Demônios em meu quarto:
Essa história não é fictícia. O tema abordado a seguir é denso e sensível.
Não recomendo essa leitura para quem possa ter gatilhos com abusos sexuais e violência.
Escrevo essa história, a minha história. Na tentativa de um dia seguir em frente e também alertar a todos.
PROTEJAM SUAS CRIANÇAS.
CAPÍTULO 1: LAR
Podem me chamar de Ana, a suburbana de Mato Grosso do Sul, ou podem me chamar também de a filha indesejada.
Na periferia do Mato Grosso do Sul, minha história começa, marcada por sombras que pairavam sobre a minha família (se é que podemos chamar assim). Meu nascimento, um acontecimento indesejado, foi como um fardo que forçou meus pais, Ester e Ricardo, a um casamento que só conhecia desespero, violência e caos.
Eu, era a razão frágil que tentava sustentar aquelas relações desgastadas, já que minha irmã era filha do primeiro casamento também falido de nossa mãe.
Minha irmã mais velha, Julia, já carregava as cicatrizes de um passado turbulento com as desventuras em serie dos relacionamentos passados e falidos de mamãe. Em nosso modesto lar, pois não éramos apenas pobres, mas também éramos reféns da crueldade que emanava das mãos que deveriam nos proteger.
A violência doméstica era a sombra que pairava constantemente sobre aquela morada humilde. Eu, com meus tenros três anos, testemunhava horrores além de minha compreensão infantil, enquanto Julia, seis anos mais velha, tentava, à sua maneira me proteger das tempestades que rugiam dentro das paredes daquele lar.
O estopim para a fúria de nossos pais podia ser qualquer coisa trivial – uma louça não lavada, uma planta esquecida, erros banais que desencadeavam surras impiedosas. Cintos, câmaras de bicicletas e cabo de vassouras tornaram-se instrumentos de uma melodia cruel que ecoava pelos corredores apertados daquele modesto lar.
As vezes as brigas eram entre eles, o que não impedia que respinga-se em nós.
Meu pai...
Continuar leituraDemônios em meu quarto:
Essa história não é fictícia. O tema abordado a seguir é denso e sensível.
Não recomendo essa leitura para quem possa ter gatilhos com abusos sexuais e violência.
Escrevo essa história, a minha história. Na tentativa de um dia seguir em frente e também alertar a todos.
PROTEJAM SUAS CRIANÇAS.
CAPÍTULO 1: LAR
Podem me chamar de Ana, a suburbana de Mato Grosso do Sul, ou podem me chamar também de a filha indesejada.
Na periferia do Mato Grosso do Sul, minha história começa, marcada por sombras que pairavam sobre a minha família (se é que podemos chamar assim). Meu nascimento, um acontecimento indesejado, foi como um fardo que forçou meus pais, Ester e Ricardo, a um casamento que só conhecia desespero, violência e caos.
Eu, era a razão frágil que tentava sustentar aquelas relações desgastadas, já que minha irmã era filha do primeiro casamento também falido de nossa mãe.
Minha irmã mais velha, Julia, já carregava as cicatrizes de um passado turbulento com as desventuras em serie dos relacionamentos passados e falidos de mamãe. Em nosso modesto lar, pois não éramos apenas pobres, mas também éramos reféns da crueldade que emanava das mãos que deveriam nos proteger.
A violência doméstica era a sombra que pairava constantemente sobre aquela morada humilde. Eu, com meus tenros três anos, testemunhava horrores além de minha compreensão infantil, enquanto Julia, seis anos mais velha, tentava, à sua maneira me proteger das tempestades que rugiam dentro das paredes daquele lar.
O estopim para a fúria de nossos pais podia ser qualquer coisa trivial – uma louça não lavada, uma planta esquecida, erros banais que desencadeavam surras impiedosas. Cintos, câmaras de bicicletas e cabo de vassouras tornaram-se instrumentos de uma melodia cruel que ecoava pelos corredores apertados daquele modesto lar.
As vezes as brigas eram entre eles, o que não impedia que respinga-se em nós.
Meu pai encontrou refúgio no álcool para lidar com tudo que acontecia dentro daquelas paredes. E quem poderia culpá-lo?
Ricardo ou apenas papai como eu prefiro chamar, normalmente chegava em casa do bar recepcionado por panelas sendo atiradas contra eles, socos, ponta-pés e dependendo o humor de mamãe até faca. E mesmo assim, mesmo com essa série de imperfeições, ele era meu herói. Como eu amava aquele homem, mesmo desde sempre tendo total noção de que o que eu idealizava como pai e o que se passava na realidade, eram situações completamente distintas.
Acho que o ódio da minha mãe aumentava por saber o quanto eu o idolatrava, afinal, eles não eram um casal, eram rivais.
A cada briga entre os dois, eu pequena como era corria para o quarto deitava na cama, virada para a parede apertando o olhos e segurando a mão contra meus ouvidos esperando acabar. Sinceramente as vezes eu queria entrar no meio da briga e obrigá-los a parar, mas minha mãe ficava cega de ódio quando estava com raiva, e eu tinha um sério medo dela matar alguém durante seus surtos. Então , covardemente eu apenas me escondia em meu quarto.
Minha mãe doméstica e trabalhava em casa de família, meu pai era um grande mecânico, e trabalhava em uma auto peças conhecida na cidade, o qual tinha muitos amigos.
Todos os sábados meu pai chamava seus colegas de trabalho para casa e faziam grandes churrascos transformava nossa casa em palco de um ritual aparentemente alegre. Seus amigos se reuniam para um churrasco regado a caixas e mais caixas de cerveja, uma abundância que contrastava com a escassez que enfrentávamos durante a semana naquele lar humilde.
Famílias inteiras chegavam carregando a promessa de um dia diferente. A carne grelhava na churrasqueira, enchendo o ar com o aroma tentador que, na maioria das vezes, era um luxo inatingível para nós. Na minha visão infantil, esses sábados se tornavam dias felizes, pois na frente das visitas meus pais desempenhavam o papel de uma família feliz e unida. Chegava a me dar certa esperança, na minha mente infantil, talvez algum dia depois dessas festas eles continuariam a nós tratar bem, continuaríamos felizes e dali para frente poderíamos ser o que se esperar de uma família.
Eu e minha irmã, Julia, éramos as crianças educadas que permaneciam quietas no canto, observando os adultos. Mas essa aparente boa educação não era motivada pelo desejo de sermos exemplares; era uma estratégia para evitar as violentas agressões que normalmente se desencadeavam assim que as visitas se retiravam. A quietude era nossa maneira de nos proteger do furacão que se seguia à falsa fachada de harmonia.
Pois bastava que o último convidado se fosse para se iniciar o inferno e o ciclo se repetir.
Capítulo 2: Babá
A rotina em minha casa, marcada pela ausência dos meus pais, começou a mudar quando minha mãe, diante das demandas de trabalho e do novo período escolar da minha irmã Julia, se viu obrigada a contratar uma babá. Ruth, nossa vizinha e costureira dedicada, parecia ser a solução perfeita. Com seu trabalho em casa, ela oferecia total disponibilidade para cuidar de mim durante o dia.
Confesso que a principio a ideia me deixou animada, normalmente eu era bem tratada pelos estranhos fora de casa, era uma criança educada, logo adultos gostavam de mim.
O que inicialmente prometia ser um refúgio de paz e cuidado foi desfeito por Fael, seu filho adolescente. Animado demais com a ideia de sua mãe ser minha babá, ele insistia em brincar comigo nos outros cômodos da casa, usando a desculpa de que minha presença atrapalhava o trabalho dela e de que ela até mesmo poderia se machucar por alguma distração comigo.
Os momentos que antes eram preenchidos pelo calor maternal de Ruth foram invadidos por um desconforto crescente. Fael, com sua empolgação, transformou a casa que deveria ser meu refúgio em um lugar de insegurança. A atmosfera pacífica desmoronou à medida que eu percebia que nem mesmo na presença de uma babá as sombras do meu lar podiam ser afastadas.
A princípio as brincadeiras dele envolviam muito toque físico, algo que me deixava completamente desconfortável, porém crescia em im lar onde eu apanhava brutalmente se não obedecesse ao adulto.
E foi assim, ali, no quarto de um adolescente, em meio à dor, medo e lágrimas que eu fui estuprada.
Ele me mandava ficar quieta e eu ficava, eu tinha medo. Tinha medo dele, tinha medo e vergonha de alguém descobrir e medo da minha mãe me espancar mais ainda se ela soubesse.
E isso se seguiu por meses e meses. Em uma ocasião minha mãe viu marcas em meu corpo e me questionou. Eu já muito fragilizada não aguentei, eu falei, contei em detalhes.
Ela chorou, disse que não ia acontecer mais e eu senti paz, achei que estaria liberta, achei que tinha acabado.
Mas na manhã seguinte minha mãe me acordou, colocou a minha mochila nas minhas costas e me levou novamente a casa da Ruth, eu estava completamente em choque, achei que nunca mais teria que ver aquelas pessoas, que seria protegida, mas não...
Tudo que ela fez foi falar com a mãe de Fael, e sinceramente até hoje não sei o que ela falou. Mas voltou a me deixar lá, dia após dia.
Ele já não podia ficar mais muito próximo a mim, o que não foi empecilho para que novos abusos viessem a acontecer posteriormente em momentos de desatenção de Ruth.
Eu nunca mais falei sobre isso com a minha mãe. Eu me sentia tão venerável e desprotegida. Minha própria mãe não me acolheu, e pior me proibiu de contar ao meu pai. Desse dia em diante parei de contar as coisas para minha mãe.
Hoje em dia não me lembro do rosto de Fael, mas jamais esqueci o que ele fez comigo. Os hematomas sumiram da pele, mas ainda estou dentro de mim.
Alguns meses mais tarde, minha mãe conseguiu uma vaga em uma creche e dispensou os serviços de Ruth.
Passei dois anos em um creche e acho que foram os dois anos mais calmos da minha vida. Ficava o dia todo lá, comia, dormia, brincava. Foi meu primeiro momento criança como criança. Foi estranho ter contato com outras crianças e ver a forma que elas se comportavam, e viam o mundo.
Eu me sentia inferior...
Me sentia inferior quando os pais delas apareciam nas festinhas da escola, quando davam presentes de aniversário para elas, ou até mesmo quando eles lembravam do aniversário delas. Tinha muita inveja dos meus colegas, eles pareciam animados para voltar para casa. Enquanto eu ia ficando ansiosa conforme ia chegando o horário de voltar para o eu conhecia como lar.
Capítulo 3: Máscaras
Meu pai tinha muitos amigos próximos, e todos frequentavam a minha casa regularmente, embora eu não me comunicasse muito com eles, gravava seus rostos.
Um deles era Marcelo, esse era um amigo especial do meu pai. Sempre vinha em casa durante a semana quando meu pai não estava lá.
E foi assim que descobri o que era traição.
Minha mãe sempre mandava minha irmã sair comigo de casa por algumas horas quando ele chegava. Quando voltávamos para casa, ele não estava mais lá. Papai nunca desconfiou, e todo sábado, Marcelo estava lá, com sua esposa e filhos.
Minha mãe manteve esse caso por muito tempo, o que me deixou horrorizada quando meu pai chegou chorando do serviço dizendo que Marcelo, seu grande amigo, havia se acidentado e morrido na hora de moto.
A reação da minha mãe foi a mais adversa possível, ecoa nos meus ouvidos como se fosse hoje “todo bêbado vagabundo tem mais é que morrer”.
E naquele momento entendi o que era a arte de dissimular.
As vezes eu e Julia só trocávamos olhares incrédulas, mas sempre de forma silenciosa. Nunca nos atrevemos a falar sobre isso em voz alta.
Meu pai por sua vez, não foi nenhum santo, apenas menos cuidadoso que minha mãe, em suas aventuras extraconjugais.
Lembro-me que sua primeira traição foi descoberta por minha causa, por minha inocência tola de criança.
Todos os domingos, sem exceção meu pai ia a feira, passava o dia todo lá. Sempre me trazia algum brinquedo ou doce. Em determinado momento cismei que queria acompanhá-lo.
Já que lá era a fonte dos meus doces e brinquedos, achei que seria incrível ir pessoalmente.
Porém, estranhamente papai relutava a me levar, sempre arrumava um milhão de pretextos. Tal comportamento levantou as suspeitas da minha mãe, que não via mal algum, em um pai levar sua filha na feira. E como intuição de mulher é algo único ela começou a investigar , pegar o celular de papai, olhar as mensagens. Até que...
Bingo!
Meu pai tinha um caso a tempos com outra moça. E foi aquela novela, xingamentos daqui, ameaças daqui, agressões de cá, barraco de lá.
Meu pai sempre foi menos esperto que mamãe, que nunca foi pega em suas traições.
Eu e minha irmã sabíamos bem de todos os amantes de mamãe, mas já tomávamos surras demais por coisas pequenas, não precisávamos de mais um motivo. Se algo como isso vazasse por uma de nós, certamente mamãe espancaria.
Diferente de papai, que tinha certo cuidado para não trazer suas infidelidades ao nosso conhecimento. Mamãe até nos levava, eu principalmente para a casa de seus amantes entre um passeio e outro. Depois de um tempo, descobri até que um deles, poderia vir a ser meu pai biológico.
Não busquei saber.
Capítulo: A Vila
Para que entendam melhor onde nasci, caros leitores, vou descrever.
Passei dos meus anos iniciais até pelo menos os meus 10 anos de idade vivendo em uma vila de casas.
Uma vila com um quintal compartilhado. Na frente e a casa principal era da dona da propriedade. Uma idosa amarga e até mesmo um pouco maldosa, que vivia com seu esposo, um senhor simpático e amável que trabalhava vendendo cortes de carne, porta a porta.
Maria e Antônio, o casal mais parecia se odiar, passavam o dia trocando ofensas e todo mundo sabia, que eles dormiam em quartos separados.
Na casa do meio, uma casa pequena, de madeira. Onde viviam dois rapazes, vendedores de alho, porta a porta. Sinceramente não lembro seus nomes, e quase não os via em casa.
E na última casa, no fundo do terreno, vivia uma família pobre, mas pobre em todos os sentidos da palavra. Pobres de amor, cumplicidade, afeto e carinho. A nossa família.
Tínhamos contato constante com dona Maria e o senhor Antônio. Ele sempre me trazia goiabas colhidas do pé da frente da vila. Sempre fui uma criança que amava frutas.
Ele também fazia todas as manhãs pururuca de porco frita, e me trazia para comer. Eu o chamava de vô, pela proximidade. Também chamava dona Maria de vó, embora ela estivesse sempre zangada , e aparentemente insatisfeita com tudo, no fundo, eu sabia que ela gostava de mim.
Seu Antônio era grande amigo de papai, em seus churrascos extravagantes, ele sempre estava lá, bebendo como louco junto a meu pai.
Uma vez voltando para casa de um passeio com minha irmã, flagramos mamãe aos beijos com o senhor Antônio. Embora chocadas, nunca ousamos questionar, ou contar algo. Sabíamos que aquilo era errado, mas éramos crianças. O que deveríamos fazer?
Esse ocorrido vez minha ótica sobre o senhor Antônio mudar, eu sempre ficava ali, observando ele bebendo abraçado com meu pai. Minha mãe rindo com eles do outro lado. Era tão incômodo para mim.
Porém não foi esse fato que me fez desenvolver total repulsa ao senhor Antônio, com certeza não foi.
Mas sim, o dia em que brincando em sua casa, numa tarde qualquer onde sua esposa estava cuidando de mim enquanto minha mãe trabalhava. Quando ele se aproximou sorrateiramente de mim, me agarrou e forçou um “beijo” de língua.
Aquilo me deixou tão desnorteada, já não era suficiente trair a confiança do amigo e o apunhala-lo pelas costas covardemente, dormindo com sua mulher. Ainda se atreveu a molestar sua filha, apenas uma criança. Uma criança que o considerava um avô.
E a partir dessa segunda situação, entendi que ninguém era confiável.
Não eu não podia contar, quem acreditaria em mim? Qual seria a reação de papai se ele soubesse? Com que olhos ele me veria?
Me sentia culpada por essa situação que se repetiu por algumas vezes...
As vezes ainda me sinto.
Capítulo 4: Rompido
Quando completava meus 8 anos, com ele veio o divórcio dos meus pais. O que sinceramente foi um alívio para todos em casa. A partir do dia em que papai saiu de casa, tive a certeza que não aconteceria uma tragédia envolvendo nossa família.
Porém, tal alívio não me isentou de todo sofrimento de não ter mais ele em casa todos os dias. Eu também não poderia imaginar, que a partir daquele momento, não teria mais meu pai. Que junto ao divorcio todas as suas responsabilidades como pai.
Foi como se do dia para a noite eu não representa-se mais nada para ele. Como era possível?
Papai sempre carregava um discurso bonito e cheio de honra. Ainda posso ouvi-lo dizer “eu não minto, nunca quebro minhas promessas”.
Perdi as contas de quantas promessas infundadas ouvi. A que mais me machucava era a “se arruma, pois sábado a tarde vou buscar você”. Eram tardes longas e difíceis, cheias de ansiedade. Eu sentava na varanda e esperava até dormir.
Depois de alguns meses apenas parei de esperar, ele não viria, nunca veio.
Seguiu sua vida sem olhar para trás, tentando ignorar os erros do passado, infelizmente fui a consequência de um deles. Como pensar que estaria imune de ser deixada para trás?
Mamãe claramente se magoava ainda mais com a situação ao ver como eu idolatrava o homem que havia nos abandonado, aquele que nos deixou em uma situação mais miserável do que nos encontrávamos antes.
A escassez entrou em nosso pequeno lar como um furacão. O que era difícil se tornou impossível.
As vezes o cardápio do dia era arroz e pipoca, que era dividido igualmente entre mamãe, Julia e eu. Em outros dias tínhamos sorte, mamãe ganhava bolos e pães no trabalho.
E nesses dias tínhamos algum tipo de fartura.
Eu sei que isso doía mais nela, minha irmã e eu , jovens, não tínhamos uma percepção tão clara do que estava acontecendo.
O divórcio dos meus pais também me custou um ano escolar, e evidenciou meus primeiros indícios de depressão. Até achei que a reprovação me custaria uma bela surra, mas soou tão natural para minha mãe.
Era como se fosse óbvio para ela sua filha estar deprimida após ser abandonada pelo pai. Deveria pensar, ser querer demais sobreviver ao que sobrevivíamos e ainda ser a primeira da turma.
Depois de papai ir, mamãe simplesmente começou uma busca implacável para tapar aquele buraco que ficou. Acredito que ela buscava algo para sentir de novo, algo além da angústia e do medo.
Quando estava com raiva, mamãe sempre nos dirigia palavras duras, de como éramos como demônios na vida dela, que a impedia de ser feliz.
E por essas palavras jurei jamais ter um filho. Não sabia muito sobre maternidade, mas entendia muito bem como aquelas palavras doíam. Doíam bem mais que os cintos, chinelos, cabos de vassoura, que os tapas em meu rosto. Aquelas malditas palavras doíam mais do que qualquer coisa, e jamais causaria isso em alguém.
Pouco tempo depois da partida de papai, mamãe começou a se relacionar com um senhor. O senhor Armando, já era um idoso, um senhor rígido e um tanto quanto controlador.
Mas eu gostava do senhor Armando, sempre se preocupava com a nossa casa, fazia reparos quando necessário, nos fazia compras, e eu adorava ir a sua casa, pois lá sempre haviam frutas. Coisa que nunca podíamos comprar, pois mamãe dizia ser caro, assim como o meu paladar, ela brincava.
Porém, mamãe não tinha bom histórico com fidelidade, logo conheceu outra pessoa no trabalho e trouxe para casa. Armando era nosso vizinho, e não era de levar desaforo para casa. Ele simplesmente parou a rua do bairro, discutindo com mamãe, enquanto covardemente seu novo namorado, se escondia na sala.
Vi poucas vezes seu Armando depois desse episódio, soube que poucos anos mais tarde veio a falecer.
Nem sempre tão querido, mas sinto falta de seu Armando e seu péssimo gosto musical, que amava música tradicional gaúcha, enquanto eu estava em minha fase apaixonada por cantores teens. Gostaria de ter agradecido senhor Armando por não ter sido como os outros.
Bom, mas de volta ao covarde em minha sala. Caim, o mais novo namorado de mamãe. Rapaz simpático, cheio de lábia, sempre vinha cheio de presentes. Caim me presenteou com meu primeiro celular mais moderno. Tratava minha mãe como uma rainha, era de falar baixo, sempre com uma bíblia de baixo do braço.
Eu não conseguia gostar dele, não sei, não me convencia, parecia bom até demais, sem defeitos demais. Mas ele fazia os olhos de mamãe brilharem, ela parecia uma adolescente apaixonada de novo. E afinal, eu era uma pré-adolescente, do que eu sabia?
Julia não aguentou nossa situação por muito tempo, assim que teve seu primeiro namorado saiu de casa, sem dar grandes explicações. Ela falava sobre me levar com ela, e embora eu quisesse, o que faríamos?
Para onde iríamos?
O que uma adolescente e uma criança iriam fazer?
Conforme os dias passavam, Caim frequentava cada vez mais nossa casa, e tentava se aproximar de mim de todas as formas possíveis.
Se atrevia a dizer que eu já não deveria pensar sobre papai, ele havia nos abandonado e agora meu pai era ele. Se propôs a passar meu registro para o seu nome, o que levantou minha fúria, e brigamos de forma tão afoita que minha mãe o proibiu de me falar qualquer coisa similar.
Um dia, depois de uma visita, mamãe pediu que eu o acompanhasse até o portão. Obedeci, e foi nesse dia, Caim fingiu que iria beijar meu rosto e desviou, enfiou a língua na minha boca, me deixando completamente assustada.
E imediatamente entendi o porquê nunca gostei dele. Ele se infiltrou em minha casa, conquistou mamãe, disse a ela tudo que ela queria ouvir a encheu de presentes e me tratava bem. Era o ambiente perfeito, ele sabia que eu não contaria.
Ela nunca acreditaria em mim, estava deslumbrada.
E eu?
Não falei nada.
A partir daquele dia, comecei uma batalha silenciosa contra o namorado de mamãe, não ficava mais sozinha com ele. Os passeios e lanches que antigamente eu amava, passei a recusar, não o acompanhava mais para coisa alguma.
Mas foi um doce engano achar que seria o suficiente, nem dois meses depois do ocorrido a notícia. Mamãe iria se casar, aquele homem moraria na mesma casa que a gente, e o meu mundo caiu.
Eu havia dito a mamãe que não gostava daquele homem, mas sem um motivo plausível, mamãe só levou como um ciúmes, de alguém ocupar o lugar de papai.
Toda via, quando finalmente se casaram, Caim não veio morar conosco, na verdade Caim desapareceu. Mas todos os meses nos mandava dinheiro e deixava um cartão com minha mãe para as compras.
Mamãe disse que ele estava em outro estado trabalhando, já que era veterinário, e demoraria para voltar.
Semanas mais tarde minha mãe chegou até mim e disse que todos os domingos pela manhã em torno das 4 horas da manhã, ela precisaria sair, e eu deveria ficar em casa, e realizar os afazeres domésticos, pois ela iria ver Caim, que viria de passagem pela cidade.
Porém haviam lacunas na historia de mamãe, principalmente pelos agrados que ela levava ao mesmo.
Doces, bolos e tortas em potes transparentes, biscoitos fora da embalagem em vidro transparente.
Com minha pouca idade, aquilo apenas era confuso, mas Júlia não era tão inocente quanto eu. Ele estava preso, regime fechado, motivo pelo qual por anos achamos ser estelionato.
Mamãe ficou possessa quando descobrimos a verdade, mas enquanto ele ficasse preso e ela só fosse visita-lo aos domingos, pouca diferença fazia em minha vida.
Foram assim por anos e posso dizer que foram anos de paz.
Papai e eu nos reaproximamos depois de um tempo, ele descobriu um câncer agressivo, fazia tratamento intensivo. Agora já adolescente, trabalhava em um bico e outro para ajudar em casa. Então quando ele se mudou de cidade, uma vez a cada dois anos eu ia visita-lo.
Papai ainda mentia muito, fazia milhares de promessas, mas na situação em que se encontrava, eu não tinha raiva, ou rancor.
Apenas o olhava com ternura e torcia com toda a fé que conhecia, para que melhorasse, para que ficasse mais tempo comigo.
Capítulo 5: Tormenta
Quando estava com 15 anos, o dia que eu temia havia chegado, Caim acabará de sair da cadeia. Minhas orações e súplicas aos seus para que ele morresse ou fosse morto naquele lugar foram ignorados.
E como que por mágica, sua personalidade mudou da água para o vinho, não só com mamãe, que acreditava firmemente que viveria um sonho americano com seu ex-presidiário.
Assim que retornou, sua missão de tornou acabar com a autoestima de mamãe. Todos os dias, ele dizia como ela estava, feia, gorda, apontava como ela tinha sorte de alguém como ele, um servo de Deus, querer ela.
Como o passar dos dias, começou a criar histórias sobre mim para mamãe, afim de que ela me impedisse de ter contato com terceiros, e me mantivesse em casa.
Ele só não contava com meu emprego, eu era estagiária, trabalhava 6 horas por dia, ganhava alguns extras no serviço. E conseguia me manter o máximo de tempo possível fora de casa.
Caim fazia o possível para conseguir ficar sozinho em casa comigo, inventava histórias, me pedia ajuda, para coisas aleatórias. Sempre na intenção de que ficássemos a sós.
Entretanto a essa altura, meu posicionamento em relação a ele, era apenas um. Total desprezo claro e nítido, respostas secas e cortes rápidos. Qualquer mão que me tocasse por “acidente” no quadril, qualquer elogio, era rapidamente erradicado com a mais pura grosseria e desprezo.
Um dia, chegando do serviço por volta das 18 horas, cheguei em casa. Tinha uma rotina, de chegar em casa, falar com a minha mãe, tomar banho e me trancar no quarto.
Porém nesse dia foi diferente, Caim estava na sala, e quando viu que iria falar com mamãe, me impediu. Disse que ela estava dormindo e não era para incomodá-la, estranhei.
Ignorando completamente suas palavras, assim como sua presença, entrei no quarto, mamãe dormia de forma pesada, pesada de tal forma que sacudi-la violentamente não surtia efeito. Sabia que estava viva pelo respirar pesado apenas.
Nesse dia não dormi em casa, dormi na casa de uma amiga do trabalho que sabia parte da situação.
No dia seguinte fui conversar com mamãe e entender o que ela havia tomado, e pasmem, Caim havia dado uma dipirona com gosto diferente para ela. Ao pressiona-lo dizendo que eu levaria o frasco do remédio a polícia, ele admitiu ser um calmante. Que segundo suas palavras era apenas porque mamãe estava dormindo mal, e ele quis ajudar.
Após esse episódio sai de casa, essa situação não era escolha minha e não lidaria mais com ela.
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