Eu morava numa fazenda, a gente lavava o pé no rio, a minha mãe lavava roupa numa tábua, assim, no rio e eu tive nove irmãos. E eu, sendo uma das mais novas, não trabalhava na lavoura como eles. Eu ia, às vezes, quando queria, apanhar café e cortar cana. Mas quando eu queria, eles me poupavam sempre. Meu irmão Zezinho, quando nasceu, foi uma coisa de louco, eu era um pouco mais velha e quando me contaram que o meu irmão ia nascer, eu fiquei muito P da vida, porque eu sabia que eu ia perder o colo e \\\\\\\\\\\\\\\"perder\\\\\\\\\\\\\\\"a mãe. E, naquela época, as mulheres, quando tinham filhos, ficavam uma semana no quarto, com a criança, que era pra não pegar um tal de Mal de Sete Dias. Eu sinto até agora o gemido da minha mãe, porque o quarto tinha uma parede que dividia os quartos. E eu fiquei ouvindo os gemidos da minha mãe, eu xinguei muito meu irmão, sabe, porque estava provocando aquilo, porque estava vindo. E daí, quando eu vi toda aquela dor da minha mãe, todo aquele gemer, eu falei: “Nunca mais vou xingá-lo, falar um monte de coisa feia pra ele. Eu só vou chamá-lo de Menino Jesus”. E daí, quando ele nasceu, que eu demorei sete dias pra vê-lo, quando ele me foi apresentado, ele já estava com os traços meio negros. Daí eu me livrei da incumbência de chamá-lo de Menino Jesus, porque ele era negro. Porque a sociedade não nos ensinou a existência de um Deus sem raça e sem cor.
Eu me lembro que a minha mãe, quando ia pentear o meu cabelo pra ir pra escola, puxava, trançava e falava: “Você não pode ir desarrumada na escola”. Tinha um excesso de cuidado, com um certo medo do outro, mas um certo dia eu falei pra minha mãe que a Janete que era filha do fazendeiro ia desarrumada, eis que minha mãe respondeu: \\\\\\\\\\\\\\\"Mas ela é branca!\\\\\\\\\\\\\\\" Por exemplo eu era a melhor atriz na escola e em todo lugar que eu ia, eu sempre era a melhor. Eu tinha para mim o dever de ser melhor. E íam passar uma peça lá...
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Eu morava numa fazenda, a gente lavava o pé no rio, a minha mãe lavava roupa numa tábua, assim, no rio e eu tive nove irmãos. E eu, sendo uma das mais novas, não trabalhava na lavoura como eles. Eu ia, às vezes, quando queria, apanhar café e cortar cana. Mas quando eu queria, eles me poupavam sempre. Meu irmão Zezinho, quando nasceu, foi uma coisa de louco, eu era um pouco mais velha e quando me contaram que o meu irmão ia nascer, eu fiquei muito P da vida, porque eu sabia que eu ia perder o colo e \\\\\\\\\\\\\\\"perder\\\\\\\\\\\\\\\"a mãe. E, naquela época, as mulheres, quando tinham filhos, ficavam uma semana no quarto, com a criança, que era pra não pegar um tal de Mal de Sete Dias. Eu sinto até agora o gemido da minha mãe, porque o quarto tinha uma parede que dividia os quartos. E eu fiquei ouvindo os gemidos da minha mãe, eu xinguei muito meu irmão, sabe, porque estava provocando aquilo, porque estava vindo. E daí, quando eu vi toda aquela dor da minha mãe, todo aquele gemer, eu falei: “Nunca mais vou xingá-lo, falar um monte de coisa feia pra ele. Eu só vou chamá-lo de Menino Jesus”. E daí, quando ele nasceu, que eu demorei sete dias pra vê-lo, quando ele me foi apresentado, ele já estava com os traços meio negros. Daí eu me livrei da incumbência de chamá-lo de Menino Jesus, porque ele era negro. Porque a sociedade não nos ensinou a existência de um Deus sem raça e sem cor.
Eu me lembro que a minha mãe, quando ia pentear o meu cabelo pra ir pra escola, puxava, trançava e falava: “Você não pode ir desarrumada na escola”. Tinha um excesso de cuidado, com um certo medo do outro, mas um certo dia eu falei pra minha mãe que a Janete que era filha do fazendeiro ia desarrumada, eis que minha mãe respondeu: \\\\\\\\\\\\\\\"Mas ela é branca!\\\\\\\\\\\\\\\" Por exemplo eu era a melhor atriz na escola e em todo lugar que eu ia, eu sempre era a melhor. Eu tinha para mim o dever de ser melhor. E íam passar uma peça lá do Chapeuzinho Vermelho e eu era a melhor atriz, mas a professora me explicou: “Você não pode, porque a Chapeuzinho Vermelho é branca e você é negra”. E eu fiquei meio triste, mas eu concordei, era negra mesmo, não entendia muito essa coisa da cor... Falando de cor, de vermelho, achava tão lindo e charmoso, eu morria de vontade de comer maçã, e eu tinha uma caneta que naquele tempo era uma caneta famosa, que era do meu irmão. Mas a maçã era tão linda, que eu troquei a caneta do meu irmão pela maçã. Troquei com uma menina branca, porque a maçã me parecia muito chique. Com a caneta eu poderia ter escrito alguma, mas ela ficou com a menina, já a maçã, eu fiquei guardando, guardando, guardando, e ela apodreceu.
No primeiro ano que eu ia na escola eu já fazia versinhos, afinal minha mãe cantava repente. A gente, à noite, sentava na cozinha, minha mãe fazia uma fogueira, assim, de carvão, porque era chão de terra e a gente cantava repente. O que era repente? Cada um cantava um versinho e depois vinha uma parte que repetia. Assim comecei a escrever. Da minha casa pra escola dava 1 hora a pé, no caminho ia inventando versos, quando eu chegava em casa e lembrava, botava no papel. Eu escrevi o meu primeiro livro, o Terceiro Filho, em 1979, por causa de uma professora, eu tinha colocado um verso na mesa dela e fiquei naquela ansiedade, querendo que ela lesse o meu versinho, eu era adolescente, querendo chamar atenção e, como todos os negros fazem no jeito de chamar atenção: rindo, brincando ou brigando e batendo. Esse é apenas um jeito pra chamar atenção sobre si. E eu queria atenção para o meu poema. E ela se levantou, meu poema caiu, ela saiu, o poema grudou no salto do sapato dela e foi embora. Meu poema foi junto no sapato. Daí eu me disse: “Eu vou escrever um livro” pra desengasgar isso tudo. Veio o Terceiro Filho e ela foi a minha primeira convidada para o lançamento do livro.
Eu e meu esposo tínhamos um Fusquinha, então nós vendemos o Fusca e pagamos pra fazer o livro, numa cidadezinha que tem aqui, se chama Jaú, pagamos uma editora que se chama Editora Jalovi e fizemos o meu livro. E eu me lembro que o livro chegou quase na hora do lançamento. Então, nós ficamos sentados lá fora, eu, meu marido e minhas duas crianças, doidos, esperando, esperando e chegou, nós fomos diretos pro lançamento. Nós vendemos o Fusquinha pelo livro, olha o tamanho do nosso empreendimento! Eu já tinha dois filhos biológicos, e dois filhos lindos, daí então veio o Terceiro Filho, que é o livro, né? E foi meu primeiro trabalho. Depois veio lá por 1990 que eu lancei A Cor da Ternura, que daí foi muito bom, né? Com o qual eu ganhei o Jabuti, fui pra Alemanha, falar sobre ele. Suíça, vários lugares. Esse é um livro autobiográfico. No conto \\\\\\\\\\\\\\\"Momento Cristalino\\\\\\\\\\\\\\\" que foi o dia da minha formatura como professora. Nós viemos a pé, da fazenda pra cidade. Os meus irmãos trocaram, quem tinha dois sapatos emprestava pro outro, camisa, nos ajeitamos em casa, viemos todos e a formatura, aquela coisa linda. Daí, quando me chamaram pra receber o certificado, minha família ficou toda em pé me aplaudindo quase meia hora! Nem ligaram pra quem estava ali, menina, foi a coisa mais linda do mundo, não paravam de me aplaudir! Quando chegamos em casa o meu pai tirou o sapato e a gente foi ver, tinha uma bolha no pé dele, ele tinha colocado o sapato sem meia. Daí minha mãe falou pra nós: “Olha, venha ver o que esse homem fez”. Nós olhamos, aquela bolha, e ele disse que faria tudo aquilo novamente. Quando chegou a hora de dormir, ele estava indo pra cama, ele começou a procurar alguma coisa e eu falei: “Pai, o que o senhor está procurando?” Ele falou: “Eu estou procurando o danado do diploma, que eu quero dormir com ele debaixo do travesseiro, que é pra sonhar sonho bonito.
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