Sou a mais velha de três irmãs. Estou deixando para trás uma vida de problemas, abusos e abandono que sofri dos meus pais.
Tudo começou a se perder na minha vida, e na das minhas irmãs, quando a minha avó morreu. Ela era o porto seguro da família. Era quem cuidava da gente, nos dava amor e ...Continuar leitura
Sou a mais velha de três irmãs. Estou deixando para trás uma vida de problemas, abusos e abandono que sofri dos meus pais.
Tudo começou a se perder na minha vida, e na das minhas irmãs, quando a minha avó morreu. Ela era o porto seguro da família. Era quem cuidava da gente, nos dava amor e algum conforto. Amor de mãe, a gente nunca teve, nunca conhecemos. Quando a gente era bem pequena, meus pais brigaram e se separaram. Minha mãe foi embora, conheceu outro homem e formou outra família.
Meu pai é alcoólatra, tinha uma vida complicada. Quando ele brigava com minha avó, saía de casa e levava as filhas. Durante o tempo em que a gente ficava longe da casa da minha avó, às vezes por semanas, a gente vivia na rua, na casa de parentes e de desconhecidos. Não tomava banho, comia mal. Só voltava pra casa quando a minha avó encontrava a gente.
Lembro da minha avó, de como ela cuidava de mim e das minhas irmãs. Lembro da feijoada, do caruru, da panqueca, do siri, daquele purê de batata que ninguém sabe fazer igual. Ela arrumava a gente, dava banho, comida. O papel de mãe quem sempre teve foi ela. Lembro bastante tudo que aconteceu naquela época. Só fui feliz na infância quando ela estava viva. Eu queria que voltasse aquele tempo. Com ela, a gente se sentia protegida.
Teve uma vez que meu pai, depois de ter se separado, raptou a gente. Ficamos mais de um mês sumidas. E eu lembro desse tempo, a gente na casa dos outros, dos parentes também, só que era errado. Eram envolvidos com drogas, essas coisas. Aí, a gente ficou lá um bom tempo, e nisso a gente não era bem cuidada, a gente passava fome, ficava na rua, jogada, de qualquer jeito. E tinha um tempo também que a gente ficava chorando bastante, pensamos que nunca mais íamos ver nossos avós, minha vó, mainha. Chegou um dia que a gente tava na rua, toda jogada, mais de dois dias sem tomar banho, quando vimos a minha tia chegando com a minha avó, foi uma emoção muito grande, eu ainda lembro como se fosse hoje. Eu e minhas irmãs chorando, ela também chorando. Ela dizendo que nem que fosse a última coisa que ela fizesse, mas que ela iria encontrar a gente. Ela achou que a gente não ia se ver nunca mais e a gente chorou bastante. Ali naquela época eu acho que eu tinha mais de cinco anos. Ali a gente chorou bastante. Depois disso a gente ficou morando com ela e depois ela faleceu.
Quando minha avó se foi, minha vida perdeu o rumo. Eu e minhas irmãs fomos separadas. As pequenas ficaram morando com uma das minhas tias e eu fui levada pra casa de outra. Fiquei com essa tia por pouco tempo. Não aguentei, ela me batia muito e me tratava mal. Então, fui morar com o meu pai. Eu só tinha sete anos.
Meu pai chegava em casa bêbado e ia dormir. Vinha sempre com uns amigos diferentes e eles abusavam de mim. Quando eu estava lá, no quarto sozinha, eles iam lá pra querer ficar comigo. E meu pai dormindo... Não tinha como eu gritar nem fazer nada. Teve um deles que chegava a dizer que não era pra contar pra ninguém, que era um segredo da gente, só da gente. Ele tirava minha roupa e ficava lá a noite toda. Quando chegava no outro dia, eles iam embora. E meu pai acordava, ia tomar banho e trabalhar. Quando vinha o outro dia, a mesma coisa: ele chegava bêbado, com outros colegas dele. Nem sempre eram os mesmos.
Ficava com medo de contar pra outras pessoas. Quando falei pro meu pai o que estava acontecendo, ele não acreditou. Disse que era imaginação de criança, que eu estava cheia de frescura e que mentia demais. Fiquei quase um ano morando com ele, e isso sempre acontecendo. Quando não aguentei mais os abusos, criei coragem e procurei ajuda de outra tia. Quando cheguei na casa dela, minha tia me perguntou o que tinha acontecido. Falei só o necessário, não queria lembrar de tudo. Ficava chorando pelos cantos, deprimida, sem vontade pra sair de casa.
Minha tia prestou queixa à polícia e o meu pai fugiu. Não queria que nada de ruim acontecesse com ele, mas não aguentava mais viver daquele jeito. Tinha nojo daqueles homens e de mim também.
Até hoje moro com essa tia, que acabou recebendo a minha irmã menor também. A minha irmã do meio, que também sofreu abuso, foi viver na casa de minha mãe por um tempo. Brigou com o padrasto e foi morar na vizinha. Se casou com um traficante fugitivo da polícia e teve um filho aos quinze anos. Sempre incentivo ela a fazer as coisas certas. Graças a Deus, não aconteceu mais nada de ruim com ela.
Nunca quis ficar perto da minha mãe, ela nunca se importou com a gente, não dava a mínima. Atualmente, perdemos o contato. Ela não me procura, nem eu. Não gosto dela, não perdoo. Hoje, ela faz de tudo pelo marido e os dois filhos que teve com ele, e da gente ela nunca cuidou. Eu sempre me pergunto: “O que a gente fez de errado pra ela tratar a gente assim?”
A minha tia sempre teve dificuldades de dinheiro, mas ela botava as coisas em casa. A gente ia pra escola, pra igreja e eu fui crescendo. Quando eu já estava adolescente, dava aula particular. Já fiquei cinco meses dando aula pra crianças que não sabiam ler. Mas era uma situação que a gente não podia cobrar caro. Ali onde eu morava era um local muito carente, eu sempre cobrava conforme a condição deles. E sempre procurava alguma coisa na rua pra fazer, algum trabalho, mas não conseguia achar nada. Eu não conseguia nada, ainda falava com minha tia que eu ia desistir, que eu não ia querer mais procurar trabalho. Só ia ficar em casa, dando aula. Mas o dinheiro que eu recebia não dava condições de me sustentar, de ajudar a família.
Até que a minha tia ficou sabendo desse curso do Vira Vida. Ela me falou do projeto, que era para me inscrever. Fui lá, disse o que acontecia, que eu não estava conseguindo encontrar nada. Porque eu queria fazer alguma coisa e não tinha condição. A moça falou pra trazer os documentos. Nessa época eu não tinha documento nenhum, só o documento de identidade. Comecei a correr atrás pra fazer minha carteira de trabalho, meu título de eleitor. Com 18 anos eu não tinha título, não tinha votado ainda. Teve a eleição e eu não votei.
Depois que entreguei todos os documentos no SESI, fiquei telefonando querendo saber quando ia começar a seleção das pessoas inscritas. Toda semana eu ligava e minha tia me dava boa sorte. Dizia que não era para eu desistir, que eu ia conseguir aquilo de que eu estava correndo atrás. Um dia eu estava no colégio, minha tia me ligou. No telefone ela falou: “Eu disse pra você correr atrás, insistir e ficar ligando pro SESI. Mas você não fez isso. A moça do Vira Vida ligou e disse que você não tá no perfil, que a vaga não é sua. Ela lamenta muito por isso e deseja boa sorte e que na próxima você consiga.”
Eu comecei a chorar. Me sentia derrotada, sentia que não era capaz de conseguir nada. Eu fiquei chorando ali, com o telefone na mão. As meninas ao meu lado perguntando o que tinha acontecido. De repente minha tia começou a dar risada e disse pra mim: “É brincadeira, você entrou! E meus parabéns, porque você mereceu esse esforço, você correu atrás, você conseguiu, foi atrás do sonho que você desejava pra você se tornar alguém!” Naquele momento eu comecei a chorar de novo, mas de alegria.
Aí começou o curso. No começo foi um pouco difícil, porque eu não conhecia ninguém. Todo mundo já tinha um entrosamento, uma turminha, só eu que não conhecia ninguém. Não conseguia me adaptar. A pedagoga dizia: “Olha, Júlia, você tá aqui no canto sozinha?” Todo dia ela me via e falava: “Você tá sozinha aqui no canto, não tem ninguém, não?” Quando chegou um dia, eu disse: “Poxa, velho, eu não acredito! Já vai fazer dois meses que eu tô aqui no Vira Vida e eu não conheci ninguém!” Eu só ficava sozinha, ia lanchar sozinha, ia embora sozinha. Um dia eu resolvi mudar aquilo, saí de casa, fui pro Vira Vida e, na entrada, encontrei com duas meninas. A gente começou a conversar e virou aquela amizade toda.
Uma vez, a psicóloga me chamou para ir num evento de jovens, uma discussão do Estatuto da Criança e do Adolescente. Eu fiquei quatro dias indo pra lá. Conheci pessoas novas, da minha idade. Nos entrosamos, conversamos, eu nem sabia que tinha gente lutando pelos nossos direitos. A gente começou a ficar próximo nesses dias, tivemos muitas experiências boas. Quando foi o último dia, choramos, porque a gente não queria que acabasse. Adolescentes conversando, compartilhando, uma sala inteira conversando. Foi uma vivência muito importante. Pois os adolescentes têm os direitos deles em relação à educação, à saúde.
Hoje eu já terminei o curso. Estou trabalhando com carteira assinada como Jovem Aprendiz. Eu não me achava capaz. Eu não tinha capacidade de correr atrás das oportunidades e hoje aparecem tantas! Todo mundo que me conhece vê que eu mudei. Saio, tenho amigos. Não sou mais aquela que vivia triste, deprimida, sozinha num canto.
Só que 100% feliz eu não sou. Tem coisas que acontecem na vida da gente que são pra esquecer. Mas, pra mim, a felicidade só vai ser completa quando não só eu estiver feliz, mas minhas irmãs também. Quando elas conseguirem o objetivo delas, viverem felizes com a família delas, cada uma seguindo seu rumo, com sua família. Que elas possam seguir a vida delas sozinhas, sem medo de enfrentar a vida, sem medo de seguir em frente. Só assim eu vou ser feliz, quando a minha vida toda estiver certa também e eu for capaz de ajudar outras pessoas, outras crianças que sofrem como eu sofri.
Nesta entrevista foram utilizados nomes fantasia para preservar a integridade da imagem dos entrevistados. A entrevista na íntegra, bem como a identidade dos entrevistados tem veiculação restrita e qualquer uso deve respeitar a confidencialidade destas informações.Recolher