Podemos voltar. Você estava contando da sua época no Hospital do Servidor Público.
R – Então, a minha inserção na saúde foi nessa época em que fui trabalhar, fui ser administrativa na clínica de moléstias infectocontagiosas. Convivi lá com pessoas maravilhosas, já falei da Tamara e do doutor Amato. Nossa, muitas pessoas ali… Tenho grandes lembranças, grandes lembranças daquela época. Doutor Alois Bianchi. Eu brincava com o doutor Alois. Ele era pediatra e ele cuidava tanto… Os detalhes todos das crianças que ele cuidava ali na clínica… Até banho de sol ele prescrevia para aquelas crianças. No hospital do servidor, eu fui secretáriabda clínica de moléstias infectocontagiosas. O diretor ali era o doutor Vicente Amato Neto, uma figura assim, fabulosa. Grandes lembranças e grandes aprendizados com ele. Doutor ______ [01:24:48], que também era um grande profissional, sabe? Eu não vou mencionar todos os médicos, mas vou contar uma história do doutor Alois Bianchi. Ele era médico pediatra e era muito minucioso com as crianças que estavam ali internadas até banho de sol prescrevia, e cobrava, "fez ou não fez?". Eu brincava com ele, "ah, doutor Alois, quando eu tiver os meus filhos, quero que o senhor seja o pediatra deles". Fazia essas brincadeiras com ele e tal. A gente tinha vários profissionais lá, não dá para falar de todos, mas têm uns que você tem que falar. Tinha uma médica lá… No momento, não estou lembrando o nome dela. Os colegas brincavam que ela era a Luluzinha, porque ela brincava demais com todos eles. Ela fazia umas brincadeiras, e era muito animado aquele trabalho lá. Depois da clínica, eu fui trabalhar na área administrativa, fui para a diretoria clínica, e trabalhei lá com o doutor Ruy Binessoto. Enquanto eu estava na diretoria clínica, fui convidada a auxiliar na secretaria do IAMSPE, eu secretariava… Eu era secretária auxiliar, porque o secretário tinha que ter nível superior, tinha essas exigências. Mas eu era uma auxiliar, e também foi de grande aprendizado. Talvez eu não me lembre… Eu estou vendo os rostinhos todos das pessoas, dos médicos, e tudo mais, mas não estou me lembrando muito do nome de todos eles. Estou falando desses, porque eles tiveram uma vida mais próxima, porque de fato o doutor Alois Bianchi foi médico da minha filha, minha primeira filha. Ele me levava para ser atendida no consultório dele lá na rua Itapeva. Ele agendava e fazia questão. Eu me sentia assim, meio incomodada, "é um consultório chique e não estou pagando". Até quando agendava, eu pagava, mas ele mandava a secretária pôr o dinheiro no envelope e me devolver na saída. Eu demorava para marcar as consultas, ele ligava e falava, "como é? Vai deixar crescer para todo lado? Agenda a consulta", e eu agendava. E ele cuidou dela assim, até grande. Eles ficaram grandes amigos. Já não era época de pediatria, mas ela falava, "ah mãe, não quero mudar de médico, quero ir com o doutor Alois", e ele continuava atendendo. Então, eu tenho essas histórias de boas relações. Quando eu secretariava o doutor Vicente Amato, ele começou a me chamar para datilografar - não era digitação na época - os relatórios dos estudos científicos e os relatórios de biópsias, porque eu entendia muito bem as letras dos médicos. E aí, eu comecei a secretariar paralelamente, junto com o doutor Amato, a comissão científica do hospital. Nessa relação, você começa a aprender muita coisa, é muita informação que vem. Eu sou igual uma esponja, gosto de aprender, gosto de trazer, não perco essas oportunidades desses aprendizados. Desses profissionais, tenho lembranças não só desses, estou vendo o rostinho de vários deles. Vou contar uma experiência que marcou. Eu tinha uns primos, que eram muitos meus amigos. Eles eram mais adultos que eu, e eram muito acolhedores comigo, a gente tinha muita amizade. Eles sofreram um acidente aqui na Rodovia Anhanguera, e precisaram ser hospitalizados. Nessa época, eu pedi socorro, porque eles foram para um hospital ali no… Como se chama? Aqui na… Não me lembro agora, vai passar. Também, é até bom, porque vou falar o nome do hospital e vou criar problemas. Foram para lá, e eu pedi socorro para eles. Dois deles foram visitar um ortopedista. Acho que o doutor Rudy também foi lá. Eles me orientaram o que precisava e tal, e orientaram que eu precisava transferí-los daquele hospital realmente. Me deram um apoio tremendo. Esses meus primos tinham poder aquisitivo, podiam pagar, mas os dois estavam sem condições de utilizar o dinheiro que eles tinham, com três filhos pequenos… A minha prima, irmã desse casal, ficou cuidando desses filhos. Um dos profissionais que indicaram um hospital de ortopedia de qualidade para poder resolver aquela problemática dos meus primos e a gente transferir para lá… Mas assim, eu paupérrima de tudo, trabalhava com um dinheirinho pouco, não podia arcar com a responsabilidade de tratamento hospitalar caro. Eles tinham dinheiro, mas não estavam em condições nem de assumir essa responsabilidade, nem de pagar no momento adequado. Eles precisaram de cirurgias de urgência assim que foram transferidos e tudo mais. O ortopedista, por quem eu tenho profundo carinho… Estou vendo ele falando comigo aqui, e está me fugindo o nome dele. "Olha, dona Elsa, eu pedi uma cirurgia e vai acontecer amanhã", e naquele hospital, você tinha que colocar o cheque já junto com o pedido, entendeu? Falei, "doutor, eu não tenho condições e eles não têm condições de mexer com o dinheiro, como é…", "depois a gente fala disso". Ele preencheu o cheque dele, colocou no pedido de cirurgia, e a cirurgia que os meus primos precisaram naquele período que estavam lá, eu não tive problema. Eles sabiam que eu não tinha como pagar, mas confiaram que seria pago (choro). Essa é uma outra questão que acho importante colocar na minha vida. As pessoas que passam pela minha vida, as pessoas que dão força, as pessoas que são humanas e profissionais de fato. Eles tinham a segurança, sabiam que podiam pagar, mas não sabiam quando iriam receber. Isso é uma coisa importantíssima, principalmente hoje, quando a gente fala desse momento atual que estamos vivendo. Se der para fazermos no final dessa gravação, quando vocês forem editar, eu vou ver o nome desse médico ortopedista que fazia a cirurgia e que fazia isso. Estou vendo ele aqui na minha frente, conversando comigo. É um nome italiano e não estou me lembrando agora, mas acho que na edição, eu passo para vocês. Essas coisas, gente, não tem o que falar, é o que é. Outro fato interessante na minha vida, é que sou uma ajudadora nata também. Sempre que posso ajudar o outro, vou ajudar. Uma amiga minha, que trabalhava no servidor comigo e estava insatisfeita com o setor em que trabalhava, me falou, "Elsa, eu vou prestar um concurso na prefeitura, abriu agora, eu vou sair daqui. Presta o concurso comigo para me dar apoio", e falei, "ah não, estou tão bem aqui, eu não vou prestar concurso, não vou sair", "não, mas faz para me dar apoio moral", e lá fui eu, prestar concurso na prefeitura para dar apoio moral para essa minha amiga. Conclusão, ela era datilógrafa. Naquela época, não era digitação, não tinha computador, era diferente. Com aquela habilidade, eu era boa, e ela era a melhor de todas. Ela não errava nada quando datilografava. Era a primeira prova e era eliminatória. Nós fomos fazer, e no dia da prova, eu fiz uma lambança danada. A prova era feita em uma escola que se chamava Instituto Underwood, ali perto da rua Direita, em uma daquelas ruas por ali. Era uma escola poderosa, famosa, e era lá que a gente fazia as provas. Era tudo cronometrado, tocava uma campainha e você colocava o nome no papel. Tocava outra campainha, e você fazia não sei o que. Tocava outra campainha, você começava a digitar o texto. O que eu fiz? Cheguei ali, e quis tirar a máquina do lugar para ficar mais fácil para eu ler, e não consegui. O que consegui foi derrubar a minha papelada no chão. Eu abaixo na mesa para catar minha papelada, e toca o primeiro aviso para pôr o nome no papel. Eu estou lá pegando meus papéis e toca o segundo aviso, para escrever as outras coisas. Eu consegui pegar aquelas coisas lá, colocar o papel na máquina, colocar meu nome, fazer aquelas coisas e dar continuidade, atrasadíssima. A primeira coisa que sei que errei, foi que na hora de digitar o "a", eu digitei o "q", então meu nome já saiu errado. Falei, "não passei, mas fui lá dar apoio moral para a minha amiga". Ela não passou, e eu passei. Eu não acredito! Até hoje fico pensando como fiz tão… Só que me preocupei não em termo de quantidade, porque falei, "já estou atrasada mesmo, o que eu fizer, vou fazer direito" (risos), e fiz desse jeito. E minha amiga que era exímia datilógrafa, tinha agilidade e usava todos os dedos da mão… Eu usava só três dedos de uma mão, cinco de uma e três da outra. Até hoje sou assim. Hoje é pior, porque no computador, nem esses eu uso, eu uso procurando onde está (risos). Então, essas coisas que a vida me dá, me criou um problema, mas por outro lado, me deu oportunidade, porque eu passei. Eu passei, mas falei, "estou bem aqui, não quero sair daqui. O que eu faço?", e deixei até o último momento para desistir da vaga. Porque naquela época, era assim, você passou, foi classificado, tem uma classificação, e é chamado por ordem de classificação. Se você não fosse assumir a vaga, você teria que fazer uma carta, assinar e levar lá no DAMUR (Departamento de Administração Municipal) e desistir da sua vaga. Aí, eles publicavam a próxima pessoa da lista para aquela vaga, e era feito assim. Era responsável, não tinha essas falcatruas que têm hoje com esses concursos. Eu vivenciei falcatruas quando prestei os meus outros concursos… O meu concurso de assistente social foi a maior coisa de erros que aconteceram. Então, eu deixei para ir lá para desistir no último dia. Eu fiquei tentando, e o lugar que eles me designaram não dava tempo, porque eu trabalhava seis horas no hospital do servidor. Eu pensava, "vou primeiro experimentar se vale a pena ir para aquele lugar, para depois pedir demissão aqui", eu não pretendia ficar com os dois mesmo. "Para eu fazer isso, tenho que sair daqui uma hora e chegar no outro local… Tem que ser perto, para eu fazer mais seis horas na parte da tarde no outro local". E aí, eu não consegui achar um local próximo para fazer isso e deixei para ir desistir da vaga no último dia. Quando saí de lá do servidor para ir levar minha carta de desistência, olhei para o outro lado da rua, e ali tinha um parque. E ali naquele parque, funcionava alguma coisa da prefeitura, que eu nem sabia o que era. Atravessei a rua e fui lá, "quero falar com a chefia". Uma senhorinha muito agradável me atendeu, nós conversamos e eu contei para ela assim, "olha, prestei o concurso, trabalho no servidor, não sei se quero ficar aqui ou se quero ficar lá, e queria ter um tempo para tomar essa decisão. Só que o local que fui designada é "tal", não dá tempo de eu ir para lá, mas se fosse aqui, daria tempo, porque era só eu atravessar a rua. Não vou chegar atrasada, vou cumprir o meu horário, e vou fazer o meu trabalho", ela falou, "olha, estou precisando mesmo, vamos lá e vamos conversar com o doutor Paulo". E aí, fui lá para a diretoria do doutor Paulo. Ela conversou com ele, "ah, tudo bem, vamos fazer", mas a secretária dele não estava. E eu disse, "mas tenho que levar essa carta hoje lá no DAMUR, porque é meu último dia, se não eu perco" (e era até às quatro horas da tarde). E aí, aquela senhora que era da chefia dos administrativos… Eu falei, "posso sentar aí e datilografo. A senhora me fala o que quer". Eu sentei na máquina e eu mesma me pedi para trabalhar lá (risos), ele assinou, eu peguei minha cartinha e fui lá para o DAMUR. Cheguei quase quatro horas. As meninas ficaram muito bravas comigo, porque elas já estavam todas de bolsinha aqui no braço, e eu cheguei para elas fazerem uma admissão. Elas não gostaram, ficaram bravas, reclamaram, enfim, mas fizeram. E aí, eu fui para a prefeitura. Em seguida, em poucos meses, dois ou três meses depois, saiu uma lei que eu tinha que optar entre ficar em um canto ou ficar no outro, e eu já estava gostando da ideia. Eu trabalhava de manhã no servidor, atravessava a rua, trabalhava lá, ganhava dois salários e já estava gostando da brincadeira (risos). O que aconteceu foi que veio essa lei e eu tive que escolher e optei pela prefeitura. Eu fui designada lá na prefeitura para o departamento de serviço social?! Era, naquela época não era de integração ainda, depois que virou. Fui para lá trabalhar entre as assistentes sociais, e vendo aquele trabalho maravilhoso daquelas pessoas lá. Tive o prazer de trabalhar com profissionais de alta categoria. Entre eles, eu vou mencionar dois. Várias delas, mas vou falar de duas, porque estão até hoje aí. Uma delas é a Luiza Erundina, ela era assistente social lá. Uma das coisas que mais me admirava naquela época… Era centralizado. Chegava época de chuva e aquela região do Campo Limpo, perto dos córregos alagava, virava uma… Eu vi aqueles abnegados do serviço social colocarem aquelas galochas enormes (choro), colocar aquelas capas, juntarem materiais naquelas kombis e amassarem barro na periferia. Eu ficava assim, "meu Deus, existem pessoas humanas nessa terra" (choro). Eu ia me envolvendo com o trabalho deles, e cada vez me envolvia mais. Eu ajudava na produção de apostilas, na produção das coisas que eles precisavam. Nesse meio tempo, eu não contei, mas eu estava indo no servidor. Eu passei ali no… Tinha uma escola pública perto de onde eu morava, eu passei um dia lá, e tinha uma placa dizendo que era o último dia para fazer a inscrição para fazer o terceiro ciclo. Eu ia fazer o curso normal naquela época, porque precisava fazer, achava que devia fazer. Como não consegui fazer química industrial, interrompi só no ginásio, naquela época. Eu entrei, e fui fazer inscrição à noite. Fiz a inscrição, fecharam as portas da escola, porque começaram as aulas e a diretora não deixava abrirem as portas. Eu tive que ficar lá na escola até a hora da saída, a hora que podiam abrir, um horário tarde lá. Eu te contei lá atrás que eu tinha um namorado bravo e ciumento. Eu tinha um encontro com ele, e ele não sabia nem onde eu estava. Não tinha celular naquela época, e eu estava presa lá dentro. Ela já tinha ido na minha casa, não sabia onde eu estava, e estava muito bravo com essa história. Eu fiz essa inscrição, e fiquei até devendo documentos, porque não tinha todos ali. Eu resolvi entrar ali, sabe? O cachorro quando a porta está aberta e ele entra? Eu fiz isso. Me inscrevi para fazer o curso normal. Quando terminou o horário das aulas, abriram o portão, eu fui para minha casa e encontrei com esse homem na porta do prédio, saía fogo pelas narinas dele de tão bravo comigo, e não entendia o significado daquela coisa. Mas enfim, eu casei com esse homem. Enfim, eu casei com esse homem, tive filhos e tal. Mas eu fiz o normal, porque também sempre fui muito destemida, muito de brigar pelos meus valores, pelas coisas que acredito, e consegui fazer. Fui driblando a situação e tudo mais, e consegui fazer. Engravidei nesse período em que estava estudando. Teve uma época que a minha barriga não cabia nas carteiras. Só tinha uma carteira na escola inteira que cabia minha barriga. Eu tinha uns amigos da classe… Eu lembro desse meu amigo, Ivan, ele saía pela escola inteira procurando aquela carteira para colocar na classe para eu assistir aula. Lá vinha o Ivan com a cadeira nas costas para eu assistir a aula. Era muito interessante aquela brincadeira. Eu estudei, trabalhava durante o dia, estudava à noite… Quando terminei esse curso, ainda estava lá na prefeitura. Tive a minha filha… Eu não trabalhava mais lá no servidor quando tive a minha primeira filha. O pessoal lá ficou sabendo, e foi aí que o doutor Alois falou, "não, vai lá", e acompanhou a minha filha até a idade de dez anos. Já te contei essa parte. Bom, voltando ali, vendo aqueles assistentes sociais abnegados, fazendo aquelas coisas, com tanta dificuldade de material, com tanta dificuldade de tantas coisas, eu comecei a me esforçar e dar tudo de mim para colaborar com aquele processo de trabalho. Fiz grandes amizades ali. A Luiza, a Sônia Maria, a Maria de Oliveira é muito minha amiga. Nunca mais a vi, acho que ela mudou de país, e a gente perdeu o contato. Eu ali trabalhando naquele local… Aquele local virou um departamento de integração social, que era a área do social dentro da prefeitura. Eles começaram a fazer um trabalho na época… Mais adiantado um pouquinho, mas foi nessa época, que na cidade de São Paulo tinha só seis creches. Seis creches. Acho que essas seis creches também não eram da prefeitura, eram conveniadas. Eles começaram a fazer um trabalho para… Tem um nome certo que não estou me lembrando. Que trabalhavam nessas creches... Tinha os treinamentos, e eu comecei a trabalhar, ajudar, fazer os treinamentos e tudo mais. Eles gostavam muito de mim, e viviam dizendo para mim que eu tinha que fazer… Eu já tinha me formado no normal. E diziam que eu tinha que fazer um curso superior, "você tem que fazer um curso superior", e ficavam no meu ouvido. Eu dizia, "gente, eu não tenho condições. O meu marido faz um curso superior. A gente não pode pagar, eu tenho uma filha", eu colocava um monte de empecilhos, e eles me estimulando, me estimulando. Eu tinha um colega que trabalhava comigo na parte administrativa, que estava tentando Medicina. Já era o terceiro ou quarto ano que ele prestava o vestibular e que não entrava na Medicina. Naquele ano, a minha chefe me chamou e falou, "você vai prestar o vestibular, você vai fazer um curso", "não vou fazer, não tenho como pagar. Já faz tanto tempo que não estudo, não vou passar, é um dinheiro jogado fora", "não, você vai passar, você tem que passar", aí veio a cobrança, "você vai lá e vai passar. Quem disse que você não vai?", "eu não vou poder pagar", e ela disse, "têm várias formas. Você pode conseguir bolsa assim e assim. Passa primeiro, e depois a gente vai ver o que você vai fazer. Se não der para ir adiante, você desiste, mas vai lá e passa". Lá fui eu e fiz a matrícula. Cheguei para trabalhar no último dia, e ela falou, "não, você não vai trabalhar, vai lá fazer a sua inscrição", "eu não tenho dinheiro". Aí já existia cheque (risos), nesse período já existia cheque. Ela fez um cheque para mim, "depois você me paga". Fui lá, e fiz uma inscrição na PUC. Era o primeiro vestibular unificado em que você podia fazer três opções. Eu fui fazer para estudar a noite, que tinha a escola de… Porque aí, eu decidi fazer Serviço Social. Eu amava ver aquilo que eu estava fazendo. Na PUC tinha Serviço Social só à noite. O pessoal debochava muito, falava que era… Como é que eles faziam? O pessoal da noite, eles nem consideravam parte da faculdade, para você ver como era a coisa. Mas eu fui fazer a noite. Comecei lá… Fui lá, fiz a inscrição. No dia de saber o resultado, eu comecei procurando lá embaixo, "não passei, não passei, não passei". Quando chegou na última parte, não olhei para cima, e disse, "não passei". Fui trabalhar. Cheguei lá e eles estavam fazendo festa, porque o Rubão tinha entrado na Medicina, e eu tinha entrado na PUC no Serviço Social. Eu falei, "não entrei, gente. Eu vim de lá agora, eu não passei, já vi a lista", "passou, a gente já viu, você passou". E foi uma festa, porque eu e o Rubão passamos. Entrei em uma outra odisseia, que era pagar a faculdade, porque aquela história de eu conseguir aquela bolsa, não deu certo. Não deu certo, porque eles mudaram a documentação… Como se fala? A norma. Eu não podia me candidatar, porque era funcionária e não sei o quê, e não podia me candidatar àquela coisa. Mas eu já tinha sentido o gosto do mel na boca e falei, "agora também, eu não vou deixar de estudar". Entrei em uma maratona que vou contar para vocês. Primeiro, que eu não falei para o meu marido que eu estava pagando a faculdade, porque ele era assim, "não compra isso a mais, se não dá para pagar. Não faz isso e não faz aquilo. Tem que guardar dinheiro para o dia que você ficar doente", o que não é o meu olhar, o meu olhar não é esse. Dinheiro tem que fazer parte da vida da gente para facilitar e fazer a gente mais feliz. Tem que guardar, mas não pensar desse jeito. Eu fui ao Montepio. O Montepio fazia empréstimos para funcionários. A gente pagava uma taxa bem pequena naquela época, não era empréstimo de banco. Eu fui lá e fiz um empréstimo. Eu ficava o ano inteiro… Eu ia pagando o Montepio. Quando chegava o outro ano… E eu ficava devendo a faculdade, porque isso saía depois e… Fui tirar um empréstimo para pagar aquilo que eu já devia. Para fazer uma prova, era uma maratona de ir falar com o reitor, para saber se podia, se não podia. "Tem que fazer não sei o quê", e ia lá pedir autorização, ficava devendo, ia lá pegar um empréstimo do Montepio, pagava aquilo que devia, e continuava devendo de novo no outro ano… Lá eu passei quatro anos nessa trajetória de como paguei a minha faculdade, mas terminei. Provei do doce, gostei do que estava fazendo, fiz bons trabalhos… A Luiza Erundina foi minha professora na faculdade, o que era o máximo. Ela é muito boa, essa mulher é fabulosa, sempre com aquele jeitinho. Tive excelentes professores lá nessa escola, só que o meu diploma não saiu pela PUC, porque nos últimos anos, a PUC fechou aquela escola de Serviço Social a noite, e ela só funcionava durante o dia. Eu não podia dar continuidade pela PUC, e quem começou a gerenciar aquele curso de Serviço Social à noite, foi a Faculdade Paulista de Serviço Social. Então, eu entrei pela PUC, fiz praticamente três anos pela PUC e me formei pela Faculdade de Serviço Social. Mas os professores eram os mesmos, não mudaram os professores, então eu me sinto contemplada, porque eu tive uma boa formação profissional, e tive uma boa experiência profissional com essas pessoas maravilhosas, com as quais eu trabalhei. Da mesma forma que não me lembro do nome de todas as pessoas… Eu estou vendo as pessoas assim… Eu não me lembro de todas lá do servidor, eu não estou me lembrando também de todo aquele pessoal da faculdade de Serviço Social, onde me formei. Têm essas coisas aí da minha vida. Nasceu a minha filha, e eu fui fazer um trabalho como orientadora social. Prestei um vestibular em um estádio cheio de candidatos, e consegui a vaga para ser orientadora social. Então, eu não entrei ali porque era funcionária da prefeitura, eu fui lá batalhar por aquela vaga, e fui ser orientadora social. Eu era orientadora social da prefeitura. Então, eu saí desse lugar de… Como falamos? Do administrativo, e fui ser orientadora social para aquelas poucas creches que tinham e que estavam sob orientação daquela secretaria. Eu sabia todo o processo, todo o trabalho e tudo mais, e fui ser orientadora social. O que aconteceu? Eu estava com a minha filha com nove anos… Nove meses. Eu queria uma vaga para ela na creche. Olha a ironia do destino, a gente cuidava das creches, a gente orientava os trabalhadores da creche a cuidar direito daquelas crianças e a fazerem tudo aquilo dentro de uma forma humanizada, de uma forma correta, e eu não pude colocar a minha filha em uma dessas creches, porque eu não estava dentro do critério, eu era uma profissional, eu não estava no padrão de necessidade para quem aquela creche foi criada e oferecida. Bom, então eu não pude usufruir daquilo que a gente tratava com tanto amor, eu não pude usufruir para a minha filha. As ironias do destino, eu ia lá, orientava, fazia um bom trabalho, supervisões e tal, mas não usufruía desse trabalho. Mais uma das ironias do destino e das ironias sociais que perpassam a minha vida. Sei lá agora o que vou falar. Você quer perguntar alguma coisa?
P/1 – Eu queria perguntar quando o empreendedorismo entrou na sua vida.
R – Bom, eu trabalhei na prefeitura e fui subindo de posto, prestando concursos. Então, eu entrei como administrativa. Eu prestei concurso como professora quando me formei. Fui trabalhar como professora nas periferias de São Paulo… Fui trabalhar lá no Jardim Ubirajara, lá perto da Pedreira, tão longe quanto. Não tinha carro naquela época, não tinha celular naquela época e eu fui trabalhar lá naquela lonjura. De novo eu convivendo com esses contrastes. A escola era municipal, tinha uma boa estrutura, tinha uma boa diretora, mas que era muito exigente, tinha que usar uniforme, tinha… Quando pegava os alunos ali na fila, em dias de frio, aquele pequenininhos tremendo, com o beiço roxo de frio, sem uma blusa de frio, porque não podia usar blusa de frio que não fosse da cor do uniforme. E aí, já comecei a movimentar as mães e as professoras lá. Começamos a arrecadar roupas, pedimos a permissão da direção da escola, fizemos roupas, e fizemos uniformes para aquela criançada que não tinha uniforme e que víamos daquele jeito (choro). Começamos a fazer alguns movimentos… A direitora não nos deixava fazer um monte de coisa, e já sabíamos… Eu era professora, mas já era assistente social, e a gente sabia dos direitos que os pais tinham na escola e que não era assim, "não pode isso e não pode aquilo". A gente sabia inclusive da importância da movimentação dos pais dentro das escolas. Eu comecei inclusive a fazer esse movimento com a direção e tudo mais. Teve toda essa movimentação naquela escola, e quando teve um remanejamento, eu consegui um remanejamento mais próximo. Nessa época, eu tinha também comprado um apartamento ali em Pinheiros, através desses programas sociais, que naquela época eram da prefeitura. Tinha todo um processo de inscrição e tudo mais. Comprei, e fui morar ali na Vila Madalena, naquele conjunto… Aliás, eu inverti um pouco as histórias. O tempo, depois a gente reconstrói, mas quando eu fui morar ali naquele local, na Vila Madalena, eu estava fazendo o último estágio de Serviço Social. Ali, eu fui pioneira. Tinha quatro ou cinco famílias que entraram ali, e ainda tinha o canteiro de obras no meio. Foram chegando mais moradores… Eu fui fazer estágio ali em Pinheiros, na administração regional de Pinheiros. O serviço social naquela época era descentralizado, e ali era perto de onde fui morar. Fiz um movimento com aquelas famílias que estavam ali. A gente fazia os domingos de recreio, eu dava artes para os pais junto com os filhos… Mas primeiro nós fizemos um movimento com a prefeitura, para a prefeitura limpar aquele espaço que era o canteiro, com aquele monte de entulho e de bicho. Eu movimentei aquele pessoal para nós fazermos isso, e eles fizeram um contrato com a prefeitura, ajudaram no trabalho e fizeram uma praça ali. Naquela praça, a gente começou a fazer esse movimento com aqueles mesmos moradores, a gente começou a utilizar aquele espaço como um espaço de… Começamos assim, como espaço de recreação, pais e filhos recreando juntos. Gente, pena que naquela época a gente não tinha essa facilidade de filmar e fotografar coisas. Porque quando você via aqueles pais mexendo com argila, cortando, fazendo colagem… Eles não faziam aquilo, eles nunca fizeram aquilo. Eles foram fazer aquilo… É uma emoção que não dá para explicar, eles fazendo aquilo com aqueles filhos, e eu não tenho isso documentado. Tem isso documentado na relação com aquelas pessoas que se lembram disso até hoje, e a gente fala disso tudo até hoje. Nós fizemos um movimento ali e arborizamos a praça. Esse movimento desse pessoal com quem fazíamos recreação aos finais de semana… A prefeitura colocou alguns brinquedos ali de rodas para as crianças. A gente fez um movimento de arborizar a praça. Conseguimos as mudinhas dentro daqueles cartuchinhos pretos desse tamanho. Conseguimos aquelas mudinhas pela prefeitura e fizemos o trabalho de arborizar a praça. Hoje aquela praça está linda, com aquelas árvores, com aquelas coisas maravilhosas (choro), e eu falo, eu tenho muita relação com a natureza, a natureza está em mim. Aquilo ali para mim, faz parte de mim, ainda tenho grandes amizades ali. Foi outro momento em que encerrei… Me formei, fiz o último ano e já estava construindo o meu espaço, estava trazendo essa coisa para o meu espaço, onde eu também estaria usufruindo. É o que eu falo, o que eu faço para mim, eu faço para mim, mas estamos em um coletivo, se auto ajudando e fazendo para todos. Eu não vejo essa coisa do "eu", eu ganhar, eu fazer. Me formei, e tinha uma boa… A administração gostava muito do meu trabalho, as minhas supervisoras, as assistentes sociais que eram minhas superiores ali, a gente se dava muito bem. Eu fiz um pedido de comissionamento para uma vaga que tinha ali de assistente social, porque estava formada e tudo mais. Esse processo ficou andando, e eu fiquei lá de voluntária, para garantir a minha vaga, porque a gente começou aquele trabalho e eu dei continuidade. Trabalhei por mais de um ano lá como voluntária, e o processo não andava. Um belo dia chegou uma pessoa lá e… Para ser comissionado, você precisa ser funcionário municipal, você não pode ser comissionado assim, chegou e foi ser. Para mim, aquela vaga era minha. Eu estava trabalhando como voluntária mesmo, não tinha ajuda de custo, nem nada. Eu continuei no meu trabalho que tinha de estagiária, continuei como profissional lá e fazendo um trabalho de profissional. E o que ocorreu? Um belo dia chegou uma profissional lá e assumiu a minha vaga. Eu fui atrás para descobrir, "ué, cadê o meu processo?", e meu processo estava arquivado. Fui atrás, e descobri que aquela pessoa foi contratada em uma função que não tinha nada a ver, ou seja, ela foi contratada para assumir um comissionamento, o que é ilegal também. Fui batalhar também pelos meus direitos para conseguir aquela vaga, mas não consegui, não consegui. Quem não tem padrinho, morre pagão. Mas também não faz parte de mim arranjar esses tipos de padrinhos, então eu perdi aquela vaga. Eu tinha prestado um concurso já, porque assim, eu me formei em 1974 e teve um concurso que prestei e passei, mas eles não chamavam ninguém, não chamavam ninguém e ficaram vários anos sem chamar. Falei, "vou esperar minha vaga no concurso", e fiquei esperando, esperando e tal. Um belo dia… Eu continuava como funcionária municipal, como administrativa, porque eu não era assistente social dentro da carreira. Bom, estavam precisando de profissionais, resolveram chamar e estabeleceram um critério para chamar… Isso é uma realidade, a gente sempre batalhou por isso, acho que deve ser assim, mas eu também sofri disso. Porque assim, as primeiras vagas nunca são escolhidas nas periferias. Eu ia escolher na periferia, porque eu estava trabalhando ali. Nessa época, eu já não estava morando aqui em Pinheiros, eu estava morando ali no Morumbi, no Jardim Taboão, perto do Morumbi. Lá para aquela região, eu estava sempre verificando. Eu sabia que iriam chamar, já fui ver, conversei e tal. Mas aí, eles fizeram um critério, de que as 100 primeiras vagas eram para ir para a Zona Leste. Gente, eu morava ali no Morumbi, ali no Jardim Taboão, perto do Portal do Morumbi. Para você ir para a Zona Leste… A vaga que me ofereceram era em São Miguel Paulista, no Pronto Socorro Municipal de São Miguel Paulista. Nessa época, eu já tinha carro, nessa época eu já dirigia, mas era longe demais. Tinha um outro detalhe, eu era professora concursada, e era concursada ali perto da minha casa, minha escolha foi perto da minha casa, na Vila Sônia, a cinco minutos da minha casa, de carro. Quando eu ia pedir demissão de um cargo para entrar em um outro cargo lá naquela lonjura? Eu falei, "são dois cargos técnicos, vou ficar com os dois até eu conseguir a minha remoção de lá", e passei a viver essa vida. Eu entrava em uma escola às sete da manhã, saía às onze horas, vinha para casa - ficava a cinco minutos da minha casa - via os filhos, e ia para São Miguel Paulista. É, eu estava pagando para trabalhar. Eu estava pagando para trabalhar, mas para garantir uma vaga que já fazia vários anos que eu estava aguardando e eles fizeram isso comigo. E aí, eu comecei também a me mexer e procurar como iria fazer. Aquele período que trabalhei em Pinheiros como assistente social, que fui voluntária, que fiz um monte de trabalho profissional com supervisão e gratuitamente para a prefeitura… Eu tinha tudo aquilo documentado, tudo aquilo em uma pasta. E aí, quando eu estava… Trabalhei vários meses lá em São Miguel Paulista. Eu me relacionava muito com as pessoas, criamos muitas coisas, conseguimos fazer muitas coisas ali, nos meses em que eu trabalhei. A chefia de lá ficou com pena de mim e me arranjou uma vaga ali no Hospital Tatuapé. Era um pouco mais perto, mas ainda era Zona Leste, ainda era muito confuso. Para eu não ficar pagando para trabalhar, eu não ia de carro. Eu ia de carro até Pinheiros, depois deixava o carro lá, pegava o ônibus até o Centro da cidade, ia de ônibus até o Centro, e do Centro até Tatuapé. Era muita coisa. À noite, eu pegava carona das ambulâncias (risos). Porque eu tinha que ter um horário em que entrava mais tarde, para dar tempo de chegar lá, e saía mais tarde. Eu saía mais tarde e pegava carona com as ambulâncias, porque eles sempre iam para o Hospital das Clínicas. Problema: eu tarde da noite nas ruas de Pinheiros. Eu colocava o carro na rua, e ia pegar o carro nessas horas. Quer dizer, os riscos que eu corria e tudo mais… Eu fui fazendo isso. Eu sabia que já tinha vaga, já tinha conversado com a diretoria, e nada deles conseguirem. Um dia eu resolvi fazer plantão lá na porta do secretário municipal de saúde. Eu nunca conseguia falar com ele, porque quando eu chegava, ele não tinha chegado. Eu esperava, ia comer alguma coisa, e ele já tinha chegado e já tinha saído. Outro dia… Sabe? Ele nunca estava a hora que eu ia, então resolvi fazer um plantão. Cheguei às seis da manhã e falei, "só saio daqui a hora que eu falar com ele", e fiquei. Não tomei um café, tomei água ali do bebedouro, passei o dia com água e com umas coisinhas que levei para comer e fiquei lá o dia inteiro, o dia inteirinho. Era um senhor, o doutor Mário Altenfelder, ele era bem idosinho. Quando foi, acho que umas seis horas da tarde, eu me levantei e fiquei bem perto da porta. Ele abriu a porta e olhou. Quando ele olhou, eu coloquei o pé, falei, "eu preciso falar com o senhor", entrei e falei com ele. Eu não tive uma boa… Assim, as pessoas que se sentem maiores, elas olham os outros de outro jeito. Quando eu falei que morava perto de Campo Limpo, que eu dava aula e ia para São Miguel Paulista, ele me perguntou onde que eu guardava o helicóptero. Ai! Aquilo lá me ferveu. Eu falei um monte de… Eu fui desaforada com ele, sabe? Fui desaforada com ele. Eu tinha a pastinha dos meus documentos na mão. Eu fui desaforada e disse para ele, "não, eu não tenho helicóptero. Eu faço um sacrifício, largo meus filhos, porque sei que tenho direitos e quero garantir os meus direitos". Naquela época, eles tinham medo da imprensa. Não podia falar na imprensa, que o povo morria de medo. E aí, eu fiz uma ameaça e falei, "olha, tem o posto de saúde assim e assim, é próximo da minha residência, eu estou bem classificada, não estou pedindo nada de… Tenho filhos pequenos, trabalhei, sou uma funcionária municipal, me doei para todas essas administrações, e só estou pedindo uma coisa que me é de direito, que é escolher um lugar próximo da minha casa. Agora, eu tenho aqui nessa pasta todo o período que eu trabalhei para administração regional de Pinheiros como profissional formada. Trabalhei de fato e de graça, porque fiz estágio e dei continuidade ao meu trabalho lá. Eu tenho tudo isso documentado aqui, e quero dizer para o senhor o seguinte: se o senhor não me der a oportunidade de pensar no meu caso, de estudar o meu caso, o que tem nessa pastinha aqui vai para a imprensa, porque acho que é o único recurso que tenho. Muito obrigada pela sua atenção e até logo", não esperei nem ele me despedir, eu me despedi, e saí. Fui tremendo, fui chorando, fui fazendo de tudo, fui para casa e tudo mais. Uma semana depois, foi publicada a minha remoção para a Região Sul, que era onde estavam aqueles postos que… Tinha três postos mais próximos lá, que qualquer um deles me servia. Eu fui, e naquela semana que fui, era dia de reunião de toda a equipe da Região Sul, de assistentes sociais. Uma assistente social lá, que se dizia e se sentia muito confortável com aquela posição dela de paulista da gema, paulistana da gema, e se vangloriava disso, era a supervisora geral. Ela me apresentou ao grupo dizendo que eu tinha caído de paraquedas ali. Ah! Eu aproveitei o momento para fazer um discurso e contar essa história que eu estou te contando. Ficou todo mundo olhando assim para mim, e ela fechou a boca. Eu comecei a trabalhar com as minhas amigas lá e tudo mais. É isso. De lá para cá, fui para aquele local e trabalhei muito naquela unidade. Teve um período lá que teve até uma eleição para a chefia do posto. Eu fiz uma dobradinha com um médico que era chefe, porque o pessoal queria que ele continuasse chefe. Eu ajudava muito lá nessa coisa do gerenciamento, porque eu conhecia muito isso, já que eu era do administrativo. Ele falou que só aceitava se eu fizesse a dobradinha com ele. Ele era muito aceito e eu também tinha um bom relacionamento com o pessoal. E aí, teve uma eleição com três chapas e nós vencemos. Eu fui ser a auxiliar de chefia dele, do doutor Ivo Tauber. Lá era uma periferia, mas era uma periferia próxima da minha casa, que tinha muita coisa muito louca, de muito sofrimento, muitas coisas, mas era a minha profissão, era aquilo que eu gostava de fazer. Eu fazia na área da saúde, o que eu gostava de fazer. Como assistente social, eu tinha um bom relacionamento com a população. O posto de saúde foi construído em um campo de futebol. Quando eu comecei a trabalhar lá, todo final de semana estavam todos os vidros quebrados, e a gente levava um tempo danado para fazer a limpeza da unidade para começar a trabalhar, porque no pedacinho do campo que sobrou, os futebolistas iam, ficavam bravos e quebravam tudo. Eu comecei a fazer uma… Nisso, eu não era da chefia ainda. Comecei a fazer um trabalho de conversar com eles, de conversar com os trabalhadores da unidade, de dizer a importância daquela unidade e tal. E aí, juntei a comunidade e começamos a fazer um trabalho comunitário de buscar um outro espaço para ser o campo deles, da gente reivindicar aquilo junto na prefeitura, e a gente foi fazendo isso. Eles começaram a colaborar com a gente e cuidar do posto de saúde. Aquele pessoal começou a cuidar do posto de saúde, e a gente não mais encontrava o posto depredado. O posto era cuidado e as pessoas que trabalhavam lá também eram cuidadas. No tempo em que fui da chefia ali… A comunidade era muito organizada, muito organizada. Eu não tinha muito trabalho para fazer essas coisas, porque dizia, "vamos fazer uma reunião?", chamava e… A gente começou a fazer um trabalho lá… Por exemplo, o leite era distribuído para as unidades de saúde. Vinha uma quantidade tão pouca, que o que eles faziam? Os primeiros que chegavam, levavam, e quem precisava de fato, não tinha chance. Nós começamos a fazer… Primeiro nós fizemos um trabalho com os profissionais, eu comecei a fazer uma discussão com os pediatras da unidade. Antes deles atenderem, fazer uma reunião com aquelas mães, conversar com elas, dar algumas orientações… Foi tão interessante, que as pediatras naquela época… Quando as mães falavam alguma coisa ali muito diferente, ela perguntava o que era aquilo, eu dizia para ela e, "nossa! Eu nunca imaginei que era isso", era uma informação importante que elas precisavam ter para o diagnóstico do tratamento, mas elas não sabiam o significado daquela palavra. Naquela relação, com aquela população, eles começaram a ter um vocabulário de entender melhor as pessoas. A partir daquilo, a gente discutiu entre os funcionários e os médicos, e fizemos um programa de utilizar aquele pouco leite que vinha, para usar com os desnutridos. A gente dava aquele pouco para as crianças desnutridas, para melhorar a… O posto funcionava como remédio, não como leite, mas como remédio. Então era um complemento para os desnutridos. Os pediatras tinham uma participação muito boa, os funcionários também, e a gente começou a fazer esse trabalho. Fomos desenvolvendo esse trabalho com os desnutridos e tudo mais, colocamos a população para pedir mais leite, e aumentar o consumo de leite… Na administração do Mário Covas, eles começaram a pedir… Eles queriam que ali não fosse só uma OBS para esses atendimentos, porque o hospital mais próximo que tinha para eles, era o Hospital Piratininga, que era ali… Como se chama aquele bairro? Perto de Itapecerica. Nossa, esqueci do nome do bairro. Eu tenho esse desconto de esquecer essas coisas, não é? Tinha esse hospital e era longe para eles. Eles iam para o pronto socorro ali, porque não tinham condições de ir… Era longe aquilo. Eles reivindicaram que ali fosse ser um hospital, que tivesse atendimento e que tivesse ambulância para o médico atender as necessidades deles como se fosse um pronto socorro. Na verdade, eles queriam que fosse um pronto socorro, que tivesse um serviço de pediatria, e aquele serviço de clínica que já tinha, mas que tivesse ambulância e que tivesse esse serviço de atendimento de urgência. Porque essas urgências eram colocadas dentro da ambulância e iam ser atendidas lá em Santo Amaro, que era o mais próximo para eles. Esse Hospital Piratininga era particular, eles atendiam pronto socorro, porque qualquer hospital é obrigado a atender. Então, eles estavam nesse movimento de organizar e pedir esse pronto socorro lá. Teve uma plenária grande, com o secretário e tudo mais, e ofereceram para eles uma coisa que se chamava PA (Pronto Atendimento). Ninguém sabia o que era isso, não tinha sido discutido isso com ninguém, foi um plano que surgiu para eles resolverem a coisa (risos), até mais ou menos parecido com o momento atual (risos). O que era esse PA? "Vamos discutir". Eu participava junto com a população nas discussões e tal. Nessa época, eu já era auxiliar de chefia. Fomos descobrir, estudar o que era isso, tiveram outras plenárias, e eles trouxeram o que seria estrutura do PA. Teria médico 24 horas por dia lá naquela estrutura mesmo, teriam ambulâncias ali paradas, e as urgências que chegassem, a ambulância pegaria e levaria para a unidade mais próxima que estivesse em serviço. Bom, atendia, não atendia? Não era aquilo que eles estavam querendo? Só que o PA não era bem isso, e tinha mais um problema. Um problema que eu disse que concordo, porque para as periferias é difícil encontrar profissional, e por isso me mandaram lá para São Miguel Paulista. Ninguém queria trabalhar lá naquela periferia. O nosso posto de saúde era cercado por várias favelas, o povo tinha medo de passar por ali, os médicos tinham medo de passar por ali. O que eles não sabiam, é que a população era muito organizada, tinha trabalhos muito bons na favela, a igreja era muito participativa, tinha outros grupos de movimentos sociais, e eles, nessa organização deles, participavam muito dessas coisas. Eles vieram para discutir o que era o PA, ofereceram isso, e teoricamente, era o que eles estavam querendo. Nós, que éramos profissionais, sabíamos que não era, mas não tínhamos força política para… Tanto discutia com os grupos organizados… Não era esse ou aquele grupo, eles tinham reuniões em que chamavam todo mundo. A gente ia lá, iam funcionários do peito, eu ia junto, tinha outros médicos que iam também participar das discussões com eles… Foi um processo muito organizado, mas o que veio na verdade, foi aquele PA, com médico 24 horas, e não tinha médico que quisesse ficar lá. Eles faziam dobradinhas, uns trabalhavam de dia e outros trabalhavam a noite, tinha período que ficava sem ninguém e era um problema danado para nós gerenciarmos… Eu comecei a ter pulso firme e as coisas foram tomando uma proporção. A gente tinha um bom relacionamento, os funcionários participavam e a população era organizada. E era organizada assim, não era um grupinho fechado, eles eram um grupo que… Aquele momento político, foi um momento que abriu… Que tinha todo mundo dentro do MDB, que todo mundo saiu do MDB e tinha vários grupos e tal?! (Risos). Todo mundo participava, então tinha vários olhares, várias pessoas, vários grupos da comunidade. Eles faziam discussão, convidavam a gente, eu ia, os funcionários iam e a gente foi caminhando dessa forma, melhorando a qualidade. Agora, era um bairro bem violento. Esse bairro, Jardim Macedônia, é entre Taboão da Serra e Itapecerica, lá quase caindo no mundo. Muita gente daqueles lugares lá, de Itapecerica e Taboão, não tinham atendimento e iam todos para lá. Era um atendimento muito grande e eu considero que o apoio e a participação daquela população… Tinha também o pessoal do movimento de direitos humanos que funcionava ali na Paróquia do Campo Limpo, tinha um bispo que era maravilhoso, umas freiras que faziam um trabalho muito bom naquelas comunidades ali, trabalhos que eu também participava fora do meu horário. Enfim, eu participava daqueles grupos com aquelas profissionais. Tinha umas irmãs que eram freiras, e a gente começou a fazer um trabalho de saúde dentro daquelas populações. Eu me lembro que na época, estavam começando a fazer aquele trabalho do soro, do sorinho, na região do Campo Limpo. Como é o nome? De orientar as próprias famílias a fazerem o soro. Estavam fazendo um trabalho já com as famílias dos desnutridos… A gente já tinha esse trabalho no posto, e juntamos os trabalhos… Os médicos começaram a trabalhar nos agendamentos, nessa relação. A gente começou a articular um trabalho que estava levando melhoria para população e eles estavam articulados com o trabalho. A gente tinha o suporte dos direitos humanos, que faziam aquele trabalho com o pessoal da igreja católica, e diversas igrejas, com o bispo, com aquele pessoal… Então, aquele pessoal que aprendia a fazer alimentação alternativa, aproveitamento de sobras…. A gente começou a fazer um trabalho assim, muito articulado lá. Nessa época, quem fazia atendimento para tratamento de tuberculose, quem fornecia medicamento, eram os postos de saúde do estado. O posto de saúde do estado, do município de São Paulo, mais próximo daquela comunidade, era lá no Jardim das Rosas, era longe. Uma pessoa que está com tuberculose, não tem disposição para andar aquela distância para buscar o remédio, e terminava abandonando. A gente fez essa articulação, e começou a fazer essas coisas juntos. Dentro dessas articulações, o movimento daquela população, começou a… Fugiu o que eu iria falar. Dentro dessas articulações… Começou a fazer um trabalho junto com a prefeitura de pedir uma verba para alimentar esse pessoal que estava fazendo tratamento de tuberculose. Esse era um movimento da comunidade, com a igreja, com os movimentos de comunidade de base da _______ [02:43:26] lá de Campo Limpo, que aquelas freiras faziam aquele trabalho no nosso pedaço… Eles conseguiram uma verba. Eu entrava de cabeça com eles, porque estava vendo o movimento deles, e entrava de cabeça. E aí, eu os ajudava a organizar aquele trabalho, as pessoas que precisavam participar de reuniões… Eles próprios faziam a relação de quem era quem, eles todos se conheciam, sabiam quem precisava e quem não precisava, tinha os dias certos de fazer isso, tinha os grupos na comunidade que cuidavam do seu pedaço para saber se tinha alguém mais necessitado e outro que estava recebendo que poderia articular para ter… Conseguiu-se essa verba, que naquela época, eles chamavam de "sacolão". Eu e os médicos daquela unidade, muitas vezes fomos para lá aos finais de semana, ajudar a separar sacolas para fazer sacolão... Todos os profissionais dali - eu falei "médicos", porque médico é mais difícil de ir em um final de semana para um espaço desse, fazer um trabalho comunitário desse, e eles faziam. Os outros funcionários também participavam e ajudavam. A gente arregaçava as mangas igual a eles, separava sacola, carregava, fazia e tal, a gente participava do grupo… Quando eles faziam as inscrições… Eles que faziam. Quando era a seleção, a gente participava, ajudando eles nessa discussão de quem entrava, porque os profissionais sabiam quem eram as famílias, então a gente tinha esse trabalho. Naquela época, foi um movimento, que vou te falar, está nas minhas entranhas, porque a gente fez um trabalho muito bom, muito bom mesmo. Hoje em dia, nós temos um grupo de assistentes sociais, em que a gente coloca como "Assistentes sociais da velha guarda". A gente se articulava muito com esses movimentos da comunidade para trazer benefícios para aquela população que estava… A gente dava a nossa contribuição técnica, e às vezes, a gente até arregaçava as mangas e puxava saco de batata mesmo (risos) para que a coisa acontecesse. Tenho grandes amizades desses locais. Desse local, não vou dar nomes também. Agora, sei quem são, porque são de um momento mais próximo, mas dali saíram vários políticos, políticos bons e saíram políticos maus, mas como essa comunidade era muito articulada… Tinha político ali, que nem era tão mau, em comparação com outros políticos, mas aquele grupo tinha seus critérios e não votaram nele. Entraram outros maus… Aquele, até poderia ser trabalhado para não cometer mais os erros que cometeu, mas foi desqualificado, não foi mais votado. Eu amava isso, porque eu não… Durante muito tempo, as pessoas me perguntavam, "você é desse partido?" e eu dizia, "não, sou uma profissional. Posso dizer para vocês com qual eu simpatizo, não tenho problema nenhum, mas eu não sou filiada. Eu simpatizo, porque é o que está mais próximo daquilo que acredito e que faço". Eu falava abertamente, isso me era perguntado por eles. Eu brincava que tinha todas as cores naquele nosso grupo lá. De certa forma, eles nem eram tão agressivos entre eles. Eles trabalhavam entre si de uma forma até bastante harmônica, por serem pessoas com caminhos e ideais políticos diferentes, eles eram até bastante harmônicos. Eu nunca precisei interferir, nem dar opinião, nem fazer nada nesse sentido, entendeu? Foi uma época muito bonita, que eu coloco como muito importante na minha vida. Bom, essa história da minha vida… A gente vendo os idosos desvalidos daquela época… Porque conseguir uma vaga em uma unidade de saúde… Quem tem força, vai lá uma, duas, três vezes, o idoso não vai. Ele só vai no dia em que vai ao pronto atendimento, passando mal, para ir para um hospital. Eu venho convivendo com isso desde aquela época. Eu me aposentei em 1995, participei da administração… Bom, participei de todas as administrações que passaram pela cidade. Eu entrei na prefeitura, e quem estava saindo, era o Faria Lima, olha só, o Faria Lima, ele era um excelente prefeito. Quem entrou depois dele? Paulo Salim Maluf, não vou comentar. De lá para cá… Então, estou te dizendo que passei por todas as administrações, mas em todas as administrações, tive esse meu modo de lidar, de fazer, de falar, de organizar e de dar informação correta, porque eu sempre fui efetiva, e para me mandar embora, precisava fazer um processo administrativo e provar que eu estava errada. Eu tinha certeza que os passos que eu dava, eram nossos, que ninguém poderia me mandar embora assim, do nada. Hoje em dia, a gente não pode falar mais isso (risos). Ai, meu Deus! Convenhamos. Eu tinha muito essa paixão, muitas das minhas colegas de trabalho tinham essa posição, e a gente fazia um trabalho muito harmônico. A gente tinha nossas reuniões técnicas, a gente discutia, uma ajudava a outra, a outra implementava um trabalho aqui, outra lá. Fizemos parte de todos os processos das campanhas de vacinação…. Da primeira campanha de vacinação, onde nós, os profissionais e assistentes sociais, dávamos um tremendo suporte. A gente coordenava, escolhia os lugares, fazia o contato com os locais, a gente garantia o fornecimento da vacina com todos os critérios para ela não perder a validade, todos os critérios técnicos de acordo com a vigilância sanitária, e a gente… Éramos nós que íamos. Eu atendi postos de saúde daquela época para vacinação, depois da terceira balsa. Você sabe o que é isso? Depois que você passou pela primeira, pela segunda, e pela terceira, se você andar mais um pouquinho, você cai do mundo (risos), porque é longe. Tinha populações indígenas… Era muito longe, para lá do Grajaú, para lá do que você possa imaginar. Eu que dava sustento, depois vim para uma outra região, para o lado dessa outra banda de cá da represa e tudo mais, mas também ia lá caindo o mundo. Naquela época, a violência era muito grande. Quando você estava fazendo esse trabalho… As polícias… Não sei se devo citar nome, mas as polícias daquela época… Você já sabe por quais administrações eu passei. Eles matavam as pessoas. Quando nós íamos fazer esse trabalho, encontrávamos duas ou três pessoas mortas no meio da estrada, e os policiais ali. Aquela região era muito perigosa, meus amigos e meus familiares não queriam que eu fosse para lá trabalhar, sabe? Era muito perigoso. As pessoas que a gente via mortas nessa época de campanha, eles viravam os corpos com os pés, sabe? Era o maior desrespeito com o ser humano. Naquela época, convivemos com tudo isso, vacinamos todo mundo, erradicamos doenças (choro) e fizemos tudo. Estar vendo esse SUS desse jeito, estar vendo a nossa população morrer desse jeito… Você me fez uma pergunta, e eu não me perdi dela, estou seguindo um passo nessa pergunta. É porque eu acredito nisso, eu acredito que o meu saber pode contribuir com a vida das demais pessoas. Participei de todo processo de discussão do SUS, mesmo antes, quando não tinha o nome de SUS. A gente participou de todo o processo, de toda a criação. Durante a administração da Luiza Erundina, uma administração muito boa, ela deixou a cidade organizada, e construiu hospitais para que o SUS funcionasse de acordo para que cada região tivesse um hospital, para que cada região tivesse um número de unidades de saúde. Eram feitas grandes assembléias com a população, e assim, "a gente tem dinheiro para construir tantas unidades", e a população escolhia os locais daquelas unidades, embora precisasse de muito mais, porque de acordo com o SUS, tem determinado número de população para ser atendido em uma unidade. Tinha determinados laboratórios de especialidades que tinham que ter naquela região, tinha que ter um hospital geral naquela região. Ela ficou, e construiu o hospital do Campo Limpo, que estava há várias administrações no papel. Vinha dinheiro para a construção, mas evaporava e não sabia para onde ia. A população se mobilizou, batalhou e participou da… E fez aquilo direito, como deveria ser. Deixou tudo preparado, deixou em construção o hospital do Campo Limpo, mas planejado para dar uma atenção com humanidade e de qualidade para aquela população. Tinha já um local escolhido para o hospital do M'Boi Mirim, que ficou também no papel por muito tempo, porque tinha as guerras dos partidos. O partido de um cara que tinha um terreno enorme, que queria vender para a prefeitura para selar, e já tinha aquele outro escolhido pela própria população. E aquele vinculado aquele vereador lá, entrou com uma ação. Na administração da prefeitura, ficou embargado, não pôde construir. Tiveram esses momentos na construção do hospital, mas desde o tempo da Luiza que tudo foi planejado e organizado. "Vamos construir na Zona Leste os hospitais que precisam para lá, os da Zona Sul...", tudo planejado para o SUS ter… Como o SUS deve funcionar? O SUS é para os pobres e para aqueles desvalidos? É um serviço sem qualidade? Não. O SUS deve ser um serviço que atenda à população da região, independente do seu poder aquisitivo, mas tem que dar um serviço de qualidade de saúde, o que ele está fazendo hoje. Com todo desrespeito, é o que ele está fazendo com o Coronavírus. Então, ele veio para o seu papel, e está mostrando, "eu vim para isso". Só que para isso, é preciso verba, é preciso respeito. Não pode cancelar verba do país e congelar não sei por quantos anos, não se dá essa resposta para a população. Então, diante dessa história que vivi e do que acredito de que não tenho que organizar para esse ou para aquele, para esse que é muito pobre ou para outro que é muito rico… Porque para quem está com problema, para quem tem uma dor para resolver, não importa o poder aquisitivo que tem. Ele tem aquela dor para resolver. Anota isso que estou falando, da dor do clientes que pode ser um cliente pobre que utiliza o serviço público de saúde, porque não tem verba suficiente para dar esse atendimento generalizado. Mas eu me aposentei em 1995, mudei para a Zona Norte, e na Zona Norte… Primeiro que assim, eu nunca tive na minha vida, um período em que eu não estivesse trabalhado. Eu trabalhei a minha vida inteira. Então, quando eu me aposentei, falei, "vou descansar, vou fazer tudo aquilo que queria fazer e não tinha feito". Comecei a estudar inglês, comecei a fazer aulas de dança, comecei a fazer atividade com as amigas, com os amigos, comecei a fazer um monte de coisa que eu não tinha como fazer, porque sempre trabalhei. Bom, só que isso para mim, foi por um tempo. Saía para dançar, fiz aulas de dança, saio até hoje… Não saio hoje porque estou no isolamento. Comecei a fazer essas coisas, mas depois de um tempo que você faz isso… Eu não estava mais morando na Zona Sul, estava morando aqui na Zona Norte, aqui nessa casa onde moro. Lá, muitas pessoas me ofereceram trabalho, mas pegar a marginal daqui para ir para lá, são três horas para ir e três horas para voltar. Isso é acabar com a vida e eu disse, "não vou aceitar". Mas à medida que comecei a me sentir insatisfeita de não produzir, eu disse, "vou fazer trabalho voluntário, vou ver umas organizações sociais aqui da região, vou estudar alguma e vou fazer um trabalho social". E aí, eu entrei na internet. Agora eu uso mais, antes eu usava muito pouco, mas comecei a pesquisar uma organização social. Eu vi uma organização social com a qual a gente tinha feito alguns trabalhos lá na Zona Sul, e eu gostava muito da postura e da proposta deles. "Pronto, vou fazer voluntariado para essa organização social". Eu estava no site deles, tinha um botãozinho dizendo, "trabalhe conosco", e eu cliquei lá. Estava havendo uma seleção de profissionais da minha área para um projeto, e era um projeto com idosos. E idosos sempre foram... Eu estudei muito, sempre fiz muitos cursos fora (não fora do país, pagos por mim, particulares), para entender e saber como é tudo aquilo. Eu tinha passado pela saúde pública já, fiz faculdade de saúde pública, e gosto muito de lidar com esse segmento da população, principalmente porque acho que são mais desvalidos. Eu cliquei lá, mandei o meu currículo, me chamaram, fiz uma entrevista, participei de um processo seletivo que já estava programado para a próxima semana, então dentro da mesma semana, já fiz tudo isso corrido, fui aprovada e fui participar de um projeto piloto dessa organização social, que era a ideia de… Eles tinham feito um projeto com uma verba do Santander. Aquela organização social tinha feito um projeto do Santander. Naquele momento, eles estavam fazendo um projeto piloto para trabalhar em parceria com a prefeitura com a ideia de, dando certo esse projeto piloto, ser implantado em todo o município. Esse projeto se chamou "Projeto Acompanhante de Idosos". Bem encaixadinho, veio de encomenda. A gente participou desse projeto desde o começo, discutindo com a prefeitura, discutindo com a saúde pública, discutindo com a área da saúde do idoso da prefeitura, discutindo com a organização social… Participamos de todo o projeto antes e de todo projeto depois. Implantamos em… Eram quatro projetos pilotos iniciais, não eram na cidade inteira. Eu fui para a Zona Norte participar desse projeto, e foi muito difícil, porque entrar nas unidades básicas de saúde, onde você não tem verba, onde você não tem nada… A gente tinha uma sala, uma mesa, umas poucas cadeiras, mas a sala não era grande, então nem cabiam muitas cadeiras, e uma maca. Para conversar e fazer reunião, a gente sentava na maca, para você ver o espaço que tínhamos ali dentro para desenvolver esse projeto piloto. Naquele período, a coisa estava muito complicada, muita falta de funcionários, e eu tinha uma equipe que eu tinha que treinar, tinha que discutir… Era uma equipe grande, de 16 pessoas. O posto vazio, sem ninguém para atender lá na frente… A chefe começou a pegar os meus acompanhantes que estavam em treinamento e colocou para atender, então foi um período de muito conflito, mas que conseguimos trabalhar. Hoje ela é muito amiga minha. Nós até desenvolvemos projetos lá dentro. Eu tive muita dificuldade para construir, mas enfim, a gente foi construindo, construindo e implantou o projeto. Um belo dia, eu descobri que essa médica que era chefe lá… Eu encontrei com ela em um baile da minha academia, porque eu fazia aula de dança, e ela também fazia aula de dança. Eu fazia aula de forró em um outro horário que não era o dela, mas ela também fazia aula de forró. A gente resolveu fazer um projeto com aquela unidade, para fazer atividades aeróbicas com os idosos… Tinha muitos idosos que tinham sua vida própria, que queriam entrar no programa… Mas a gente estava selecionando os que estavam em casa, que tinham três ou quatro idosos dentro de casa e eram eles próprios que se cuidavam, não tinham nenhum suporte… A gente estava selecionando, fazendo uma peneira de crítica da necessidade. Essas outras pessoas que eram idosos, que frequentavam os postos, que tinham um bom relacionamento com a chefia, queriam entrar no programa, e eu não podia dar vaga para eles no programa. Nós juntamos isso, "vamos dar atividades extra com eles. A gente ajuda, desloca funcionários nossos para ajudar nessas atividades, e a gente vai fazer com eles. Então, estamos fazendo um serviço preventivo com eles". A gente começou a desenvolver o que chamamos e tem o nome até hoje de aero forró. Não, não era aero forró… Tem um nome. Mas o primeiro nome foi aero forró mesmo. Começamos a dar os passos básicos de forró para aquelas pessoas, e enquanto isso, eles faziam atividades físicas. Fizemos isso em um espaço comunitário que cederam para nós, fazíamos também outro dia em uma pracinha que tinha na frente da unidade… Depois, começamos a fazer uma atividade de organizar o espaço da unidade, que vivia cheia de mato, e a gente começar a fazer uma horta comunitária, com plantas medicinais. Eu comecei a trazer pessoas, comecei a me integrar com outras secretarias que vieram, deram cursos, e deram estrutura para gente fazer a horta ali naquela comunidade. A gente foi crescendo, fazendo aquele trabalho, mas sem perder o foco do trabalho que a gente tinha que fazer, que era na casa dos idosos, que não tinham assistência e que precisam de assistência. Começaram a aparecer pessoas com poder aquisitivo para contratar um cuidador na sua casa, mas que não sabiam como fazer isso… Uma visão que eu e o grupo do qual eu participo tínhamos, é que a gente não é contra a casa de repouso. A gente acha que o idoso que se sente confortável para ir para uma casa de repouso, que lá ele dança, faz atividades, conversa com outras pessoas e está bem… Perfeito! Mas o idoso que não quer e vai pela contingência da necessidade familiar… Não fiz um trabalho científico para comprovar isso, mas a constatação era assim, na cara. Quando vinha alguém que precisava do cuidador… A minha equipe era muito boa. Eles se prontificavam a ajudar, a selecionar uma pessoa… A gente se propunha a fazer um plano de cuidado para aquele cuidador fazer. O que ele tinha que fazer todo dia para aquele idoso… A gente se prontificou a fazer isso, mas a gente não se prontificou a dar uma assistência direta. Assim, a gente vai a primeira vez, pode ser aqui no posto de saúde, usar o espaço vai do cuidador… Vocês escolhem e a gente vê o que tem mais afinidade com aquilo. A gente orienta, faz plano de cuidado… Nos primeiros 15 dias, a gente pode ir lá. Depois, podemos ir uma vez por mês, mas não podemos dar aquela assistência, porque é muita gente, e não temos pernas para fazer tudo isso. Bom, nos primeiros casos em que fizemos isso, na primeira semana, eles desistiram. A gente não voltou 15 dias depois lá, porque eles já tinham colocado em uma casa de repouso. Paciência, foi uma escolha e a gente fez o que pôde. Só que os nossos acompanhantes… Como eles terminavam sendo colocados nas casas de repouso… Tem um nome técnico, mas as pessoas não entendem, que é ILPI. Vou continuar falando, para designar a casa de repouso e designar também aquela palavra feia, asilo. Tem esse nome técnico que é ILPI (Instituição de longa permanência), mas vou falar "casa de repouso". Naquele período, o que ocorreu? Eles seguiam em uma situação muito desagradável, não conseguiam fazer. Os nossos cuidadores que circulavam na comunidade, iam na casa de um e de outro, de tempos em tempos diziam, "dona Elsa, lembra daquela idosa que nós começamos atendendo? Ela foi colocada em uma casa de repouso, entrou em depressão e morreu". Passava um outro tempo, "lembra daquele idoso? Foi colocado em uma casa de repouso, entrou em depressão, e morreu". Não foram poucos com quem aconteceu assim. Bom, isso era… Eu falei na dor do cliente, e essa era uma dor profunda minha, sabe? Porque quando eu penso nesse trabalho que projetei e que desenvolvo, penso com aquela visão de que todos têm esse direito, quem tem condições econômicas e quem não tem. E aí, naquele momento, eu estava vendo quem tinha condições econômicas, sofrendo de uma situação…. Isso também ficou muito marcado na minha vida. Eu marquei um grupo… Um grupo de profissionais da saúde, meus amigos mais íntimos e tal, e a gente começou a discutir a questão da finitude da cidade de São Paulo, estabelecendo essas relações: outros morrem a míngua, outros têm, mas também morrem (choro). Como é que é isso? O que é isso nessa cidade? A gente se reunia a cada 15 dias pelo… Como se chama? Era o único que eu sabia fazer. Que a gente faz online… Não lembro. Está me falhando muita coisa, posso lembrar na caminhada. Mas a gente usava a internet para fazer isso. Comecei a fazer isso com essas pessoas… Isso era no ano de 2012. Nesse ano de 2012… Eu tenho duas filhas que moram na Austrália, mas nessa época, eu tinha só uma, ela já morava lá há muitos anos, há mais de 20 anos, e ela nunca quis ter filhos, porque a dinâmica e rotina lá eram diferentes, e ela criada na minha rotina, onde tinha a mãe ali com os filhos… Ela não queria pôr o bebezinho dela em uma escolinha, em uma creche. Lá tem outro nome, mas vou dar esse nome. E lá, eles não têm muito tempo de afastamento. Ela sempre falou assim, "mãe, eu tenho que focar na minha vida profissional. No dia que eu quiser ter filho, a medicina está evoluindo, eu vou conseguir ter. Vou focar na minha vida profissional", e passaram todos esses anos, ela está lá há muito tempo. Há mais de 20 anos, ela já estava naquela época, em 2012. Mas eu sempre dizia para ela, "ah filha, se você quiser, eu vou passar uns tempos com você para ajudar". E aí, em uma das vindas delas aqui, naquele final de ano entre 2011 e 2012, ela veio e falou, "olha, o Felipe está querendo ter filho e eu acho que vou… Ainda está valendo aquilo?", e eu falei, "está valendo aquilo". Eu estava trabalhando, gostava do trabalho que estava fazendo, estava muito animada com ele, mas falei, "não, vou dar esse suporte para a minha filha", mas ela ainda não estava grávida. Passaram-se alguns meses, ela me liga e fala, "estou grávida". Eu me organizei no ano de 2012 para… Eu dei seis meses para a organização social onde eu trabalhava, para eles organizarem outro coordenador de equipe e tudo mais, e estabeleci um prazo em que eu sairia do trabalho. Fui, e fiquei vários anos, até bem pouco tempo… Ia para a Austrália, ficava lá um ano, voltava, porque eles não dão visto de… Eles me deram um visto de três anos, mas nesse visto de três anos, eu tinha que sair de lá, voltar para cá, depois voltar e ficar mais um ano, depois voltar, e eu fiquei fazendo isso. E aí, quando fui para lá, comecei a fazer essa discussão com esse pessoal, a gente desenvolveu pesquisa… Uma das nossas amigas foi para a Itália e fez pesquisa lá. Eu fiz pesquisa lá na Austrália. Outra amiga fez uma pesquisa na Espanha… foi na Espanha? Acho que foi. Em um dos períodos em que eu estava aqui, nessas idas e vindas, a gente fez uma reunião e fomos elaborar um documento a partir daquilo que a gente acreditava enquanto saúde pública, enquanto a questão da finitude na cidade de São Paulo… E quando a gente estava finalizando aquele trabalho, com essa nossa visão de valorizar a dignidade do idoso, valorizar a questão do idoso ter o seu direito de escolha, "eu quero" ou "não quero", valorizar a valorização do serviço… E quando eu falo de valorização, estamos falando do serviço prestado, do serviço que estou prestando para o idoso, mas daquele cuidador… Eu tinha as experiências deles já. Ele lá, naquela casa, fazendo aquele trabalho. Aqueles cuidadores, tinham uma equipe, tinha médico, sentavam e discutiam as questões do idoso, davam assistência, tinha enfermeira, tinha auxiliar de enfermagem. Então, para aquelas necessidades, a gente tinha uma equipe que dava sustentação para aqueles idosos. "E esses cuidadores de home care? Eles estão lá na ponta, sozinhos. Tem uma situação e eles não sabem o que fazer. Têm algumas questões, em que o idoso não verbaliza o que está sentindo, não sabe verbalizar e fica sentindo, só fala que está com um mal estar. A família também não sabe o que é, não detecta. Esse idoso passa um dia inteiro mal, uma noite inteira mal. No dia seguinte, fala que não está bem. O familiar fala que vai ao trabalho, vai dar uma organizada e volta aqui, para levá-lo ao médico…", poxa, já passaram mais de 36 horas, o problema já evoluiu. Quando chega lá, ou chega e morre, ou chega… Esqueci a palavra técnica, mas vem com uma patologia, às vezes vem e fica em uma cadeira de rodas. Quando a gente fala em saúde e qualidade de vida, quando discutimos tanto aquela coisa de o que pretendíamos com aquele idoso, de que ele tivesse uma finitude com qualidade… Fazendo essa discussão e vendo… Não estou desqualificando os home care, mas eles fazem serviços pontuais, e quando tem um cuidador, esse cuidador não tem essa… Com raras ressalvas, quando são casos paliativos, em que se tem uma equipe… São raros. A maioria é de idosos que estão naquele momento da vida, que às vezes esquece algumas coisas, que às vezes perde o equilíbrio, que às vezes pode cair da sua própria altura, e essa questão de cair da própria altura é um risco muito grande, porque gera… Quando ele cai da sua própria altura, ele faz uma fratura de fêmur, vai para o hospital, pega o risco de ser contaminado lá com outras doenças. Vem para casa, fica em uma cadeira de rodas… A qualidade de vida dele já está quebrada aí. Ser transferido de uma cadeira de rodas para uma cama e de uma cama para a cadeira de rodas é muito difícil, a família não consegue fazer isso com facilidade. Ele fica muito tempo na cama, desenvolve uma escara, vira uma ferida, e esta ferida é uma outra… Onde é que está a sua qualidade de vida? Ele foi para o hospital naquela época e desenvolveu um problema pneumológico. Está com aquele problema e fica muito deitado, então esse problema se agrava. Quer dizer, com tudo isso, acabou a qualidade de vida do idoso, acabou. Pensando nisso, eu resolvi… Eu convidei os meus amigos e só teve uma louca que aceitou, ela é médica sanitarista, mas tem vários… Ela é sanitarista, mas ao mesmo tempo fez saúde mental também, tem vários títulos dentro da medicina. Eu brinco com ela, que ela é mais assistente social do que médica, porque ela tem todas as preocupações. A gente convive, e a gente não precisa nem falar muito para saber o que está pensando a respeito daquilo. Eu trabalhei com essa mulher durante 30 anos, gente, então a gente tem uma relação muito forte. Inclusive, a primeira vez que a convidei para ser minha sócia, ela falou, "Elsa, eu não quero, não posso. Acredito nesse trabalho, mas não posso. Eu trabalho no estado e trabalho na prefeitura, e você sabe que cumpro meu horário, tanto no estado, quanto na prefeitura. Se eu pegar essa responsabilidade com você, alguma coisa vai ficar sem ser feita, e isso não quero para a minha vida nesse momento, então não vou aceitar", mas ela continuou no meu grupo, discutindo, me ajudando, pensando como é, como faço, como organizo. Aquele grupo continuou me dando suporte, mas com outros trabalhos, sem poder entrar no trabalho propriamente dito comigo. Eu estava ainda na formação. Nesse período em que minha filha teve o filho e tudo mais, eu já tinha decidido que iria abrir a empresa, já tinha a formatação da empresa com esse grupo, e fui buscar o Sebrae, porque eu falei, "não basta eu ter as questões técnicas de organização, eu tenho que saber as organizações de uma empresa". E aí, nesses períodos também em que eu estava aqui em São Paulo, comecei a frequentar grupos no Sebrae, fazer vários cursos lá… Tive assessoria técnica no Sebrae para organizar, para fazer o plano de negócios, e durante esse período em que eu estava fazendo o plano de negócios, eles estavam organizando um curso que nem era muito aberto. Agora, já está aberto, principalmente agora com a Covid, está até online. Mas era para pessoas que eram indicadas. Tinha uma psicóloga que fazia uma entrevista com a pessoa para ver se ela tinha mesmo esse foco, essa coisa de ser empreendedora e tal. Eu estava ali sendo assessorada no meu plano de negócios, e aquela pessoa que estava organizando esse curso, estava ali conversando com o técnico que estava me dando assessoria e eu escutando. Eu estava muito animada, "quero fazer esse curso" (risos). Quando eles terminaram, estavam me esperando e disseram para mim, "me desculpa, muito obrigado", eu falei, "eu quero fazer esse curso", "ai dona Elsa, mas esse curso é muito pesado. Esse curso tem hora para começar, mas não tem hora para terminar. Às vezes o pessoal rola a noite aqui, fazendo atividade do curso. Nesse curso, primeiro tem que passar por essa seleção, e depois, tem que estar aqui às oito horas da manhã, porque iniciamos às oito horas da manhã. Quem chegar às oito e dez ou oito e quinze, já está eliminado do curso. Isso é um dos critérios. Quem não fizer todas as atividades daquele dia… É um curso de uma semana só. Quem não fizer todas as atividades desse curso durante aquele dia, para chegar às oito horas da manhã com a atividade completa, também já está fora do curso, por isso que eles rolam a noite fazendo as atividades. É muito pesado para a senhora, acho que a senhora não deve fazer", e eu disse, "mas eu quero fazer", "dona Elsa, olha, eu vou discutir na equipe e depois dou um retorno para a senhora". Ela me deu um retorno, marcou a entrevista e eu passei na entrevista (risos). Fui fazer o danado do curso. Senti muitas vezes vontade de desistir, porque era muito cansativo, e era muito ágil. Naquela época, eu já tinha o que? 75 ou 76 anos, quer dizer, eu já não era mais tão ágil para fazer as coisas. Não entendia de tecnologia para usar o celular… Se eu te disser que fiquei um dia inteiro lá dentro do Sebrae, que eles tinham wi-fi lá dentro, eu com iPhone na mão, e eu não tinha wi-fi, porque não me liguei que podia pegar a senha deles e ter wi-fi? Para você ver como eu não tinha noção da tecnologia, nem noção de uma série de coisas lá. Mas esse curso foi muito bom para mim, muito bom. Sabe por que eu não desisti? Porque só tinha eu nessa idade. De resto, era uma molecada danada (risos).
P/1 – Era o Mil Mulheres esse curso?
R – Tinha mulheres, mas jovens.
P/1 – Era o Mil Mulheres?
R – Não, não era o Mil Mulheres. O Mil Mulheres é uma outra organização que eles convidam dos diversos cursos, que é uma outra atividade, onde eles têm reuniões e um monte de coisas lá, do qual eu também participei. Esse se chama Empretec. Era a primeira marca do Sebrae. Eu comecei, e te digo, sabe por que não desisti? Porque cada dia que eu chegava de manhã, com aqueles meninos, aqueles jovens… Não eram menininhos, eram jovens maduros, com seus 30 ou 35 anos, mas tinham metade da minha idade. Eles chegavam e falavam, "ah dona Elsa, que bom que a senhora está aí. Eu só vim hoje, porque sabia que a senhora estava aí" (risos). No dia seguinte, eu falava, "não vou mais, estou cansada demais", mas falei, "não, eu vou tirar o ânimo daquela turma, porque todos dias eles me falam isso, eu preciso ir". Teve um trabalho, nos últimos dois dias… A gente teve que montar um trabalho e fazer uma coisa mais concreta, mais… Era um trabalho em grupo. Ah, tem um lado interessante desse momento desse curso, que teve um momento que isso era individual, não era no coletivo, não era em grupo, e eu passei um dia inteirinho tentando ligar para as pessoas e não conseguia, porque eu não tinha wi-fi e o celular não funcionava (risos). Naquele dia, eu tinha que montar um projeto pequeno, curto, que eu tivesse que desenvolver, podia ser qualquer coisa. Eu fiquei pensando, "bom, lá no condomínio onde eu moro tem um bocado de gente que faz aqueles docinhos, aqueles bolinhos, aquelas coisinhas bonitinhas. Eu vou fazer uma venda… Vou montar uma empresa nessa linha", passei o dia tentando ligar para essas pessoas e não consegui, porque não tinha internet. Quando chegou no final do dia, uma sobrinha minha ligou para o meu telefone e eu consegui atender, porque era no telefone dela e a minha internet recebeu. Eu falei, "Li, pelo amor de Deus, você se lembra daquela moça que fazia aquelas obras de arte muito bonitas, que comprei, dei de presente e que era muito sua amiga? Eu preciso falar com ela hoje, agora, me arranja o telefone para eu falar com ela" (risos). Eu não consegui falar com a moça, mas pedi para a minha sobrinha, "me liga depois para saber se eu consegui falar com ela", porque eu tinha que sair de lá com um projeto feito, sabendo o que iria fazer, e precisava ter pelo menos o nome, e qual era a atividade daquele projeto. Não conseguia falar nada… Têm umas pessoas que fazem umas toalhas lindas, fazem umas coisas maravilhosas, e eu não consegui falar com essas pessoas aqui do condomínio. Mas estou te falando, Deus sempre me dá um "okay", a minha sobrinha me ligou naquela hora e me deu… Eu tentei, tentei, e não conseguia falar com a menina, porque a ligação caiu. Ela ligou para mim, mas a ligação caiu. Mas o que consegui perguntar para ela foi, "você tem algumas daquelas suas peças aí feitas para pronta entrega?", ela falou, "tenho", e eu disse, "olha, estou aqui, preciso desenvolver um projeto, quero desenvolver esse projeto com você, e preciso resolver hoje. Eu preciso dar nome para esse projeto, e quero um compromisso seu. Eu compro as suas obras. Se sentarmos juntas, podemos fazer um outro planejamento, mas se você não quiser, eu compro, porque preciso desenvolver o projeto, e quero desenvolver com aquelas suas obras de arte. Você pode ir na minha casa ainda hoje? Estou saindo daqui agora". Ela morava mais ou menos aqui perto da minha casa, na rua de cima. "Você pode ir a minha casa hoje para conversar sobre isso?", e ela falou, "posso, vou". Dei o endereço para ela. Eu montei o projeto que dei o nome de "Arte Dela", acho. Não podia sair de lá sem ter um projeto em mente e sem ter um nome do que se tratava. Coloquei a arte dela ali, fiz o enumerado, fixei no local… Os profissionais que faziam esse trabalho conosco, davam a tarefa, iam embora, e a gente ficava se matando até de madrugada para fazer. Eu escrevi o nome, as artes delas, as coisas que designavam o projeto, e fui embora, fui conversar com essa moça. Ela vendia pela internet também, e eu fiz um contrato com ela de assumir o compromisso dela não vender aquelas obras, porque aquelas obras seriam minhas… Não, ela poderia vender aquelas obras, mas através de mim, era o meu projeto, era minha venda, entendeu? De antemão, eu compraria, porque se ela não vendesse, as obras seriam minhas, eu iria vender depois. Mas eu tinha aquele número de obras que não tinha certeza se ela iria vender. Tinha mais três dias para terminar o trabalho e não existia essa certeza, então eu me comprometi de comprar as obras dela. E aí, o que fiz? Peguei as obras dela, e levei para o Sebrae. A gente tinha uma hora do café, e eu montei em uma mesa no espaço da hora do café a demonstração da arte dela. Não é que vendi todas as obras? (Risos). Vinha gente, o pessoal saía lá de baixo… Eu pus os preços, pus os valores, pus as coisas. Eu estava em aula e não podia atender, mas as pessoas se interessavam, me procuravam, tinham meu telefone, e eu consegui vender todas aquelas obras em um projeto que foi desenvolvido dessa forma, nesse desespero. Bom, depois disso, tinha o projeto que era em grupo. A gente vinha com esse grupo, e ficava até às 11 horas da noite no Sebrae, porque era o horário que ficava aberto, e depois, eles vinham aqui para minha casa, porque era mais ou menos perto do Sebrae. A gente ficava aqui até… Uma vez, era três e meia da manhã e o grupo estava saindo daqui, eu fui tomar um banho e fui deitar, para me levantar e estar às oito horas da manhã no Sebrae, para você ver como a coisa era. Os últimos dois dias, foram assim. O último dia foi o mais cansativo, falei, "não vou… Agora? Não é agora que tenho que desistir, eu vou", e fui. Foi muito bom, foi muito legal, foi um projeto que me deu muita clareza de muitas coisas. Foi um projeto que teve um momento que se falou muito das mídias sociais, da importância delas, e eu enlouqueci, porque "o que é isso? Como é isso?", e aí fui fazer curso de mídia social. Eu fiz curso de financeiro, fiz o curso do RH… Embora, eu como gerente de serviços, porque sempre trabalhei na prefeitura e em ações sociais, eu fazia tudo isso, gerenciava, mas tinha um suporte. Quando eu trabalhei na organização social, eu era treinada, era capacitada, tinha todos os papelicos, as coisas que tinha que fazer, o passo a passo de tudo, e tinha que gerenciar isso. Agora, eu fazer, em uma empresa minha, como vou gerenciar o financeiro de uma empresa se não tenho a mínima noção de contabilidade? Como vou gerenciar uma questão de divulgação dessa empresa se não tenho noção do que é Marketing Social? Como vou gerenciar o RH de uma empresa sem essa estrutura que sempre tive por trás, tanto na prefeitura quanto na organização social? Eu tive que fazer esses cursos, então tenho vários cursos. O pessoal que participava desses vários cursos, as mulheres desses vários cursos, participavam também do Mil Mulheres, daí que estive no Mil Mulheres, com essa minha participação. Mas assim, sou mais conhecida lá no Sebrae do que… Bom, comecei a desenvolver a empresa, e a questão do marketing estava muito na minha cabeça, "tenho que desenvolver o marketing, tenho que fazer um site, tenho que fazer isso". Antes de ir para a Austrália… Bom, e para fazer uma série de outras coisas, eu precisava… Todo mundo me pedia, "cadê o CNPJ?". Eu não pretendia abrir a empresa naquela época, mas para organizar a empresa, precisava do CNPJ. Contratei uma contabilidade e fiz o CNPJ. Mas eu continuei fazendo os cursos, fazendo as coisas. Quando fui para a Austrália essa outra vez, que já tinha esses cursos, já tinha esses planos de negócios e estava com tudo, eu falei com a minha sócia e já tinha uma equipe mínima para dar o suporte para fazer esse trabalho. Eu comentei com eles, "olha, vou ficar lá um ano inteiro, acho melhor dar uma parada agora, e quando voltar, a gente retornar", "ah não, a gente pode fazer online, vamos continuar caminhando", e começamos. Problema, a Austrália tem 13 horas de fuso horário de diferença - 13 ou 14 dependendo do período do ano. Quando é dia aqui, é noite lá. Para eu fazer essas reuniões com elas durante o dia, eu tinha que fazer a noite lá. Era um desconforto, porque eu estava lá e dormia no quarto do meu neto. Eu não podia fazer reunião no quarto do meu neto, porque ele levantava cedo e ia para a escola. Era uma atividade minha, eu era responsável para levá-lo e buscá-lo na escola, e a minha responsabilidade era também ensinar português para ele no período em que estivesse lá. O que eu fiz dentro dessa situação toda? Na sala não tinha muito como fazer, porque tinha uma escada que não tinha porta, e a escada já dava no quarto do casal. Eu iria ficar falando ali, e iria atrapalhar o sono deles. Eu fazia essas minhas reuniões sabe onde? Presa dentro do banheiro (risos). A gente continuou formatando, organizando, montamos um curso de treinamento de cuidadores, que foram presenciais. Eu não estava no dia desse curso, mas fiz um vídeo lá. Gozado como as pessoas… Aquele pessoal que fazia o curso comigo do Empretec… Quando eu fui para a Austrália, resolvi fazer uns cursos, falei, "ai, eu tenho um site e vou fazer uns vídeos para colocar no meu site". Levei um tempo danado para fazer o vídeo, porque eu escrevia… Eu esqueço, você vê que esqueço coisas, e nem sempre acho a palavra adequada para colocar. Eu ficava fazendo, "hum, hum, hum", e via que aquilo não dava certo. Fui montando em papeizinhos, colando na parede, montando papeizinhos… Eu ia memorizando aquelas papeizinhos, memorizando… Fiz um vídeo, acho que de seis minutos. Levei não sei quantos meses para fazer esse vídeo. Fiz esse vídeo nos parques que tem lá… Eu ia levar meu neto para a escola, voltava, amarrava meu iPhone nas árvores e gravava e desgravava. Levei um tempo e fiz um vídeo de quase seis minutos, de cinco minutos e alguma coisa. Mandei para esse meu amigo que trabalhava com isso e falei, "dá uma olhada nisso para mim", "nossa, que maravilha, mas vou te dar umas dicas. A roupa que a senhora pôs, não era… A senhora tinha que pôr uma roupa lisa, porque isso e aquilo. Não é ideal que se faça grandes vídeos, a senhora tem que fazer vídeos de um minuto, um minuto e um pouquinho… Eu sugiro que a senhora quebre esse vídeo em vários vídeos. Para cada vídeo, a senhora faz um começo e fim. Vou dando assistência, faz e manda para mim". Esse meu amigo fez isso assim, na faixa, na amizade, no carinho, e eu fui fazendo esses vídeos. Mas para aquele treinamento que já estava marcado e que eu estava armando o vídeo, e que tinha poucos dias para fazer, mandei aquele vídeo grande lá. Mandei não… Eu tinha mandado aquele vídeo grande para elas olharem o que eu podia mudar, o que poderia acrescentar ali. Mas no dia do treinamento, como eu não estava aqui… O treinamento foi de três dias presenciais. Eu fiz uma parceria com aquelas pessoas que eu estava convidando para o treinamento, porque o que eu achava? "Na hora que eu tiver o cliente, tenho que ter pessoas treinadas. Como eu vou pegar uma coisa sem treinamento, vou vender uma coisa e não vou entregar aquilo que estou vendendo?", então nós trabalhamos muito nesse treinamento naquele ano lá. Quando eles foram fazer o treinamento, teve essa dificuldade de eu não estar presente, não me consultaram e me apresentaram através daquele vídeo doido lá (risos), mas teve um bom efeito. Nesse treinamento, a gente teve pessoas importantes, eu tinha lá no programa Aompanhante de Idosos, na organização em que eu trabalhava, alguns casos de violência com os idosos que eram difíceis de se trabalhar, e eu pedi muita assessoria do advogado que tinha na sede da ONG. Ele agendava uns horários e eu ia discutir esses casos com ele, para ver como conduzir a questão daquelas violências, porque têm situações que são muito complicadas para você lidar. Principalmente porque assim, se o próprio idoso não concorda que é violência, não adianta você falar que é violência. Então, eu ia muito discutir essas coisas com ele. Esse advogado que também é um especialista que fez um curso fora, em algum local, o compromisso dele para fazer aquele curso, divulgar o trabalho dele… Ele ofereceu e veio… Fazia parte da gente cuidar da questão da violência com esses cuidadores, e ele veio dar esse treinamento. O único problema é que naquela época, ninguém gravou nada, ninguém fez nada, e não temos isso. Ele não nos cobrou nada também, e eu também não cobrei nada. Nós fizemos um roteiro, um planejamento muito bom… Isso tudo muito discutido, eu lá e elas aqui. Foi muito bem feito esse treinamento. E o contrato com o cuidador… Como eu não estava contratando eles para terem a obrigação de fazer o curso todos os dias… Me parece que eram cinco dias. No primeiro momento, não era nem uma live, porque a gente não tinha essa técnica, mas era uma coisa assim, acho que era naquela mesma técnica que eu usava para conversar com elas, e não me lembrei até agora o nome daquela coisa. Então, no primeiro momento, era online, e no último dia também. Mas os três dias de conteúdo, que eram para falar da empresa, da missão dela, dos valores, falar da questão da… A gente teve momentos distantes e teve os momentos que eram presenciais. O contrato que tive com essas pessoas foi, "vocês não vão pagar nada, mas eu vou dar um certificado para vocês". Nós treinamos naquele grupo 20 profissionais, bons profissionais, mas quando apareceu o primeiro cliente, nós não tínhamos profissionais treinados, porque com o nosso certificado, eles já arranjaram emprego e todos estavam trabalhando (risos). Para você ver. Mas valeu.
P/1 – Era um serviço bom.
R – Foi uma experiência, nossa… Valeu. Acho que de tudo, a gente tem que verificar o que tiramos de aprendizado daquilo. Nós fizemos outros treinamentos, fizemos outro treinamento presencial, onde fizemos até… Como pretendíamos fazer em menos dias e mais horas, demos café da manhã, demos lanche perto da hora do almoço, então fizemos uma estrutura melhor para eles, demos certificados… Fotografamos, mas fotografamos contra luz e ficou tudo escuro. Mas a gente tem, esse curso a gente tem… Eu estava presente aqui também.
P/1 – Dona Elsa, o tempo está ficando mais curto, e eu queria te perguntar uma coisinha, depois que você terminar essa.
R – Deixa só eu encerrar, vou ser rápida. Foi assim que a gente desenvolveu, que voltei da Austrália, e que fui ver mais essa coisa das mídias. Até hoje, não me ligo muito nisso, é muito difícil para mim, mas no último projeto que participei, eu percebi que tenho que mostrar a minha cara, que tenho que falar, que a alma do negócio sou eu, que tenho que ir, e estou quebrando esse gelo. Então, foi isso, o Sebrae foi muito importante para mim, fiz vários cursos, tive várias assessorias, técnicas de financeiro, jurídica, tudo, tudo, tudo que podiam eles me deram graciosamente. Eu tive assessoria online agendada, então o Sebrae realmente tem um trabalho… Espero que eles não desmontem o Sebrae, com toda estrutura e trabalho que eles têm, porque é de muito valia o trabalho que eles desenvolvem. Então, a minha história como empreendedora, nasceu aí, e a gente está desenvolvendo. Finalizando, quando conseguimos ter um número de clientes que… E eu estou bancando tudo isso com meu salário de aposentada, com o dinheirinho que eu tinha guardado e isso já se esvaiu, já acabou. Hoje, eu trabalho com cheque especial. Estou fazendo uma organização aí, estou cortando coisas para diminuir e espero que consiga isso rápido. Tenho uma boa relação comercial com dois grandes bancos, mas com a minha idade, preciso ter garantias. A garantia que tenho é meu apartamento e eu não vou dar meu apartamento como garantia. O que espero hoje é ter clientes com perfil, porque… Finalizando, qual o projeto na verdade? É ter um trabalho humanizado e personalizado, onde eu seleciono os cuidadores. Toda a responsabilidade administrativa do cuidador é sobre a responsabilidade da empresa. Onde tenho supervisores técnicos capacitados, porque para determinada necessidade do cliente, é preciso ser um profissional da enfermagem, técnico de enfermagem, para fazer os procedimentos da enfermagem. Eu tenho na minha equipe técnica, que é mínima e a gente trabalha demais, enfermeiras que dão essa supervisão técnica para esses cuidadores. Um dos nossos diferenciais era no primeiro dia levar esse cuidador na casa do cliente, apresentar para a família, mostrar para ele o plano de cuidado. Depois, a gente tem lá na casa do cliente um celular da empresa, que é contato do cuidador e da família com a empresa, com a supervisão deles. Então, a gente dá essa supervisão à distância. Esse é o lado humanizado do cuidador, e também é o lado da qualidade para o serviço. Anteriormente, a gente agendava uma visita presencial na casa do idoso, com o idoso e a família dele presentes, fazia uma avaliação do perfil do idoso e suas necessidades, avaliava riscos na casa, e depois também, a gente não ia. Só esporadicamente se houvesse necessidade, o supervisor ia até lá para dar um auxílio, mas não era um padrão de ir sempre. Quando conseguimos um número mínimo que sustentasse a empresa, veio a Covid, a família toda dentro de casa, e nós precisávamos cancelar, porque não dava para atender às normas técnicas com metrô lotado, ônibus lotado. Os cuidadores transitando, seriam vetores para aqueles idosos, que são de um segmento de risco. Então a gente parou, eu até parei e pensei, "vou acabar com isso, não vou mais continuar", mas continuamos discutindo, discutindo. A gente reestruturou, fez… Como que se fala? Não são roteiros... A forma de trabalho, para ter qualidade, para evitar a contaminação e tudo mais. Nós temos tudo isso certinho e o que esperamos é que consigamos fazer uma divulgação e ter os clientes rapidamente, não levar tantos anos como levamos, e perdemos com tanta rapidez esses nossos clientes. É isso, o que me moveu a ser empreendedora foi colocar o meu saber técnico e a minha experiência de vida a serviço de uma população que necessita desse serviço, com qualidade e humanizado. A gente percebe que quando faz esse trabalho humanizado, a relação da família fica melhor, porque o cuidador familiar é muito sobrecarregado, é muito cobrado pelos outros… Quando entramos na casa e fazemos esse movimento, começa uma relação. Os netos que não queriam mais visitar os avós, porque só eram rabugentos e só reclamavam, começam... A gente começa a fazer um movimento, e nosso projeto é esse, atender uma dor de um cliente idoso, atender uma dor de um cliente familiar, e atender a dor de um trabalhador lá na ponta. Eu me coloquei nessa idade para fazer isso, porque assim, eu tenho uma aposentadoria que a cada dia eles tiram um pedaço. Eu me aposentei em 95 e continuei trabalhando, mas desde que me aposentei, nunca mais tive um aumento salarial, cada vez vai achatando. Quando resolvi ser empreendedora, a prefeitura estava fazendo um movimento para começar a cobrar, porque hoje a gente paga INSS que não pagava antes, e é 20% que eles querem descontar. Eu falei, "gente, eu vou chegar em um tempo que não vou ter como me sustentar. Enquanto tiver condições de trabalhar, vou trabalhar. Com a minha idade de 75+, onde vou arranjar emprego?", esse foi um lado. Mas não é para ganhar dinheiro para ficar rica, porque meus filhos estão muito bem e não dependem de mim. Eu tenho essa ideia de… Eu tenho esse propósito de ajudar muitos ,e ao mesmo tempo me ajudar. Vou chegar lá aos meus 103 anos fazendo isso.
P/1 – E o que você achou desse projeto de registrar a história de mulheres empreendedoras?
R – Pois é, eu acho bastante interessante. Eu não falei de um espaço importante, de que o Sebrae me convidou… Eles me deram um curso, eu fiz um curso que é o HCor 60+. Eu participei desse projeto, indo aos grupos desse projeto e falando do meu projeto. Nesse meio tempo, ganhei o espaço do curso, onde também aprendi uma porção de coisas, dessas minhas necessidades que estou falando. Eu fiz o HCor, fiz o Empreenda Mulher, então tive vários momentos de cursos no Sebrae. Quando me cobraram… Mais família e muitos amigos, "você é doida, na sua idade, você tem seu salário, vai arranjar dor de cabeça, estamos em crise", eu falei, "eu tenho 70 e poucos anos. Você sabe quantas crises eu vivi de 64 até aqui? Eu passei por todas elas, acho que é mais uma crise. Essa foi bem porreta, mas está me ensinando bastante, que não acaba aqui e que a gente tem sempre uma forma de recriar e continuar". O que nos fez continuar foi o seguinte, bom, eu tinha um propósito muito lindo de sanar essa dor e tal. Agora, esses idosos todos que estão aí não precisam mais? Eu posso simplesmente me retirar? Nós levamos vários meses discutindo isso, a minha sócia e equipe, para decidir continuar e fazer nossos novos… Formatar o trabalho para essa nova caminhada, porque assim, eles continuam aí. Como podemos fazer isso? Hoje estamos fazendo online, fazemos a avaliação do idoso online, temos um momento pequeno com o cuidador de assinatura do contrato que é… A gente tem dentro do projeto… Como já fizemos alguns momentos que não documentamos. Mas temos um projeto de educação continuada… Estamos já com esse projeto… Nós queríamos colocar esse projeto agora no primeiro semestre, mas tivemos que… Estamos mais ou menos formatados e vamos desenvolver, porque é o que propomos, é o que vendemos para o cliente. Vendemos um serviço com qualidade, um serviço humanizado. Então, é isso. E personalizado, porque não somos Home Care, nós somos Mais Vida Servida Serviços Personal Care, porque o cuidador que escolho, precisa ter o perfil para atender aquele idoso do qual estudamos o perfil, então é personalizado o nosso trabalho. Isso é um diferencial, que nós não estamos ainda usando enquanto ganho, porque para gente entrar no trabalho, a gente está basicamente mais cobrindo as despesas do que tendo realmente um ganho nesse trabalho.
P/1 – E o que você achou de contar a sua história hoje?
R – Olha, achei bastante interessante, porque começa de mim lá pequenininha (choro). Me emociona muito lembrar da minha história, porque tenho uma história que guardo aqui com muito amor. Eu tenho profundo respeito aqueles que vieram antes de mim, aos meus ancestrais, aos meus familiares… Tenho um profundo respeito por eles. E hoje, estou assim… Quando iniciei o projeto, eu tinha mais agilidade e tudo mais, e hoje sinto que eu sou o meu projeto, e preciso falar quem eu sou.
P/1 – Muito obrigada, dona Elsa, foi um prazer ouvir a sua história de vida. Você fez tanta coisa. Foi incrível.
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