Feliz carro velho
Havia tempo que o meu cunhado garimpava na cidade um carro com o preço tão pequeno que lhe coubesse no bolso e ao mesmo tempo tão grande para carregar os seus sonhos. Novo, nem pensar. Seminovo, ainda não dava. Ford ou Chevrolet só muito velhos. Marcas muito caras. Então valiam Studebaker, Dodge, DeSoto, Skoda, Vanguard, Bedford, Packard, Austin, Prefect, Renault, Citroën, Peugeot. De preferência, perua ou furgão. Difícil encontrar em bom estado de lata e motor. Pintura original.
Um dia eu dei a notícia.
- Vi na frente de uma oficina mecânica um Austin 1949. Meio perua meio furgão, sei lá. Bonitinha. Verde. Tinha placa de vende-se no para-brisa. Entrei para ver. É do mecânico. Parece inteirona.
O preço estava dentro do orçamento. Sobrariam uns trocados para uma coisinha ou outra. Transferência. O primeiro tanque de gasolina.
Fomos à oficina. De fato, chamava a atenção. Conservado. Da minha idade, 13 anos. Contudo, tratando-se de um carro, já entrado nos anos.
O Ivo caiu na conversa do mecânico. Um pouco de pechincha. Fecharam negócio.
Dirigir, só bicicleta e carroça. Nunca havia estado na boleia de qualquer veículo automotor.
- Não seja por isso. Levo o senhor até em casa. No caminho eu lhe dou umas lições. É fácil. Qualquer um aprende ligeirinho.
Era sábado, perto da hora do almoço. O vendedor, feliz da vida, levou-nos para a casa do meu cunhado. Entre uma lição teórica e outra, um elogio ao auto. Estacionou na frente da moradia e se despediu.
- Foi um prazer. Parabéns pela compra. Felicidades. Não vai se arrepender. Qualquer coisa me procure. Até logo.
Enquanto o carro tomava um fôlego, almoço ligeiro temperado com ansiedade. Terminamos. Corremos para o carro. O Ivo aboletou-se ao volante. Eu tomei o lugar do carona.
Recapitulando as lições. Ponto morto. Gira a chave, os ponteirinhos se mexem. Um pouco mais e dá a partida. Não há de ver que funciona? Pegou de...
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Feliz carro velho
Havia tempo que o meu cunhado garimpava na cidade um carro com o preço tão pequeno que lhe coubesse no bolso e ao mesmo tempo tão grande para carregar os seus sonhos. Novo, nem pensar. Seminovo, ainda não dava. Ford ou Chevrolet só muito velhos. Marcas muito caras. Então valiam Studebaker, Dodge, DeSoto, Skoda, Vanguard, Bedford, Packard, Austin, Prefect, Renault, Citroën, Peugeot. De preferência, perua ou furgão. Difícil encontrar em bom estado de lata e motor. Pintura original.
Um dia eu dei a notícia.
- Vi na frente de uma oficina mecânica um Austin 1949. Meio perua meio furgão, sei lá. Bonitinha. Verde. Tinha placa de vende-se no para-brisa. Entrei para ver. É do mecânico. Parece inteirona.
O preço estava dentro do orçamento. Sobrariam uns trocados para uma coisinha ou outra. Transferência. O primeiro tanque de gasolina.
Fomos à oficina. De fato, chamava a atenção. Conservado. Da minha idade, 13 anos. Contudo, tratando-se de um carro, já entrado nos anos.
O Ivo caiu na conversa do mecânico. Um pouco de pechincha. Fecharam negócio.
Dirigir, só bicicleta e carroça. Nunca havia estado na boleia de qualquer veículo automotor.
- Não seja por isso. Levo o senhor até em casa. No caminho eu lhe dou umas lições. É fácil. Qualquer um aprende ligeirinho.
Era sábado, perto da hora do almoço. O vendedor, feliz da vida, levou-nos para a casa do meu cunhado. Entre uma lição teórica e outra, um elogio ao auto. Estacionou na frente da moradia e se despediu.
- Foi um prazer. Parabéns pela compra. Felicidades. Não vai se arrepender. Qualquer coisa me procure. Até logo.
Enquanto o carro tomava um fôlego, almoço ligeiro temperado com ansiedade. Terminamos. Corremos para o carro. O Ivo aboletou-se ao volante. Eu tomei o lugar do carona.
Recapitulando as lições. Ponto morto. Gira a chave, os ponteirinhos se mexem. Um pouco mais e dá a partida. Não há de ver que funciona? Pegou de primeira!
Carrinho de quatro marchas. O mecânico falou que no plano arrancava em segunda. Primeira, só no subidão. Então, engata a segunda. Pé direito no acelerador, apertando devagar. Vai tirando o esquerdo da embreagem. O motor morreu. Não foi desta vez. Tem que sincronizar. Aliviando o esquerdo, apertando o direito. Eu ao lado, atento. Nenhum de nós falava. Loucos para dar uma volta.
Uma tentativa atrás da outra. O carrinho não queria nada. Morria na arrancada. Uma vez ameaçou. Deu um salto para frente e morreu.
O vizinho compadre percebeu o movimento. Tinha sido motorista profissional. De ônibus. Sabia tudo. Achegou-se.
- Comprou este carro, compadre?
- Comprar eu comprei. Só não consigo fazer o danado andar.
- Assossegue. Vou lhe ensinar. Aprende já.
Passei para o bando de trás, o compadre assumiu o volante. O aprendiz no banco do carona.
Coisa fácil essa de guiar carro, pensei. Na mão do compadre foi uma beleza. O auto andou bonito. Não fez feio. Todas as lições revistas tim-tim por tim-tim. Agora vai ou racha.
O Ivo e o compadre trocaram de lugar. Continuei no banco de trás, prestando atenção.
Nova tentativa com as instruções fresquinhas na cabeça. Agora vai. O carro morreu de novo...
Finalmente despregou. Pulando igual cabrito. Volante girando à esquerda, à direita. Meia quadra em ziguezague. O compadre gritando. Eu me divertindo.
- Não se esqueça do freio, compadre!
Felizmente o motor morreu. Todos os postes, muros e cercas da rua de terra salvaram-se e agradeceram. Que suadouro!
- Para fazer parar, pise no freio e também na embreagem - ensinou o compadre, repetindo um capítulo da aula.
Novas investidas. O carro parecia touro na arena de rodeio. Corcoveava e não se ajeitava no rumo. Não dava trégua ao novo dono.
O compadre encerrou as lições do dia. Alegou compromisso. Estacionou o carro defronte a casa e se foi.
Meu cunhado se enfiou no jardim. Debruçado sobre o muro, com o olhar desanimado, contemplava timidamente o furgãozinho lá fora. Meus sobrinhos Vilmar e Vilson, lá pelos sete e oito anos, acomodaram-se no assento traseiro. Pelo menos podiam tirar uma casquinha, ainda que parados. Curioso, assumi o lugar do motorista. Pedi a chave só para dar uma ligadinha.
Bom de partida, o carrinho pegou sem reclame. Recordei em silêncio as lições. Só para ver como era, não tinha a intenção de tentar dirigir.
Engatei a segunda, conforme instruções do mecânico e do compadre. Destravei o freio de mão. Fui tirando o pé esquerdo da embreagem e afundando devagar o direito no acelerador. O carro foi arrancando sem pressa. Sentindo-me seguro, dei mais velocidade. Ia que ia. Os dois piazinhos no banco de trás vibravam num gozo pueril.
- Eita! O tio sabe guiar. Onde foi que aprendeu, tio?
- Não aprendi. Nasci sabendo – respondi todo prosa.
O Ivo surgiu correndo no retrovisor, tentando alcançar o veículo, que já entrava no loteamento deserto da Vila Schaffer. Logo percebi que ele tinha desistido da perseguição.
Ao voltar o encontramos estacado no caminho, à espera. Freei para lhe dar carona, mas esqueci de acionar a embreagem. O motor apagou. Dali em diante, não me esqueci mais. Contudo, para tirar a carteira de habilitação ainda precisei esperar vários anos, bem depois de atingir a maioridade e ter recursos para comprar meu próprio carro.
No domingo o compadre se ofereceu para ser motorista, caso a família quisesse dar um passeio. Aceitou de pronto. Combinaram para o início da tarde uma visita à tia Miloca e ao tio Jacob em Piraquara.
Eu e minha mãe aceitamos o convite para a estreia. Lotação completa e mais um pouco. Na frente, o Ivo e o compadre. Atrás, minha irmã, a comadre e a minha mãe. Minha sobrinha Rosana, ainda bebê, foi no colo da avó. No compartimento das bagagens, eu e os dois guris sentados em banquinhos de madeira. Na época não existia cinto de segurança, de modo que a criançada se acomodava como podia e onde dava.
Todo mundo feliz da vida para visitar a tia. O carrinho ia valente. Porém, ao deixar o asfalto e pegar a Estrada do Encanamento, ensaibrada e poeirenta, não gostou nada. Avançou pouco mais de meio quilômetro e parou. Embirrou feito burro brabo, na base do daqui não saio, daqui ninguém me tira.
O Ivo e o compadre desceram. Abriram o capô. Olharam aqui e ali. Verificaram os cabos de vela.
- Deve ser o carburador - disse o compadre.
De ferramenta só um alicate e uma pequena chave de fenda. Com elas o homem começou a fuçar, tomando cuidado para não sujar a camisa branca de domingo. Um tempão mexendo nas peças. Após várias tentativas, o motor resolveu dar sinal de vida. Pegou.
Dada a hora perdida na busca do defeito e também pela insegurança para seguir adiante, o passeio foi cancelado e voltamos frustrados para casa.
Com o tempo meu cunhado aprendeu a dirigir e tirou carteira. Não deu mais descanso ao furgãozinho. Cruzava a cidade, descia a serra rumo ao litoral pela Estrada da Graciosa. Nunca ficou na estrada. Na cidade, alguns sustos.
Numa noite de inverno, o carrinho cismou. Tarde e frio, o danado não pegava, empacado defronte a casa de uns parentes na Vila Parolin. O Ivo já conhecia alguns truques. Desta vez precisava colocar um pouco de gasolina no carburador. Eu e ele descemos. Minha irmã e as crianças ficaram abrigadas do frio dentro do carro.
O Ivo tirou o filtro de ar, despejou gasolina e me mandou entrar e dar a partida. Nem sinal. Despejou mais um pouco do inflamável. Girei a chave. Uma imensa labareda surgiu no carburador. Depressa ele tirou o paletó e o usou para abafar o fogo, evitando o incêndio. Na sequência, o motor pegou. Deve ter se assustado.
Em outra ocasião enguiçou na Marechal Floriano, perto do Asilo. Noite escura. Minha irmã e as crianças dentro, o Ivo novamente lidando no carburador.
Um caminhão velho, dirigido por um motorista inadvertido ou embriagado, bateu atrás. Felizmente estava devagar. Não houve vítimas e o mais incrível é que o único dano causado ao carro foi o amassamento das duas folhas da porta traseira. Nada nas laterais, que normalmente também deveriam sofrer com o impacto. Inexplicável.
Não foi possível recuperar as metades da porta. E não existiam novas nem usadas no comércio. A solução foi improvisar uma tampa basculante de madeira e uma cortina de plástico transparente, de enrolar, na parte superior. Foi-se o charme do carrinho.
Mesmo perdendo um pouco da originalidade, o furgãozinho ainda serviu durante bom tempo, até o dia em que um primo do Ivo apareceu com uma picape Austin 1951 preta e bege. Buzina de ar comprimido no teto da cabine e quebra-sol externo vermelho. Parecia miniatura de caminhão. Uma teteia. O visitante aceitou trocar mediante volta em dinheiro. Foram juntos ao banco sacar a quantia e fecharam negócio. Cada um entrou no seu novo carro, para seguir em direções opostas.
O ano findava na agonia festiva das duas últimas semanas. Os dois primos lembraram-se disso apenas quando já tinham dado partida nos respectivos veículos. Sorridentes, deixando a mão direita no volante e estendendo o braço esquerdo para fora, acenaram e gritaram um para o outro, quase ao mesmo tempo, os votos de feliz Natal e próspero Ano Novo. E de feliz carro velho...
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Na ilustração, o furgão Austin 1949, dono desta história, tomando um fôlego na Estrada da Graciosa, na época única ligação rodoviária entre Curitiba e o Litoral do estado.
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