Memória Lello 70 Anos
Entrevista de Ronald Kapaz
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, 4 de setembro de 2023
Entrevista LELLO_HV006
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:18) P/1 – Ronald, obrigado por você estar aqui!
R – Imagina! É um prazer!
(00:22) P/1 – Me fala uma coisa, só pra registrar: qual seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Ronald Kapaz, nascimento em São Paulo, [em] 16 de novembro de 1956.
(00:35) P/1 – E você nasceu em hospital, casa, como é que foi?
R – Na Avenida Paulista. Mais paulistano é impossível! Aprovado.
(00:43) P/1 – E a sua mãe e seu pai te falaram como é que foi o dia que você nasceu, a gestação?
R – Não. Não tenho nenhuma história sobre isso, curiosamente.
(00:54) P/1 – E você tem irmãos, ou não?
R – Tenho. Tenho um irmão um ano e meio mais velho e uma irmã mais nova, um ano e meio.
(01:00) P/1 – Quer dizer que você está no meio?
R – Estou.
(01:03) P/1 – E quem são eles? O seu irmão mais velho.
R – Meu irmão é Emerson Kapaz, o mais velho e minha irmã, Sylvane Kapaz, a mais nova.
(01:09) P/1 – Entendi. Vamos falar um pouquinho deles depois, mas me fala um pouquinho, primeiro, do seu pai - quem ele é, a família dele, enfim.
R – Bom, meu pai é Eliano Kapaz, filho de imigrantes sírios, de Homs. Meu avô veio da Síria no momento em que tinha esse movimento de imigração. Conheceu a minha avó no navio, através de amigos comuns; se casaram quando chegaram aqui.
Meu avô abriu um negócio, como todos os sírios, na 25 de Março, ligado a tecido. E meu pai, muito cedo, queria fazer uma história dele, tinha um espírito empreendedor, então, naquele momento, vendo a chegada de uma matéria-prima nova, estranhíssima, chamada plástico, ele achou que isso teria futuro e decidiu, com dezesseis anos, fazer um investimento pessoal. Não sei nem como ele arrumou dinheiro,...
Continuar leituraMemória Lello 70 Anos
Entrevista de Ronald Kapaz
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, 4 de setembro de 2023
Entrevista LELLO_HV006
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:18) P/1 – Ronald, obrigado por você estar aqui!
R – Imagina! É um prazer!
(00:22) P/1 – Me fala uma coisa, só pra registrar: qual seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Ronald Kapaz, nascimento em São Paulo, [em] 16 de novembro de 1956.
(00:35) P/1 – E você nasceu em hospital, casa, como é que foi?
R – Na Avenida Paulista. Mais paulistano é impossível! Aprovado.
(00:43) P/1 – E a sua mãe e seu pai te falaram como é que foi o dia que você nasceu, a gestação?
R – Não. Não tenho nenhuma história sobre isso, curiosamente.
(00:54) P/1 – E você tem irmãos, ou não?
R – Tenho. Tenho um irmão um ano e meio mais velho e uma irmã mais nova, um ano e meio.
(01:00) P/1 – Quer dizer que você está no meio?
R – Estou.
(01:03) P/1 – E quem são eles? O seu irmão mais velho.
R – Meu irmão é Emerson Kapaz, o mais velho e minha irmã, Sylvane Kapaz, a mais nova.
(01:09) P/1 – Entendi. Vamos falar um pouquinho deles depois, mas me fala um pouquinho, primeiro, do seu pai - quem ele é, a família dele, enfim.
R – Bom, meu pai é Eliano Kapaz, filho de imigrantes sírios, de Homs. Meu avô veio da Síria no momento em que tinha esse movimento de imigração. Conheceu a minha avó no navio, através de amigos comuns; se casaram quando chegaram aqui.
Meu avô abriu um negócio, como todos os sírios, na 25 de Março, ligado a tecido. E meu pai, muito cedo, queria fazer uma história dele, tinha um espírito empreendedor, então, naquele momento, vendo a chegada de uma matéria-prima nova, estranhíssima, chamada plástico, ele achou que isso teria futuro e decidiu, com dezesseis anos, fazer um investimento pessoal. Não sei nem como ele arrumou dinheiro, mas comprou uma pequena injetora de plástico e começou a fazer pente, tentando descobrir as possibilidades dessa matéria-prima. Isso gerou uma indústria de plásticos que existe até hoje, tem sessenta e poucos anos, chamada Elka - as iniciais do nome dele, Eliano Kapaz - que começou a fazer utilidades domésticas, depois foi pra brinquedos e hoje é exclusivamente de brinquedos. Está na minha família ainda; os primos hoje, a segunda geração, é que ‘tocam’ lá, com a minha irmã.
(02:41) P/1 – E a sua mãe, o nome dela, a família dela.
R – Minha mãe Claudete Latur Kapaz, também de origem síria. A família dela acho que não veio tão cedo pra cá, é mais distante a imigração. Eu conheço pouco o lado da família da minha mãe, porque meu avô paterno morreu muito cedo, tanto que meu pai conheceu minha mãe no velório do meu avô, em Santos. Ela morava em Santos, na época, mas eram de São José do Rio Preto e minha mãe tinha dezoito anos. Meu pai teve amor à primeira vista e se casaram logo em seguida. Minha mãe, logo em seguida, engravidou, então ela era mãe muito jovem.
(03:20) P/1 – Eles se conheceram no velório. Por que ela estava no velório?
R – Primos comuns, acho que devia ter uma relação de parentesco ali. A cidade de Campos acho que era um ponto da colônia, de alguma forma. Por coincidência da vida, eles se conheceram numa situação não tão boa e eu brinco até que minha mãe trocou o pai que faleceu pelo meu pai, que teve até uma postura bem cuidadora dela o resto da vida.
(03:50) P/1 – E logo, então, eles se conheceram, já se casaram e tiveram o seu irmão?
R - ... O meu irmão, isso.
(03:55) P/1 – Entendi. E nisso eles já moravam em São Paulo?
R – Já.
(03:59) P/1 – Em que bairro eles moravam?
R – Em Santana, na Rua Voluntários da Pátria.
(04:05) P/1 – Quando você nasceu a primeira casa sua foi essa?
R – Acho que foi.
(04:10) P/1 – Certo. Mas as primeiras lembranças que você tem não são dela?
R – Eu não tenho muitas lembranças de infância. A única que eu tenho é dessa casa, que era um sobrado, no segundo andar. Foi um dia que ‘virou lenda’ na família porque eu, brincando na varanda, que tinha grade, enfiei a cabeça e fiquei com a orelha presa. Comecei a chorar e os vizinhos foram chamar minha mãe, avisando que eu estava na varanda, com a orelha presa. Tiveram que fazer um movimento pra me tirar de lá. (risos) Essa é a memória que ficou.
(04:38) P/1 – Você tinha o quê? Uns quatro...
R – Eu devia ter quatro, cinco anos.
(04:41) P/1 – Entendi. E você lembra mais, então, de que casa da sua infância?
R – Eu lembro mais de um apartamento e depois a gente se mudou pra Rua Treze de Maio, já na Bela Vista, que foi já uma casa um pouco mais estruturada e tal. Eu estudava em um colégio lá perto, ia a pé, então já tinha... Essa cidade ainda permitia que crianças pudessem ir a pé pra escola. Era um colégio que ficava na [Avenida] Brigadeiro Luís Antônio, ou próximo [a ela], [chamado] Maria Imaculada Conceição, que tinha até uma igreja lá. Esse apartamento é o que eu me lembro com mais clareza, de infância.
(05:28) P/1 – Fala um pouquinho mais, então, como era o bairro nessa época.
R - Bom, a Treze de Maio era uma rua que estava próxima a um grande magazine, que hoje é o Shopping Paulista, mas que era a Sears Roebuck. Era um tipo de comércio que chegava dos Estados Unidos no Brasil. Tinha uma lanchonete, que era nosso ponto de atração maior de adolescentes, a gente brincava muito na rua.
Eu me lembro que tinha uma casa próxima, que era a casa do bispo. Não sei que bispo era esse, mas era uma casa que ficava a duas quadras de lá. A gente, enquanto moleques, pulava o muro da casa, porque tinha uma jabuticabeira e ia roubar jabuticaba na casa do bispo.
Brincávamos de bicicleta na rua, tinha um terreno vazio, a cidade ainda não era tão cheia e a gente tinha essa infância, naquele momento, de muita brincadeira de rua, ou na garagem do prédio. O prédio tinha uma garagem grande e os vizinhos que eram crianças também, amigos, desciam, brincavam, faziam ‘mil e umas’ lá, ia descobrindo a vida de um jeito muito menos digital. (risos)
(06:39) P/1 – E o que vocês gostavam de brincar mais, além das brincadeiras que você falou, nessa época?
R – Ali, na época, tinha brincadeiras dessas, de criança… Jogos de futebol. Tinha um primo que morava ali perto também e tinha uma casa bacana, primo de amizade. A gente ia jogar futebol, muito, na garagem da casa dele, foi se formando um grupo. Meu pai era sócio do Club Homs, que é um clube da comunidade síria, que até hoje está na Avenida Paulista e eu, a partir de então, comecei a frequentá-lo. Foi onde eu cresci, do ponto de vista de socialização: encontrar pessoas, fazer esportes, tudo que tinha de esporte, ir lá e fazer amigos. Eu jogava, joguei vôlei muitos anos, mas fiz de tudo, natação. A gente ia pra lá depois da escola, ficava até o fim do dia fazendo tudo que podia ser feito lá; tinha professores e uma área bem importante, que acho que até hoje é importante lá, que era um salão de jogo de snooker.
Aprendi a jogar snooker. Via todos os grandes talentos brasileiros jogando lá, que era o Carne Frita, o Boca Murcha, esses nomes engraçados de caras que, quando tinha um campeonato, você via, o cara ‘pá’, ‘matava as bolas’; era impressionante a destreza. E no salão ao lado tinha os senhores velhos, árabes, que ficavam jogando taule, que era o jogo de gamão, daquele jeito que se joga batendo, fazendo barulho. São memórias que me vêm desse momento.
Eu cresci entre a rua e o Club Homs, fazendo bastante coisa lá e usando bastante a infraestrutura, porque dava pra ir a pé também, era perto, relativamente. É isso.
(08:23) P/1 – Em que altura da Treze de Maio você morava?
R – Eu morava a uma quadra da... Era em frente ao clube alemão que tem lá; não sei se existe mais, mas era uma casarona que era um clube alemão. A travessa à direita já dava, se fosse pegá-la à direita, na Brigadeiro com a [Rua] São Carlos do Pinhal - aliás, era [na] São Carlos do Pinhal. Eu já ia por ali, chegava até o Club Homs, que era na Paulista, um pouco depois da Brigadeiro.
Esse trajeto tem aquele prédio, até hoje, que tem uma galeria. Eu cruzava pela galeria desse prédio grande, meio modernista e saía em frente ao clube.
Meu avô morava, na época, o pai do meu pai, na Avenida Paulista com a Brigadeiro, na esquina, num prédio que está até hoje lá, ao lado... Acho que tem um McDonald’s, mas era um posto de gasolina de onde, na janela, eu via o motorista de bonde chegar, parar o bonde na Paulista e descer com um ferrão, mudar o trilho na mão, pra descer a Brigadeiro de bonde. (risos) Essa é outra memória engraçada.
(09:25) P/1 – Conte um pouquinho como era a rotina da sua casa, nessa época da sua infância. Seu pai, sua mãe… Como era? Vocês acordavam e aí?
R – Meu pai trabalhava 24 por sete, tinha essa coisa da indústria dele, era totalmente focado, era a vida dele. Minha mãe cuidava da gente; não tinha formação, foi até o primeiro grau só, meu pai também e minha mãe era do lar, até porque meu pai, muito sírio, muito conservador, não admitia que a mulher, naquela época, trabalhasse, porque seria uma sinalização de que o homem não consegue cuidar. Ela queria, tinha alta energia, muita vontade de fazer coisas, mas acabou cuidando da gente nessa de leva, traz, cuida, dá bronca, faz lição. Todo acompanhamento era feito por ela, mais.
Meu pai chegava no fim do dia. Gostava de sentar na cadeira dele, ler o jornal dele, o Estadão, todo dia e ver televisão, o Jornal Nacional. Acho que não era o Jornal Nacional, mas era o jornal da noite, equivalente. Isso até ele morrer, essa era a rotina dele. Meu pai era muito sistemático, super.
(10:37) P/1 – E vocês, como ela cuidava? Acordava todo mundo e fazia tudo junto?
R – É. Acordava, tomava café e fazia lição de manhã, porque a gente ia pra escola de tarde, cada filho estava em um momento. A gente ia andando, ou às vezes ela levava a gente, no começo e depois, de tarde, era brincar. Não tinha muito... Ou ir pra rua, encontrar os amigos na garagem, ou ir pro clube, pra fazer alguma atividade de piscina, física, jogo etc.
(11:09) P/1 - E isso era de noite, geralmente?
R – É. No clube a gente ia mais à noite, mais pro fim do dia; ficava a noite inteira lá e voltava de noite. Eu tinha um jeito de brincar pessoal, que era pegar pedaços de coisas, sobras, lâmpadas, válvulas etc e ficar montando coisas engraçadas, tentar combinar esses negócios. Fui fazendo isso, então minha atividade de criança, de brincar, era inventar umas geringonças e ficar combinando coisas, que depois acabou virando parte da minha profissão. (risos)
(11:45) P/1 – Mas como é que você fazia isso? Você ia na rua e olhava?
R – Não. Sobravam coisas em casa, queimava uma válvula da televisão, tinha um fio… Eu ia juntando, brincando, combinando e fazendo carrinho, coisas que vinham na cabeça, bem de imaginação mesmo. Eu gostava de... Tinha um componente de solidão nisso, de ficar muito sozinho; gostar de ficar sozinho e de me entreter com esse tipo de exploração de possibilidades.
(12:16) P/1 – E teve algum brinquedo desse que você lembra mais, que você fez?
R – Teve um que eu fiz uma vez, que é engraçado, não sei porque esse marcou. Estava em Santos, aliás, porque meu avô tinha um apartamento em Santos também. A gente passava muitas férias em Santos, de frente para o Posto Três, no Gonzaga. No apartamento do meu avô tinha o irmão dele, que tinha um apartamento de frente e a gente ficava com a porta sempre aberta, no mesmo andar, e tinha os primos do meu pai, que eram um pouco mais velhos. A gente brincava junto, então tinha também toda uma proximidade e amigos mais velhos.
Eu sempre me relacionei, quando era pequeno, com pessoas de mais idade que eu. Mesmo no clube, quando estava nesse Club Homs, as pessoas com quem eu mais estava eram formadas já: tinha um arquiteto, um físico. Foi aí, escutando esse arquiteto e vendo como ele trabalhava, que me interessei por fazer Arquitetura, que virou a minha formação, mas não minha profissão.
Eu sempre me relacionei com pessoas mais velhas. Esses primos do meu pai também eram e lá eu lembro de ter feito um brinquedo, que era ter juntado dois fios, amarrei na parede e no chão, tinha uma coisa que parecia um carrinho, aí eu juntei uma ponta do fio com uma pilha nele, botei uma lâmpada num fio e outro e quando eu chutava o carrinho, ele descia, encostava e acendia. Isso aí era assim: “Nossa, o negócio desce, pega e acende a luz”. (risos)
(13:37) P/1 – Você tinha quantos anos, nessa época?
R – Devia ter uns oito, nove, ou dez, uma coisa assim.
(13:48) P/1 – Eu queria te perguntar como era você com seus irmãos, nessa época? O seu irmão tinha... você tinha oito, ele tinha dez e sua irmã tinha seis, é isso?
R – É isso. Bom, meu irmão era um ano e meio mais velho só, mas ele já tinha outro tipo de amigos. Tinha entrado na adolescência mais cedo, saía com os amigos dele. Eu era o do meio, então meu irmão era sempre paparicado por ser o mais velho; minha irmã era a mais nova, caçula, paparicada; e eu era aquele que ficava - o que acabou sendo bom pra mim – com menos atenção, menos responsabilidades e meio solto pra fazer o que eu queria; eu gostava de ficar inventando minhas coisas.
O meu irmão eu acompanhei, sempre tentava segui-lo, do ponto de vista que o irmão mais velho é sempre uma referência, mas ele estava sempre em um outro momento da vida, não gostava que o pequeno ficasse junto, sempre [dizia]: “Ah, vai”. Minha irmã vivia… Como ela era a única irmã e a gente tinha uma cumplicidade, ela olhava de longe, ficava tentando criar cizânia entre nós, briga, falar: “Você o está copiando, faz tudo que ele faz”. Tinha essas coisas, de irmãos pequenos. Mas eu acho que ele foi fazendo o caminho dele e eu meio que fui descobrindo o meu.
(15:06) P/1 – E você estudou... Qual foi a primeira escola em que você estudou?
R – Meu pai era rotariano. Quando a gente saiu dessa escola de bairro, lá na Bela Vista, como o Rotary tem uma escola, que é o Colégio Rio Branco, aí a gente foi, todos, pro Colégio Rio Branco. Foi lá que eu fiz desde o quinto ano primário - na época tinha quinto ano - até entrar na faculdade. E naquele momento estava chegando a tal da Matemática Moderna, que era o x, que era quadradinho, qual o valor do quadradinho; tinha uma história toda engraçada sobre como se ensinava matemática. O colégio que eu fazia, que era de padres, não era muito bom, então tive que fazer uma prova de admissão, que era o tal do quinto ano, pra ver se você ia direto pro primeiro científico, ou fazia um quinto ano. Tirei zero em praticamente tudo, porque eram coisas que eu nunca tinha visto, principalmente matemática, aí tive que fazer o quinto ano e a partir daí, acho que pela vergonha de ter ido muito mal, eu sempre terminava o ano antes, porque o Rio Branco tinha um tipo de avaliação durante provas durante o ano; se você fosse bem em todas as provas, não precisava fazer a prova final e já entrava em férias em novembro. Eu, a partir de então, entrava em férias sempre em novembro e fiz meu curso inteiro sempre indo superbem. (risos)
(16:32) P/1 – Vou voltar numa coisa que eu esqueci de perguntar: vocês assistiam TV, tinham...
R – Tínhamos televisão. Meu pai tinha comprado a primeira televisão que tinha chegado, ainda era uma novidade. Depois ele comprou a primeira televisão em cores, vinha vários vizinhos assistir, mas eu lembro da época que a televisão ainda era em branco e preto - punha aquele acetato na frente, como se fosse um arco-íris, só pra fingir que tinha cor. Vocês nem lembram disso, mas teve momentos engraçados na história da televisão. (risos) Via desenho, Capitão Sete, no canal sete, que era um canal bem famoso, na época. Tinha o Vigilante Rodoviário, a Lassie. Série de TV, assistia muito O Túnel do Tempo. Uma outra série, que era o Thunderbird, que eram esses bonequinhos marionetes que mexiam a boca, que era futurista. E assistia muito um desenho, também, que até marcou a minha história, da Hanna Barbera; dois cientistas, um chamava Clyde e o outro Crashcup. Um era alto, tinha bigodinho e falava tudo e o outro pequenininho, não falava nada, só cochichava no ouvido do outro, você nunca sabia o que ele estava falando pro outro. E esse altão, quando eles tinham problema, tirava um lápis do bolso, desenhava no ar, assim, uma bicicleta e a pegava, na hora, depois que desenhava e saía pedalando.
Disso depois eu lembrei, que marcou a minha ideia do porquê eu fui virar designer: essa magia de você ter um lápis; você desenha uma necessidade, dá uma forma a ela, ela se transforma em realidade e você sai usando-a em seguida.
(18:14) P/1 – E vocês assistiam futebol também?
R – Futebol, não muito. Eu não era muito ligado em futebol, nunca fui. Assistia Pelé, obviamente; na época eu era santista, porque ser santista era quase ser torcedor do Pelé, tanto que quando o Pelé parou de jogar eu também parei de me interessar por futebol, só assisto Copa do Mundo, não acompanho muito.
Acabei, por conta do clube que eu frequentava, que tinha lá um... Chamaram, uma época, um técnico japonês pra treinar um time de vôlei, que nem era uma modalidade que estava muito em moda, mas estava começando a aparecer e aí me interessei. Acabei ficando alto, começamos a treinar fortemente. Esse cara montou um baita de um time lá, a gente disputava campeonato paulista e eu acabei jogando campeonatos com todos os grandes jogadores de vôlei, que depois viraram a Geração de Prata, que ganhou pela primeira vez a Olimpíada, com Bernard, Montanaro, Xandó e nomes que foram o início da geração de vôlei brasileira, da formação.
Tinha, no momento, uma época um programa do governo que chamava Adote um Atleta e o Montanaro era um ‘Adote’, um menino pequeno. Chegava lá, jogava com a gente, contra a gente, porque ele jogava no São Bernardo, que era um clube superqualificado; na época tinha o Moreno, que era um grande jogador, inspiração de todo mundo. A gente foi disputando campeonato, conhecendo todos esses caras, frequentando, então eu acabei indo mais pro vôlei e até hoje assisto muito mais vôlei do que futebol.
(19:55) P/1 – E vocês ouviam música em casa, também? Tinham rádio?
R – Não. Minha família não era muito de música. Eu, curiosamente, fui depois me interessar pela música, mas na minha infância não tinha muito essa presença de música. Meu pai, muito raramente, botava umas músicas árabes pra tocar, uma coisa de uma memória que nem era dele, engraçado, mas ele falava árabe com o pai superbem e devia ter uma matriz de referência cultural síria.
(20:24) P/1 – Vocês iam em algum culto religioso, igreja?
R – Não. Meu pai acabou virando, por importância na comunidade, presidente do Club Homs, depois foi diretor da catedral ortodoxa. Ele tinha esse papel social na comunidade, muito de representação; ele era bem articulado, então foi assumindo esses lugares todos sem ser um católico praticante. Não ia à missa, não tinha nada disso.
Eu não sou religioso, apesar de que se falava que nós éramos católicos apostólicos ortodoxos, porque é a religião oficial síria, mas nunca isso entrou na gente, do ponto de vista de ser uma referência.
(21:07) P/1 – Você falou de tantas atividades. Você teve uma infância e adolescência com muita coisa, muito cheia.
R – É, bastantes coisas. Em poucos lugares, mas cheia de atividades. Brincava muito na rua.
Lembro da gente, quando era festa junina, época de São João, ir à loja e comprar bombinha. Tinha um terreno vazio, aí a gente punha bombinha embaixo de uma lata de extrato de tomate pra fazer foguete; deixava estourar e via aonde a bombinha ia. E eram brincadeiras super... Hoje fala: “Nossa, que brincadeira mais boba!” Mas eram coisas que, pra nós, tinham uma magia. Tinha toda essa exploração de riscos, até: bombas etc.
Tem uma história curiosa da minha família, que era assim: a gente adorava rojão, festa junina. Meu pai achava que era perigoso, não devia. A gente: “Queria soltar rojão”, meu pai: “Não, não, não, não”, até que um dia ele falou: “Tá bom, eu vou comprar um rojão, mas eu vou soltar. Vocês ficam todos atrás de mim, olhando”. Acho que isso era em Santos, até. Ele foi lá na frente, soltou o rojão; deu um xabu, a faísca saiu, veio no olho do meu irmão, que quase o cegou. (risos) Aí meu pai falou: “Está vendo? Falei que não era pra comprar!” Deu uma bronca em todo mundo. Meu irmão chorando, todo mundo foi embora. (risos) Tragédia familiar.
(22:32) P/1 – Falando em Santos, como era Santos, na época? A viagem pra ir, o trajeto?
R - A viagem era curiosa, porque era a serra antiga ainda e a gente sabia que estava chegando quando aparecia aquela fumaça, aquele fogo que tinha lá, de uma usina em Cubatão. Falava: “Ah, agora já estamos no plano, deve estar chegando”.
O Gonzaga era o lugar onde a gente ia muito pra praia, tinha um leão que a gente tirava fotografia, que eu lembro; acho que a estátua está até hoje lá. Brincava-se muito na praia, a gente fazia pipa. A mãe da minha mãe, a minha avó, que era costureira, tinha bastante qualidade artesanal de mão, então quando ela estava conosco de férias lá ela ajudava a cuidar da gente. A gente fazia pipa, ia pra praia, ficava empinando.
A gente passava o verão lá, então tinha sempre carnaval. A gente ia no carnaval do clube, que era o Clube Atlântico, acho, que ficava na esquina. Era salão de festa, superconcorrido. A criançada, lança-perfume, essa que é proibida, era distribuída, de metal, dourada, superbonita e a gente ia fantasiadíssimo. Minha mãe, como minha avó, era costureira; [elas] faziam altas fantasias, a gente ia fantasiado pra essas festas e passava verões lá.
Meu pai sempre ficava indo e vindo, era aquela coisa de pai que trabalhava durante a semana, chegava fim de semana, voltava. A gente ficava a semana com minha mãe em Santos, ela entretendo a gente, a gente brincando lá. De fim de semana meu pai voltava de São Paulo pra Santos, passava com a gente, depois ia de novo e era sempre assim.
(24:05) P/1 – Vocês iam de carro?
R – De carro.
(24:10) P/1 – Antes de entrar... Voltar na escola de novo, quais histórias, pra você, desse período, você lembra mais, relembra com sua família? Tem alguma que vocês sempre gostam de contar?
R – Já contei algumas, mas uma outra coisa que é interessante é que meu pai gostava de viajar de carro, de conhecer o Brasil também, então todo verão, quando a gente não estava em Santos, a gente pegava o Fusca que ele tinha… Nós éramos dois homens e uma mulher e ele tinha um casal de amigos que eram duas meninas e um homem e eles eram amigos, combinavam em sair no verão, pegar os dois Fuscas e irem pra algum lugar.
A gente saía de Fusca de São Paulo, fomos a primeira vez até Brasília, indo e parando em tudo que é lugar, curtindo, porque aí, no hotel, ficavam os três meninos num quarto, as três meninas no outro e os casais em quartos separados. Era uma farra.
Esses verões eram supergostosos. A gente passava juntos, brincava, conhecia. A gente foi uma vez pra Brasília, depois uma vez foi até Porto Alegre, depois até a Bahia e eram viagens longas, um mês, devagarzinho, indo, parando, conhecendo todo o meio do caminho.
Tinha essa coisa legal que meu pai fazia, que era explorar isso, o que depois virou o interesse dele por viagens de navio. Das viagens de carro ele já estava com um pouco mais de recursos, começou a se interessar por viagem de navio, porque meu pai, como era muito comodista, gostava de viagens que… No navio, por exemplo, ele entrava, estava tudo pago, já tinha... Punha as roupas na cabine, o navio que andava e não precisava escolher mais nada. Era só curtir e parar e descer nos portos, passear e voltar, depois chegar em Santos. A gente, então, viajou muitas férias de navio, que também era um outro tipo de experiência muito louca, porque aí [era] adolescência, namoro, beijo, tudo isso acontece nessas situações que você está confinado ali, no navio: paqueras etc e tal.
Foram verões em navio também, indo umas oito vezes pro Caribe. O navio mudava um pouco, era o Eugênio C. Na rota a gente conhecia ilhas diferentes, parava em lugares diferentes: no México, em Curaçao, Aruba, Ilhas Virgens. Na única vez que o navio foi pro sul fomos até os canais do sul - em Ushuaia - da América do Sul, que foi uma viagem linda também, de ver geleiras e até as Malvinas - descemos nas Malvinas com bote salva-vidas.
Tinha bastante viagens. Uma vez por ano a gente saía de família e ia explorar alguma coisa.
(26:48) P/1 – E voltando, então, agora, pra escola, onde fica o Rio Branco e como era?
R – O Rio Branco fica na Avenida Angélica... Na Avenida Higienópolis, desculpa. Eu pegava o ônibus, que era o Circular Avenidas. Morava na Treze de Maio, ia a Paulista inteira, descia a Avenida Angélica. Ficava na esquina da Angélica com a Higienópolis, descia ali e ia caminhando umas quatro quadras até o Rio Branco, que era uma escola rotariana, super-rígida. Tinha escada de menino, escada de menina, pros homens não ficarem olhando as pernas das meninas quando subissem a escada. Na sala de aula as meninas ficavam na frente, os homens atrás, pra também não ficarem olhando as pernas das meninas. Era uma linha bem rigorosa, conservadora de ensino.
(27:35) P/1 – Tinha uniforme?
R – Tinha. Cabelo curto, porque todo mundo estava com aquela coisa de usar cabelo comprido e tinha um porteiro que chamava Divino, que ficava na entrada da porta, pra ver o tamanho do cabelo, senão ele não deixava entrar. E a gente pegava o cabelo, juntava aqui, punha dentro da camisa, pra passar pelo Divino, tentava passar sem que ele percebesse. O gate era o ‘portão do céu e do inferno’ (risos) porque, depois, lá dentro, você queria ficar ‘bacanão’, na moda, pras meninas e tudo, com o cabelo normal.
Era uma escola também [de] ensino bem rígido, mas ali eu aprendi a decorar, fui muito bom em decorar livro etc, porque eu estudava pra prova e tinha que responder… Quanto mais igual o livro melhor nota você tirava, então eu sabia quase transcrever livro, mas não era uma escola que te forçava a pensar muito.
Eu tive um único professor que eu lembro dele, de História, que era um professor que, por ser de História, era um pouco mais de pensamento crítico e tentava trazer umas coisas mais disruptivas. Ele foi o primeiro a questionar se os professores deveriam dar aula de gravata, porque dava-se aula de gravata na época. A escola não gostou muito da atitude dele, desses movimentos: “Nossa, quer sair sem gravata”, mas eram professores muito rígidos.
Tinha um professor de Química que era o ‘terror’ da escola, que chamava Oleli. Quando chegava nas férias de julho ele dava toda a tabela periódica, pra todo mundo fazer todas as combinações de todos os elementos da tabela. Era uma quantidade de trabalho que, se não fizesse duzentas fórmulas por dia, não dava tempo, nas férias. Ele quase fazia todo mundo estudar Química as férias inteiras. Bom, decorei a tabela periódica inteirinha, fui super bem no vestibular de Química, graças ao professor Oleli.
Quem eu mais gostava era o professor de Desenho. Eu tinha um professor de Desenho que as lousas dele eram maravilhosas. Ele fazia um círculo perfeito, desenhava, dava trigonometria, geometria e desenho, muito legal. Ele e um professor de Música - tinha aula de Música na época - o Mignone, que era irmão do Francisco Mignone, um grande músico; dava aula de Música, mas era uma aulinha só, não ficou muito...
Tinha aula de Francês lá, também. Curiosamente, o professor Bitar… Ficou, pra mim, um pouco do Francês, graças a essas aulas. Depois eu fui estudar um pouquinho mais, mas voltavam coisas, curiosamente, dessa época, do professor Bitar.
(30:09) P/1 – Ele te marcou mais que o professor de Desenho mesmo?
R – Porque eu já gostava de desenho, sempre desenhei, nunca parei de desenhar. Pra mim, uma das minhas brincadeiras preferidas de infância, esqueci de falar, era desenhar. Eu copiava os personagens da Disney nas férias, incansavelmente. Eu queria desenhar o Mickey ‘de cabeça’, sem olhar. Depois comecei a copiar o Batman, porque era uma aula de anatomia, tinha aqueles cartoons que eram quase graphics novos, maravilhosos, um baita de um desenho.
Sempre fui me interessando pelo desenho como uma ferramenta de autoconhecimento, expressão do mundo, companhia, exploração; acabou virando, até hoje, a minha linguagem.
(30:59) P/1 – Você usava desenho também pra socializar com as pessoas, ou não?
R – Não. No Rio Branco eu desenhava bem, fazia umas caricaturas. Todo mundo falava: “Nossa, como o Ronnie desenha, que incrível!” Mas era circunstancial, não desenhava pra isso. Eu gostava de desenhar, ficava brincando de capturar uma pessoa - a caricatura tem essa brincadeira. Nem era muito bom de caricatura, na verdade; gostava mesmo era da cópia.
Sempre desenhei explorando também técnicas: desenho a lápis, depois carvão, depois pastel seco. Fui brincando com todas as técnicas. Mesmo depois, na faculdade, trabalhei muito com gravura em metal e outras técnicas.
(31:41) P/1 – Nessa época você já falou que assistia desenho animado. Você assistia outras coisas, ou lia quadrinho? Onde você pegava referência?
R – Eu não lia muito, o Rio Branco não tinha muito esse estímulo à leitura de ficção. Via muita televisão e ia muito ao cinema. Eu gostava de ver os filmes do Jerry Lewis que, na época, era a alegria da infância, porque [eram] comédias maravilhosas, a gente morria de rir. Era quase uma por ano que ele lançava, então quando saía um filme novo do Jerry Lewis era como se tivesse saindo Star Wars, mais uma nova temporada. (risos)
A gente ia num cinema que ficava na Rua Augusta, que era o Cine Paulista, se não me engano. Ao lado tinha uma loja que vendia hot-dog numa caixa listradinha, vermelha e branca, cheia de batata frita em volta. Então, ver o filme do Jerry Lewis e comer hot-dog na saída era um programão. (risos)
(32:41) P/1 – Em que época da sua vida você decidiu que queria fazer Arquitetura? Como é que foi isso? Você lembra?
R – Quando eu estava na escola, já meio próximo do momento de definição, como eu te falei eu frequentava o Club Homs bastante, jogava muito vôlei lá. Tinha esses dois colegas que frequentavam o clube também: um era físico, Elias Horani, e o outro era arquiteto, Rubens Anauate. Eu fiquei amigo deles, os via conversando no bar. Sempre, depois de jogar, ia pro bar, ficava conversando. Eu falava: “Nossa, acho que vou ser físico. Não, acho que vou ser arquiteto. Não, acho que vou ser físico” e fiquei nessa dúvida, mas acabei achando que arquitetura - como eu gostava de desenhar - tinha essa questão...
Ah, tinha também um amigo que era engenheiro e eu falava: “Engenharia acho que não é, porque não tem a criatividade”. Eu gostava da coisa da criatividade, que eram as minhas geringonças todas e levava pra esse lado de desenhar coisas da imaginação. Era menos cálculo, como engenharia, e mais criação e aí fui me interessando.
Na época tinha quatro profissões quando você ia escolher: ou você era médico, advogado, engenheiro e tinha uma outra lá, também, que era famosa. Arquiteto era uma alternativa da engenharia mais criativa. Falei: “Acho que essa aqui é uma coisa que me interessa mais”, e aí fui me encaminhando pra essa orientação.
Quando chegou na época do vestibular eu prestei Mackenzie e a FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], na USP. Entrei no Mackenzie, que foi um grande alívio. Fiz cursinho.
Aliás, cursinho é um capítulo à parte da minha vida, porque à época o cursinho universitário, que era o preparatório, foi a primeira ruptura do modelo mental Rio Branco conservador que eu tive. Os professores eram superdivertidos, tinham que entreter aquele monte de adolescentes, ensinando pra passar no vestibular. [Eram] ótimos professores, uns ‘putas’ de uns atores, faziam uma coisa divertida, alegre, que era o contrário da escola. Eu falei: “Nossa, uma aula pode ser legal!” Era incrível.
Tinha jovens profissionais que davam aula de linguagem, que era uma prova importante na arquitetura, então quem estava fazendo cursinho pra arquitetura no Universitário, que era esse curso que eu fazia, tinha aulas com o Luiz Paulo Baravelli, que é um grande artista plástico hoje; com o Fajardo, outro dessa fase, que eram os meninos que fundaram a Escola Brasil, que estava conectada ao Wesley Duke Lee, grande artista plástico, que formou essa geração de meninos altamente inspirados, criativos, grandes artistas, todos. Eles davam aula de linguagem e ali eu comecei a descobrir outra camada de desenho, como criatividade, expressão, tipos de reflexão que o Baravelli, principalmente, trazia, que eram geniais, de você poder explorar e entender de onde vinham as coisas que a gente inventava. [Foi] ali que eu me encantei, de fato, pela beleza e potência do desenho, com esses caras que até hoje estão por aí, formaram gerações de grandes profissionais e eram uma referência pra mim, então eu falei: “Nossa, quero ser igual a esses caras, isso é o que eu queria fazer”.
Quando fui prestar o vestibular, que tinha toda aquela rigorosidade de passar [em] matemática, biologia, um monte de matéria teórica, no Mackenzie eu fui superbem, acabei entrando. Saía antes o resultado do Mackenzie do que da FAU. O medo, na época, era ficar mais um ano no vestibular, porque eu fiz o meu vestibular junto com o último ano da escola, o que não era comum; em geral, as pessoas acabavam e faziam o vestibular. Eu ia de manhã pra escola, à tarde pro cursinho, durante um ano, então eu estava afiadíssimo, fui pro Mackenzie e arrasei, então falei: “Bom, não vou fazer vestibular mais um ano” e aí estava tranquilo, já ia fazer uma faculdade.
Quando eu fui fazer exame na FAU eu estava super relaxado e a FAU tem uma prova que é importantíssima, que é uma prova de desenho que dura um dia inteiro, além das provas normais, e que tem um peso muito grande pra você entrar na faculdade. Ali eu arrasei, estava super no meu habitat. Desenhei, fiz provas superlegais; tinha três tipos de exercícios, fui bem em tudo.
A FAU não dava resultado, eram 150 que entravam. Quando saiu a lista eu falei: “Nossa, entrei na FAU, que máximo!” E, pra minha alegria, eu via o quanto meu pai se esforçava pra pagar a escola e se eu fosse fazer Mackenzie eu ia continuar dependendo dele [pra] pagar. Quando eu entrei na FAU, a primeira coisa que eu fiz foi telefonar pra ele: “Olha, entrei na FAU, agora você não precisa pagar mais nada, agora é comigo”. Ele ficou na dúvida se ia me deixar fazer FAU, aquela escola de ‘louco’ lá, a USP, porque nossa, o Mackenzie era mais certo, eu falei: “Não, é FAU que eu quero fazer, é isso que eu vou fazer” e foi assim, o que me formou enquanto pessoa foi a FAU.
Tudo que o Rio Branco fez, de me fazer decorar, a FAU me fez rever e mudar completamente, porque foi lá que eu comecei a ter contato com o pensamento crítico e ter que ter uma opinião. No Rio Branco a gente pedia uma opinião e nada, você tem que saber a matéria, fazer o que estava no livro e ‘tocar o pau’, ser igual à ‘manada’.
(38:21) P/1 – Você entrou na FAU em que ano? 1970 e...
R – 1975. E esqueci um episódio engraçado, vou voltar um pouquinho atrás. Como eu já gostava de artes, essas coisas, quando eu estava próximo do Rubens Anauate, de arquitetura e tal, o Rubens fazia, no Club Homs, um monte de concursos de arte, pra socializar com as crianças que frequentavam. Ele fez um concurso de fotografia, aí eu peguei a máquina de fotografia do meu pai, pedi emprestada e saí fazendo umas fotos em branco e preto; tinha que fazer e depois revelar no laboratório, você não via nada do que estava fazendo.
Nessa época meu pai estava construindo uma casa nova, estava incorporando um prédio e a gente foi numa obra. Tinha lá uma lata em cima de uma outra lata, eu falei: “Nossa!”, vi alguma coisa de desenho lá e fotografei. Quando eu fui ver tinha achado a foto o máximo, porque era uma foto conceitual: uma lata em cima da outra, o piche, o buraco preto, assim… Falei pro meu pai: “Quero inscrever essa foto no concurso.” Ele falou: “O quê? Foto do quê? Essas latas você quer inscrever? Não tem nada aqui.” “Não, não, não, é essa que eu quero inscrever”. Só podia inscrever três fotos, inscrevi essas e umas em Brasília, porque eu tinha ido pra Brasília, só vivia em Brasília.
Quem ganhou o concurso todo foi a foto da lata. (risos) Aí ele falou: “É, está bom. Vai fazer as suas coisas aí”. (risos)
(39:42) P/1 – Você entrou em 1975 na FAU?
R – 1975. Um momento intenso, ainda tinha a ditadura militar. A gente, na USP e na FAU, principalmente… Começou ali essa inquietação de questionar o regime. A FAU, pela arquitetura dela é uma praça, é natural, então todas as escolas vinham pra FAU fazer reunião acadêmica, Centros Acadêmicos discutindo: “Temos que acabar: ditadura, repressão”.
Em 1977 a gente começou a fazer passeatas, sair da escola. Aí que foi que eu entendi por que a USP tinha sido colocada do outro lado do rio pelos militares e com uma academia de polícia na frente, porque você ficava completamente isolado da cidade. Então, a gente começou a tentar sair da escola, pra poder mostrar pra sociedade que os estudantes estavam se indignando com a situação do país.
A primeira vez que a gente fez uma passeata foi andando até a porta; chegou na academia, estava um monte de policial lá e a gente parou lá e não foi. Depois, na segunda vez, a gente encarou e foi até o Largo de Pinheiros. Na terceira vez a gente foi até o Centro de São Paulo, marcamos de nos encontrar lá e tinha cavalo correndo atrás, uma baita de uma baixaria. Era o Erasmo Dias que estava querendo ser homenageado, que era o Secretário de Segurança Pública e teve aquele escândalo da PUC, jogaram bomba etc.
Eu estava na concentração da Escola de Medicina, na Faria Lima, e na PUC tinha acontecido, a gente ficou sabendo que tinha estourado uma bomba lá.
Foi em 1977 que a gente começou esse movimento de Abaixo a Ditadura. Foi a época que eu me politizei muito, de poder entender essa importância de ter uma visão crítica da sociedade, ter uma opinião de busca da igualdade, porque já se via ali o Brasil como um país desigual. No curso da FAU a gente tinha colegas de classe que hoje são grandes militantes, porque o PT nasceu da Libelu, que era Liberdade e Luta, que era o grêmio da FAU. Foi dali que o movimento articulado político se originou, com Clara Ant, que hoje é grande ídola do PT, e outros nomes.
A gente, então, ficava olhando aquilo tudo, no começo assustado, querendo me posicionar em relação àquelas visões de mundo e entendendo a razão daquilo. Você ia fazer uma aula de projeto, mas você não pode projetar casa pra rico, tem que projetar primeiro uma cidade coletiva, área popular. Então, tinha, no próprio ensino, um posicionamento da arquitetura de ser não socialista, mas que considerasse as demandas da sociedade. Isso foi formando em mim essa consciência de classe, entendendo um pouco, começando a entender o Brasil, porque eu vivia numa ‘bolha’, na época: Rio Branco, tudo muito bonitinho, certinho e quase não enxergava o resto do entorno.
(42:54) P/1 – E como é que foi o curso? Como eram os professores na FAU? E me fala um pouquinho do prédio, também. Todo mundo fala bastante...
R – O prédio da FAU é uma escola. Ali é uma aula. Você vai pro prédio e já começa a aprender arquitetura, só de usar aquele prédio do Artigas, que é maravilhoso. Quando eu comecei a FAU, esse choque entre vir do Rio Branco e chegar numa escola com 150 colegas vindos de todas as classes sociais, que não era o Rio Branco, e ver questionamentos… Eu lembro que estava numa aula um dia e o meu colega falou assim: “Essa aula sua está uma merda, professor. Eu não estou aprendendo porra nenhuma.” Falei: “Nossa, o cara pode criticar o professor?” Pra mim isso era uma surpresa. Eu já tinha colegas muito críticos, cobrando qualidade. Falei: “Nossa, é isso, então?”
Eu aprendi muito na FAU com meus colegas e com essa minha convivência com pessoas de outras... Essa diversidade. Era uma riqueza, a FAU - talvez seja ainda, não tenho muito contato recente, mas era uma riqueza pra mim e um grande confronto pessoal, de me posicionar em relação a isso tudo.
Eu fui me formando, pra mim foi um curso de formação do eu, mais do que o arquiteto. Eu sinto que ali eu me formei enquanto cidadão, enquanto alguém que forma uma opinião, uma visão, que tem consciência social, de responsabilidade civil, mesmo, com a comunidade, com o que você faz, com a sua profissão e com o outro, principalmente. Tinha um foco muito grande na alteridade e professores bons, grandes professores, tanto que meu primeiro e único emprego, que foi quando eu estava no último ano da escola, foi um professor meu - que morreu semana passada, aliás - o Cauduro, que era sócio do Ludovico Martino. Era o único escritório de comunicação visual que tinha em São Paulo, na época, Cauduro e Martino, dois grandes professores da FAU.
Ludovico me convidou pra passar o último ano da FAU estagiando lá, o que foi maravilhoso pra mim. O sonho de todo mundo era conhecer e fazer parte da equipe do Cauduro, porque aí você tinha a vida prática do que era comunicação visual naquele momento. Comecei a ter mais contato com a prática nesse ano de trabalho lá, foi incrível.
Foi uma outra escola, paralelamente à escola que a FAU foi, mas a FAU era uma escola que, com essa questão de consciência social, tinha aula de projeto; você aprendia a projetar, mas tinha muito essa questão social presente na reflexão, nas aulas de História, nas aulas de Artes. Era tudo muito influenciado por essa visão. Max Weber, as leituras todas eram muito pra formar uma consciência social, mesmo.
Eu lembro que, quando eu estava me formando, eu tinha dois grandes medos, que eram: um, que ninguém me contratasse, e outro, que alguém me contratasse, porque eu não sabia fazer nenhuma casa. Falei: “Nossa, se alguém me contratar, eu não vou saber botar uma casa de pé, porque da FAU você sai e fala assim: ‘Não sei onde começa’”. Tanto que, quando eu me formei, eu fui com mais quatro amigos, a gente resolveu abrir um estúdio juntos. Trabalhei no Cauduro no último ano de faculdade, que era uma tese de graduação, não precisava ter aula, mas eu ia todo dia pro Cauduro e, quando me formei, junto com mais quatro colegas de classe, que a gente tinha muito afinidade e foi descobrindo essa afinidade no curso, a gente decidiu montar o nosso estúdio, pequeno.
Tinha uma oportunidade de projeto, que era do pai de um deles, que trabalhava pra Secretaria de Saneamento de Alagoas e tinha que fazer o projeto da sede nova da Companhia de Águas de Alagoas, então foi exclusivamente um projeto de arquitetura. Ele falou: “Vocês querem fazer esse projeto juntos, [já] que vocês estão se formando? Junta vocês aí e fazem”. Junto a gente tinha mais segurança, o que um não sabia o outro sabia e a gente foi se complementando; o que não dava, xeretava e tal.
Começamos com esse projeto, que era um jeito da gente se pagar e depois fomos fazendo tudo que a FAU... A FAU tinha uma graduação que era baseada na Bauhaus, no modelo pedagógico, que tinha uma tese naquele momento de que as artes deveriam ser todas integradas. A Bauhaus foi a primeira escola de arte da Alemanha integrada: fotografia, pintura, desenho, design, arquitetura, pintura, tudo como uma formação transversal, pela qual todo projetista deveria passar; a tese máxima deles era que um desenhista tem que desenhar do garfo à cidade. E a FAU tinha esse voto, então a gente tinha aula de quatro disciplinas: uma que era o desenho da cidade, que era uma escola de urbanismo também; o desenho do edifício; o desenho do objeto - começava ali o desenho industrial, não era tanto como virou depois, mas era o começo dessa ideia; e o desenho da comunicação. Tinha matérias optativas em todas essas disciplinas e eu fui me interessando mais ali, descobrindo que a comunicação visual me interessava mais, porque a gente brincava, na época, que o urbanista trabalha com quilômetro; o arquiteto trabalha com metro; e o designer trabalha com milímetro. Como eu sempre fazia as minhas coisinhas, eu ‘saquei’ que o meu negócio era o milímetro. Era calibre fino, espaçamento entre as letras, cor certinha e essa coisa de comunicação, que também tinha uma velocidade que combinava mais com a minha velocidade pessoal, porque arquitetura eu acho lindo, mas esperar dois anos pra ver se aquilo que você pensou está legal meu relógio já tinha... Eu já estava em outro lugar. Enquanto na comunicação visual você faz um projeto, vai levar pra gráfica, no dia seguinte você olha e fala: “Nossa, deu certo, não deu”, então tinha uma velocidade mais... E de controle do processo como um todo.
Na arquitetura, eu lembro que a minha leitura era: “Eu não posso fazer a casa que eu quero, porque é muito caro, então eu tenho que comprar uma janela que tem no mercado, um caixilho que tem no mercado”. Era quase uma montagem de coisas que eram muito ruins no mercado, não tinha muita alternativa. Tinha pouca capacidade de você… Pouquíssimos arquitetos projetaram a sua janela, o seu azulejo, seu piso, então acabava sendo uma linha de montagem muito primitiva, com pouco recurso de criatividade, enquanto no designer gráfico você tinha capacidade de fazer tudo, até imprimir. Fui me dirigindo pra isso.
No Cauduro e Martino foi que eu realmente vi como era o dia a dia da profissão e ali que eu me formei, do ponto de vista de saber como é que você toca o negócio, porque esse é um dilema da formação, que eu falo em várias palestras de eventos, quando eu vou em escolas. As escolas focam na formação do profissional, mas não te dão nenhuma ferramenta no caso de você ser um profissional autônomo e empresariar o seu próprio trabalho: precificação, como é que você cobra, contrata pessoas, divide o trabalho, empresaria. Isso tudo a gente teve que aprender na raça, tive que aprender quebrando a cara, fazendo preço, chamando estagiário, nós cinco juntos, no começo da Oz, que foi meu primeiro escritório; durou até 2019, ficamos quarenta anos juntos, colegas de classe. Dois saíram logo no começo, mas ficamos três, durante quarenta anos, trabalhando com toda essa escala, começando com arquitetura, mas depois nós fizemos... Tinha um concurso público de um professor nosso que era presidente da Emurb [Empresa Municipal de Urbanismo], na época, que era pra fazer todo o design do mobiliário urbano da cidade de São Paulo: pontos, paradas etc e tal. A gente entrou no concurso, resolveu se meter, porque nessa época você tem que fazer tudo que aparece. Ganhamos o concurso e chegamos a fazer o protótipo do mobiliário de fibra de vidro, que ficou instalado no Ibirapuera uma época e depois, como tudo na prefeitura, não foi implantado, ficou ‘congelado’, mudou o secretário e não foi pra frente.
Foram pequenos marcos da gente ir construindo confiança, reputação, ao ponto de atrair talentos, porque no começo, como é que começa um negócio desses? O pai de um, o pai do outro, o pai do outro que passa um ‘jobinho’. Meu pai tinha uma indústria de brinquedos, então falava: “Faz uma embalagem pros nossos brinquedos aí”, a gente foi fazer embalagem. O pai do outro era da arquitetura. O pai do outro era o pai do André, meu sócio; era diretor da Editora Abril, na época ele fazia fascículos, então a gente começou a fazer ilustrações pra fascículos e também desenhar desenho gráfico editorial impresso. Ele estava muito ligado ao PSDB, na origem do PSDB, Fernando Henrique; eles tinham o Cebrap, que era o Centro Brasileiro de Estudos, que ficava na Vila Mariana e a gente, então, começou a fazer toda a programação visual da revista Cebrap, que era muito importante na época, só tinha grandes articulistas, todo pensamento de esquerda estava lá. A gente fazia toda a editoração da revista, que foi uma experiência incrível, porque a gente tinha que ler os artigos de todos os caras, aí eu li muito do pensamento de ponta da sociologia, filosofia, literatura etc, caras que depois eu fui conhecer. Curiosamente, a gente fazia ali diagramação com... Quem era diretor, numa época, era o Roberto Schwarz, quando ele era ligado ao Cebrap. Depois, uma época, era o Rodrigo Naves, que é um grande crítico de arte, ele também foi diretor e a gente fazia o trabalho juntos. O próprio Wesley Duke Lee, uma época, que era esse inspirador, pegou o projeto de programação visual de um prédio no Rio de Janeiro, mas ele não tinha as ferramentas, chamou a gente pra fazer junto com ele a identidade visual desse prédio, que está até hoje lá, que é o Rio Branco número um no Rio de Janeiro e aí o conhecemos.
Foram muitas oportunidades de serendipidade na vida, muitas oportunidades muito boas. O que a FAU tinha de qualidade, voltando um pouquinho atrás agora, eram os professores, porque eu tive aula com o Flávio Império, que era um grande artista plástico; Cláudio Tozzi; fiz semiologia com o Décio Pignatari, poeta concreto, aula que me encantou e era optativa, resolvi fazer e adorei. Ali comecei a entender essa coisa da linguagem, da semiótica e expressão e olhar o desenho como linguagem, então [era] todo um vocabulário diferente.
Teve um curso que me marcou, que foi quando o reitor da Filosofia, que era o Ruy Coelho, o grande reitor da Filosofia, foi dar um curso optativo de seis meses, que era uma leitura do desenho do jardim em cada cultura, como expressão da ideia de paraíso de cada cultura. Então, jardim francês, uma expressão da ideia de paraíso dos franceses; jardim inglês, jardim japonês… Aquilo, pra mim, foi: “Não é possível que dá pra fazer esse tipo de leitura do mundo!” E era uma coisa filosófica, artística, arquitetônica, saí maravilhado. E essas pequenas peças foram se encaixando pra mim e acho que foram formando a minha visão de mundo, a minha curiosidade e o meu interesse pelo conhecimento, por descobrir, por ter grandes inspiradores como mentores e como referências, que foram a parte boa da FAU.
(54:36) P/1 – E, nessa época, se eu não estou enganado, você teve vários, alguns projetos gráficos que marcaram a história da cidade de São Paulo. O pessoal fala muito do projeto do metrô, por exemplo.
R – Então, Cauduro e Martino, eu vi isso acontecendo lá. Estava no Cauduro quando ele fez a sinalização da Avenida Paulista, que são aqueles totens, também é outro grande marco. Bom, Cauduro e Martino era “o” escritório, que atendia todas as grandes empresas: Banco Auxiliar, que não existe mais, a Cesp, Banespa, o sistema S - hoje todo Sesc, Senac, Sesi - tudo era deles e eu trabalhava em todos esses projetos lá, por um ano.
O projeto que eu mais trabalhei foi o plano diretor do zoológico de São Paulo, porque como eu desenhava bem, ele falava: “Vai lá e fica desenhando todos os recintos, porque a gente precisa ter um desenho dos recintos, pra depois pensar como a gente vai reorganizar o zoológico”. E eu passava dias lá, desenhando os recintos, os animais, era uma delícia. Trazia todos os desenhos, pra depois a gente trabalhar no escritório.
Ali também foi uma grande escola pra mim, por ter vivenciado a estruturação desse tipo de projeto grande, com grandes clientes, com grande responsabilidade e como se toca um negócio desse, do ponto de vista de… Por exemplo: não tinha computador, então era mesa com régua paralela. Pra você compor uma página editorial você tinha que pedir tipos numa casa de tipos que tinha máquina fotográfica, imprimia num papel branco e preto a letra. Você pedia o texto, eles mandavam, você olhava, cortava, picava e montava com paste-up, com cola benzina, ficava jogando cola benzina o dia inteiro [pra criar] a arte final. Era muito primitivo e eu vi essa revolução toda acontecer, a mudança do analógico pro digital.
A gente aprendia muito ali pra quem você pede isso, como é que vem, quanto custa, como é que monta, pra depois poder montar uma pequena relação com esses fornecedores, de partes do trabalho do design gráfico. Fotógrafos também. A FAU tem essa questão: da minha classe quatro viraram arquitetos, o resto todo virou artista. Sérgio Fingermann é grande artista plástico; Arnaldo Palladio, grande fotógrafo, que a gente chamava pra fazer as fotos quando a gente tinha um projeto que precisava de fotografia; um virou músico; outro faz jingle, o Hilton Raw faz jingle publicitário, um cara incrível. Então, a FAU tem... Tinha essa capacidade de despertar vocações criativas, não necessariamente em arquitetura, mas todos que saíam pra um lado lá saíam, de alguma forma, bem qualificados, pra ter uma trajetória relevante na comunidade.
(57:31) P/1 – Você se formou no começo dos anos oitenta, por aí?
R – 1979. [Foram] cinco anos: 1975, 1976, 1977, 1978 e 1979. Em 1979 eu saí.
1980 foi quando a gente abriu a Oz, em novembro de 1979, esse primeiro estúdio nosso. Alugamos uma casa na Vila Madalena e começamos a pegar tudo que aparecia: convite de casamento do amigo, do irmão e tal, pra poder tocar, ter cliente, ‘fazer musculatura’ e ganhar confiança porque, no começo, a coisa mais dificil é você criar uma rede de relacionamento e as pessoas confiarem que esses jovens e meninos sabem fazer. Por isso que a importância desses prêmios e essas conquistas no começo da carreira foram muito importantes pra dar pro cliente a segurança de que a gente tinha um talento lá, que valia a pena arriscar passar alguma coisa prum jovem.
(58:22) P/1 – E me conta como era, nessa época, a relação com os clientes. Vocês, enfim, aconselhavam a pessoa, ou eles impunham o que era pra fazer?
R – O mundo era muito diferente. As demandas eram muito práticas. Como eu falei no começo, nossos pais foram os primeiros clientes, pra dar uma força e acreditar. A gente fazia trabalhos pra eles, aí os amigos dos nossos pais viam que a gente tinha feito e precisavam da mesma coisa e começaram a pedir e aí você, saindo de uma rede de relacionamento que é próxima, começa a criar relacionamento que é derivado da qualidade do trabalho. Aí começam a vir demandas de lugares que você nem imaginava, porque você começa a construir uma marca, que é a questão de você ser conhecido, ter uma reputação, seu trabalho aparecer. Não tinha rede social pra você divulgar, então tinha que ir contando, era tudo meio na base do: “Sabe que eu fiz isso?”
Quando você fazia uma reunião com um provável cliente você tinha um portfólio impresso, com tudo que você tinha feito, levava lá, abria a pasta e mostrava folheto, catálogo, design de produtos etc e tal e tentava convencer o cliente - o que sempre foi um desafio - que você tinha competência pra atender a necessidade e o tipo de demanda que ele tinha.
Vendo hoje, como eu trato… Até porque a Oz durou quarenta anos e eu decidi que tinha terminado esse ciclo, depois de ver que o mundo tinha mudado e que os meus interesses pessoais passaram pra um outro tipo de relacionamento, principalmente eliminando a ideia de cliente, porque hoje eu não trabalho mais com esse formato de cliente-fornecedor, com o qual eu trabalhei por quarenta anos, por ter percebido que a natureza do trabalho estratégico que eu faço hoje não cabe mais na lógica de alguém que tem um problema, te passa uma encomenda, você leva pra casa, resolve baseado no que você acha, traz a resposta de volta pronta e o cara fala: “Oh, era isso que precisava”. Tem tipos de encomendas que são ainda nesse formato, mas hoje - depois vou chegar lá no trabalho estratégico – a relação que a gente procura construir é muito mais de ser um parceiro do que um fornecedor, onde a lógica do processo é de co-criação, não de que eu tenho a resposta - você me conta seu problema, eu vou pra casa, resolvo e te trago a resposta.
Você perguntou da lógica da relação com os clientes. Durante quarenta anos foi de você ir conquistando clientes cada vez mais sofisticados, desde o amigo do seu pai, que fabrica trenas, fazer um catálogo de trenas pra ele, que foi um dos primeiros projetos nossos, até Coca-Cola, Volkswagen, Hospital Sírio Libanês, Porto Seguro, colocando complexidades, escalas e portes de clientes. Quando a gente já tinha uma estrutura que era de 45 pessoas, a Oz, num certo momento… Porque você vai chamando o primeiro estagiário, que te ajuda a fazer coisas, depois você tem o segundo, quando você vai ver tem o terceiro, quando você vai ver tem o quarto, quando você vai ver você tem onze atendimentos de conta, 45 profissionais e tem que gerenciar pessoas, até competências de contratação, identificação de talento, gestão de processos, que é sofisticadíssimo quando você tem três titulares. E pra nós, também, como se cria em grupo: três autores, cada um com a sua linguagem, querendo fazer uma marca. Os três ficavam querendo desenhar a marca ao mesmo tempo e não dava certo, porque um ia pra cá, o outro ia pra lá, cada um tinha o seu estilo, então até como equacionar de que forma a gente ia trabalhar juntos, mas com espaço pra individualidade de cada um foram vinte anos. A gente tentou de tudo.
Tinha época que a gente pegava os três o lápis na mão e falava: “Essa aqui é ideia minha” - a coisa do ego – “Foi eu que fiz. Está vendo essa curva? Fui eu que coloquei no trabalho” e era briga o dia inteiro, até que: “Bom, eu gosto mais de embalagem, você gosta mais de imitação, você gosta mais de marca” e a gente foi ver que descobrindo vocações individuais acabamos estruturando a Oz, que antes era várias coisas, em três grandes áreas de interesse, que eram consecutivas, complementares. Cada um de nós ficou responsável por uma dessas áreas e por equipes, então cada um tinha a sua equipe.
Isso também ajudou a organizar de quem era o projeto, pra quem passar, quem era o cliente, porque cliente é outra coisa, que você só vai descobrir quando vai empresariar a relação que você tem com o cliente: de onde ele vem, é cliente de quem, quem tem compromisso de entregar qualidade. Quando o cliente vem procurando você, você fica muito mais ligado que quando ele procura o seu sócio, porque o seu vínculo não é de ter que entregar, que o cara confiou em você.
Muitas coisas a gente foi descobrindo, praticando e sempre crescendo, ao longo da própria prática. Eu e meus sócios fomos nos conhecendo, descobrindo vocações, trabalhando, pegando projetos maiores, encarando, sempre pegando maior do que a gente conseguia dar conta e aprendendo, no processo. O cara falava: “Você sabe fazer isso?” “Sabemos, lógico, nossa, lógico que sabemos!” Depois ia atrás, correr pra entregar sinalização de hospital, um negócio altamente sofisticado. Sinalização do aeroporto de Campinas, o André, meu sócio, que é o ‘rei da sinalização’, tocou esse projeto todo e é um grande estrategista de fluxos, como ele fala. (risos)
(01:04:18) P/1 – Me conte um pouquinho deles, então, quem são seus dois ex-sócios.
R – André Poppovic e Giovanni Vannucchi eram meus colegas de classe. Com Giovanni estabeleci amizade desde que eu entrei na FAU. Eram 150 alunos, eu já tinha feito aula com ele no cursinho. Não o conheci no cursinho, mas via aquele cara, achava que ele tinha uma cara legal e tal.
Quando ele entrou na FAU… Cheguei no primeiro dia de aula: 150 caras que eu nunca tinha visto. No Rio Branco você passava de ano e você encontrava os amigos no ano seguinte. Quando você entra numa faculdade que tem 150 desconhecidos, você fala assim: “Com quem eu vou falar?” Aí eu vi a cara dele, do cursinho, comecei a conversar com ele, sentei pertinho pra fazer grupo.
O André fui conhecer no terceiro ano, porque na FAU se formavam, com 150 alunos, ‘panelinhas’ diferentes, turmas diferentes, então eu, o Giovanni e o Ricardo, que era um dos cinco, no começo, éramos mais próximos deles, dos cinco anos. O André fui conhecer mais no terceiro ano, ficamos mais próximos.
Quando a gente estava terminando a FAU, a gente já estava naquele momento que queria ter um lugar fora da casa dos pais. O André e o Ricardo queriam sair da casa dos pais, eu ainda era muito ‘caretão’, mas queria ter um quarto pra mim, um lugar onde eu pudesse ter as minhas coisas, o meu canto, o meu silêncio, que não fosse a casa dos meus pais. A gente alugou uma casa na Vila Madalena, que depois virou a Oz, mas no começo era uma casa pra cada um ter o seu quarto, seu lugar.
O Giovanni, o André e o Ricardo mudaram pra lá e começaram a morar lá, de fato. Eu tinha um quarto, ia lá pra trabalhar, encontrar com eles, ficar junto, fazer as nossas ‘loucuras’ criativas.
O pai do André era da Editora Abril, já tinha todo um background político muito mais estruturado e frequentava uma vida de Academia. O pai [era] amigo do Fernando Henrique Cardoso, Celso Lafer, então tinha uma referência próxima bem mais estruturada que a minha, que era de um industrial.
O pai do Giovanni era um comerciante de doces italiano, que veio pro Brasil pra lançar loteria esportiva, que depois foi proibida pelo governo, aí teve que se virar e abriu uma doceria que ficou durante cinquenta anos, grande, que até hoje existe, a Leo Dolci, italiana, que é o nome do pai dele, Leo, mas um italiano de sangue italiano, sabe italiano-italiano? Afeto, proximidade. O André, judeu, e eu, árabe.
A gente brincava que a gente tinha uma pequena reunião da ONU, alta explosividade e os três tentando trabalhar juntos: um italiano, um judeu e um árabe. (risos) Era engraçado, mas a gente foi encontrando a nossa química, a nossa admiração correspondente um pelo outro e nossos territórios.
O André começou... Ele tinha muito uma coisa com marcenaria, na qual a gente ficava muito tempo na elaboração de maquetes e [foi] ali que eu descobri que dá pra fazer coisas. Nunca tinha pensado que podia fazer uma cadeira, um pandeiro. O André fazia pandeiro. No meio da aula ele fazia um pandeiro lá, ele tocava música, era chegado em música. Então, o André era um designer de produto de vocação, o negócio dele era botar as coisas de pé e acabou cuidando mais dessa área de ambientação, sinalização, porque era o mais arquiteto, eu diria, dos três.
O Giovanni já foi se interessando mais pelo desenho de embalagem, que é uma área enorme, depois cresceu enormemente, virou um grande segmento de demanda de design gráfico, que é o branding de produto, de consumo, não de empresa.
Eu, como gostava muito de desenhar e do desenho de marca, que o desafio da síntese e da forma é o maior de todos, que eu comparo desenho de marca com poesia, em literatura. [Quando] você pensa em embalagem, é quase uma prosa: você tem que contar uma história com vários elementos, vários recursos, ela tem uma narrativa longa, conteúdo. Uma marca tem que ser uma poesia: tem que ter uma síntese expressiva, ao ponto que, se você tirar qualquer coisa dela, ela já não é mais a mesma, como na poesia, se você tirar uma vírgula, ou uma palavra. E, portanto, pra mim, era o território de design, tudo que eu experimentei, porque eu fiz embalagem, sinalização, desenho de produto, design de frascos, um monte de coisa, mas fui vendo que o _____ desse pessoal era por esse embate com a poesia que tem no desenho de uma marca, a síntese e uma identidade de uma expressão.
Acabei cuidando mais dessa área, que depois eu comecei a misturar com estratégia de marca, porque em um certo momento... Eu estava falando do Giovanni e do André, então contando um pouco da trajetória deles, eles tinham essas vocações e a gente acabou se organizando dentro da Oz. Como eram coisas consecutivas, o cliente que chegava precisava de uma marca, uma identidade; a gente começava a fazer isso. Depois precisava ambientar a fábrica deles, finalizar, ou Porto Seguro, como hospital e a gente ia atendendo o cliente quase como uma one stop shop, ou seja: tudo que você precisar de expressão e de questionamento sobre a sua identidade a gente pode atender.
Um ponto importante aí é que, naquele momento, quando o designer gráfico se estabelece como disciplina, a lógica do mercado estava baseada em que qualquer problema de comunicação que as marcas tinham era a agência de publicidade que cuidava, então Nestlé precisava fazer embalagem, fala com a agência; precisava fazer uma marca, fala com a agência. Não existia esse negócio de designer gráfico e a publicidade era o profissional de comunicação. Tanto que nós, quando começamos a executar e trabalhar em construir a disciplina de designer gráfico como separada, diferente e com qualidades que a publicidade não tem, a gente teve que organizar uma sociedade de designer gráfico. A gente se juntou no bar num dia, colegas estavam fazendo a mesma coisa, e falamos: “Precisamos criar uma associação”. Criamos a ADG, que é a Associação de Designers Gráficos e até hoje existe, pra defender os interesses, a lógica e como é que se contrata e por que se contrata um designer gráfico, qual a relação cliente-fornecedor.
Eu ajudei a escrever o código de ética. A gente sentou: “Bom, como é que funciona essa relação com o cliente? O que ele pode? O que ele não pode? O que a gente entrega? O que não entrega?” Toda a ética, diferente da publicidade porque, como a gente usava semiótica e outras coisas, a gente tratava comunicação como uma questão de linguagem e a publicidade trata como uma questão de mensagem. Depois que está tudo pronto você vai lá e anuncia. Mas antes de estar tudo pronto, que produto é esse? Que nome ele tem? Como é a embalagem dele? Isso tudo é anterior à comunicação publicitária, tanto que tinha marcas que não tinham dinheiro pra publicidade, mas precisa ter embalagem, produto, que é a própria concepção do produto, então o design acabou encontrando esse lugar, que ajuda a desenhar, que no começo era desenhar a identidade do produto.
Depois que o Cauduro fazia as marcas que ele cuidava era porque estava naquele momento, essa ideia que as corporações precisavam ter o seu nome assinado em tudo. Então, Varig tinha que ter Varig no avião, na cadeira, no guardanapo. Era o começo dessa ideia de identidade corporativa, pra mostrar porte, extensão e posicionar essa marca, mas ainda com a preocupação estética, daria pra dizer, não estratégica, porque não tinha chegado à questão de propósito, posicionamento, valores, identidade, que veio chegar depois, numa outra ‘onda’, que foi a que eu peguei. A gente teve que criar uma associação, teve que estruturá-la, pra que ela pudesse começar a mostrar pros clientes que não era tudo que eles precisavam que tinha que chamar a agência de publicidade. Tinha trabalhos que era pra designers gráficos, essa profissão tinha uma especificidade que precisava ser entendida. Então a gente participou como militantes da formação do próprio design enquanto disciplina, no momento que o país estava recebendo essa formação de fora; lá fora tinha um outro momento e foi se adaptando e trazendo isso. E eu vivi esse momento depois de vinte anos.
Eu brinco que eu tive duas fases na minha vida: os primeiros vinte foi tentando entender a potência do desenho como expressão, domínio da linguagem; os outros vinte eu passei tentando entender o que vem antes do desenho, que é o desenho da própria essência do negócio, porque eu comecei a me relacionar com clientes que eu tinha contato com a empresa, olhava como a empresa estava estruturada, aí o cara me pedia pra fazer uma identidade visual pra ele, pra ‘ficar bonito na foto’ e eu olhava e falava: “Mas eu estou fazendo uma cenografia de cliente aqui. De alguma forma eu estou mentindo”, no sentido de que eu olhava a empresa e falava assim: “Esse cara não é legal, não trata bem os funcionários, não tem valores legais, o produto dele é ruim. Como eu vou fazer uma coisa que não corresponde a uma verdade de empresa, de produto?” E aí comecei a me inquietar com essa questão de ética, misturada com estética, ou seja: não dá pra você trabalhar com linguagem se você não estiver de fato envolvido no que é que você está dando forma, de forma que não seja uma ‘cosmética’.
Eu cheguei na formulação da seguinte lógica: que estética sem ética é ‘cosmética’ e eu não queria mais fazer ‘cosmética’, então eu falei: “Não, eu preciso...”, até porque quando o cliente vinha falar assim: “Preciso fazer um logotipo novo, que o meu está velho”, eu ficava me perguntando assim: “Por que ele está velho? O que aconteceu que, de ontem pra hoje, o cara já não se reconhece mais na sua própria expressão? Alguma coisa aconteceu que eu preciso conhecer, pra entender esse sintoma que aparece na estética, mas não é de natureza estética, é de natureza ética, de autoimagem, identidade. Alguma coisa no negócio, ou nessa pessoa coletiva mudou, que se eu não entender, eu não vou conseguir saber como ela se veste agora, que ela é outra”.
Sabe por que a gente fundou a ADG? A gente percebeu que tinha que trazer conhecimento pro mercado brasileiro. Aí tivemos contato com uma associação internacional, que é o International Council of Graphic Design Associations, de designer gráfico, como a nossa e a gente falou: “Nós temos que frequentar isso aí” e começamos. Tinha uma bienal, a cada dois anos a gente ia aonde ela fosse do mundo. A primeira foi em Montevidéu, nós fomos em 1997, fizemos contato e começamos a seguir essa associação, pra trazer pro Brasil toda essa reflexão sobre responsabilidade, ética do design, produtos, linguagem, ver o mundo, os problemas dos nossos colegas fora, pra ver se o nosso aqui era igual, diferente, ou similar. A gente foi construindo aí uma ideia também de globalização e de mercado, que foi ajudando a gente a trazer pro Brasil e estruturar um jeito de trabalhar que fosse nosso, mas que tivesse sintonizado com questões internacionais.
Em 1999 a gente foi pra uma dessas bienais que aconteceu em Sydney, na Austrália. Era véspera da Olímpiada de Sydney e esses eventos tinham altas palestras de designers do mundo inteiro, os caras mais front-end e a gente voltava em estado de choque. Nessa época, o que aconteceu? Brasília era candidata a sediar a Olímpiada de 2000 e Sydney era a outra candidata; o Collor, que era presidente na época, fez um concurso nacional pra escolher a marca da candidatura de Brasília, pra sediar os jogos, caso Brasília ganhasse. A gente entrou no concurso e ganhou, por unanimidade de júri e a gente teve que descer a rampa com o Collor pra poder receber o prêmio, porque era o Dia do Índio, aniversário da cidade de Brasília. O Eixo Monumental estava todo decorado com a nossa marca, com esse momento emocionante, seu símbolo decorando o Eixo Monumental de Brasília.
Se Brasília tivesse ganho a candidatura, a gente teria feito uma identidade visual olímpica, mas Sydney ganhou e a gente foi lá, assistir o congresso. Um dos cases foi o da identidade visual da Olímpiada de Sydney, de um escritório que também eram três sócios, curiosamente. Ficamos amigos depois e, quando eles demonstraram o case, como eles tinham se inspirado? Na linguagem, no traço da cultura australiana e mostrando o conceito que gerou a forma. Eu falei: “Não, aí tem uma coisa, então tem um conceito que determina que você vai fazer isso não porque você gosta, ou porque acha que é bonito, porque ficou bacana, porque é um problema só de estética, mas é porque isso fala sobre uma cultura, uma visão de mundo, uma identidade, um ser, uma essência”.
A gente voltou, eu comecei a... Estava chegando ao Brasil aquela história de branding. O que é branding? Começou a aparecer como essa gestão estratégica de marcas, quando o mundo começou a se globalizar. Então, como seu concorrente não estava mais do outro lado da rua, mas na China, como é que você se diferenciava de um produto de um concorrente que você nunca encontrou, nunca vai encontrar e que estava em qualquer lugar? Tinha que ser mais preciso, mais singular e se posicionar melhor com os seus diferenciais, pra ficarem mais evidentes. Aí nasceu essa disciplina de branding. Eu falei: “Isso nós precisamos trazer pra Oz”. E não é uma coisa de designer, é um outro tipo de profissional, de cabeça, outro jeito de escutar e se relacionar, e nem tinha. Quem faz? Quem é o ‘brandeiro’? Vem de onde esse cara? É historiador, não é? E até hoje não tem. Tem quem acaba desenvolvendo uma sensibilidade pra lidar com questões de quase psicanálise corporativa, porque eu brincava muito que o que a gente faz, nesse momento de interação com o cliente, antes da forma, de dar a ele como ele fala tentamos descobrir quem é que está falando, quem é esse sujeito coletivo, quem é ele, como você captura isso. É através de umas sessões de psicanálise, você tem que escutar, ouvir, provocar, cutucar: “Mas por que você faz isso? Por que você gosta disso? Por que você não faz outra coisa? Olha o outro o que faz. Você faz e o que você acha?” É toda uma construção de uma interação prévia à expressão, que vai dando forma; ainda é estética, mas da forma do conteúdo. Não é da forma ao conteúdo ainda, mas é dar forma ao conteúdo, porque às vezes a gente chegava no cliente e ele falava: “Eu tenho um negócio incrível, está aqui e tal”. E a gente fala: “Não é tão incrível assim”. Quem fez acha, mas não é, tem 28 iguais. Será que de fato já está suficientemente singularizado pra merecer vir ao mundo, ter uma identidade?
A gente acabou virando esse meio que provocador de aprofundamento da reflexão sobre vocação, essência, identidade, negócios, que teve que misturar um pouco de conhecimento de negócios, pela experiência também adquirida, de ter interagido com vários tipos de negócios. Então, eu, pessoalmente, fui me formando, nesses ‘segundos’ vinte anos, pela interação com vários executivos, aprendendo com eles e a dificuldade dos negócios, a falar com o vocabulário deles primeiro e a mostrar pra eles que as ‘dores’ que eles trazem não são: “Eu gosto de vermelho, de azul, esse logotipo não gostei”. Não é uma questão de desfile de moda, nem de desenho. É que isso não expressa quem eu sou.
Essa pergunta, ‘quem eu sou?’, é a grande pergunta de estratégias de marca, do meu ponto de vista, que nunca está respondida e não é pra ser respondida nunca. É pra ser uma reflexão permanente sobre valor, essência, identidade, negócios e razão social, que é um termo que as empresas usam, mas que desconhecem que uma empresa que tem uma razão social não pode estar orientada só pra devolver lucro pros acionistas, que a maioria das missões, dos valores que tem nos banners das empresas e muitas delas ainda se posicionam assim teoricamente, é: missão, ser a líder do seu segmento; visão, gerar lucro pros acionistas; valores, ética, blablabla. Isso aí não é só você, é todo mundo, então o que tem de único aí? Quem é você nesse ‘mar de mesmice’ e copy paste, que a maioria das empresas usam?
A gente foi, então, tornando esse tipo de pergunta mais incômoda pros clientes, mais profunda e construindo pra nós mesmos essa consciência de onde que encaixa o que a gente gosta e sabe fazer.
Na Oz, eu fui me dirigindo mais pra essa terceira área, que estava ligada à marca, mas onde eu comecei a misturar estratégia. Trouxe não-designers pra equipe, gente com uma visão mais próxima desse tipo de repertório. Já tivemos sociólogos, historiadores. Meu sonho era assim: eu tenho que ter uma equipe pra fazer isso, tem que ter um filósofo, um historiador, um sociólogo e eu não vou conseguir contratar isso tudo, porque eu não tenho dinheiro pra ter uma equipe dessa, então eu comecei a me capacitar individualmente pra isso tudo. Então me interessei por psicologia, fui estudar um pouquinho, meio ler coisa de psicologia, porque eu sou bem autodidata. Filosofia, comecei a estudar um monte de coisas na Casa do Saber, que tinha aparecido lá perto da minha casa. Falei: “Vou fazer um monte de cursos”. Descobri a maravilha da filosofia, que é onde as grandes perguntas são feitas e hoje meu trabalho é fazer grandes perguntas pros clientes, que possam fazê-los entrar num ciclo de autorreflexão identitária, de valores, de ética, pra eles se posicionarem de fato.
Tentei misturar em mim mesmo esse tipo de competências, pra eu virar uma ferramenta multidisciplinar de leitura, de contexto, mais precisa, mais afiada, tentando trazer um pouco de cada uma dessas disciplinas. Depois fui estudar literatura também, porque percebi que a narrativa que está no storytelling, que é uma das dimensões do branding, é como uma história é bem contada. Você pode ter uma boa história mal contada. Você pode ter uma história muito legal, mas está mal contada. Então, de novo volta pra questão de poética, literatura, arte, forma, a palavra precisa para o branding de uma empresa. A palavra que está no slogan, tagline, ou nome da empresa, tudo isso é da natureza da literatura e aí fui estudar literatura também. Estudo literatura há vinte anos, em vários cursos de grupos de estudo e fui, então, procurando me capacitar pra lidar com esse lugar, que é bastante de sniper.
Hoje eu brinco que você tem que ter uma precisão de leitura de terreno muito boa, ao ponto de você saber a hora que você vai onde está a grande questão. Imagina explicar isso pra cliente, que vem te pedir um logotipo, uma ‘papelaria’. Fala: “Não, espera um pouquinho, vamos começar perguntando quem é você”. Nisso a gente perdeu muitos clientes, tentando introduzir esse jeito de ver e ‘ler’ o mundo e entender que tem valor isso, porque é daí que vai sair algo que ele coloque valor no mundo. A nossa missão é ajudá-lo a descobrir seu próprio valor, a sua vocação e como ela se manifesta e chega ao mundo; depois que você sabe quem você é, tem que encontrar como conta isso e é aí que entra a linguagem, o desenho, a estética como expressão de uma verdade que precisa ser primeiro capturada, desenhada também.
Eu brincava, em um certo momento, pro cliente entender, que tinha dois momentos de desenho: o desenho do conteúdo e o desenho da forma, que era o jeito que eu encontrei de explicar essa coisa difícil mesmo de explicar e dizer que conteúdo é assim: “Nós precisamos primeiro desenhar o que você tem pra dizer, sem falar muito quem é você”, porque as pessoas não gostam, essa pergunta é muito incômoda. Fala: “Não, eu sei o que eu faço, eu faço prego. Lógico, imagina! Como assim? Fazemos prego”. Tem alguns contextos que são realmente muito limitados, mas você tem que encontrar a beleza do prego, ou como eu falo de prego de um jeito poético, ou que tipo de prego é esse e ir ‘descascando essa cebola’, até chegar em algo que tenha uma transcendência, além do funcional.
Fui tentando também, eu mesmo, encontrar jeitos de fazer com que o cliente percebesse a natureza do que a gente tem pra oferecer, dando nomes. Então, uma época falava _________ , depois falei ‘psicanálise corporativa’. Falava: “Psicanálise, vou ter que deitar no divã?” “Não, o processo pressupõe análise”. E hoje eu acho que a gente faz, nesse meu novo negócio, uma mistura de psicanálise, mas é mais próxima da acupuntura.
Hoje acho que, de fato, o desafio que está colocado, quando a gente entra em contato com um... Não é cliente, mas é um interlocutor, com quem a gente vai trabalhar junto; não é fornecedor e cliente, mas é um processo desenhado por nós, de co-criação. É tentar ver que pontos dessa identidade tem a energia represada, que o fez precisar de ajuda, chamar alguém; alguma coisa está travada. E é nesses pontos que, pra encontrar, tem que conhecer um pouco os meridianos, o mapa corporativo, que você tem que fazer perguntas incômodas, ‘botar uma agulha’ ali e destravar essa energia, que vai fazer uma ampliação de autoconsciência, que constrói valor, consciência, mensagem. Ou seja: “Aí eu tenho algo a dizer pro mundo” e aí começa o processo de expressão, mas de algo que já está destravado, que tem um valor realmente desenhado.
Uma das coisas que eu venho tentando e percebi também e virou uma coisa importante no jeito que eu trabalho hoje é perceber que o valor não é algo que está dado, o valor é algo a ser construído. A natureza tem um monte de matérias-primas: madeira, árvore, planta e tudo, mas até uma madeira virar uma cadeira, ter um valor, que é funcional - sentar - ou simbólico, que é uma cadeira italiana, cultural, ela precisa que alguém transforme a matéria-prima em valor e essa transformação de um recurso num valor é território do design. Trata-se disso o design: você dar sentido, identidade e uso, não só funcional, mas simbólico também, cultural, antropológico, preferência, algo que te agrada, que tem cheiro, gosto, que é bonito, que mistura o funcional com o sensorial, com o estético e com a alimentação do espírito também, não só do corpo. Essa combinação, pra mim, é que constrói valor.
Hoje, quando a gente interage com os clientes, o desafio sempre é esse: tentar ver que oportunidades de construir valor tem quando a gente é envolvido no processo, como a gente pode ajudar esse valor a se manifestar, sendo um interlocutor de fora, que pode ver coisas que o cliente, de dentro, não consegue ver, e também se transformando ao longo do processo, descobrindo e sendo descoberto pelo cliente, nesse diálogo sofisticado que acontece no processo de trabalho.
Hoje eu trabalho muito mais com essa visão de que tudo que eu vendia como produto, antes: um logotipo, um branding, hoje pra mim é processo. Primeiro porque uma marca nunca está pronta, uma corporação é um organismo vivo, está sempre tendo que se refinar e mudar e a velocidade do mundo faz com que isso tenha que acontecer cada vez mais rápido; enquanto processo, você precisa desenhar um bom processo, porque um processo bem desenhado garante que, no final, vão sair bons produtos.
Isso tudo veio da relação de um projeto com a Lello, curiosamente. Depois eu vou contar isso, quando a gente começar a falar da Lello, de onde surgiu esse insight, nesse processo que a gente desenvolveu junto.
(01:29:45) P/1 – Queria voltar. Você falou muito da sua forma de trabalhar, de como foi você construindo essa forma. Queria que você me falasse, então, de alguns projetos que marcaram você, a Oz. Você falou um pouquinho, por exemplo, da marca olímpica sobre Brasília. Tem alguns outros que foram desafiadores, pra vocês, enfim? Que marcaram pro bem, ou pro mal.
R – Sim, tem.
Na trajetória que você faz de jovem profissional pra um profissional conceituado, que tem alguma marca também, que seja reconhecida pelo mercado, como é que essa confiança é construída? A partir do tamanho dos clientes que você atende. Então, um cliente hoje que chame alguém, quando ele te pede um portfólio, ou vai te procurar na internet, ele quer saber pra quem você já trabalhou. Ele também não tem uma régua pra julgar se você é bom ou ruim, ele não sabe quem ele está contratando, então ele meio que usa o ‘olho dos outros’: “Ah, você já trabalhou pro Hospital Sírio Libanês, pro Oswaldo Cruz, pra Porto Seguro? Então, são sérios”.
O maior desafio de quando você começa a montar seu próprio negócio é construir essa reputação, que vai dar segurança pro cliente que ele não está ‘entrando numa roubada’. E isso não termina nunca. Eu tenho 43 anos e cada reunião que eu faço com um cliente novo eu tenho que mostrar quem eu sou. Primeiro porque os clientes, hoje, que podem entrar em internet e dar uma ‘googlada’ não fazem isso pra saber com quem eles estão falando, então eu tenho que repetir, mas mesmo que você tenha uma longa trajetória, sempre o ‘namoro’ entre o cliente e o fornecedor, ou parceiro, é uma relação de comprar algo que você não conhece, ou contratar o que você não sabe como você vai receber - a qualidade, se é boa ou não. Você tem que usar indicadores indiretos, então grandes clientes ou prêmios são formas de você ir construindo essa reputação.
Como eu falei, ter ganhado concurso pra fazer o mobiliário urbano de São Paulo foi uma primeira grande vitória. Depois o marco olímpico de Brasília, jornal, notícia, outra grande vitória. Isso foi trazendo pra nós segurança e pro mercado, confiança, e atraindo, trazendo outros clientes, que foram numa escala crescente de porte e distância da gente, ou seja, não era mais parente, amigo de parente; era um cara que ouviu falar de você em outro estado, outro país. Isso vai dando muita alegria, senso de estar fazendo coisas certas e vai melhorando, ou aumentando o grau de responsabilidade.
Marcos da nossa história que me venham agora: a gente, num certo momento, pegou a American Express como cliente, que era internacional. Tinha uma relação de amizade de um diretor lá com o Giovanni, meu sócio, mas atender o American Express era altamente sofisticado, porque a gente faz a marca do cartão de crédito deles quando eles chegaram ao Brasil, com um cartão que pela primeira vez era lançado pela American Express - um segundo cartão, porque a marca nunca tinha nenhum cartão, mas como o Brasil era um país novo, no momento, eles resolveram lançar um cartão de crédito específico, com nome solo; a gente fez a identidade visual dele e foi um baita sucesso aqui. Então, a gente: “Trabalho pra American Express”. Você ‘enche o peito’ quando está com os amigos e isso te dá status e segurança.
E aí foram surgindo clientes que já nem lembro muitos, mais, mas cada um deles era legal, porque você entrava numa outra indústria, aprendia um outro tipo de visão de mundo, outro tipo de produto, outro tipo de cultura corporativa, que hoje eu valorizo, que é se relacionar com jeitos de lidar com o negócio, visões de negócio. É uma formação permanente de repertório, de refinamento e questionamento do seu próprio repertório, da sua visão de mundo, da sua leitura de contexto, que vai te dando uma riqueza de compreensão do momento histórico que você vive, de mundo, dos valores, de pra onde a gente está indo, o que pra mim é o grande interesse, de estar numa profissão que me permite pensar o mundo criticamente, socialmente, culturalmente. O que a gente está fazendo aqui bem, mal, o que poderia melhorar e como eu entro nessa equação e posso ajudar a ser parte da solução, não do problema, porque hoje é fácil olhar e ver muita coisa altamente criticável na nossa realidade, no nosso país e no nosso momento de mundo, mas clientes também.
Teve a American Express, depois a gente passou a atender a Coca-Cola, que é um cliente também global, internacional, de grande responsabilidade. [A gente] ia pro Rio de Janeiro fazer reunião toda semana. A gente já era uma Oz estruturada, de 45 pessoas, muita administração de processos misturando. Como a gente entrega e garante qualidade olhando tudo, mas de repente nem conseguindo olhar tudo que sai da ‘fabriqueta’?
(01:35:20) P/1 – Vocês chegaram com 45 pessoas em que época, que ano?
R – A gente chegou acho que foi por volta dos anos 2000. Teve um cliente importante, que foi a Unilever. Antes da Coca-Cola a gente, por relações de amizade também… Eu tinha um amigo que era diretor de marketing na Unilever, nessa época que fazia embalagem publicitária. Ele me conheceu e falou assim: “Nós temos que lançar...” – ele era diretor de sabão em pó Omo, que era uma marca que tinha só Omo, não era uma masterbrand, era uma marca… “Estamos lançando uma versão nova de Omo ultraconcentrado, que tem no Japão e nós estamos trazendo pro Brasil, na Unilever. Você quer fazer a embalagem pra nós?” E aí eu comecei a fazer design de embalagem. Fiz durante quinze anos a embalagem, por isso que depois eu não quero fazer mais, porque eu já sei tudo que precisa saber e durante quinze anos atendemos a Unilever, fazendo um trabalho que começou com o Omo e depois foi evoluindo.
Num certo momento a gente tinha quarenta marcas da Unilever que a gente atendia: fazia Omo, Minerva, Campeiro, Brilhante, Signal, Toc - desde house care, personal wash, tinha todas. Eu entrava na Unilever e num certo momento da minha história eu era mais conhecido que o presidente lá, porque eu conhecia todos os gerentes de produto. Nessa época, a relação era com esse nível de management, o middle management das empresas, o gerente de marcas; quando é produto de consumo você fala sempre com o gerente de marcas.
A gente tomava conta de lá e durante quinze anos a gente fez muito design de embalagem. Foi uma época que a Oz pôde, financeiramente também, se estabelecer, porque eram trabalhos complexos, bem remunerados - eu sabia cobrar bem, porque eu sabia o valor que tinha o que eu estava fazendo.
Tem um episódio clássico que eu vou aproveitar pra contar, que era assim: a gente fazia embalagem de Omo. A cada três anos eles faziam uma concorrência pra ver quem... Oxigenar, se tinha outro fornecedor que pudesse melhorar. A gente participava da concorrência e ganhava todos os anos. Por quinze anos a gente foi submetido à prova concretamente e muitas vezes trocava o gerente de produto, que falava assim: “Não, eu queria ‘mexer’ na embalagem”. Eu falava: “Você não está entendendo: a marca que você está administrando é uma top of mind do Brasil, não pode mexer nisso”. A gente virou quase um cuidador, sendo designer, do que deveria ou não preservar de história e reputação daquela marca, pra ir mudando-a aos pouquinhos, porque saía da fábrica diariamente um milhão de caixas, reproduzindo a arte que a gente criava. Eu sabia que isso tinha valor e cobrava bem por isso. Até que em um certo momento três advogados da Unilever me chamaram - não sei eu posso falar isso em depoimento… (risos) - pra discutir porque era tão caro fazer uma embalagem, uma artezinha de embalagem de caixa de sabão em pó. Uma época eu era conhecido pelos meus colegas como designer de sabão em pó, aliás. E eu expliquei: “É o seguinte. Se vocês não quiserem pagar, não tem problema. Estão achando cara a embalagem? A gente combina assim: cada caixa que vocês imprimirem vocês me pagam 0,00001 centavo por caixa. Topa, ou não?” Obviamente não toparam, porque [foi] aí que eles entenderam que o valor não estava em quanto eu gasto de tempo, mas o número de cópias e de imagem que isso tinha pra Unilever, colocadas em milhares de prateleiras, no país inteiro, top of mind de um país, diariamente. Eu teria me aposentado financeiramente se eles topassem me pagar 0,001 por cento por caixa vendida.
Continuei praticando o preço, mas depois eles acharam que estavam dependentes demais de nós e resolveram mudar o contrato, aí mandaram um e-mail, dizendo que a gente não era mais fornecedor deles, assim, sem mais.
(01:39:12) P/1 – Como é que é você andar na cidade, ou ir em um mercado e ver coisas que você desenhou?
R – É muito legal. (risos) Hoje eu até já nem percebo mais, mas tinha uma época que eu olhava e falava assim: “Nossa, essa embalagem eu que fiz. Nossa, esse logotipo [fui] eu que fiz. Nossa, isso aqui eu que fiz.”
Num certo momento da sua vida você se encanta com ver a sua marca no mundo, você está participando da paisagem. Hoje em dia às vezes até eu esqueço, porque é tanta coisa que eu já coloquei aí no mundo, que o meu radar está focado em culturas que eu ajudei a transformar mais, hoje em dia, do que em marcas, mas obviamente é superprazeroso você ver uma coisa que você gosta ainda, que você desenhou e que continua lá, depois de dez, quinze anos, ainda contemporânea, como a marca do Sírio Libanês, por exemplo.
Eu tenho muito orgulho de ter feito esse projeto, primeiro porque é da comunidade à qual eu pertenço, mas curiosamente chegou por outros caminhos, no momento em que eles estavam querendo traduzir a excelência do hospital e tinha uma identidade visual que nem era trabalho estratégico ainda, mas que era uma enfermeira - uma coisa superantiquada, difícil de bordar, inclusive, o uniforme, por problemas técnicos. Já tinham chamado quatro ou cinco escritórios e as donas - porque o Hospital Sírio Libanês é um hospital beneficente de senhoras, quem toca aquilo ali, manda, são senhoras da comunidade sírio-libanesa, é um centro filantrópico, que decide tudo - elas não gostavam de nada. Aí o superintendente, na época, o Doutor Paulo Chapchap, que era meu amigo, falou: “Você não quer tentar fazer um projeto lá, pras senhoras? Quem sabe você, como sírio, também, consegue capturar o que elas estão imaginando?”
A gente fez uma primeira imersão, tentando entender o que era, ainda embrionariamente, com uma abordagem estratégica, tentando entender qual a razão de ser do Sírio Libanês, como é que ele se posicionava. Numa reunião, a Dona Violeta - que tem o nome até da rua lá, que era uma das fundadoras, estava acho que com 102 anos, na época e ainda ia em reunião - falou assim: “O Sírio Libanês existe porque nós temos que retribuir a generosidade desse país, que nos recebeu quando a gente veio pra cá. Então, é filantropia, porque a gente tem que devolver”.
Isso me despertou. Eu estava estudando Nietzsche, na época, filosofia e [tem] a questão que ele traz muito, de poder. Toda vez que você faz uma generosidade, você inconscientemente constrói uma relação de poder: “Eu sou bom e você é ruim, eu estou acima e você está abaixo”. Essa fala da Dona Violeta me fez pensar que a gente tinha que ressignificar a ideia de filantropia como uma retribuição, não como um dar: “Eu não sou melhor que você. Eu estou te devolvendo algo que é de direito seu e, portanto, colocando o paciente, ou a comunidade, acima dos médicos e da própria instituição, sendo a instituição uma prestadora de serviço”.
Isso mudou a visão de tudo, a lógica e o símbolo, que é uma comunidade de formas de pessoas, famílias em torno de um ideal. Tem uma inspiração estética na marchetaria sírio-libanesa, porque a gente, também, estudando o contexto da saúde no país, percebeu que, como o Brasil é um país de imigrantes, toda saúde está concentrada em comunidades imigrantes. Tem o Sírio Libanês, dos sírio-libaneses; o Einstein, que é dos judeus; a Beneficência Portuguesa, dos portugueses; Oswaldo Cruz, dos alemães. São entidades que nasceram pra atender os imigrantes que chegavam aqui hospitalarmente e viraram grandes instituições hospitalares.
A gente pensou assim: a identidade do hospital tem que ser única, ao ponto de só servir pra ele, então qual a estética sírio-libanesa que pode ser traduzida, ou traduzir os valores dessa cultura? E na questão da marchetaria, da mandala, da precisão e da ideia de forma lapidar, como é o símbolo, que parece um diamante, essa coisa de lapidação, pra traduzir uma instituição lapidada no tempo, que estava fazendo oitenta anos naquele momento, a gente chegou no símbolo que as senhoras adoraram, que ‘bateu de cara’ e virou o símbolo que até hoje eu vejo e está lá na fachada. Um baita orgulho.
(01:43:46) P/1 – Vamos entrar agora na Lello. Quando vocês... Melhor, vou reformular: como é que chegou na sua mesa? É melhor.
R – Isso. Aí é curioso, é melhor, porque foi curiosamente assim: num certo momento da Oz, que tinha essas quarenta e poucas pessoas e estava difícil administrar, a gente estava fazendo um trabalho pra Giannini Instrumentos Musicais, atendendo a Giannini, e ainda tinha essa lógica toda de design como entidade corporativa - forma ainda, não tinha nada de estratégico. Tinha um diretor na Giannini que era o João Pereira de Almeida, diretor industrial, com quem eu interagi muito nesse processo e que era um cara incrível. Eu falei: “Nossa, esse cara tem uma visão empresarial e uma visão sobre design que poucos clientes que eu tinha interagido tinham” - de olhar, escutar, entender, perceber o valor e participar do processo de uma forma muito diferente de todos os outros clientes que eu tinha tido na vida, que encomendavam, falavam ‘gostei, não gostei’, mas não conseguiam interagir e entender o que estava por trás dessa complexidade.
Acabamos ficando muito amigos, comecei a frequentar a casa dele. Ele tinha um sítio em Sarapuí, comecei a frequentar esse sítio e ele era muito amigo do Antônio Couto, um dos sócios da Lello. Quando a gente ia com a minha família, meus filhos pequenininhos, visitá-los e passar fim de semana com ele, em Sarapuí, tinha churrasco. Vinha o Couto, conheci o Couto, a Nádia, mulher dele, e fomos ficando amigos. O Couto, olhando o Almeida e o que a gente estava fazendo, ficou curioso, mas a gente se conheceu lá e ficamos amigos nisso.
A gente chamou, num certo momento, o Almeida pra dar uma consultoria pra Oz, porque a gente falou assim: “Você conhece processo industrial, nós estamos com um problema industrial: como é que eu organizo milhares de projetos saindo dessa indústria aqui, com processos? O que faz primeiro, cronograma, prazo, contratação, salários, estruturação de equipe?” Ele fez uma consultoria pra nós, porque ele estava, já nesse momento, meio querendo sair da Giannini.
Deu tão certo, porque a gente, todo sonho de artista que tem que tocar um negócio é assim: alguém que cuide do negócio, porque o meu negócio é ficar focado na arte. E a gente viu que todo escritório grande procura sempre encontrar alguém que toque o negócio, enquanto você pode fazer o que você sabe fazer melhor.
Ele fez essa consultoria pra nós, deu uma baita liga com meu sócio também, além de já ter dado comigo e a gente falou: “Você não quer vir trabalhar com a gente?” Ele estava querendo sair da Giannini, aí ele topou ir de uma indústria de violão pra uma indústria de design e entrou como sócio nosso. A gente o convidou assim: “Entra como sócio administrativo, é uma figura de gestão e você ajuda a gente a funcionar melhor, cada um com a sua frente de trabalho.”
[Ele] ficou um tempo com a gente e deu uma baita estruturada no nosso jeito de trabalhar, na organização toda. Com essa proximidade dele trabalhar conosco, a Lello se aproximou e estava num momento particular, aí o Couto chamou a gente pra uma conversa e falou assim: “Olha, a Lello está crescendo. Ela tem um monte de negócios e a gente não consegue mostrar essa diversidade.” Eles faziam, na época, consórcios, tinham uma construtora, tinham administradora de condomínios, tinham venda e locação, nem lembro mais tudo que era. “Como a gente faz isso aí? Como vocês fazem isso?” Aí a gente falou: “Bom...”, aí teve que fazer uma arquitetura de marcas e a gente fez um primeiro trabalho pra eles, que era desenhar uma identidade visual que traduzisse essa Lello como uma corporação, com vários ‘braços’. Naquele momento, a preocupação dela era mostrar amplitude de negócios, mais do que foco, e a gente os ajudou nessa situação estratégica, mas ainda dentro do território de identidade estratégica, ou seja, de marcas, fazendo submarcas, cada um com um ‘logotipinho’. Então tinha Lello Condomínio, Lello Consórcios, Lello Construtora.
Criamos esses desenhos pra eles e isso os ajudou muito a ganhar um certo status e um certo porte no mercado, pra falar: “Nossa, essa Lello é poderosa”, essa coisa de incorporação. Não é só um business, mas uma série de business e a Lello como uma holding - nem tinha, na época, esse conceito de holding, surgiu muito depois, do ponto de vista corporativo.
Fizemos esse trabalho pra eles, foi superlegal, ficamos muito amigos e eles tocaram a vida, a gente continuou tocando a vida. Depois, quando chegou a questão da tecnologia, da informática, de novo eles lembraram da gente e nos chamaram, o Couto nos chamou de novo, pra falar que eles estavam num momento de digitalização, precisavam informatizar processos lá e tinha essa questão de como é que eles faziam pra mostrar isso do ponto de vista de identidade e de criar uma estética pra plataforma digital. Tinha um problema específico lá, que eu estou me lembrando agora, que era a pasta de prestação de contas, porque ele cuidava da administração de condomínios e o Zé Roberto, que é o outro sócio, cuidava da venda e locação. Estava estruturada, a Lello, nessas duas... Já não tinha mais consórcio, já não tinha mais nada disso; tinham virado, realmente, uma empresa especializada, com essas duas frentes de trabalho e o Couto, que eu tinha mais amizade - o Zé Roberto eu fui conhecer depois - tinha essa necessidade: “Como eu faço pra digitalizar essa pasta de prestação de contas?” Porque todo mês, o que acontecia? Todas as contas que o condomínio tinha que cobrar, juntavam tudo numa pasta com fecho, fechavam tudo, botavam num carro da Lello e iam levar em todos os prédios que eles tinham, então era uma logística absurda e gasto de papel. O cara pegava isso aqui, o síndico, botava no armário e tinha que estocar aquelas pastas. Como estava chegando a digitalização, eu falei: “Nossa, tem que digitalizar isso aí. Vamos eliminar essas pastas, transformá-las num dado digital” - era bem no começo, não era tão comum isso.
Foi um passo de modernização que já deu uma grande diferença e abriu, ‘acendeu uma lâmpada’ sobre o que estava acontecendo no mundo, com a chegada da tecnologia.
Aí a gente começou a fazer pequenos trabalhos pra Lello, coisas pequenas, pontuais. Num certo momento, o Couto começou a ter uma inquietação mais estratégica do ponto de vista da Lello Condomínios. Ele achava que eles tinham que passar por um processo de branding. Já tinha esse nome, já tinha chegado a ideia de branding como posicionamento de marca, com toda essa abordagem estratégica. Eu já estava fazendo isso, bastante, nesse momento, já tinha montado uma equipe de branding dentro da Oz e a gente falou pra ele: “Então, vamos entender em que momento a Lello Condomínios está e vamos fazer um processo de imersão”. Fizemos uma entrevista, conduzimos o processo do jeito que a gente costuma conduzir e a gente percebeu, nessa primeira imersão, que tinha um risco muito grande, que talvez não estivesse tão evidente, que a chegada da tecnologia trouxesse uma ameaça pra maneira como se fazia a administração de condomínios, então.
O que era a administração de condomínios, basicamente? Você mora em prédio, mas como você encontra essa marca? Ela te manda um boleto. E cuidar da administração financeira do condomínio era distribuir boleto, que era uma coisa que não necessariamente era complexa, mas de repente o algoritmo pode fazer isso. Então, a gente falou pra eles: “Olha, tem uma ameaça importante aqui, que é: se a gente achar que o que a gente faz bem é a contabilidade, o algoritmo vai fazer isso aí amanhã e nós vamos ficar sem negócio. Um computador vai fazer isso muito melhor que nós. Será que é isso mesmo que um administrador de condomínios faz? Vamos entender pra onde vai o mundo, com a chegada da tecnologia, pra onde vai a vida das pessoas, como é que os condomínios vão mudar, como é que vai mudar o morar, o trabalhar.”
Propusemos a eles fazer uma parada técnica importante, num workshop de dia inteiro, que a gente desenhou, pra gente fazer essa leitura de contexto de mundo, que é um jeito que a gente trabalha até hoje, quando tem contexto que você precisa entender a realidade e a mudança de realidade que impacta no negócio e no próprio valor da marca. E eles toparam, o Zé Roberto e o Couto falaram: “Vamos fazer”. E foi assim.
Esse é o grande talento que eu atribuo ao Couto e ao Zé Roberto, de apostar, ver que tem alguma coisa que, mesmo que você não compreenda a princípio, você acha que tem coisa ali que vale a pena bancar. Então, montamos um workshop com 12 convidados, misturando cabeças, gerações. Tinha o arquiteto; o urbanista; o artista plástico; tinha uma influencer, uma menina de tecnologia, porque a ideia era falar assim: o que essa chegada da tecnologia vai provocar no mundo? Como o nosso mundo de administração de condomínios muda com essa chegada e qual o nosso novo lugar nesse mundo?
Já era uma missão muito mais complexa do que logotipos que a gente tinha feito, ou ajudar a desenhar a pasta, muito mais interessante do ponto de vista de desafio estratégico. E esse dia eles mesmos falam que marcou a história recente da Lello, porque foi um dia de enlightening, saíram todos iluminados, porque o nível das conversas, o jeito que a gente desenhou o encontro, quando chegou a palestra de uma futurista, falando sobre o futuro próximo, o futuro longo e a tecnologia. Sabe, um ‘banho’ de ‘o mundo mudou’ e tinha o futuro da casa... Eram três futuros: o futuro do morar, o futuro do trabalhar e o futuro do lazer, se divertir, pra ver o que é administração de condomínio nesse novo contexto e o que é condomínio. Estava chegando o Airbnb, novos tipos de relação com o próprio espaço, as pessoas nômades, tudo mudando.
Dali surgiu um insight superpoderoso, nesse workshop, relacionado a oportunidades que a Lello não estava vendo, que era assim: já começavam a chegar temas de sustentabilidade no planeta. Isso foi em 2014. [Em] 2013 a gente voltou a fazer esse trabalho, em 2014 que a gente fez esse trabalho de branding e esse workshop. E a gente descobriu que: por que a Lello - que administra, sei lá, já tinha mil prédios em São Paulo - tem cinco prédios numa quadra e cada um deles tem um piscineiro, um jardineiro, o seu _____, tudo pequenininho? [Por que] não integra isso tudo numa pequena superquadra, numa lógica urbanística diferente, de forma que você possa compartilhar esses serviços, ratear custos e ter uma comunidade maior sendo construída?
Aí começaram a prestar atenção na questão da comunidade, de que um prédio, no fundo, é uma microescala do planeta, porque em administrar condomínio o complexo não é distribuir a contabilidade, é como essas pessoas disputam espaço, como elas convivem, porque a gente olhava pra reunião de condomínio e é o ritual antropológico mais enviesado que existe, porque você vai lá pra brigar. Já está ‘setado’ pra brigar. Por quê? Porque o ser humano, quando tem que dividir espaço, já entra em conflito. E a gente começou a se perguntar como a gente reverte essa lógica que está instalada nos condomínios e que é uma réplica da sociedade que a gente vive, porque a imagem símbolo dessa reflexão foi assim: o planeta Terra escrito condomínio. Um deles falou assim: “Eu moro em casa, eu não moro em condomínio”. Não. Todo mundo mora em um condomínio que se chama Terra, pra começo de conversa. E todas as guerras, conflitos são frutos dessa disputa pelo espaço, ou ter que conviver e dividir espaço com o outro e ter que aceitar o outro diferente de você e ter que chegar em um denominador comum, num consenso. O microcosmo dessa complexidade planetária é um prédio, por isso que a gente tanto briga, que é o seu cachorro, o meu vizinho, o seu cano, meu carro, minha vaga na garagem. Então, começamos a ver que todos os problemas de condomínio eram antropológicos e que a Lello tinha que se reposicionar de ser uma administradora de condomínios, no sentido de continuidade, pra ser uma facilitadora da vida em comum. E, portanto, incorporar outra competência, que é a de mediar relações sociais, onde você tem que dividir, mas que tem que chegar no meio termo e vai ter que ‘resetar’ esse encontro de um jeito que você reverta a lógica de conflito instalada nas reuniões de condomínio padrão. Isso gerou a ideia de fazer, aprofundar essa ideia de superquadra, porque isso ia dar economia de escala, podia significar sustentabilidade, abrir, novos produtos podem surgir disso e a gente resolveu fazer um laboratório, pra explorar a extensão das possibilidades que essa ideia permitiria.
Aí nasceu o LelloLab, que hoje é um tripé: a Lello tinha Lello Condomínio, a Lello Administração, Venda e Locação e o LelloLab hoje é um terceiro polo, que acabou virando polo, mas era um embrião de reflexão sobre temas do convívio, da cidade, do condomínio enquanto uma complexidade administrativa, que a Lello deveria ser a ‘rainha’ de entender e ajudar a construir boas comunidades. A gente resolveu fazer uma exploração porque, enquanto laboratório, a gente tinha que ‘laboratoriar’, experimentar coisas urbanas.
Como começou isso? A gente falou: “Bom, temos que ter uma equipe trabalhando nisso. Não pode ser dentro da Lello, porque a Lello tem o dia a dia dela que, se misturar com a questão urbanística, não vão se entender”. A gente estava estudando muito inovação, nesse momento, estava vendo modelos de inovação que não funcionavam quando você punha dentro da empresa e que quando é dessa natureza disruptiva, ela tem que estar em separado, então, a gente falou: “Vamos fazer dentro da Oz. A gente vai botar duas pessoas que estão trabalhando na LelloLab, vamos cuidar delas, fazer esse projeto, desenvolver todas as possibilidades dessa ideia de superquadra e tudo que vem junto, estando perto dessas pessoas”. E durante seis meses o LelloLab funcionou dentro da Oz, como uma área que eu estava cuidando, junto com a Suzana, que hoje é minha sócia, que era diretora na área de estratégia, junto comigo. Trouxemos uma pessoa focada, com repertório, pra cuidar desse tema da cidade, que era uma pessoa que já estava ligada nisso e uma gestora de processos e formou esse núcleo mínimo, pra poder desenvolver essa ideia, tudo que isso pode dar.
Durante seis meses fomos crescendo e descobrindo um monte de possibilidades, todas interessantes, nesse reposicionamento da Lello Condomínios, pelo menos no jeito de ver e explorar possibilidades. Aí a coisa ganhou uma escala que a gente percebeu que tinha que trocar a equipe, já tinha que ter uma equipe que tinha que sair de dentro da Oz, tinha que ser maior. Chamamos um consultor amigo, que eu tinha visto uma palestra dele e o tinha achado incrível, que é o Caio Vassão, que foi consultor durante muitos anos do LelloLab conosco, como convidado, pra ele, formado na FAU também, doutor em Comunicação e em Urbanismo… [Ele] tinha uma visão de cidade, de estruturação de comunidades muito madura e a gente o trouxe pra ajudar a estruturar essa nova fase do LelloLab, que é 2.0. A gente trocou a equipe, montou uma outra equipe com três pessoas, mas outro tipo de repertório, então um cara ainda de urbanismo, um historiador, o Davi Moreno, que você conhece, e uma pessoa ligada à gestão de comunicação, pra poder lidar com todas as comunidades, e a gente fez um workshop.
Aliás, antes disso a gente fez um workshop no laboratório, antes dessa fase, que vale a pena contar. A gente falou assim: “Vamos pegar um protótipo, tipo: onde a Lello tem seis prédios, que a gente possa testar, fazer um evento, pra ver como a gente junta comunidades”, porque a gente percebeu que a relação de condomínio tinha algumas características. Você tem a relação intracondominial, que é como os moradores se relacionam entre si, que era conflito puro, porque estava disputando o mesmo espaço; tem a intercondominial, que é assim: meu prédio com seu prédio, com seu prédio, com seu prédio. Não estamos disputando vaga de garagem, mas dá pra gente se juntar pra melhorar a praça, que é comum a todos; e tinha a do condomínio com a cidade. Então, a gente falou assim: “Pra mudar a intracondominial, vamos começar pela intercondominial. Vamos pegar seis prédios”. A gente foi pra Vila Ipojuca, vimos lá que tinha um lugar que tinha seis prédios, tinha uma praça totalmente abandonada, uma vocação pra gerar um evento de sábado e a gente montou uma força-tarefa de montar um encontro de música, arte, comida, com o pessoal do bairro - padaria do bairro, cervejaria do bairro, porque o bairro lá é cheio de criativos - e convidar a comunidade pra sair do prédio, descer e encontrar os outros prédios e fazer esse experimento antropológico de misturar pessoas, com um tema que é comum: aquela praça podia ser melhor cuidada por nós e todo mundo que mora perto poderia usar. Era uma praça de maconheiro, está abandonada, mal cuidada. Nós fomos lá, limpamos a praça, arrumamos, pintamos, fizemos tudo no braço mesmo, pra ver o que acontecia e misturar o pessoal que tocava música: “O senhor toca música no bairro, vai tocar, vai fazer um show da música, que é seu vizinho, que você nem conhece”.
Nós começamos a perceber que o problema da vizinhança com a questão da segurança da cidade era que você não sabe nem quem é o seu vizinho de porta e você pode ter um ataque do coração e morrer por falta de assistência, sem saber que tem um médico no andar de cima. Como é que pode isso? Tem uma coisa muito errada na nossa sociedade. A gente falou assim: “Como é que esses vizinhos se aproximam, se conhecem?” O evento foi uma ideia de reaproximar essas pessoas e criar um evento comunitário, pra reconstruir a ideia de comunidade que a escala da cidade destruiu.
A gente falou assim: “A escala da cidade destruiu a ideia de comunidade. A quadra ainda é muito grande, o prédio é muito pequeno e dá conflito, então tem que ser a superquadra.” Era uma ideia de uma escala urbana que possa reconstruir a ideia de comunidade que eu conheço. “Sei que você mora lá, você é do outro prédio; se eu vir seu filho na rua eu vou tomar conta dele, vou cuidar dele.” A gente descobriu que na Alemanha tem um conceito que é o civil courage, que todo alemãozinho, ou todo alemão tem de família, que é: você olha pelo seu vizinho. Se seu vizinho, que passa todo dia, que é um velhinho, não passou no dia, você vai ver na casa dele porque ele não passou aquele dia. É uma espécie de conceito de comunidade que se cuida.
[A ideia era] reconstruir isso pras pessoas se conhecerem porque, como vocês não se conhecem, nem têm interesse em conhecer, você não vai cuidar, você não vai nem saber que o cara poderia te dar aula de piano e você está cruzando a cidade pra ter aula do outro lado. Então, nesse evento, a gente montou um grande painel, pra que as pessoas que tivessem descido dos prédios ou das casas - todo mundo em volta, o bairro estava convidado. A gente distribuiu convite, bexiga, tudo - pusessem lá: “Eu sou o Pedro, eu moro nesse prédio e eu também faço massagem”, “Eu faço, sei fazer bolo”, “Eu vendo, faço bordado”, “Eu sou professor de shiatsu, massagista” e montamos um grande painel de serviços comunitários que você poderia consultar, pra você conhecer os seus vizinhos, que você poderia falar: “Você faz pão? Nossa, eu preciso”.
Isso foi um ano e meio antes da pandemia, que fez esse tipo de necessidade de vizinhança acontecer de fato. “Não posso comprar em supermercado” etc. E aí foi uma experiência superinteressante, porque a gente montou esse mapa da Vila Ipojuca, que era depois digitalizado e virou o que a gente chamou de Tesouros do Bairro. A gente criou essa ferramenta de reconstrução da comunidade com nome, a batizamos de Tesouros do Bairro, que era assim: eu quero saber o que tem aqui do meu lado, porque isso me facilita a vida. Se eu tenho gato e eu vou viajar, eu tenho uma pessoa de cima que tem gato também, ela pode cuidar do meu gato? Coisas bobas, simples e que ninguém considera que é o lado bom da vizinhança. Todo mundo só olha pro lado ruim, a vaga da garagem, mas não: “Poxa, meu vizinho pode regar as minhas plantas. Chama a Amélia, que ela é simpática”. Então, recuperar a humanidade que a gente veio perdendo, com a questão da escala.
Isso virou um grande laboratório antropológico, aí essa segunda ‘onda’ que veio, de equipe e da ‘musculação’ do LelloLab, mudou o jeito de ampliar esse tipo de conhecimento, entendendo a complexidade e a escala que isso poderia ter. Montamos um time de antropólogos da USP pra poder fazer uma imersão antropológica de fato no condomínio, ainda em Pinheiros, porque a segunda ‘onda’ nossa de descobertas laboratoriais foi em Pinheiros, tentar descobrir e fazer eventos intercondominiais, workshops com artistas que já estavam no LelloLab mapeados, pra oferecer serviço dentro do outro prédio. E a ideia não era [se] encontrar numa praça, era entrar no prédio do outro agora.
Três prédios se dispuseram a abrir seu salão de festas e receber outras pessoas, entrar no prédio que você não é morador, porque a gente percebeu que tinha uma fronteira entre se é morador e não é, e essas grades que a gente vive cercado nos prédios virou a expressão da nossa sociedade contemporânea, insegura e de contraste social. Como é que você rompe isso, como é que você reconstrói tecido e vínculo e confiança, principalmente?
Foi também superlegal o evento, foi tudo desenhado pra ser esse tipo de exploração, descobertas: o que acontece? Por que as pessoas vão? Que idade elas têm, que faixa? Desenhamos, então, e aí o LelloLab tem quatro anos hoje. Enquanto Oz, no começo e depois, enquanto Playground, a gente cuidou desse LelloLab por três anos, até que ele atingiu um porte e uma escala que a Lello decidiu que tinha que ter um diretor específico, porque a gente cuidava de longe, com reuniões semanais, mas ainda não totalmente dedicados a ele, porque a gente tinha a vida pra tocar, mas era um projeto muito importante pra nós. A questão da inovação, que eu estava falando antes… Surgiu essa consciência que tem outra relação que você pode ter com o seu cliente, que não é de cliente-fornecedor e que não tem uma resposta pronta; você tem que conduzir um processo e no processo que você vai desenhando o caminho. Pra nós virou um insight: “É desse jeito que, numa sociedade dinâmica, fluida, veloz, fazer gestão de marca tem que ser, entendendo que organismos corporativos são complexos, que estão o tempo inteiro em transformação, não estão prontos nunca e essa é a beleza, inclusive, que vão... Afina e desafina, como falava Guimarães Rosa e a gente tem que interagir com eles nesse formato de uma presença continuada, mediando, facilitando, colocando ‘agulhinhas’ onde a gente sente que tem a necessidade de destravar algumas questões, dores e qualificando o processo com conhecimento, conteúdo, pessoas”.
Como no LelloLab a gente trouxe uma pessoa, depois trouxe outra, depois achou que precisava ter antropólogo, ajudamos a encontrar, a contratar, a gerenciar, a ‘brifar’, a coordenar, depois tabular, reunir o conteúdo, estruturar, preparar, pra isso ser... No conceito da LelloLab, o que a gente percebeu ali? Que tinha que ser um organismo separado, que iria provocar uma transformação cultural na Lello, mas que não era direta. Então, o LelloLab começava a trazer pessoas da Lello pra participar do LelloLab que, ao participar de um jeito de trabalhar tão diferente, tão ‘louco’, com pessoas tatuadas, com brinco, com piercing - porque a inovação tem esse problema: você tem que errar, não tem horário, é gente de outra geração e em uma corporação tem gente que tem horário, tem que entregar, não pode errar. São dois códigos que não podem conviver, eles têm que ser mutuamente influenciados, um pelo outro.
A ideia do nosso processo de transformar a Lello numa empresa inovadora… Porque a meta passou a ser assim: “Não quero ter uma área inovadora” – o Couto falava isso – “Não quero ter uma área de inovação, quero ser uma empresa inovadora, então tem que mudar a cultura da empresa como um todo. Como é que faz isso?” [É] uma transição muito longa, então a gente faz o laboratório, aprende o que a gente quer fazer e vai trazendo pessoas que, quando voltam pra cá, contando o que elas viram, vão sendo agentes de transformação. E aí começamos a fazer com que um produto LelloLab fosse palestras pra toda a Lello, interessada em: “Olha o que nós descobrimos; olha o que é o nosso negócio; olha pra nosso cliente, como ele pensa; olha o condomínio; olha o que você podia falar em uma reunião; olha o que você tem que prestar atenção” e isso foi despertando e mudando a Lello de forma viral, contaminando-a, como se o LelloLab fosse um polo avançado de reflexão, que vai trazendo conteúdos pra virar produtos e mudar a própria essência e a visão do próprio negócio.
Teve um dia nesses Lello Talks, que a gente chamava, um encontro desse, [que] o [Alexandre] Ximenes - que deve ter dado depoimento aqui, que era um administrador da Lello Condomínios, um gerente grande - falou assim: “Sabe que eu estava voltando do metrô agora e eu vi dois motoboys conversando e um falou pro outro: ‘Meu, esse negócio de grana, a conversa com a mina tem que ser diferente, não pode falar pra ela, pra levá-la na balada você tem que usar outra estratégia’. Eu comecei a ver essa conversa deles e comecei a pensar [em] como as pessoas estão se relacionando.” E aí nós percebemos, quando ele estava percebendo isso, que ele já tinha mudado o jeito de ver o mundo, porque ele já estava olhando o mundo como um antropólogo, olhando o comportamento de dois motoboys conversando no metrô e não mais só o que ele costumava ver. A gente falou: “Bom, isso está provocando, de fato, um redesenho de atenção e da própria essência da Lello”, que é um processo altamente sofisticado, demora, tem camadas disso que são… Quando você cria uma unidade dessa, um sítio desse, você desestabiliza a relação de poder da própria corporação e corporações têm relação de poder: a minha área, o meu negócio, o meu produto, a minha relação com o chefe. Quando isso tudo muda de lugar provoca reações que você tem que administrar também no processo: como a gente facilita e entra numa cultura, sem ser um estranho que vai ser forçado a ser eliminado pela própria segurança, ou zona de conforto da própria corporação? Isso acontece em vários processos.
[São] processos em que a gente faz esse tipo de interação estratégica, que são como a gente trabalha hoje, têm muitas camadas. E o bonito é que todas essas camadas que eu fui aprendendo, de design, nenhuma delas está eliminada do processo, todas continuam existindo, mas é como se fosse um solo geológico. Eu sei o que é a expressão, aprendi linguagem, sei desenhar, sei como é a forma final, mas em cima tem reflexão sobre identidade, essência, propósito, diferenciais; em cima tem cultura corporativa, em cima tem políticas corporativas e tudo isso é o ecossistema de construção de valor de uma marca.
A gente, hoje, procura trabalhar consciente dessa complexidade, de toda essa interação de camadas e níveis e de como elas todas fazem parte do desenho final do processo, onde a gente não é mais o ‘dono da verdade’, que vai trazer a resposta. A gente vai entrar pra ser um elemento catalisador de processo, mas não o especialista, a não ser na hora do desenho, aí desenhar isso é comigo, nós vamos desenhar ‘a quatro mãos’, tem o especialista e a gente desenha, mas toda a parte de reflexão: essência, identidade, quem eu sou, de onde eu vim, o que a gente vai fazer, o negócio. Imagina, o cara conhece o negócio dele mais que ninguém. Nós não vamos dar aula de negócio pro Couto, nem pro Zé Roberto, ou pra nenhum de nossos clientes, mas a gente pode provocar perguntas, ou trazer insights que possam enriquecer o ‘caldo’.
(02:14:15) P/1 – Nesse caso parece, então... Não sei se vocês diriam que a Lello foi uma das que ‘abraçou’ bem esse processo, porque você entrou na Lello, a Lello entrou na empresa.
R – Completamente. Eu acho que [foi] como case do que a gente estava vendo, que era o que fez a gente fechar a Oz, com quarenta anos de sociedade, eu e meus sócios, porque esse projeto da Lello, pra mim, foi um insight do que eu quero fazer daqui pra frente, como eu vejo o que eu sei fazer num outro formato. Eu percebi ali que esse tipo de relação era o que eu gostaria de continuar tendo com outros clientes, nesse formato, de participar de processos, mais do que ser um fornecedor que traz uma resposta e acabou a relação; se envolver de forma mais estruturada, ao ponto que tem uma hora que a gente se desenvolve.
Agora a gente não está trabalhando pra Lello. A gente, agora, está de longe. A Lello botou um diretor, está funcionando e a gente não precisa estar lá. Aquele embrião está agora construindo sua própria vida, como um filho, pra nós, que saiu de casa. Dá uma dorzinha olhar de longe, fala: “Nossa, que será que está lá, como está? Será que está tudo legal lá?”, mas daria pra dizer que alcançou uma maturidade, ou a necessidade de andar com as próprias pernas; a gente não está próximo, nem envolvido e é natural, parte do processo. E a gente, hoje, tem outros tipos de relação com clientes, que vão muito nessa direção de nós sermos interlocutores qualificados pra conduzir processos estratégicos que envolvem temas ligados à identidade, vocação e expressão, com todas as complexidades que cada um desses territórios tem.
(02:16:11) P/1 – A gente falou muito do processo junto à Lello, mas você também ajudou a redesenhar a marca, voltando pra questão da expressão do desenho, ou não?
R – Lá atrás, naquela época que eles estavam fazendo uma arquitetura de marca. Essa nova não foi a gente que desenhou. A gente fez a marca do LelloLab, essa coisa toda do design do LelloLab, porque estava na nossa mão, mas aí o problema já não era mais de natureza de expressão; era de essência, de business. E essa é a parte interessante, que o design, enquanto disciplina, tem uma coisa que chama design ladder, que é a escada do design. O primeiro degrau é assim: a empresa não tem design, não tem valor nenhum e não faz nada, vai tocando o que faz, produtos. O segundo degrau é: a empresa tem design, mas é ainda como forma, expressão, então design do produto, da embalagem. O terceiro degrau é o design dos próprios processos dentro da empresa e, além do produto, está desenhando processo. O quarto degrau é o design do próprio negócio, porque o negócio tem que ter um design, que ainda é design, mas tem modelo de negócio.
Hoje a gente trabalha com uma mandala, que a gente desenvolveu pra entender como essa participação enquanto processo com clientes funciona, que é o desenvolvimento da nossa percepção de como uma marca se materializa, que é um pentagrama, que tem cinco dimensões. Se eu tenho uma marca bem posicionada, ou tem um grande posicionamento, como é o caso da Lello, isso vai ter impacto em governança, como é a relação de poder, estruturação da liderança pra isso funcionar; modelo de negócio, de onde vem o dinheiro que a gente está fazendo, o produto que a gente oferece; processos, como são os processos internos, pra isso tudo poder realizar essa vocação; cultura, capital humano, como é que a gente se relaciona, quais são os valores, ritos que fazem que a gente seja o que é; e comunicação. Então, a comunicação, que antes era tudo, [em] que o design era a comunicação, hoje ela tem que considerar cinco dimensões, desmembramentos de uma marca forte, porque ela tem que ter uma governança coerente, um modelo de negócios coerente, adequado a esse posicionamento.
Por exemplo, na Lello a gente fala assim: “Bom, se a gente vai juntar prédios e vai fazer isso tudo, a gente pode, de repente, colocar placa solar em todos os prédios e fazer um business de sustentabilidade pra todos os prédios”. Imagina: três mil prédios. Nós podemos fazer uma revolução com isso. E a ideia que a gente tinha e continua, pra mim, existindo como laboratório, LelloLab, é mudar o desenho da cidade como um todo, como um protótipo que, se você coordena lixo, imagina, de todos os três mil prédios, se a gente pega todo esse lixo, reprocessa e transforma em mercadoria, não precisa pagar condomínio.
A gente tinha lá uma meta que era condomínio zero. Se a gente sabe que prédio não é só gerador de custo, mas ele pode ser gerador de recursos, ou economia, com energia solar, coleta seletiva de lixo, distribuição de serviços, otimização de serviços, tudo e rateia, você tem um sistema inteligente e, portanto, econômico e, portanto, muito mais sustentável. O LelloLab depois se estruturou em dois grandes produtos, que é o FES e o COS, entendendo que um condomínio tem o hardware, que é prédio, lixo etc e tem o software, as pessoas. Tem a antropologia e tem os insumos, e essas duas coisas têm que estar administradas em conjunto. Foi mais um aprendizado de leitura de contexto.
Todo trabalho de sustentabilidade, que é uma linha de pensamento dentro do LelloLab, como utilização, lixo, horta coletiva etc vai nessa linha do FES, e o COS é tudo que é relacionado com relacionamento, comunidade, compartilhamento, pra isso ser um movimento estruturado, de construção de valor e entrega na proposta.
(02:20:31) P/1 – Eu acho que infelizmente a gente vai ter que caminhar pra terminar (risos) por conta do tempo, mas me fala uma coisa: o que você - ‘de longe’, agora, você disse - pensa pro futuro da Lello, ou que você deseja? Você ainda conversa com as pessoas que estão lá, sabe quais são os prognósticos?
R – Agora a gente está um pouco afastado das questões do dia a dia da Lello, mas de longe o que a gente vê é que tem um tema de sucessão na pauta - o que vai acontecer com o Zé Roberto e Couto e a próxima geração que vai assumir essa empresa, como é que isso funciona. Eu diria que hoje o tema da Lello está muito mais em cultura corporativa e estruturação de governança, liderança - nesse pentagrama aí - e cultura, mais do que, talvez, produto e modelo de negócio porque no momento de vida que uma corporação que tem donos está, ela vai ter que enfrentar essas questões, saber endereçar isso bem, pra que isso continue inspirado pela visão, desde os fundadores, até os gestores e com as próximas gerações. Se isso está bem estruturado, essa é uma pergunta que eu diria que a Lello tem que responder hoje, primeiro porque os dois gostam muito de estar lá, então eu acho que eles nem se veem fora de lá e quanto isso está presente na cabeça deles, de que é um rito de passagem importante, difícil e como isso, pra vida pessoal do Zé Roberto e do Couto, que tipo de impacto isso tem e como essa passagem de bastão deve ser feita e planejada.
Eu diria que é um grande tema, bem delicado, porque gente que gosta do que faz é difícil ‘largar o osso’ e eles gostam muito do que eles fazem lá, os dois. São dois grandes líderes empresariais, cada um com a sua característica, mas a vida traz esse tipo de temas.
(02:23:04) P/1 – Enquanto você estava falando da sua trajetória eu fiquei pensando como estavam seus irmãos, por exemplo, sua família. Pra que caminho que eles foram?
R – Meu irmão, em um certo momento, foi trabalhar na empresa do meu pai. Ali ele começou a ter um papel de representação também na Associação de Fabricantes de Brinquedos, aí descobriu uma veia política, porque ele passou a ser o porta-voz pra interagir com o governo em relação a temas da Associação dos Fabricantes de Brinquedos e Instrumentos Musicais, que estavam juntos, nesse momento, e aí foi pra política. Hoje ele é deputado federal, fez carreira nessa linha, depois ele se afastou um pouco; hoje ele é comentarista da TV Cultura e é CEO de uma empresa que cuida de ética na indústria de gasolina, da gestão de processo de distribuidoras de derivados de petróleo.
A minha irmã foi pra empresa, quando meu pai faleceu ela assumiu o lugar dele lá, cuidando da parte financeira. Está trabalhando lá meio período hoje em dia também, porque também a empresa precisou profissionalizar um pouco e ela está meio período lá e meio período ela está curtindo a vida dela. (risos)
(02:24:36) P/1 – (risos) E os seus pais?
R – Meus pais já faleceram. Meu pai faleceu em 2004, minha mãe faleceu ano passado... Não, acho que faz dois anos. E meu pai, como era de se imaginar, até o último minuto estava, também, dedicado à empresa, essa era a vida dele.
(02:24:55) P/1 – E como é que foi a pandemia, pra você?
R – Pra mim, eu sou separado, tenho dois filhos, então a pandemia foi um enfrentamento da solidão. Fiquei sozinho na minha casa durante três anos, o que não foi ruim, porque eu tinha uma pilha de coisas que eu gostaria de ler, então eu consegui não estar sozinho, estando com Guimarães Rosa, com Nietzsche, com um monte de amigos que eu queria encontrar com mais tempo e tive tempo suficiente pra encontrar com eles, então eu li muito, me atualizei muito no que eu tinha de ‘lição de casa’ e curiosidade pra explorar.
Descobrimos como trabalhar remotamente, tivemos que fazer isso, como todo mundo, mas por sorte, a gente já não tinha mais a Oz, não tinha mais 45 pessoas. A Playground é uma estrutura muito enxuta, nós somos sete pessoas, então a gente conseguiu descobrir como interagir - o que não é bom, porque a gente precisa muito de... A gente faz muito workshop, muito trabalho de co-criação; isso pressupõe interação, reunião presencial, então a gente sofreu um pouco em como adaptar o nosso jeito de fazer imersões profundas, de olho no olho, sentir a energia do outro à distância.
Agora a gente voltou completamente. A gente trabalha todo dia no escritório, faço questão. Reconstruímos o escritório, porque a gente abandonou, fechou tudo e ficou três anos sem sede e agora a gente está estruturado também pra ser, realmente, uma equipe muito enxuta, com muitos parceiros em volta, que a gente chama de “radicais livres” que, dependendo da natureza do projeto, a gente aproxima e monta equipes dedicadas, já num formato diferente, que é por projetos, não é funcionário, como a Oz tinha.
Tinha uma época em que você podia ter 45 funcionários, porque você tinha uma garantia de fluxo de trabalho e era tudo meio parecido, muito sistematizado os produtos. Embalagem você pega um cliente, você tem embalagem todo dia, dá pra montar uma fabriquinha. A natureza do nosso produto hoje você não tem como industrializar, primeiro porque a gente precisa estar em todas as reuniões, eu e minha sócia, Suzana, que trabalhava comigo na Oz, virou minha sócia, a gente trabalha em todos os projetos, o que o cara contrata é nós, a nossa presença nas reuniões e a gestão e a sofisticação do diálogo que acontece em cada etapa do processo.
Uma coisa importante que aconteceu também, que eu percebi, [é] que quando eu estava fazendo design da forma, eu interagia com o middle management da empresa, gerente de marca etc. Quando você começa a fazer estratégia, você sobe pro nível C-level, sua vida é com o CEO [diretor executivo]. Meus últimos vinte anos, 23 agora, só foram interagindo com alta cúpula, porque estratégia é tema de alta cúpula, não é um tema de ‘qual a embalagem de Omo’. Nunca falei com o dono da Unilever, mas falava com gerente de produto, e hoje eu praticamente não interajo com gerente de produto, só com donos dos negócios, então você precisa ter uma interação de qualidade, precisa estar de corpo e alma, precisa de fato entrar e ter disponibilidade de espírito e atenção, pra se envolver de fato com a natureza do que está sendo delicado, porque quando o cara resolve te ‘abrir a casa’, você precisa honrar essa generosidade e participar do processo com grande responsabilidade.
(02:28:36) P/1 – Você tem dois filhos, é isso?
R – Dois filhos.
(02:28:39) P/1 – Quem são eles?
R – Ana Key, minha filha mais velha. Minha primeira mulher é japonesa, então eles são mestiços e meu filho mais novo, Indy.
Ana Key se formou em Cinema, mas resolveu explorar o mundo; morou na Alemanha, na Austrália, se encantou por línguas. Hoje ela fala dez línguas, entre elas russo, agora está aprendendo árabe, entre outras que ela fala: alemão, inglês, francês, holandês. Trabalha com um pouco de design gráfico, porque ela gosta também, um pouco de design de site, dá aula de inglês e trabalha com cinema hoje, no sentido de trabalhar numa Associação Brasileira da Indústria do Audiovisual, a BRAVI, que é um órgão estadual aí, promovendo audiovisual brasileiro fora do país.
Meu filho trabalha... ele fez Engenharia de Processos na Mauá, mas o negócio dele é ‘pontes’. Ele sabe fazer ‘pontes’ entre pessoas, é um grande... Cheio de amigos, faz conexões e trabalha com... Agora ele está voltado a preparar essa chegada da indústria da cannabis, como uma revolução que vai vir aí, do ponto de vista de medicina - e não só, tecido, tudo, porque ele está me ensinando, estou aprendendo muito com ele sobre a extensão de coisas que a matéria-prima da planta tem, de possibilidades. A gente fica só focado [em] ‘maconha’. Tem tanta coisa lá, que é um absurdo que ainda não tenha regulamentado e aprovado esse tipo de recurso, que na saúde é impressionante, a diferença dos canabidióis pra outros tipos de remédio é incrível. Aí deve ter lobby também da indústria farmacêutica, então tem muita coisa ainda.
(02:30:40) P/1 – E como é que você vê o seu futuro, hoje? Você tem algum sonho a realizar, algum projeto, ou não?
R – Eu não sou uma pessoa de sonho. Engraçado, né? Nunca planejei a minha vida, sempre fui meio me deixando levar pelo que o mundo me trazia. Sempre meio atento e ‘escutando sinais’. Fui estudar filosofia porque abriu uma escola perto da minha casa e aquilo me ‘iluminou’ de forma incrível; literatura, porque eu tive a possibilidade de ter um parente que é grande crítico literário, que dava curso em grupo. Falei: “Nossa, eu vou fazer uns cursos” e me encantei.
A vida é muito generosa comigo, ela vai me colocando oportunidades e eu vou procurando explorar. Como eu falo pros meus clientes hoje, o caminho se desenha ao caminhar, que é aquela citação. E o processo que a gente conduz hoje com os clientes a gente não sabe onde vai chegar. A gente sabe que tem que se deslocar em uma certa direção e depois, conforme você vai andando, como no caso do LelloLab, é que você vai descobrindo o que aquilo lá está virando, porque a interação com o mundo, as respostas e essa mentalidade laboratorial… Por isso que minha empresa hoje é Playground Lab Design, porque a gente teve que trabalhar com essa ideia que, na modernidade, ou no mundo complexo como a gente vive, você tem que ter uma atitude laboratorial com a experiência, você não pode ser... Não tem produto acabado, mais. Nada está pronto, tudo está em formação, porque tudo são processos vivos, que precisam ser cuidadosamente regados, cuidados e alimentados, pra gerarem bons frutos.
Acho que a minha vida vai meio assim, também, indo um pouco... eu vou desenhando-a ao longo do caminhar.
(02:32:37) P/1 – Você gostaria de deixar algum legado pra quem está no mundo? Você pensa nisso, ou não?
R – Eu acho que eu já deixei a minha marca, de alguma forma, do ponto de vista de trabalho. A Oz é uma referência, ela foi muito conceituada, na época dela. Nesses quarenta anos de trabalho, às vezes eu recebo gente que quer trabalhar e fala assim: “Nossa, estudei a sua empresa na escola”. A gente vê que a gente, trabalhando direito e bem, virou referência pra matéria de escola, pra ensino, de inspiração pra vários profissionais. A gente encontra pessoas que falam: “Nossa, sempre quis ser a Oz”, que hoje são colegas muito queridos, então isso já dá uma retribuição muito grande.
Hoje, na Playground, acho também que a contribuição que a gente está tentando trazer é essa outra visão de mundo, que a gente batizou de transition design, que é entender que o design não é mais um design de produto, mas de processos e processo pressupõe transição permanente, então pra isso eu preciso saber bem onde eu estou, que a gente chama de Ponto A - onde a Lello estava, como a gente leu aquilo, a qualidade dessa leitura e depois uma visão pra onde eu gostaria de ir - uma orientação, que a gente chama de Ponto B provisório, mas é uma estrela-guia, sair caminhando naquela orientação; o que você vai descobrindo, com uma cultura boa, com uma empresa saudável, com relações positivas e com uma ética que oriente as decisões, você vai chegar em um lugar bom. E um processo bem desenhado.
O legado, hoje, que eu acho que tenho tentado construir é um pensamento, uma visão sobre um novo jeito de entender design como um design de processos, que veio muito com o Caio Vassão, que eu ia falar depois. O Caio trouxe pra LelloLab uma ideia de metadesign que, ao contrário do design thinking, que chegou com uma disciplina que eu sempre achei estranhíssima e nunca ‘embarquei’ e sou altamente crítico do que foi a chegada dessa ideia de que você pode replicar design em um workshop de vinte semanas, altamente perigosa pra sofisticação da natureza do negócio… O metadesign é um outro tipo de visão, que é chamada de desenho de processos, como você desenha processos. Se tem um processo bem desenhado vão sair bons produtos no final, então você não está mais preocupado com o produto, você está preocupado com um processo de qualidade que, se estiver bem desenhado, com um bom ‘norte’, no final vão sair bons produtos.
(02:35:21) P/1 – Tem alguma coisa que você gostaria de falar, pra gente terminar? Uma pergunta que eu não fiz...
R – Não. Acho que a gente percorreu... Pra mim foi um momento flashback total, (risos) muito bom.
Acho que eu queria agradecer à Lello, ao Couto e ao Zé Roberto, pela gentileza de me convidar pra participar dessa história. Desde quando me convidaram pela primeira vez, lá atrás e agora de novo, pra dar um depoimento. Eu tenho muito carinho pelos dois, acho que eles são grandes empresários, muito gente fina, ‘do bem’ total. Você vê que existe uma preocupação legítima de entregar valor e uma inquietação de estar pensando sobre isso o tempo inteiro, que fez nascer um projeto tão ousado como o LelloLab e é isso, eu acho.
Acho que [quero] cumprimentar vocês, por registrarem essas histórias, porque a gente hoje vive uma amnésia coletiva de perda de conhecimento, por conta da velocidade do mundo e desse desinteresse em coisas do passado, que é perigosa.
(02:36:28) P/1 – Como é que foi contar, então, um pouco da sua história pra gente, hoje?
R – Foi legal. Achei uma experiência bacana, te faz fazer essa retrospectiva, como se fosse rebobinando um filme. Já é uma coisa que revela a minha idade, mas [é] onde você começa a colocar, ou entender onde você está a partir do que você já viveu.
Eu fui assistir uma livre docência de um colega, meu professor, José Miguel Wisnik, aí eu descobri o que é a lógica de uma livre docência: tem um momento que você tem que explicar como é que você virou quem você virou, que é a última dos três dias. O terceiro dia é assim - tem um nome técnico isso aí, até, que é memorial - como é que você ficou como você ficou. E aí o profissional tem que dizer assim: “Tive tal professor, ou tal inspiração, isso que eu descobri com tal escola e por isso que hoje eu penso assim.” Achei muito bonito isso, de você conseguir olhar retrospectivamente pro que foi desenhando a sua própria vida. E de novo eu volto à questão do desenho, bonita, que é: tudo tem um desenho e vai sendo desenhado a partir dos encontros que você tem com o mundo e de como você reage a esses encontros, negando, ou assimilando e aprendendo com eles e virando um organismo mais complexo, mais autoconsciente e mais valioso, tanto pra si mesmo, quanto pra o outro, alguém com quem você troca.
(02:38:09) P/1 – Então é isso! Obrigado pela sua presença! Foi ótimo!
R – Imagina! Obrigado vocês, pelo convite, pela paciência. (risos)
(02:28:17) P/1 – Imagina!
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