Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Vânia Buré
Entrevistada por Nádia Lopes e Fernanda Prado
São Paulo, 11/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV238
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Bom dia, Vânia.
R – Bom dia.
P/1 – Obrigada por você dar a entrevista e por estar aqui. Pra começar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Eu me chamo Vânia Maria Buré Posterari, nascida no dia 12 de janeiro de 1967. Local de nascimento, Lucélia, no estado de São Paulo.
P/1 – E você conheceu os seus avós?
R – Conheci os paternos e os maternos.
P/1 – Quais os nomes deles?
R – Do meu avô paterno, Juvenal Prado Buré, e da minha avó, Francisca Prado Buré. Da parte da minha mãe é Elídia, o sobrenome não me recordo, e do meu avô, Euclides.
P/1 – E eles são de São Paulo mesmo?
R – Da parte do meu pai são descendentes de espanhóis nascidos aqui no Brasil. Da parte da minha mãe são cariocas.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – João Buré e Maria Luci Pereira Buré.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Pelo que me consta, eles se conheceram no interior mesmo, no local em que eles viveram, que é Lucélia, Martinópolis... Foi a região onde eles nasceram e cresceram. E o que a minha mãe conta é que foi difícil pra ficar com ele, porque na realidade meus avós não queriam, queriam que ela casasse com uma pessoa mais bem sucedida. Mas foi o destino que colocou os dois no caminho, né?
P/1 – Qual é a atividade do seu pai e da sua mãe?
R – Hoje eles são aposentados. Meu pai fazia móveis, era marceneiro, até quando eu tinha aproximadamente uns seis anos de idade, foi quando ele sofreu um acidente em uma das máquinas. Devido a esse acidente, ele ficou com uma sequela no coração e foi aposentado. Nessa época, minha mãe era costureira, fazia vestido de noiva, as roupas mais sociais, tinha...
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Depoimento de Vânia Buré
Entrevistada por Nádia Lopes e Fernanda Prado
São Paulo, 11/02/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV238
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Gustavo Kazuo
P/1 – Bom dia, Vânia.
R – Bom dia.
P/1 – Obrigada por você dar a entrevista e por estar aqui. Pra começar eu queria que você dissesse seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Eu me chamo Vânia Maria Buré Posterari, nascida no dia 12 de janeiro de 1967. Local de nascimento, Lucélia, no estado de São Paulo.
P/1 – E você conheceu os seus avós?
R – Conheci os paternos e os maternos.
P/1 – Quais os nomes deles?
R – Do meu avô paterno, Juvenal Prado Buré, e da minha avó, Francisca Prado Buré. Da parte da minha mãe é Elídia, o sobrenome não me recordo, e do meu avô, Euclides.
P/1 – E eles são de São Paulo mesmo?
R – Da parte do meu pai são descendentes de espanhóis nascidos aqui no Brasil. Da parte da minha mãe são cariocas.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – João Buré e Maria Luci Pereira Buré.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Pelo que me consta, eles se conheceram no interior mesmo, no local em que eles viveram, que é Lucélia, Martinópolis... Foi a região onde eles nasceram e cresceram. E o que a minha mãe conta é que foi difícil pra ficar com ele, porque na realidade meus avós não queriam, queriam que ela casasse com uma pessoa mais bem sucedida. Mas foi o destino que colocou os dois no caminho, né?
P/1 – Qual é a atividade do seu pai e da sua mãe?
R – Hoje eles são aposentados. Meu pai fazia móveis, era marceneiro, até quando eu tinha aproximadamente uns seis anos de idade, foi quando ele sofreu um acidente em uma das máquinas. Devido a esse acidente, ele ficou com uma sequela no coração e foi aposentado. Nessa época, minha mãe era costureira, fazia vestido de noiva, as roupas mais sociais, tinha as clientes dela. Como o meu pai não tinha o que fazer pra sustentar a gente, ele teve que se virar. Então, ele resolveu buscar uns chinelos pra vender, minha mãe fazia umas flores de plástico, e meu pai e meu irmão saíam pra vender. Nessa época meu avô veio morar com a gente, porque a minha avó teve um derrame, ficou totalmente na cama e tivemos de trazer eles pra morarem com a gente. Nisso, meu pai resolveu comprar uma máquina de costura, sem saber costurar, resolveu comprar um boné, aquele Carga Pesada. Ele começou sozinho, cortava o pano com faca pra poder costurar, comprava retalho e foi aí que ele ficou. Já tem aproximadamente uns 35 anos que ele costura. Hoje ele está com 75 anos de idade, mas costura muito pouco devido ao problema de saúde dele. Tem uns 15 anos que ele faz entrega na [Rua] 25 de Março em duas lojas. Antigamente a gente só repassava pra camelô, agora não. Minha mãe também se aposentou, na costura mesmo, tem já uns 15 anos.
P/1 – Só uma coisa, como é o material que ele faz?
R – São bonés pra pedreiro, soldador, em que ele ainda imprime “Carga Pesada”.
P/1 – Deixa eu só voltar um pouquinho. Você nasceu em Lucélia. E você viveu lá quanto tempo?
R – É como a minha mãe fala, Lucélia só foi meu nascimento mesmo. Parece que dali eles passaram a morar em Teçaindá.
P/1 – Onde?
R – Teçaindá, que é no Município de Martinópolis mesmo. Quando eu estava com dois anos de idade eles vieram pra São Paulo. Então, eu não sou muito aquela pessoa de ficar voltando muito na minha infância, as origens, lá atrás... Eu comecei a fuçar um pouco agora, na árvore da gente, pra poder fazer um estudo porque me falaram que fuçando lá na Espanha, que ainda tem alguns parentes lá. Então, eu estou fuçando um pouquinho pra ver se eu acho alguém lá fora, a gente quer achar porque o meu pai teve uma família de cinco irmãos, ele e mais quatro. Só que, devido a minha avó ser uma pessoa muito rígida, ela era uma espanhola que trouxe da família aquela personalidade forte, ela era muito ruim mesmo, perdeu quatro crianças naquela época. Meu pai conta que chegou um dia de estar enterrando um dos irmãos dele e chegar em casa e a irmã dele estar morta, por ela achar que não deveria cuidar, não tinha que levar em médico, cuidar, nem nada. E o meu pai não foi criado por ela, foi mais criado pela avó dele. Então, é assim, ficou só o meu pai de filho. A gente tenta procurar pra ver se acha parentes dele. Porque quando a família chegou no Brasil, dizem que eles eram tão rígidos que eles não aceitavam que eles casassem com brasileiros, não podiam misturar a raça. Então, eles casavam entre primos, pra poder preservar a origem.
P/1 – Então, vocês foram morar nessa cidade e vocês viveram quanto tempo, que você lembre?
R – Eu, até os dois anos de idade.
P/1 – E vieram morar onde?
R – Nós viemos morar no Parque Novo Mundo, na Vila Maria. Primeiramente, meu pai veio pra São Paulo tentar buscar uma profissão pra ajudar a sustentar a gente, nós somos em sete, na época nós éramos em seis. O meu pai veio, daí ele deu uma sumida, e minha mãe, por ser uma pessoa muito guerreira, enfrentou com a cara e a coragem, vendeu tudo o que tinha lá, enfiou os filhos embaixo das asas e veio também pra São Paulo. Ela veio e se hospedou na casa de uma tia minha por um bom tempo, em Guarulhos. Essa tia já morava aqui, acolhia a família do interior que chegava.
P/1 – Quantos irmãos você tem mesmo?
R – Nós somos em sete.
P/1 – Você consegue falar o nome na ordem?
R – Consigo. É Maria Aparecida, Maria das Graças, José Buré, Maria de Fátima, Maria Inês, Vânia Maria e Paulo Buré.
P/1 – E vocês foram morar no Parque Novo Mundo?
R – Isso, depois que a minha avó adoeceu, que não tinha mais o que fazer. Isso demorou mais ou menos uns dois anos, minha mãe morando na casa da minha tia. E o que aconteceu? O meu avô mandou uma carta e a minha mãe tomou a atitude de ir atrás. A minha mãe achou minha avó em um estado muito grave, em cima de uma cama, cheia de bichos, com várias feridas pelo corpo. Minha mãe falou pro meu avô: “Vende o que resta que eu estou indo pra São Paulo buscar uma ambulância pra tirar ela daqui”. Foi quando o meu avô, com pouco dinheiro que sobrou do muito que eles tinham, comprou essa casa no Parque Novo Mundo. Ele ainda falou pra minha mãe: “Vou colocar no seu nome porque essa casa é dos meus netos”. E foi aí que prosseguiu a vida, né?
P/1 – E vocês viveram quanto tempo nessa casa?
R – 15 anos.
P/1 – Como era essa casa?
R – Até uns oito anos era terra mesmo, de chão batido. A gente ainda lembra, não tinha televisão, era rádio e a gente tinha o costume de todo mundo sentar pra escutar. O meu pai sempre deitava e deitava todo mundo em cima dele. Chegávamos a ficar com os pezinhos vermelhos embaixo, a minha mãe fazia a gente lavar pra dormir... Dormíamos, as minhas irmãs Cida e Graça são gêmeas, então, sempre dormiam as duas em cama de casal. Naquela época não tinha essa de cada um na sua cama, era a cama de casal que tinha e nos juntávamos. Na outra cama de casal dormia eu, a Fátima e a Inês, que eram as três mais novas. O Paulinho dormia no berço, e o Zé, meu irmão, dormia em uma cama de solteiro.
P/1 – E era tudo em um quarto só?
R – Era tudo em um quarto só. Era muito divertido! Tinha vezes que a gente até tomava tapa pra poder dormir, porque um tirava sarro do outro e ninguém queria dormir. A gente brincava, quando um fazia silêncio, o outro começava a dar risada. Esse meu irmão tem paralisia infantil, então, ele sempre foi muito esforçado, muito estudioso, tudo. Devido ao problema que ele tinha, acho que ele imaginava que era meio excluído da gente. Mas enfim, nas brincadeiras de criança ele entrava, a gente apanhava muito dele, ele entrava nas nossas brincadeiras. E ele era o “serião”, a gente tirava o sarro dele, principalmente quando a minha mãe colocava ele pra lavar louça, ele ficava bravo, nervoso, com a gente. A gente tinha muita história de criança dentro da sala de aula porque a Graça e a Cida estudavam juntas, a Cida era uma pessoa mais... mais estourada do que a Graça, ela não era aquela passiva. A Graça não, a Graça era mais passiva. Então, se arrumava muita confusão dentro da sala de aula porque, se o professor brigava com a Graça, a Cida revidava. Aí, automaticamente o Zé acompanhou as duas, foi pra mesma sala. Depois a Fátima também acompanhou, chegou uma época que o Zé e a Fátima estudavam na mesma sala, e acho que os dois arrumavam confusão. Uma vez o Zé prendeu a cabeça da Fátima embaixo da carteira e foi uma confusão porque teve que chamar uma pessoa pra serrar a carteira pra tirar a cabeça dela de lá (risos). Era assim, todo mundo dentro da escola conhecia a gente porque os sete passaram pelos mesmos professores, pela mesma escola.
P/1 – Essa foi a sua primeira escola?
R – Isso.
P/1 – Você lembra o nome da escola?
R – É Escola Estadual de Primeiro Grau Professor Lael de Moura Prado.
P/1 – E você, como você era na escola?
R – A escola era muito rígida naquela época, qualquer coisinha a gente levava uma reguada, puxão de orelha, ficava de castigo. Eu não tinha muito problema na escola com os professores, nem com ninguém. Eu comecei a ter um certo tipo de problema na escola quando eu passei a estudar à noite. Porque eu não era aquela pessoa fácil de conversar, eu era muito agressiva. Agressiva em que sentido? As pessoas não tiravam casquinha comigo. Muitas vezes eu cheguei a me pegar até com homem que veio tirar satisfação porque eu briguei com uma menina, chegar mesmo a sair no tapa.
P/1 – E você tinha alguma matéria que você gostava mais?
R – Eu sempre fui fã de Matemática, sempre.
P/1 – Você sabe que a maioria não gosta, né?
R – Eu sei, mas eu sempre gostei, eu sempre tive mais facilidade em Matemática mesmo.
P/1 – E da escola, você tem alguma história que você guarda, uma recordação dessa escola, que você viveu?
R – Tirando a época, que foi uma época boa, era uma época que você tinha muita repressão dentro da escola, mas eu gostava, eu gostava.
P/1 – E como você ia pra escola? Era próximo da sua casa?
R – Era próximo de casa.
P/1 – Ia a pé mesmo?
R – A pé.
P/1 – Você lembra do percurso?
R – Era um percurso pequeno, que todo mundo fazia junto, geralmente por uma trilha no meio do mato, porque naquela época não tinha asfalto, nem nada disso. Ia todo mundo junto, era muito tranquilo.
P/1 – E você fez até o colégio lá?
R – Eu fiz até a quinta série lá, foi quando eu parei de estudar.
P/1 – Você lembra por que você parou de estudar?
R – Foi assim. Minha mãe começou a não querer mais morar no Parque Novo Mundo. Quando eu tinha 14 anos, nós passamos por uma enchente, mas não foi uma enchente porque a rua encheu, foi um erro de construção de uma pessoa. Porque atrás da casa passava um córrego da Prefeitura e a Prefeitura fez uma valeta, cimentaram, tudo. E um senhor tinha um terreno atrás, em um bairro atrás, a divisão era aquela viela. Esse senhor pegou e fechou com muro de concreto muito forte e o que aconteceu? Deu um pé d’água muito violento e começou a juntar água. A casa pra baixo da minha era construída com barro, era tijolo e barro, não era cimento. Aquela água foi juntando atrás dessa casa, estourou a parede atrás da casa e veio trazendo. Se não me engano, na época eram cinco casas nesse quintal, que eram de um português que alugava. E veio vindo, trazendo todas as outras casas. Chegou no muro da gente, não aguentou, estourou pra dentro da nossa casa. Naquela época eu tinha uma sobrinha recém-nascida, da minha irmã solteira, a Rafaela, que hoje em dia está com 28 anos de idade, e o que aconteceu? A água invadiu e nós perdemos tudo dentro de casa, e a nossa casa estava com construção nova. Então, nos revoltamos muito com isso, porque esse cara veio querer tirar satisfação, queriam que os meus pais pagassem uma coisa que não foi culpa da gente. Aquele dia foi uma coisa muito agressiva, chegou a sair em televisão e tudo. Porque faleceram uma senhora e uma criança de dois anos. A mãe dessa criança que faleceu perdeu uma perna nessa enchente, porque foi uma destruição total nas cinco casas do quintal e na nossa casa, que foram as únicas casas. Durante 15 dias nós passamos dormindo na casa dos vizinhos. Só que era assim, como a primeira casa que foi montada na rua foi a da dona Maria, a dona Maria tinha o quê, 16 filhos. Aí, logo em seguida veio a dona Ana, com 15. Aí, depois veio a minha mãe, com seis, e depois a dona Isabel, que se não me engano eram oito. E eram todas crianças pequenas. As quatro se juntaram pra fazer trabalhos manuais, os mais velhos saíam pra poder sustentar. Então, naquela época, eles dividiam a alimentação entre as quatro, porque as quatro mudaram para ali, eram casas de terra mesmo. Era bem deserto o local. E foram as outras três que ajudaram a gente, como a gente tinha parente, mas estavam longe, a gente não tinha como ficar indo lá pra ir pra escola, nem nada, ficamos por ali mesmo. Mas minha mãe perdeu a vontade de estar ali. Então, a minha mãe começou a colocar a placa de vende-se pra vender a casa e sair dali. Aí, foi quando o meu pai achou essa casa em Santana e nós fomos morar lá na Zona Norte. Foi quando eu, aos 17 anos de idade, eu estava até estudando, mas não estava com vontade, não. Você sabe que naquela época você tinha que sair aos 17 anos de idade e enfrentar uma firma pra trabalhar, não tinha essa de você ir pra escritório, nem nada. E nós seis, dentro de casa, passamos a trabalhar dentro da Estrela, porque na época era a única empresa que pegava menor de idade. Então, nós seis passamos pela Estrela, o único que não passou foi o meu irmão Paulo. Quando nós fazíamos 14 anos, no mesmo dia do aniversário, a mãe ia com a gente. Minha mãe ia com a gente pra fila pra arrumar serviço. Minha irmã Cida trabalhava no escritório lá dentro. Ela entrou como ajudante geral, depois ela foi crescendo. Ela tinha amizade dentro do departamento pessoal e já avisava: “Minha mãe está aí na fila com a minha irmã”. Então, automaticamente, quem fazia a seleção, já colocava a gente pra trabalhar. A gente ia pra linha de produção, eu mesma trabalhei durante dois anos lá. E eu já não estava com muita vontade de estudar mais mesmo. Foi quando, aos 17 anos, eu conheci o meu esposo e engravidei. E o meu pai, por ser aquela pessoa muito antiga, em um mês ele fez o casamento. Sem perguntar se eu queria ou não. Eu estou casada há 26 anos.
P/1 – Deixa só eu voltar um pouco, depois a gente fala desse episódio. Quando você foi pra Estrela, esse foi o seu primeiro emprego?
R – Foi o meu primeiro emprego.
P/1 – E como era o seu trabalho? Você consegue descrever?
R – Era linha de produção. Eu era registrada, era da metalúrgica, porque lá dentro tem as seções e eu era da seção metalúrgica. Só que eu fui emprestada pra seção da boneca. E lá eu fiquei, com dois meses lá dentro eu sofri um acidente de carro. Eu estava saindo de lá, porque a gente ia e voltava a pé. A Estrela era assim: tinha a rua, no final da rua era a fábrica da Estrela, ali no Parque Novo Mundo. E tinha os ônibus fretados, que levavam o pessoal que era de longe. Eles tinham o costume de parar pra gente atravessar, a gente parava bem em frente à casa, tinha um campo pra atravessar pra casa. Eu parada ali e o que aconteceu? O ônibus que estava subindo parou para eu atravessar, no que eu coloquei o pé pra fora da guia vinha descendo um Fusca em alta velocidade, que ninguém viu de onde saiu. Esse Fusca me pegou e eu passei oito meses com o joelho quebrado. Aí eu passei oito meses do serviço dentro de casa, porque eu tive que colocar gesso, tive que fazer vários tratamentos, até hoje eu tenho problema no joelho devido a isso.
P/1 – E depois você voltou ao trabalho?
R – Depois eu voltei ao trabalho.
P/1 – Na linha de produção?
R – Isso, na linha de produção mesmo.
P/1 – Essa linha de produção como era? Era uma correia...
R – Isso, é uma esteira. Quando o brinquedo não é muito grande geralmente ficam dez, quinze pessoas de um lado da linha fazendo esse brinquedo. Eu tenho tanta raiva daquela boneca Barbie, que quando as minhas filhas me pediram uma Barbie eu falei: “Pelo amor de Deus, escolhe outro brinquedo porque essa não...”. Porque todo mundo acha que a Barbie saiu no auge dos anos 90 e não foi. Em 80, quando eu fui trabalhar na Estrela, foi quando começou a produzir a boneca no país. E eu fui exatamente pra linha da Barbie. Eu tinha tanta raiva daquela boneca... Nós passávamos muita raiva na linha de produção. Porque é assim, a linha de produção tem riscos marcados, então, por hora, tem que sair aquela quantidade de boneca, embalada e empacotada pro controle de qualidade liberar. Então, o que acontece? Os riscos eram muito próximos. E eu fui trabalhar na cartela, o que era a cartela? Eu tinha que dobrar a cartela e colocar os óculos, os sapatos que vinham ali e amarrar na cartela. A minha parte eu adiantava porque eu sempre tive facilidade com os trabalhos manuais, eu tenho a mão ágil. E muitas vezes, quando eu adiantava engradados e engradados, a primeira menina atrasava o dela, e a segunda atrasava, porque nós éramos em três na cartela, ou eu tinha que ir para o lado de uma, ou para o lado de outra, pra tirar o atraso delas. Isso me irritava muito. Ou então, eu tinha que passar a roupa da boneca, isso eu queria morrer, porque eu falava que eu trabalhava tanto pra adiantar o meu serviço, pra tomar café e ficar mais 15 minutos pra poder sair pra fumar, e eu não conseguia, porque eu acabava de ter de tirar o atraso das outras. Senão a nossa linha tinha que ficar até mais tarde pra dar a produção do dia. E geralmente era assim, de um lado da linha era um brinquedo e do outro lado era outro. E durante o tempo que eu fiquei na Barbie, que foi por volta de seis meses, na frente eram aqueles cachorros que gritavam “au au, ninguém quer uma sanfona?”. E a menina que testava o cachorro ficava na minha frente. Então, era o dia inteiro, a menina chegava a testar mil, duas mil sanfonas na minha frente, e aquilo me irritava. Eu saía dali às cinco e meia da tarde, chegava em casa, ia jantar, tomar banho e ia pra escola. Então, você chegava na escola e se alguém te irritasse, você não queria saber, você colocava pra fora a sua raiva que você passou durante o dia, né? Porque era terrível mesmo, você levava advertência, muitas vezes a encarregada te tirava da linha, mandava ir conversar com o chefe da seção. Era muito complicado.
P/1 – Você ficou quanto tempo lá?
R – Dois anos.
P/1 – E os seus irmãos também estavam trabalhando lá?
R – Meus irmãos também. Inclusive, quando eu entrei na Estrela, a minha irmã Inês estava com 18 anos, já ia fazer acho que quatro anos que ela estava lá dentro, porque também foi o primeiro serviço dela. A minha irmã Inês trabalhava na metalúrgica e quando eu fui pra lá, ela já avisou o chefe dela de seção, que na época era o Falcon. Lembra do boneco Falcon? Foi tirado dele, ele era igualzinho ao Falcon. Foi, mas foi mesmo, foi através dele que lançaram o boneco Falcon. E a minha irmã chegou nele e falou: “Olha, minha irmã vai entrar pra seção”. Era o chefe de seção que escolhia as pessoas. A gente entrava em turma pra dentro da seção, os novos, e o chefe pegava quem ele queria e colocava na seção. Ele falou: “Tem a fulana aí, que eu quero trabalhar com ela”. E me colocou pra trabalhar do lado da minha irmã. Eu e a minha irmã éramos muito ligadas, porque a gente curtia balada junto, a gente ia pra discoteca junto, tudo junto. Só que certas coisas a gente brigava um pouquinho, então, não deu certo nós duas trabalharmos uma na frente da outra, porque a gente trazia os problemas de casa para ali (risos). A raiva uma da outra, nós discutíamos enquanto trabalhávamos, então, não deu certo. Por isso, que me tiraram e me emprestaram pra boneca. Minha irmã Fátima também trabalhava na seção da boneca, mas era em outra linha. E a Graça, minha irmã, trabalhava no enraizamento, que era fazer enraizamento de cabelo de boneca.
P/1 – Então, o dia a dia na casa devia ser o pessoal levantava de manhã, já todo mundo...
R – Todo mundo já saía pra trabalhar e ficavam só a minha mãe e o meu irmão, mesmo.
P/1 – E à noite vocês jantavam juntos?
R – Era sim, porque a gente... Hoje em dia, não, hoje em dia cada um faz o seu prato, vai pra frente da televisão, é muito raro. Mas naquela época, geralmente se sentava todo mundo junto.
P/1 – E como é que foi essa saída da fábrica, o que aconteceu?
R – Eu saí de lá na segunda vez que eu sofri um acidente, no mesmo percurso (risos), aí foi um ônibus. O motorista estava bêbado mesmo. E assim, durante o café na seção, a gente brincava muito com o próprio pessoal, porque era todo mundo da mesma idade, todo mundo morava próximo. E todo mundo estudava na mesma escola. Então, a gente parava no momento de café e ficava brincando ali. E eu tinha uma amiga que era enorme de gorda, ela chama Márcia. E era assim, nós estávamos ali na seção, do lado de lá, na outra linha, uma menina desmaiou. E os meninos que estavam com a gente correram pra carregar ela no colo, colocar na maca pra levar pra enfermaria. E aí, o que aconteceu? A Márcia falou: “Já pensou, se eu desmaiar, o que é que vão fazer comigo?” Nisso ia passando um guindaste, que era aqueles carrinhos que carregavam os engradados de peças. Aí, os meninos falaram assim: “Ah, nós vamos chamar o guindaste pra te carregar porque ninguém vai aguentar”. Todo mundo caiu na risada. E naquele dia, nós saímos e passávamos na beirada de um córrego. Era avenida e só tinha um pedacinho pra gente passar. Estávamos ela, eu e mais duas pessoas, nós passávamos de um em um. O ônibus desceu, o motorista realmente estava embriagado, porque o pai dela foi atrás. E no que eu percebi que pegou a traseira do ônibus nela, na curva que ele fez, ele jogou a traseira do ônibus pro nosso lado. O que eu fiz? Eu peguei e virei as costas pra ele, então, eu não cheguei a cair dentro do córrego, eu só dei uma descidinha. Mas a cena foi muito engraçada, porque ela caiu mesmo, de costas, de braços abertos, e ela gritava: “Socorro, que eu estou afundando!” (muitos risos) E eu e os outros dois não aguentamos, sentamos no chão e começamos a rir porque nós lembramos da situação de ter de chamar o guindaste pra tirar ela de lá (risos). Mas foi muito engraçado, porque ríamos sem parar. Quando mais de cinco homens conseguiram puxá-la de lá de dentro, porque era um lodo tremendo, ela também ria. Quando nós chegamos no hospital, ela ria que não aguentava, ela falava que ela gritava socorro, mas ela lembrava do guindaste pra tirar ela lá de dentro. Foi uma coisa muito engraçada. Daí, eu fiquei afastada um mês e fiz por onde ser mandada embora, eu comecei a faltar porque eu já não queria trabalhar lá. Era um serviço muito desgastante mesmo.
P/1 – Você já tinha intenção pra ir pra outro lugar?
R – Não, não. Coisa da juventude, mesmo. Enjoei, não quero mais e acabou. E aí, eu fui trabalhar em loja, em uma perfumaria.
P/1 – O que você fazia?
R – Lá eu era vendedora, eu passei só três meses porque foi quando meu pai vendeu a casa e foi pra Santana. Aí, em Santana, eu arrumei [emprego] em uma loja de sapato, onde eu fiquei aproximadamente três ou quatro meses também, foi quando eu casei.
P/1 – E quando você casou, você ficou morando naquela região mesmo?
R – Fiquei. Aí, nós alugamos um cômodo, quarto-cozinha na Casa Verde.
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – Foi assim, eu mudei pra mesma rua que ele morava.
P/1 – Como é o nome dele?
R – Luís Antônio de Sousa Posterari. Foi tudo muito engraçado. Meus pais nunca foram de proibir a gente de passear, eles queriam que a gente falasse onde estava, eles nunca proibiram a gente de sair, e nunca colocaram horário, os dois. Quando a gente fazia 14 anos de idade, que ia trabalhar, a minha mãe deixava o primeiro salário com a gente, que era pra gente comprar roupa e se animar pra poder trabalhar, porque dos outros salários a gente via muito pouco (risos), ficava só com ela. Aí, minha irmã mais velha, Cida, eu tava com 14, ela tava com 24. Ela falou assim pra minha mãe: “Está na hora de soltar essa menina pra passear”. Porque uma levava a outra. “Está na hora da Inês pegar e levar a Vânia pra passear também”. Foi quando eu comecei a frequentar as discotecas da Vila Maria. E quando eu mudei pra Santana, o que aconteceu? No bairro Chora Menino ficavámos eu e minha irmã na porta, ele descia e subia com o carro, na realidade não era bem ele que eu paquerava, era o irmão dele, sem saber que era irmão dele. E eu falava pra minha irmã que ele paquerava a minha irmã: “Ele tá olhando pra você, não é pra mim”, e ficava aquela tiração de sarro, até que um dia ele criou coragem e veio conversar com a gente no portão. Foi quando eu comecei a namorar com ele e infelizmente engravidei, porque se fosse no dia de hoje... Eu incentivo as minhas filhas a se precaverem, tomar remédio, tudo, pra não acontecer. Se fosse no dia de hoje eu não engravidava jamais. Mas naquela época as mães não chegavam a falar o que acontecia, simplesmente era um assunto proibido dentro de casa. Ou, se tinha duas senhoras conversando esse assunto, a gente não podia entrar. Sempre foi uma coisa muito escondida.
P/1 – E como foi essa sua fase de mãe precoce?
R – Então, eu engravidei aos 17 anos de idade, tive a minha menina aos 18 anos. Tive que aprender a cuidar dela sozinha, casei, eu mal sabia fazer um arroz. A gente cuidava da casa, não fazia comida. Foi muito dificultoso pra mim e ainda que eu sou uma pessoa, não sei se é um defeito, pra mim é um defeito, sou muito autoritária, não é fácil lidar comigo. Eu imagino que pra ele seja muito difícil. Então, eu sofri pra criar a minha filha, eu sofri muito porque eu não sabia trocar fralda, eu não sabia cuidar. Eu amamentei até os quatro anos de idade. Quando ela estava com dois anos e três meses eu engravidei da Andressa, e aí eu amamentava ela e a Andressa. Eu fiquei enorme, eu não engordava 10, 15 quilos, eu engordava 30, 32 quilos na gravidez. Apesar de passar muito mal, eu não deixava de me alimentar, eu engordava muito. Então, foi assim, tive ela, criei com muito sacrifício, tive que aprender, hoje em dia eu faria totalmente ao contrário do que eu fiz. Tanto que a última menina minha, a criação foi completamente diferente.
P/2 – Qual o nome das meninas?
R – A primeira é Amanda de Paula, a segunda é a Andressa, e a terceira é a Andréia. Então, foi assim. Quando eu engravidei da Andressa, que eu ainda amamentava a Amanda, eu chegava no médico pra passar no pré-natal e levava bronca do médico: “Você é doida! Você está dando o leite da outra pra essa, ela vai nascer pequenininha”. A Andressa não, ela nasceu com três quilos, novecentos e poucos gramas. A Amanda nasceu com três e seiscentos. E foi ainda mais dificultoso porque eu me vi amamentando duas. A Amanda já prestes a completar quatro anos, faltavam três meses pra ela completar. E a Andressa querendo mamar. E eu estava passando por uma separação porque, com dois meses de gravidez, devido a uma briga que eu tive com ele, ele veio querer colocar que não era dele a criança, com ciúmes. Eu simplesmente peguei e joguei as coisas dele e pedi pra ele se retirar de dentro de casa. Eu tinha que trabalhar, porque agora eu estava com duas crianças sozinha, eu tinha que trabalhar. Aí, eu resolvi tirar a Andressa do peito também, com três meses. Foi quando, com muito sacrifício, eu consegui que a Amanda pegasse uma mamadeira. E ainda foi assim, que ela nunca tomou leite com Toddy, nem nada disso. Passou a tomar leite com café. Ela começou a ver a Andressa tomando mamadeira, mas ela não queria mamadeira, e ela resolveu ir pro copo. Eu fiquei com a Andressa até os seis meses de vida sozinha. Ele chegou a procurar um advogado pra fazer a separação, tudo, ele queria que eu separasse as meninas, queria levar a pequenininha e que eu ficasse com a mais velha. Eu falei que não, que já que ele tinha falado que a pequena não era dele, que nenhuma das duas era, que ele não iria levar nenhuma das duas. E nessa época o meu irmão já era formado advogado e ele falou pra ele que teria que me bancar até eu arrumar um serviço. Mas é assim, na juventude você não tem um pensamento, se fosse no dia de hoje eu não teria voltado atrás. Se eu soubesse que eu tinha tanta força pra lutar e ficar sozinha criando as minhas filhas, eu teria seguido adiante. Mas a família não queria a separação, por ser muito conservadora. Então, minha mãe falou assim: “Você só entra dentro de casa quando você voltar”. Eles aceitaram a pessoa dele, mas não a minha, porque achavam que eu era a errada. Então, com seis meses de vida da Andressa, eu me senti um pouco obrigada a voltar. O que eu fiz? Peguei e voltei atrás. Aí, deu uma mudada no casamento, mas é sempre assim, você não conhece a pessoa direito, você passa a conhecer quando você vai conviver com ela. Ele é uma pessoa completamente diferente de mim, eu me atiro nas coisas, ele já é muito de pensar, entendeu? Ele tem duas personalidades, eu não, eu tenho um pé no chão, aquilo que eu falo, eu vou em frente. Então, é muito difícil de lidar. Não sei se vocês sabem, mas o geminiano tem duas personalidades, ele fala uma coisa aqui e minutos depois ele pensa de outra forma. E ele volta atrás. Então, é muito difícil lidar com uma pessoa assim. Eu voltei, engravidei de novo. E aos sete meses de gravidez eu perdi o nenê, era um homem. Eu peguei toxoplasmose, aquela doença que pega de animal, e eu passei pra criança. Só que a criança não conseguiu sobreviver, aos sete meses eu perdi. Era um homem, que eu tanto queria, e quando eu estava com 26 anos de idade foi quando eu engravidei da Andréia. Foi assim, ele não queria, mas eu queria, ele queria que eu tirasse, e eu não quis tirar. Levei a gravidez em frente, até aí a Andressa estava com seis anos, a Amanda com dez. E as meninas estavam empolgadas com a gravidez e levei adiante a gravidez, foi quando eu operei pra não ter mais. Foi assim. Só que a Andréia, eu não cuidei direito. Apesar de amamentar até os sete anos de idade. Porque eu não sabia como fazer uma mamadeira, eu nunca fiz, e outra coisa, era muito mais fácil pra mim, dona de casa, eu fazia os meus trabalhos manuais pra vender. Uma época da minha vida o que eu fiz? Fui vender Yakult pra ganhar um dinheiro. Aí, eu conheci uma pessoa que fazia trabalhos manuais com colagem de envelope. De manhã eu vendia Yakult, chegava em casa e limpava a minha casa, pegava a Amanda, grávida da Andressa, e ia pra casa dessa pessoa aprender. Eu fui trabalhar com colagem de envelope, com gráficas. Trabalhei acho que uns dez anos nisso, até o próprio Luís ia buscar pra mim, ia levar o serviço, eu ganhava por milheiro. E eu tinha que dar um jeito, não tinha tempo pra fazer mamadeira, eu tinha tanto leite, pra que eu iria fazer mamadeira? Então, a Andréia eu amamentei até os sete anos de idade porque ela não quis mais. A Andressa só conseguia pegar a Andréia pra amamentar. Porque a Andressa se fez dona da Andréia, ela não deixava chorar, não deixava trocar, não deixava dar banho, ela cuidou da Andréia mesmo, como se fosse mãe. Então, a Andréia é muito mais apegada a ela, respeita muito mais ela do que a gente, dentro de casa mesmo, a Andréia tem um respeito maior por ela.
P/1 – E vocês ficaram nessa região?
R – Não, eu fiquei na Casa Verde até os três anos de casamento, aí, eu aluguei uma outra casa no Imirim.
P/1 – Então, de Santana vocês foram pra Casa Verde?
R – Isso. De Santana, quando eu casei fui pra Casa Verde. Na Casa Verde eu passei três anos e aí eu fui morar no Imirim. No Imirim eu acho que fiquei até as meninas terem uns três, quatro anos de idade. Aí, a minha irmã, a Graça, estava com a construção de uma casa parada. Porque ela construiu embaixo dois cômodos, casou, entrou, quando ela foi tendo os filhos dela, ela estava com uma construção pra cima, aumentando a casa. Estava com uma construção parada. Foi quando o banco em que o Luís trabalhava, que era o Comind, faliu, ele trabalhava em Alphaville.
P/1 – Ele fazia qual trabalho?
R – Acho que ele era escriturário dentro do banco Comind. Foi quando o banco faliu, ele recebeu o tempo de serviço e essa minha irmã veio pedir um dinheiro emprestado pra gente, para pagar depois. Nós pegamos esse dinheiro e emprestamos pra ela, só que como eles não iriam conseguir pagar, resolveram que a gente iria morar nessa casa na parte debaixo durante um período, pra pagar o dinheiro que eles tinham pegado emprestado com a gente e depois a gente começava a pagar o aluguel pra eles. Então, eu fui morar em Guarulhos, eu morei acho que uns quatro anos lá. Foi quando o meu irmão que tinha uma aproximação muito grande com a delegada Rose, que na época era deputada estadual. E a gente sabia que os deputados que eram do partido do Quércia tinham direito a uma cota de dez apartamentos do CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano]. Foi quando meu irmão foi procurar por ela e ela falou: “Realmente eu tenho a cota, mas infelizmente eu só tenho um apartamento”. Meu irmão falou: “Não, não é pra mim, é pra minha irmã”. Foi quando ele falou pra mim: “É seu, pode ir”. Ela falou inclusive: “Eu até preferiria que ficasse no seu nome mesmo”. E aí, foi quando eu peguei o meu primeiro apartamento no CDHU, que foi no Costa Norte, divisa com Itaquaquecetuba, que pra mim foi uma fase terrível da minha vida. Porque aí, eu estava com a Amanda com 12 anos, a Andressa estava com oito e a Andréia estava com aproximadamente com dois anos. Eu me vi em um lugar que não tinha escola, não tinha mercado, não tinha condução, era completamente abandonado o local, só tinha os prédios mesmo, umas casinhas e uma Febem. Eu me vi tendo de colocar minhas filhas dentro de um barracão pra estudar, não tinha salas de aula, era de primeira à quarta série, todo mundo dentro do barracão. E as meninas iam, no dia que chovia não tinha aula porque o barranco descia totalmente dentro da escola. Só que era assim, era novo pra gente, e foi aí que eu comecei a me mexer e me envolver dentro do condomínio.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Quando eu peguei o meu primeiro apartamento, chegando lá, minhas meninas tiveram de estudar em um galpão. Só que era assim, elas não eram tristes por isso, não. E por eu ter ido a um local com pessoas de baixa renda, que não tinham o que comer, não tinham o que vestir, para um local daquele, elas se viam como se tivessem dinheiro, porque pelas próprias crianças dali elas eram taxadas como se fossem ricas. Porque tinham uma roupa melhor pra vestir, a gente tinha uma estrutura melhor, uns móveis pra colocar dentro do apartamento. Antes de eu ir pra lá, eu dei uma pintura no apartamento, coloquei um piso. O pessoal não, entrava da forma que estava porque não tinha. Sem contar que não era assim. Eu era a que menos tinha filhos, três. Porque era tudo acima de cinco crianças dentro de cada apartamento. E as mulheres, todas grávidas. O único carro que tinha era o do Luís, na época. Era nosso o carro, mas era a ambulância do condomínio também (risos) porque era só ele que socorria todo mundo, principalmente as grávidas, saíam tudo no carro dele pra ter nenê. E eu passei nove meses lá dentro. Só que era assim, a gente via morte todo dia, era tiroteio todo dia. Chegava uma certa hora da noite, quando a gente começava a escutar os estalos, colocava minhas filhas pra debaixo da cama. Eram muitas dificuldades. Foi quando eu comecei a me envolver no movimento lá dentro.
P/1 – Já existia ou você começou com outras pessoas?
R – A gente não tinha como limpar o prédio, que estava sujo. Aí, eu comecei a reunir as crianças pra ensinar daquela forma, comecei a reunir as mulheres. A gente teve uma síndica que roubou todo o dinheiro. Era difícil quem pagava o condomínio (risos), mas quem pagava em dia, dava pra pelo menos pagar água e luz. Daí, nós começamos, cada uma a limpar a sua porta, a gente pegava um dia, a cada 15 dias, e lavava o prédio todinho. A gente limpava muito, e as crianças junto. Aí, eu comecei, com os parentes mais próximos, a conseguir roupa pro pessoal, tentar mostrar pro pessoal que ali não era mais uma favela, que a gente não podia mais colocar calcinha e sutiã pendurados na janela. E a gente começou a fazer um trabalho. Só que aí, como se diz, por eu não ter papas na língua, e não conseguir ver as coisas erradas e ficar quieta, aconteceu um porém: eu peguei um roubo muito grande da parte da síndica e eu resolvi colocar os moradores contra ela em uma reunião. E essa mulher veio pra cima de mim, foi quando eu fui em uma delegacia de polícia abrir um boletim de ocorrência contra ela. Acabou com ela mudando de lá.
P/1 – Teve agressão física?
R – Teve, teve agressão física, ela até acabou mudando de lá. Aí, entrou um outro síndico, as coisas estavam andando, mas eu comecei a ter problema com as minhas filhas. O que acontecia? Tinha um casal que também tinha três crianças na época, e tinha um filho mais velho. E as minhas meninas sempre foram, principalmente a minha mais velha, que é completamente acanhada, sempre foi meio afastada. Ela brincava, mas sempre afastada. E toda vez que eles se viam, esse menino batia nela, na brincadeira, batia nela. E isso foi me perturbando, porque ele batia nela, eu colocava ela pra cima, pedia pra mãe olhar ele, e a mãe nada. Quando foi um dia, ela me pegou meio atravessada, Amanda subiu chorando e eu saí pra ir na porta dela. Mas enfim, eu morava em uma escada e ela na outra, eu peguei ela do lado de fora fumando, dali mesmo eu comecei a bater boca com ela. Ela me chamou de vagabunda e eu falei: “Vagabunda é você, que fica aí em cima, o dia inteiro, fumando, jogando bituca pra baixo, e a gente tendo de limpar. Em vez de dizer isso, vai pra baixo olhar os seus filhos”. Ela falou: “Mas suas meninas descem sozinhas”. “Minhas meninas descem sozinhas, mas você pode observar que toda hora eu estou na janela olhando. E eu ensino a minha filha a ter educação com os outros, e não bater em ninguém”. Foi um bate-boca só e ela disse: “Você vai ver a hora que o meu marido chegar”. Só que eu sempre fui muito agressiva e o que eu fiz? Eu fiquei dentro da minha casa numa boa, quando esse senhor bateu na minha porta, e eu falei: “O senhor entra, vamos conversar com educação”. Ele pôs a mão em mim e me chamou de vagabunda: “Com você não tem educação”. Bastou ele fazer isso, eu estava com a minha menina de dois anos no colo, ali eu soltei minha menina, não sei como, e parti pra cima dele mesmo. Rolamos a escadaria mesmo, isso o meu esposo estava vindo, ele tinha descido na padaria. Quando ele entrou no meio. Era assim, a turma do “deixa disso” me tirava, ele entrava. Seguravam ele e eu entrava. Por fim deu polícia, porque eu agredi realmente o rapaz, eu machuquei realmente, foi uma gozação tremenda dentro da delegacia. Eu realmente ameacei ele de morte, porque eu falei pra ele que ele andasse bem esperto porque, se acaso acontecesse alguma coisa com uma das minhas três filhas, ele seria o primeiro culpado e eu iria matá-lo. Eu falei pra ele: “Você não me conhece, você não sabe até onde eu chego pra defender as minhas filhas. Se elas caírem e levarem um ralo no pé, eu vou atrás de vocês”. E ele foi na delegacia abrir o boletim de ocorrência contra a minha pessoa. Veio o policial e falou: “Você quer fazer o boletim de ocorrência de agressão, você quer fazer o corpo delito?” Aí, eu falei que não. Na época, quem era tenente da área era o vizinho da minha mãe de Guarulhos. Eu falei: “Não, não vou. Você só pede pra ele não passar mais na minha porta, não dirigir a palavra a mim, nem às minhas filhas”. Só que o cara, não contente com a surra que tomou, voltou pro condomínio depois de ir na delegacia, e queria porque queria que eu pagasse a camisa dele que rasgou. Nisso, a esposa dele veio, também querendo me agredir, falava que ia pegar o cabo de vassoura e eu iria ver o que era. Aí, ele chamou o meu esposo pra conversar. O Luís desceu. Eu falei: “Não, ele vai ter que conversar comigo. Se ele quer a camisa, eu vou pagar a camisa pra ele”. Quando ele me viu, ele já estava com a esposa e os filhos dentro do carro, ele desapareceu, sumiu de lá. Aí, eu perdi o gosto de estar ali e resolvi abandonar o apartamento e sair de lá. Foi quando o vizinho do lado, que era um senhor de idade, com quem a gente tinha uma aproximação muito grande, que era do mesmo nível social que a gente. Ele estava com esse apartamento na Penha, que era pra ele. Mas ele sofreu um acidente de carro e acabou com o carro. Ele pegou e ofereceu pra gente. Foi quando eu dei o meu carro e mais uma televisão pro cara, pra ele ficar com esse apartamento. E consegui vender o meu. Aí, eu consegui vender o meu e fui morar na Penha, na Vila Cisper, no Jardim Danfer, na CCB [Congregação Cristã no Brasil]. Foi na CDHU também. Lá o apartamento tinha sido entregue em novembro de 94, se não me engano. Eu me mudei pra lá em março de 95. Foi onde eu fiquei com as minhas filhas, o nível já era um pouquinho melhor, mas mesmo assim tinha muita coisa errada. Descia com as minhas filhas pra elas ficarem brincando lá embaixo. Foi quando um dia, não chegava a fazer um ano que eu morava lá, um rapaz chegou com uma conta de luz e água pra entregar pra gente, que eu olhei lá, aviso de doze horas com corte de água. Falei: “Como? A gente paga condomínio todo mês, não tem condomínio em débito aqui dentro, porque mensalmente a gente via as contas. Como pode estar em débito?” Aí, eu peguei e fui entregar na mão do síndico, eu falei pra ele: “Seu Carlos, dá para o senhor explicar o que está acontecendo? Por que está com corte de água, como a gente vai fazer com as crianças?” Ele tomou a conta da minha mão e falou que não era um problema meu, que era um problema dele e bateu a porta na minha cara (risos). Só que até aí, ele não sabia como eu era. Ele fez aquilo com a pessoa errada. No mesmo momento, eu saí de apartamento em apartamento e avisei todo mundo que o condomínio iria ficar sem água. “Como?” “Tem um aviso de corte de água em 12 horas.” “Mas como assim? As contas de água estão pagas.” “Não, não estão pagas.” Aí, desceu todo mundo às sete horas da noite para uma reunião. Ele veio na reunião, tentou explicar e não conseguiu. Nós estávamos com dois anos de atraso de água. Nunca tinha sido paga uma conta de água. E aí, vamos fazer o quê? Vamos fazer o quê? Resolveram montar uma comissão pra fazer uma auditoria no prédio, que seria o meu esposo, a dona Leonilda e mais um vizinho de Itaquera. Três resolveram fazer isso. E aí, marcamos uma reunião para o outro dia. No outro dia, na reunião, eles fizeram o levantamento, tinha um rombo grandioso, só que até aí, entre os que estavam ali, os mais experientes, chegamos à conclusão de deixar passar em branco, porque a pessoa vivia ali e estava na mesma dificuldade que todo mundo. E era um casal de idosos. Resolvemos passar uma borracha em vez de falar pra todo mundo, que era atraso de condomínio, pra não passar adiante as coisas. Nessa reunião o seu Carlos não apareceu. A esposa dele pegou todos os documentos do prédio e jogou no pátio do prédio (risos). Aí, pegaram e falaram assim pra mim: “Como foi você que começou com tudo isso, pega e vai ficar na sua responsabilidade” (risos). Aí, eu falei: “Tá bom”. Entrou cada um pro seu apartamento, o que vamos fazer? Vamos fazer uma nova comissão, eleger uma nova comissão. No outro dia, marcamos uma nova reunião pra eleger a comissão. Começou, o Luisinho e a dona Leonilda. Ela falou: “Eu entro como tesoureira, mas você vai ter que ficar como síndica”. E quem vai entrar como subsíndico? E começou. Aí, eu entrei. Só que foi assim, eu entrei como síndica, eu era a única mulher no meio de 11 síndicos, homens. A primeira reunião que teve que eu participei, eu ia falar e eles davam risada. Aí, eu ia falar outra coisa e eles davam risada, eles não deixavam eu falar. Mas não tinha meio de eu conseguir colocar aquilo que eu tinha ido atrás, porque antes de passar qualquer coisa eu obtive informações de tudo quanto era lado. E o documento do prédio estava errado, eu queria mudar o documento do prédio e eles não deixavam eu falar. Porque era assim, a cada quatro prédios consistia um condomínio. E eu não conseguia abrir uma conta em banco porque a conta estava errada, eu não conseguia fazer reforma no meu prédio porque o documento estava errado, porque eles fizeram um estatuto pros quatro prédios e eu, individualmente, não conseguia mexer. Foi quando eu tomei a atitude de ir atrás de uma empresa que administra condomínio, eu conheci um tal de Renato lá e esse Renato veio pra ajudar a gente. E eu resolvi mudar toda a documentação do prédio. Numa reunião eu peguei e falei pro síndico geral: “Vocês correm atrás porque eu contratei uma empresa que está cancelando o CNPJ do prédio e eu vou abrir um CNPJ novo”. Um senhor levantou e falou: “O que essa garnizé quer no meio da gente? Atrapalhar os nossos trabalhos?”. Eu falei: “Não. Eu tirei informações e a documentação está errada. E eu vou cancelar o CNPJ porque eu preciso de um CNPJ”. Aí, eles não acreditaram, mas eu já tinha dado entrada na Receita Federal pra isso, já tinha corrido atrás pra fazer tudo, já tinha cancelado o CNPJ do prédio. E o que aconteceu? Quando foi um dia, nós pagávamos um absurdo pra limpar caixa d´água, fazia muito tempo que não limpava. Eu reuni três homens do prédio que estavam desempregados, eu lá em cima, nas caixas d´água, ajudando eles a limparem tudo, o síndico geral veio bravo atrás de mim, que eu tinha feito cagada, que não era assim, que não sei o quê. Eu falei: “Não, eu estou te avisando desde o dia que eu entrei, vocês que não deixam eu falar, então, eu resolvi andar com as minhas próprias pernas. Daqui pra frente você é um e eu sou outra. Acabou, morreu o assunto, eu quero resolver os problemas que tem dentro do meu prédio. Nós estamos com água emprestada, eu não consigo fazer negociação dentro da Sabesp. Eu não consigo fazer negociação dentro da CDHU, a gente precisou fazer o nosso fechamento e não consegue. Precisei arrumar o interfone e não consigo. Nós estamos parados por causa de vocês. E eu não vou ficar”. Ele ficou muito bravo, fez uma reunião de síndicos lá, queria me tirar, mas por fim, na hora que eu fiquei sabendo que ele tinha reunido os síndicos pra fazer o complô contra mim, para me retirar, eu peguei meus 32 moradores e levei pra reunião. Porque eu sou assim, se não vai na conversa numa boa, tem que reunir o povão e levar, sim. Porque uma só pessoa não consegue, mas três, quatro, conseguem convencer. Eu sempre fui assim, desde criança. Então, eu resolvi levar todos os moradores, foi quando ele deixou de ser subsíndico, eu passei a ser subsíndica e passei a cuidar de tudo. Foi aí que deu andamento, conseguimos acertar a água, o asfalto do estacionamento, o fechamento do prédio. E eu fiquei ali até 2001, em meados de 2001, eu saí de lá. Mas eu saí porque eu já não aguentava mais, eu estava há muito tempo como síndica de lá e eu comecei a perder a paciência com os moradores. Eu comecei a extrapolar. Em vez de bater na porta do morador e conversar calmamente com o morador, eu comecei a gritar de longe com o morador. Porque de início, quando teve a reunião, eu falei: “Eu assumo como síndica, mas daqui pra frente vai ser assim, assim e assim. Tem uma norma a seguir aqui dentro.” Nós resolvemos fazer outro estatuto, eles aceitaram, e eu falei: “Então, vocês vão fazer valer o estatuto. E a primeira bagunça que tiver dentro do prédio, eu vou falar uma vez só, na segunda eu vou chamar a polícia”. O nosso prédio era visto pelos outros prédios como a favela de pé, porque tinha sambão todo final de semana (risos). O rapaz do lado do meu apartamento era diretor de uma escola de samba, Leandro de Itaquera (risos), e nós, do prédio, a gente fazia festa, todo mundo junto. Então, tinha sambão e íamos participar. Era tido como favela de pé, e eu tive que tirar isso do prédio. Foi ruim? Foi, mas eu falei: “Não gente, uma vez por mês a gente se reúne e faz uma festa dessa, mas individual a gente não quer mais”. E foi aí que eu fiquei durante muito tempo. Inclusive as pessoas que eram as piores dentro do condomínio, que faziam a festa, começavam nove horas da manhã e não acabava nunca, foi os que mais respeitaram. Uma vez só peguei os dois que eram vizinhos de porta e moravam no térreo, eu fui até lá. Os dois tinham o mesmo nome, Antonio. Um a gente chamava de Tonhilzo e o outro de Antonio. E os dois estavam bêbados. E era assim, os dois faziam as festas juntos, as mulheres se embriagavam junto, e dali a pouco, quando dava a noitinha, os dois entravam pra dentro e cacetavam as mulheres (risos) e a gente tinha que entrar no meio pra separar a confusão. Quando não, as duas brigavam e os dois brigavam (risos). Então, era assim, era uma confusão tremenda, né? Uma vez eu tive que ir separar a briga dos dois. Eu saí para uma festa, quando eu voltei o seu Apolinário, que era o meu subsíndico, subiu e falou: “Vânia, ninguém aguenta mais. Está desde de manhã a bagunça lá”. Eu falei: “Vou lá”. O Luís ainda falou pra mim: “Você vai? Os dois estão bêbados”. Eu falei: “Eles não são nem bestas de virem pro meu lado, porque se eles estão acostumados a baterem nas mulheres deles, eles vão ter que bater em policial, porque eu vou chamar a polícia”. No que eu bati, o seu Antonio falou assim: “Não, dona Vânia, senta aqui. Senta, vamos conversar”. “Seu Antônio, tenha santa paciência!”. Nisso a Vera quis entrar, o marido dela também, eu falei: “Vocês dois vão pra casa de vocês, depois eu converso”. Sentei a Angela e o seu Antonio: “Pelo amor de Deus, tenham santa paciência! Olhem a vergonha que vocês estão fazendo. Bebe, gente, mas não precisa fazer escândalo. Tá demais”. Era muito engraçado aquele casal, os dois casais eram. Porque eles bebiam juntos, passavam o dia na festa, e de noite, um com ciúmes do outro, quebravam o pau, entre eles mesmos. Você tinha que entrar no meio pra separar a bagunça. E o que aconteceu? Tinha uma policial feminina dentro do prédio, que ia pras baladas com a gente, junto com a molecada. Quando a gente ia pra Leandro, a escola de samba, o Luisinho geralmente conseguia um ônibus e eu levava toda a criançada junto, porque os pais confiavam. Hoje em dia eu até falo, tem certas coisas que aquela molecada de 14, 15 anos, que o pai não deixava ir, tinha vez que a gente ia pedir e a mãe falava assim: “Não, eu vou deixar ir porque você e o Luís estão indo e a gente tem muita confiança no Luís”. E acabava indo com a gente dentro do ônibus. Mal o pai e a mãe sabiam que uma vez nós deixamos eles beberem tudo o que eles tinham direito (risos). Os meninos nunca tinham visto o que era bebida, meninos de 17, 18 anos de idade. E nesse dia estava tendo uma festa dos reis na Leandro. E nós deixamos, nós estávamos bebendo, eles experimentando, experimentando e realmente ficaram de fogo. A Cláudia falou assim: “Nós vamos chegar com esses meninos bêbados lá, o que nós vamos fazer?”, “Vamos ter que dar um jeito, né?”. Não, fulano dá banho em cicrano, foram pra minha casa, tivemos que curar a ressaca deles pra deixar eles irem embora (risos). Mas gente, foi muito engraçado, porque no dia seguinte, um olhava pra cara do outro, nós ríamos e a mãe sem saber do que nós estávamos rindo. Realmente foi muito engraçado porque eles estavam com tanto medo da mãe e do pai saberem que eles ficarem embriagados, porque foi a primeira vez dos meninos. Mas foi uma coisa muuuuito engraçada porque as mães eram muito conservadoras.
P/1 – E vocês chegaram a sair em algum desfile?
R – Nós saíamos. Saíamos na ala dos compositores da Leandro de Itaquera e também na Torcida Jovem do Santos. Em Mauá, no ano passado, eu saí na Nova Era que foi a escola campeã de Mauá. Foi uma passagem boa ali na Vila Sílvia, apesar de eu ser uma pessoa muito exaltada, hoje em dia eu não sou mais não, mas eu comecei a perder a estribeira com os moradores. Essa própria policial mesmo, eu cheguei a sair, não foi nos tapas, não, mas cheguei a bater boca com ela, cheguei a sair nos tapas com uma outra moradora do condomínio, sim. E foi feia a briga. Porque eu não admito fofoca, e não admito as pessoas colocarem palavra na minha boca. Então, é assim, eu já estava saturada das coisas, eu já não aguentava mais, ninguém queria ser síndico do prédio. E a esposa do seu Apolinário, que foi uma pessoa que, eu não tinha nada contra a pessoa dela, eu a apoiei durante um certo tempo, tudo, tinha uma certa amizade com ela. Mas ela começou com muita... Aquele tipo de pessoa que fica sentada na escada, se intrometendo na vida dos outros? E ela fez fofoca com uma vizinha minha de frente. E era uma pessoa que eu tinha a maior amizade, ela era uma pessoa muito guerreira, a Átila, e ela veio morar no prédio com uma criança, sem o marido. Era uma menina que saía de manhã pra trabalhar, deixava a criança em uma creche, voltava de noite, não cuidava da vida de ninguém. Era uma mulher muito esforçada mesmo. Aí, ela arrumou um namorado, engravidou da segunda criança. Eu fui testemunha dela no fórum pra ela conseguir pegar pensão dessa pessoa. Eu admirava muito, pela batalha dela, sozinha, sem família nenhuma, sem nada. Porque ela não tinha família, mas infelizmente ela pegou amizade com essa pessoa. E essa pessoa, querendo separar a gente, começou a fazer intriguinha. Coisa que ela vinha conversar comigo: “Átila, não é isso que aconteceu. Realmente eu pedi pro Raoni parar com a bola”. Isso tudo por causa de uma bola. E a mulher acabou falando que eu tirei a bola do menino dela, e eu não tirei. Quem tirou foi o marido dela, que na época estava quase assumindo como síndico, porque eu já estava querendo largar. Essa eu saí no braço mesmo com ela, dentro da minha sala. Foi uma briga muito feia mesmo. Só que é assim, dali eu desanimei, foi quando eu cheguei no meu marido e falei: “Se você não quiser ir, estou indo sozinha, vou alugar uma casa e sair daqui”. Foi quando ele falou: “Então, vamos”. Foi quando eu realmente aluguei a casa em Guarulhos de novo, voltei a morar perto dos meus pais e aluguei o apartamento. Foi quando ele foi mandado embora da Pires, até aí ele estava trabalhando na Pires.
P/1 – Pires é uma metalúrgica?
R – Não, a Pires é serviço de segurança. Ele foi mandado embora da Pires, nós já estávamos pagando aluguel, tudo, foi quando o meu irmão arrumou um serviço pra ele no Riacho Grande, em um motel. Porque o meu irmão gerencia um motel em Guarulhos e mandou o Luís ir para lá que estava precisando de um gerente lá. Foi quando a minha cunhada ficou sabendo, porque até aí ninguém sabia que ele estava desempregado, todo mundo achava que ele estava trabalhando. Mas como eu já tinha me formado em cabeleireira e já tinha montado um salão dentro de casa...
P/1 – Deixa eu voltar nessa passagem um pouquinho. Sua formação de cabeleireira foi durante o tempo que você era síndica ali?
R – Foi, foi em 2001. Foi quando a firma reduziu o salário dos funcionários, por estar passando por problemas financeiros. Ou o funcionário aceitava a redução do salário, ou o funcionário era despedido. E o Luís, sempre responsável, resolveu pela redução do salário. Então, o que aconteceu? O Sindicato, a Cipa [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes] que faz parte da empresa, resolveu montar cursos pras esposas e pros filhos, pra terem uma renda, pra poderem suprir aquele corte no salário do marido. E aí ele me inscreveu sem eu saber. Quando foi um dia ele chegou em casa e falou pra mim: “Vânia, que curso você queria fazer mesmo?” “Eu queria fazer o curso de corte e costura” “Mas você vai fazer o curso de cabeleireira, que foi o curso que você ganhou” (risos). “Tudo bem, vou, né, ganhei, vou fazer”. Aí, fui até a empresa buscar os materiais, porque eles deram tudo pra gente fazer o curso. E eu fui fazer o curso no centro de Guarulhos, pela Federação. Porque tinha três lugares pra gente escolher, como Guarulhos era mais fácil pra mim, eu já conhecia tudo e pra mim sair da Penha pra ir pra Guarulhos era muito mais fácil, porque era uma condução só, do que vir pra São Paulo, eu preferi ir pra Guarulhos. Eu fazia o curso de sábado das oito da manhã até quando a escola fechava, porque era das oito às seis, mas como eu gostava de ficar vendo o professor trabalhar, porque ele tinha as clientes dele, que ele atendia depois do horário, eu acabava ficando. Só que foi um curso muito bom, tinha sábado que a gente ia nas favelas fazer corte gratuito, então, eu gostava muito. Eu resolvi levar o curso adiante, muita gente parou na metade do caminho, não era aquilo tudo que eu falava: “Nossa, estou adorando, estou amando”. Porque eu falei assim, caramba, eu ganhei um curso desses, se eu deixar ele na metade vai ficar chato também pro Luís, que está trabalhando lá dentro. Então, eu vou levar o curso até o final. Só que eu sou assim, mesmo sem eu gostar nem nada, se eu tenho que fazer uma coisa, eu levo ao pé da letra aquilo que eu tenho que fazer. E eu fui a única que passou com nota dez em tudo. Tudo, tudo, o curso todinho.
P/1 – Tinha uma prova?
R – Tinha, tinha provas, tinha tudo. Teve diploma, fizeram um coffee break pra gente receber o diploma.
P/1 – E como eram essas provas?
R – Tinha prova de corte, de manicure, que eu também fiz o curso. Nesse curso estava incluso um curso de limpeza de pele, de maquiagem, que eu não quis fazer, mas eu perguntei se eu poderia incluir alguém pra fazer o curso de limpeza de pele, incluí a minha menina, Andressa, que na época era novinha, tinha o quê? Uns 13 anos de idade. Isso mesmo, tinha 13 anos. Eles falaram assim: “Não é da alçada fazer isso, mas vou abrir uma exceção, você está indo tão bem no curso, vou deixar ela fazer o curso de limpeza de pele”. Porque ela sempre teve uma quedinha por isso. Então, ela foi estudar junto comigo.
P/1 – E pra você era fácil o corte, foi tranquilo?
R – Pra mim era tranquilo, é o que eu estou falando pra você, eu tenho uma habilidade com as mãos e é aquele negócio, eu gosto de fazer coisas que usam as mãos, principalmente trabalhos manuais, artesanato. E foi super fácil fazer o curso, tudo, concluí o curso. Tinha dia que eu não tinha muita vontade de ir não, mas eu me animava, principalmente quando eu sabia que ia para alguma favela fazer corte gratuito. Porque eu acho que, mesmo sem eu gostar, aquilo que eu faço eu dou tudo de mim para eu não me arrepender depois. Porque lá adiante você não sabe se você vai começar a gostar, né?
P/1 – Dessas idas às favelas, você lembra de alguma cena, alguma coisa que aconteceu?
R – As cenas que eu lembro: você vê lá 300, 400 pessoas pra ter o corte de cabelo gratuito. A professora vai no local previamente, porque normalmente são igrejas evangélicas que liberam o local pra gente fazer, ou associações. E coloca lá o comunicado que é pra mãe dar banho na criança, que é pra mãe pentear o cabelo da criança. Teve uma favela de Guarulhos que eu fui, quando a menina, com o cabelo desse tamanho, chegou, eu olhei e senti a maior dó e pensei: “Caramba, por que a própria mãe, se não tem dinheiro, não pega uma tesoura, mesmo que cega, mas deixa baixinho o cabelo da criança, ou pelo menos penteia”. No que eu abri, nunca eu vi tanto piolho na minha vida, eu vi tanto piolho que nunca mais esqueci aquela cena. Eu chamei duas alunas pra mostrar, era tanto piolho, que a divisão do cabelo da menina, aqui, era um atrás do outro, chegava a ter piolho em cima de piolho. Aí, a menina do meu lado falou assim: “Mas por que ficou um em cima do outro?” “Vai ver eles estão transando” (risos). Gente, nunca tinha visto uma cena daquela. Eu chamei a professora e falei: “Professora, eu não estou com nojo” – porque ela fazia a gente usar luva – “mas vai ter que chamar a mãe e pedir pra ela levar em casa, dar um banho, passar o pente fino e voltar. Como eu vou colocar minha tesoura pra cortar um cabelo desses, sendo que depois eu vou ter que cortar o cabelo do outro? E a tesoura não dá pra lavar”. Aí, a professora falou: “Dá aqui ela”. A professora chamou a mãe, acho que a menina estava tão empolgada em cortar o cabelo, que uns 20 minutos depois a menina estava sentada na minha frente, cabelo lavado, penteado. Só que foi assim, a professora já sabia que eles não iam tirar o piolho de dentro de casa, então, ela já pediu pro pastor da igreja ir lá comprar um pente fino, uns pozinhos de Baygon, que naquela época era um pozinho que a gente colocava pra matar piolho, pra gente poder pelo menos passar primeiro o pente fino na cabeça da menina pra passar o pozinho depois que a gente cortasse. Foi uma cena... Quando passava o pente, vocês estão imaginando, né? (risos). Aí, você fica imaginando uma criança de cinco, seis anos de idade, ter milhares de piolhos daquela forma, na cabeça. Você imagina quantas doenças aqueles piolhos não devem ter trazido pro sangue daquela criança. Aí, você chega à seguinte conclusão: por isso que essas pessoas têm verme, doença de sangue, hepatite, qualquer resfriadinho, várias doenças, principalmente respiratória. O desleixo das mães é tanto que dá desespero. Elas acham que, porque elas estão morando em um barraco de madeira, com um chão de terra, muitas vezes o chão é de madeira, mas escorrendo o esgoto por baixo, que não tem que ter limpeza, higiene. É terrível. Da minha passagem pelo corte de cabelo, essa foi a mais terrível.
P/1 – Agora voltando. O seu marido foi pro Riacho Grande trabalhar. Como é que foi?
R – Foi em 2003, pra ser exata dia 15 de fevereiro de 2003 que eu mudei pra lá. O meu esposo não sabia que eu ia mudar. Foi o seguinte, ele sabia que eu estava indo ver o apartamento com a minha cunhada, que resolveu liberar o apartamento pra gente, sem cobrar o aluguel. E eu estava vendo esse apartamento pra gente ir pra lá. Eu fui em um domingo, conheci o apartamento, tudo, gostei. Falei pra ela: “Bom, vou vir procurar escola. Se tiver escola pras meninas...” Ela deu a chave na minha mão e falou: “Então, é de vocês”. E no dia seguinte, que foi numa segunda-feira, o meu cunhado me levou pra Mauá pra procurar escola pras três meninas, a Andréia estava com dez anos. E em uma semana eu preparei a minha mudança, porque eu sou meio cigana, eu a-do-ro mudar, eu a-do-ro, se eu pudesse mudar todo ano, eu mudaria. Eu adoro. E eu sozinha arrumei minha mudança, contratei caminhão. Os amigos das minhas meninas, porque até aí já estavam tudo adolescente, e eu sempre fiz questão de todos os amigos delas estarem sempre dentro da minha casa, ajudaram a colocar tudo no caminhão pra fazer a mudança. Quando os meus cunhados chegaram pra levar a mudança já estava tudo em cima do caminhão, e aí nós fomos. Eu liguei pro Luís e falei: “Olha, nós já mudamos”. Passei o endereço pra ele ir até lá (risos), que foi um sábado. Aí, ele já veio pra dormir lá. Quando eu cheguei, eu já sabia dos problemas dos gases, porque eu moro no Barão de Mauá, que está construído em cima de um terreno que a Cofap vendeu pra Policop. Infelizmente a Prefeitura liberou a construção, eu não sei se eles realmente não sabiam que era uma área contaminada, eles alegam que não sabiam, mas eu acho que a Cofap sabia sim, porque era o local que eles deixavam o lixo. O lixo que saía todo da Cofap era mandado pra lá. E sabia que era uma área contaminada, o solo, que tinha riscos, tudo isso. E depois que eu mudei pra lá, nós pegamos, principalmente a minha menina mais velha, pegou uma alergia crônica que não cura, a minha mais nova teve que fazer cirurgia do nariz e da garganta, e nunca tinham passado por problemas respiratórios. Principalmente a Andréia, que mamou até os sete anos de idade. Eu nunca curei uma gripe dela, nunca tinha dado remédio de gripe. Porque nenhuma das minhas três meninas foi muito em médico pra curar doença, não. E lá esses problemas respiratórios são constantes.
P/1 – É um condomínio?
R – É um condomínio.
P/1 – Como é o nome do condomínio?
R – Condomínio Barão de Mauá.
P/1 – É o que você disse. O nome do bairro também é?
R – Não, é Parque São Vicente, mas o condomínio é Barão de Mauá. Porque é assim, é uma rua onde tem prédios do lado de cá e do lado de lá, tem da Etapa 1 até a Etapa 9. A minha Etapa são 128 moradores, quatro prédios. A Etapa dois, se não me engano, são dez ou onze prédios. Deve ter, no mínimo, umas três, cinco mil famílias ali dentro do condomínio todo. É uma batalha que já estamos na justiça já tem dez anos, que infelizmente não sei onde cabe tanto recurso pra Cofap e a Policop, que todo ano cabe recurso pra eles. Sei que está em Brasília, em novembro parece que saiu a causa novamente, nós ganhamos novamente e está cabendo recurso ainda pra eles.
P/1 – Mas como você entrou nessa briga, já tinha um movimento?
R – Olha, do condomínio em si tem um movimento formado. Agora eu vou falar pra você uma questão particular, eles estão brigando errado, colocando advogado no particular porque advogado quer dinheiro mesmo. É nome, porque ali dentro qualquer advogado faz nome, porque é um negócio que foi reconhecido mundialmente, saiu em tudo quanto foi jornal, inclusive fora do país. Outra coisa, eu acho que ali deveria simplesmente liberar as nossas documentações, que todo mundo tem direito, o contrato, a escritura que a gente tem direito, ou deixar a gente vender aquilo ali, ou que dê o valor do apartamento pra gente. Porque eu acho que indenização cabe nos casos das pessoas que sofreram realmente. Apesar de ali a gente estar vendo muitos casos de câncer. Dentro do meu prédio eu perdi uma amiga com câncer, tem um outro amigo que está com câncer também. Então, é assim, nós sabemos que as crianças que vem nascendo lá, estamos sabendo que já nasceu criança com câncer também... Estamos tendo muito problema com câncer lá dentro e não é natural, principalmente as crianças que estão nascendo. É uma coisa que a Justiça deveria olhar um pouquinho mais e ver, na realidade, o que está ocasionando aqueles gases.
P/1 – Mas lá vocês não formaram a Associação?
R – Lá tem uma Associação já formada antes de eu mudar pra lá. Só que é assim, é um povo muito de nariz empinado, que não se une. Então, pra mim, eu quero distância, porque o meu negócio é mais povão, mesmo. Chegando em Mauá, a minha intenção era abrir um salão de cabeleireiro, porque eu tinha meus equipamentos, tinha tudo. Só que eu comecei a olhar o bairro pra alugar um espaço, só que eu vi um salão em cima do outro, corte a cinco reais. Eu falei, caramba, eu não me sacrifiquei pra estudar, muitas vezes tirei dinheiro de condução que eu não tinha pra ir pra São Paulo pra fazer certos tipos de curso, pra vir pra cá montar um salão e cobrar cinco reais. Eu falei, se for para eu montar aqui, eu quero montar uma coisa para ser valorizada. Porque eu tenho um pensamento grandioso naquilo que eu vou fazer. Se eu posso montar um pequeno, eu posso montar um grande também, então, eu não vou montar um pequeno, vou montar direto um grande. E aí, eu desisti. Foi quando um dos amigos das meninas, que pegou amizade na escola, chegou em casa, me viu bordando, porque até aí eu bordava pano de prato, caminho de mesa, pra vender e poder suprir o dinheiro. Foi quando um dos colegas da minha menina falou: “Ah, você borda?” “Bordo”. “Ah, minha mãe borda, ela borda roupa”. “Mas como é?” “Com materiais. Ela está precisando de bordadeira”. “Você me leva lá?” “Depois eu te levo”. “Depois não, agora, né?” “Então, vamos”. Eu fui até lá. Nessa época, a Maria estava ensinando umas bordadeiras e eu já tinha uma certa prática com bordado, porque eu bordo desde criança, ela quis me ensinar e eu falei: “Posso fazer do meu jeito?” Ela falou: “Pode”. Eu abri meu paninho, com as minhas agulhas, minha tesoura, os bastidores, comecei a bordar ali com ela. Só que era assim, ela me dava pouquíssimas peças. Eu não aguentava sair de casa e ir lá, sair de casa e ir lá, ficar buscando peças duas, três vezes no dia. Porque eu queria trabalhar, não queria uma coisa pra passar o tempo. Aí, ela pegou e falou pra mim, eu vou te dar o telefone de uma pessoa que dá serviço pra quando tem cinco, seis pessoas. Mas aí, vou falar uma coisa pra você, até me deram o telefone da pessoa, mas elas me deram com um pouco de ironia. Como a pessoa era uma pessoa dura de se lidar e elas já tinham brigado com essa pessoa, elas falaram: “Deixa ela achar que é fácil”. Só que é aquele negócio, você se engana com as pessoas, e por não me conhecerem, se enganaram comigo. Eu fui lá, a pessoa falou assim pra mim: “Ó, aqui eu só dou x de peças, você só pode tirar acima de cem peças, só se tiver uma equipe formada de cinco bordadeiras”. Como eu já tinha ensinado minhas meninas a bordarem, porque eu incentivava elas a buscarem o dinheiro delas, eu peguei e falei assim, bom, o negócio aqui vai ser mentir: “Não, eu tenho bordadeira.” “Quantas são?” “Eu tenho as cinco bordadeiras”. Tinha nada, eu era sozinha. Aí, eu comecei, bordar dia e noite. Ela me deu 15 dias para entregar as peças, ela me deu um serviço que eu não sabia fazer, foi muito engraçado, eu passei aproximadamente cinco horas tentando descobrir como era feito o serviço, por fim eu desisti, eu desmanchei a peça pra ver pra que lado iam os bordados para eu conseguir fazer. Por fim, bordei. Quinze dias depois eu fui entregar pra mulher. Chegou lá, eu desisti. Eu falei pra ela: “Eu fiquei 15 dias sem dormir, eu sentava, trabalhava dia e noite bordando. As minhas meninas chegavam da escola, esquentavam comida, faziam o serviço, olhavam pra mim, sentavam, me ajudavam a bordar”. Gente, e era aquele negócio que parecia que nunca acabava, nunca acabava aquele tanto de roupa. Foi quando eu cheguei nela e falei: “Raquel, eu não vou ficar”. “Mas por que você não vai ficar?” “Imagina, nunca peguei uma pessoa que bordasse tão perfeitamente como você borda, não tem nem linha atrás, não dá pra ver onde você começa e termina o bordado”. Eu falei pra ela: “Eu menti pra você, eu queria provar pra você que eu era capaz e provar pra outra pessoa, que eu acho que me deu o seu telefone pra tirar um sarrinho com a minha cara, que eu era capaz de fazer isso. Eu não tenho bordadeira nenhuma, eu sou sozinha, e eu não aguento, eu preciso descansar, eu preciso dormir, eu preciso cuidar das minhas filhas, não tem como eu ficar”. Aí, ela pegou e falou assim: “Vamos fazer o seguinte? Eu gostei da sua pessoa, o seu trabalho é um trabalho maravilhoso, então, eu vou abrir uma exceção. Você leva, se você conseguir fazer 20 peças, você leva 20, mas com um porém, dia sim, dia não, você vai ter que me trazer”. Foi quando eu falei pra ela, “Então, pode ser dessa forma?”. Ela falou: “Pode, tranquilamente”. Eu estava no Parque São Vicente e ela estava em Santo André, era uma boa caminhada. Quando o Luís estava em casa, ele estava trabalhando no Riacho, ele ia no domingo à noite pra lá e só retornava no sábado pra casa. Era raro quando ele vinha durante a semana. Como o quadro de funcionários estava escasso, ele estava geralmente fazendo dois turnos lá dentro, de noite e de dia. Então, ele tinha que ficar lá dentro, dormir lá dentro, porque caso acontecesse qualquer coisa, chamavam ele. Então, o que aconteceu? Eu comecei, tinha dia que eu tinha que ir de ônibus, mas tinha dia que eu não tinha dinheiro pra ir de ônibus, porque o dinheiro que o Luís deixava para eu passar a semana era para comprar o leite das meninas, o pão, o que as meninas precisassem. Tinha dia que eu ia a pé. Até o dia que eu fui a pé, gente, parecia que não tinha mais fim, estava um sol, era umas dez horas da manhã. E ela precisava entregar o serviço. Eu falei: “Não vou fazer uma sacanagem dessa com a mulher”. Saí a pé, andei duas horas pra chegar até lá, com a sacola super pesada. Ela estava atendendo o pessoal das equipes, e eu sentei lá e fiquei aguardando. Foi quando eu conheci o seu Adão, que era o padrasto dela e que hoje é falecido. O que o seu Adão fazia? Ele pegava o serviço da Raquel pra levar pra mãe dela, em Mauá, e pra sobrinha dela, elas passavam o serviço em Mauá. E conversando com ele, ele falou: “De onde você é?” “Parque São Vicente” “Como você faz pra vir pra cá?” Eu falei: “Hoje eu vim a pé porque eu sabia que ela precisava do serviço.” “Não, o que é isso, eu passo na porta da sua casa, não precisa fazer isso. Vamos combinar direitinho, me dá o seu telefone”. Foi outro anjo que eu achei na minha vida, né? Então, era assim, ele saía da casa dele, me ligava. Eu pegava o serviço contadinho, descia a rua da minha casa, ia pra avenida, ele passava na avenida, do outro lado. Ele passava de carro, eu deixava o serviço pra ele ali e subia. Quando ele saía da Raquel, a Raquel ligava pra minha casa e falava: “Vânia, desce na avenida que o seu Adão vai passar por aí”. Ele me deixava o serviço. Eu mudei em fevereiro, isso foi no finalzinho de março. Quando fazia três meses que eu estava trabalhando com ela, ela começou a me incentivar, falou: “Faz o seguinte, o condomínio que você mora é grande, põe uma plaquinha na porta. Você começa a ensinar, você tem facilidade, você ensina”. Aí, eu comecei. A vizinha de baixo se interessou, a vizinha do outro prédio se interessou, eu comecei a ensinar. Eu montei com três bordadeiras. O que aconteceu? Toda hora vinha gente batendo na minha porta e aquilo começou a me irritar, porque eu não conseguia manter a minha casa limpa. Eu fui uma pessoa muito exigente com limpeza, eu era aquela pessoa exigente, que não podia ver um copo fora do lugar, um chinelo no chão, um fio de cabelo. Aquilo começou a me incomodar, as pessoas entravam e eu já ia com a vassoura atrás. Porque eu sempre fui organizada. Aí não deu certo isso pra mim. A própria Raquel falou: “Não, procura um espaço pra você trabalhar”. Foi quando eu comecei a procurar sozinha e arrumei um local para eu trabalhar. O aluguel era 120 reais, eu pensei comigo: “Eu não tenho uma mesa, um telefone, não tenho uma cadeira, como eu vou fazer pra começar a trabalhar?” Aí, eu falei: “Seja o que Deus quiser, eu vou”. Foi quando a Adriana, essa amiga minha, que faleceu agora dia 18 de dezembro [de 2009], começou a bordar comigo, ela tinha uma situação financeira um pouco melhor que a minha, era uma pessoa que adorava academia, adorava se cuidar, tinha dois meninos e começou. A minha menina Andressa pegou uma certa amizade com ela, porque essa minha menina também é uma pessoa muito vaidosa e vendo que ela é vaidosa também, a Andressa pegou uma certa amizade com ela, e a Adriana começou a aprender a bordar comigo. Foi quando eu, vendo o jeito que ela era, igual a mim, eu falei: “Vamos?” Ela falou: “Vamos”. Nem ela tinha dinheiro, nem eu. Nós resolvemos alugar, eu entrei pra alugar, ela como fiadora. Fomos procurar uma mesa pra comprar, dividimos, 70 reais, 35 pra cada uma. Não tinha dinheiro pra pintar a sala, tinha uma lata de tinta na casa dela, nós pintamos. E assim nós montamos a oficina. E ela falava pra mim: “Como vai ser?”. Eu falava: “Adriana, pelo menos 150 reais do aluguel eu garanto comigo bordando”. E com mais as três que eu tinha arrumado. Nós colocamos uma plaquinha lá embaixo do prédio, todo mundo que passava via a plaquinha, porque era rua de comércio, e subia. A minha primeira bordadeira foi uma japonesa, que é a Aiko, que eu tenho amizade até hoje. A Aiko veio, não sei se vocês têm amizade com algum japonês, vocês sabem que de princípio eles são meio desconfiados da gente, ficam meio afastados, mais observam, são desconfiados mesmo. Eu comecei a pegar uma certa amizade com a Aiko, a Aiko trouxe a Shirlei, a Shirlei, a Shirlei trouxe a outra, que trouxe a outra, começou a vir a meninada, perguntando se eu dava serviço, se ensinava. Fui na casa da minha mãe, peguei umas cadeiras velhas, coloquei, ali eu ensinava. E eu passei dois anos ali fazendo isso. Não, não foram dois anos, foi um ano e pouco, fazendo isso. Aí, passou um certo tempo, em vez da Raquel me mandar cem peças e um tipo só, o seu Adão vinha com a Brasília dele lotada, porque aí, eram dois, três cortes diferenciados, eu dividia os cortes. O seu Adão buscava serviço pra mim três vezes por semana. Eu era a equipe da Raquel que mais dava produção pra ela, porque ela me mandava dois, três cortes na segunda e na quarta eu entregava todos. Na quarta, quando o seu Adão me levava, ele já trazia mais, e eu não ficava parada, não ficava sem serviço. Só que era assim, eu subia para a oficina às cinco horas da manhã. Eram dez, onze horas, eu estava lá dentro ainda.
P/1 – E você que pagava as meninas?
R – Isso, eu sempre fiz a contabilidade todinha. Eu sempre tive facilidade. Então, era por peça. Eu geralmente pegava peça a um real e dez. Da Raquel era um real e trinta porque o serviço era mais demorado. Eu ficava com dó das bordadeiras e acabava passando por 90 centavos, um real, porque eu tinha que pagar aluguel. Mas as outras oficinas próximas, se pegava peça a um e dez, passava 30, 40 centavos. Eu não achava justo, então, por eu pagar melhor que as outras e o meu pagamento era ali, direitinho, porque a primeira coisa que eu fazia questão era pegar o cheque da mão da Raquel. Se o cheque estava cruzado, eu reunia as meninas e falava: “Vai demorar dois, três dias pra cair na minha conta”. E o primeiro dinheiro que eu tirava era o das bordadeiras, depois eu via o meu. Era a primeira coisa que eu fazia questão, reunir e pagar elas, depois o meu. Então, por isso eu comecei. Aí, o meu nome começou a ir pra dentro da favela do Oratório.
P/1 – A Oratório é próxima?
R – Isso, é próxima, dá aproximadamente 35 minutos andando a pé, porque o bairro São Vicente é aqui e o Oratório é do lado de cá da linha do trem. E aí, começou uma pessoa do Oratório veio ver o serviço. Porque essa pessoa vinha na feira do Parque São Vicente de terça-feira buscar o alimento pras crianças. E aí, ela viu a plaquinha.
P/1 – Só pra gente escrever, o que você escrevia na plaquinha?
R – Precisa-se de bordadeira, com ou sem prática. Ensina-se o serviço. E o endereço. Essa pessoa veio, ela já sabia bordar. Ela trouxe uma outra, que falou assim: “Bom, como a gente sabe que é uma área que dá muito calote na gente...” Porque infelizmente é uma área crítica, o negócio de recebimento. Muitas vezes a pessoa que monta a oficina acaba não recebendo da empresa, a empresa acaba dando o calote, e ela fica numa má situação com as bordadeiras. E muitas vezes a pessoa que montou a oficina é mau caráter. O que ela faz? Ela monta a oficina aqui hoje, faz aquele montante em dinheiro, recebe, cai fora. Desaparece simplesmente. E as bordadeiras ficam a ver navios. Eu sei disso porque eu tomei um calote. Só que eu fui mais esperta que o cara. Eu fiz o cara assinar um documento. No último corte dele eu falei: “Você só tira o corte de dentro da oficina se você me assinar esse documento”, que foi com o qual eu coloquei ele em processo. E eu fucei tanto dentro de Mauá que eu conseguia achar ele. Eu recebi um ano depois, mas eu recebi. Então, as bordadeiras chegavam a trabalhar um mês e não receber. E essa menina foi, falaram pra ela: “Se você for e ela pagar realmente, aí, nós vamos”. O que aconteceu? Ela veio, ficou um mês comigo. E o meu serviço era melhor que o das outras bordadeiras. Por quê? Porque eu pegava uma peça complicada e eu dividia pelas bordadeiras, eu pegava a bordadeira que menos sabia bordar, tinha menos prática, pegava pra fazer o serviço mais fácil, a outra que tinha um pouquinho mais de prática um pouquinho mais difícil, e a que sabia realmente bordar eu colocava o serviço mais complicado. Eu falava pra elas: “A peça é tanto, nós dividimos por tanto”, o mais fácil x, o médio x, e o mais difícil y. E elas gostavam de trabalhar dessa forma porque a gente ganhava muito mais. Com seis meses de oficina, a Adriana resolveu largar, porque ela não entrava no meu pique. Ela levantava, levava os filhos pra creche, da creche ia pra academia, da academia ela chegava às onze horas da manhã, ia tomar o café da manhã dela, ela nunca conseguia entrar no meu ritmo, porque até aí o que nós estávamos tirando das bordadeiras estava dando pra pagar o aluguel e colocar crédito em um celular velho que eu arrumei. Não estava dando ainda pra gente tirar, não. Dava pro cigarro dela, o cigarro meu, um lanchinho, muito pouca coisa. Então, ela resolveu e falou: “Não, estou vendo que eu estou atrapalhando, eu estou saindo fora”. Quando ela saiu fora, foi quando eu tive que mudar de sala, ir para uma sala maior, quando outras pessoas do São Vicente se aproximaram, já sabiam bordar. Aí, eu comecei, a Maria que me deu o primeiro serviço e me deu o telefone da Raquel começou a perder todas as bordadeiras pra mim. Aí, a fulana do Oratório, que tinha uma oficina, começou a perder as bordadeiras pra mim. Porque a fama começou a rodar, que eu pagava em dia, realmente. Quando eu estava com problema de cheque eu reunia todo mundo e mostrava. Porque eu falava pras meninas: “Vocês querem que eu vou no agiota trocar? Se vocês querem, eu vou no agiota, mas vou ter que tirar a comissão de vocês também pra pagar. Se vocês querem ir, nós nos reunimos e vamos juntos lá descontar”. Só que muitas vezes as meninas falavam: “Não, o jeito é a gente ir porque a gente está precisando realmente”. Muitas vezes eu ia lá, pagava sozinha o agiota, porque eu precisava pagar o aluguel. E assim eu ia, até que eu peguei a amizade com o agiota, por fim o agiota acabava cobrando três, quatro por cento só, pra mim. Muitas vezes ele descontava sem cobrar nada, ele falava: “Não, como em dois, três dias, cai o cheque, tó o dinheiro, depois eu deposito na conta”. E aí chegou um primo meu, um rapaz que era casado com uma prima minha, veio passear em São Paulo. E minha prima queria ir no Brás comprar umas roupas pra levar pro interior. E o que aconteceu? Eles foram atrás da minha mãe, a minha mãe falou: “Seria bom vocês ligarem pra Vânia, porque a Vânia conhece tudo lá, sabe andar bem, e ela larga o que está fazendo pra ir, porque eu não posso ir, o outro não pode ir, e a Inês, que estava em casa, não sabe andar direito lá no Brás”. Aí, ela me ligou, marcou comigo, tudo, eu fui encontrar ela no Brás pra levar ela lá, encontrei ela na estação. Na volta, o marido dela veio me trazer em casa e nós, conversando, ele falou assim: “Eu faço consultoria para uma empresa que chama Confex, que trabalha com as Lojas Marisa e faz esse tipo de bordado”. Pegou e me deu o telefone da pessoa. Só que eu achei que era muito eu ligar pra pessoa e falar: “Não, foi fulano que me deu o telefone e eu quero falar diretamente com a dona da empresa”. Nesse tempo eu sempre tive a minha consciência que: ou você chega humilde no lugar e tenta procurar quem é chefe daquela área, ou então você vai direto no dono e quebra um pouquinho a cara, né? Então, o que eu fiz? Eu liguei: “Eu quero falar com a Solange” “Ela não está, é a respeito de quê?” “A respeito de serviço”; me passaram com a encarregada, que falou: “Não, no momento a gente não está pegando”. E nunca mais liguei, deixei o meu telefone lá, como ninguém ligou, eu não vou ficar insistindo, né? Continuei trabalhando com a Raquel. Como a minha fama já estava grande, que eu estava dentro de Mauá, chegou até a Ribeirão, em uma pessoa chamada Valéria, que eu tinha serviço, e ela estava meio parada. Ela veio até a mim, pegou metade de um corte meu pra passar pras bordadeiras dela. Quer dizer, eu tirava por um preço lá, passava pra ela pelo mesmo preço que eu passava pras minhas bordadeiras, porque não era justo eu ter o sacrifício de ir lá buscar, ter o trabalho de contar, separar, responsabilidade. Se a bordadeira não desse conta até o dia seguinte, eu tinha que trabalhar à noite pra dar conta. Porque, graças a Deus, nessa parte eu sempre fui responsável. A Valéria pegou e veio buscar. Até o dia que ela conseguiu chegar até a Solange, até a Confex. E ela pegou um corte que ela não ia dar conta, e pra segurar a empresa ela teria que dar conta. Ela me ligou, eu falei pra ela, estou indo agora buscar o serviço. Quando eu cheguei lá e vi o serviço, conhecendo as bordadeiras, tudo, eu falei: “Tranquilamente, amanhã no horário, está pronto o serviço”. Ela falou pra mim: “Se você me ajudar, eu te passo direto pra empresa, porque eles estão precisando, estão com muito serviço lá”. O telefone da pessoa está aqui, eu já conversei com ela, Jane, que era tia da Solange. Eu já conversei com ela e vou passar o serviço pra você pra ajudar a tirar o caminhão, porque o caminhão tem que ir amanhã cedo ou vai ser cancelado o pedido. Aí, eu fiz as contas, das bordadeiras tudo, bordei uma lá, calculei o tempo, tudo, eu falei: “Vai, 700 peças eu dou conta”. “Não, você é doida, você não vai dar”. Eu falei: “Valéria, minhas bordadeiras estão acostumadas a bordarem serviço de uma hora, uma hora e meia. Eu demorei doze minutos pra bordar uma peça dessa. Nem que a gente tenha que passar a noite na oficina pra dar conta”. Eu liguei pro Luís, falei, “Luís, liga pra todas as meninas, estou chegando aí, pede pras meninas irem para aí”. As bordadeiras vieram e eu falei: “O negócio é o seguinte, o serviço é bom, o pagamento é bom, a empresa é grande, serviço está aqui. Agora, basta a nossa capacidade pra segurar, nós temos até amanhã até as dez horas da manhã pra entregar. Vocês vão querer ou não? Senão vou entregar agora”. As meninas olharam, nós vamos reunir todos aqui. Estávamos em 15, nós vamos fazer o serviço pra amanhã cedo. Eu diminuí o serviço da Raquel, no outro dia liguei lá: “Jane, o serviço está pronto, pode vir mandar buscar”. “Não, é impossível. Como você conseguiu de ontem, daquela hora até, fazer 700 peças?”. Ela própria veio buscar, olhou o serviço e falou: “Não é possível, um serviço desses, perfeito”. Eu mostrei pra ela o que a gente bordava e ela falou: “Ah, está explicado porque vocês conseguiram bordar, né?” Ela pegou e falou: “O serviço é de vocês”. E era assim, o corte da Marisa em si é de 12 a 15 mil, cada corte. E eu pegava a maioria. Enquanto a Valéria ficava com mil, eu ficava com 10, 11 mil, com o mesmo tanto de bordadeiras. Só que, ou as meninas trabalhavam ou eu parava o serviço. Então, eu não fazia um acordo sozinha, pensando em mim. Eu fazia com as meninas. E o serviço da Solange tinha que entregar todo dia, principalmente quando estava atrasado na costura, no corte, estava atrasado na pintura, na costura, sobrava pra quem? Pro acabamento e as bordadeiras. Então, tinha dia do caminhão vir buscar duas, três vezes no dia. E as meninas do Oratório... Começou a ficar difícil para elas virem buscar. Porque não valia mais a pena elas pegarem 20 peças pra levar e ficar dois dias. Elas tinham que tirar no mínimo 100, 150 peças diárias, que era onde elas estavam ganhando. Porque apesar da peça da Raquel, vamos supor, ser 90 centavos, a da Marisa era 15 centavos. Só que da Marisa a gente tirava até 30 reais por dia, a da Raquel você não chegava a tirar 10 reais por dia. Então, nós começamos a ver o lucro aí, foi quando as meninas começaram a reclamar de tudo, muitas vezes a Solange colocava o André, que é cunhado dela, que vinha retirar serviço, o carro a minha disposição pra descer até a favela do Oratório, quando ela via que o negócio estava pegando mesmo, o André falava: “Não, Vânia, como não tem como as bordadeiras virem, você liga pra elas que eu enfio o serviço dentro do carro e vou entregar junto com você”. Isso às sete horas da noite. Eu comecei a ver a dificuldade deles e eu comecei a ter mais bordadeiras ali dentro. Aí, a Sandra, uma das meninas que moravam dentro do Oratório, montou uma oficina de cinco bordadeiras, o Luís levava de carro pra elas, à noite, e ela distribuía lá dentro. Só que também estava dificultoso pra ela porque onde o Luís tinha que deixar o serviço, porque não tinha como entrar carro na rua que ela morava, era tudo esburacado, elas não conseguiam levar, elas tinham que vir com o carrinho de pedreiro, colocar pra subir a viela pra poder distribuir. Aí, eu falei: “Sandra, vamos fazer o seguinte? Vamos procurar um lugar aí dentro do Oratório pra gente alugar e trabalhar junto?” “Vamos, vamos”. O Luís ainda deu risada: “Você tá louca? Trabalhar dentro da favela, em um lugar que você não conhece?”. Porque a favela era tida como o lugar mais criminoso dentro de Mauá. “Você está louca” “Eu vou, se você não quer ir, o problema é seu, eu estou indo”. Aí, um dia, eu fui na Câmara. Porque era assim, o Prefeito atendia os moradores toda quarta-feira. E eu estava saturada com os negócios porque o Luís tinha trabalhado em uma campanha política, nessa época ele já estava completamente desempregado, estava trabalhando em uma campanha política e prometeram serviço pra ele. E o cara na época era o Prefeito. Foi em 2002, quando nós ficamos sem prefeito em Mauá, que não teve segundo turno e o Presidente da Câmara teve que assumir a Prefeitura, o Diniz Lopes. E ele fez uma promessa pra Andréia, minha filha. E a Andréia, ela perturba a gente quando alguém promete alguma coisa pra ela. E ela ficava: “Você não vai lá na Prefeitura falar com o homem? O homem não deu o serviço pro pai ainda? Você não vai lá na Prefeitura?”. Um dia eu amanheci meio com a pá virada e falei, vai ser hoje. Fui, peguei minha senha, entrei. Só que por fim, gente, eu acabei nem falando o que eu queria. Eu comecei a ficar irritada com a situação dos moradores que estavam ali. Senta uma senhora do meu lado, com uma receita médica na mão, passando mal, pra falar com o Secretário. Porque vinha o Prefeito, junto com o Secretariado pra conversar com a população. E o Secretário de Saúde falou pra ela: “Eu não tenho o que fazer pra arrumar o remédio pra senhora”. Aquilo me subiu um nervoso tão grande, tomei a receita da mão dele e falei: “Pessoal, a senhora está precisando de um remédio agora e o secretário falou que só daqui um mês ele vai mandar pro posto de saúde. Eu sei que todo mundo aqui está na mesma situação, eu também, mas será que ninguém tem uma moedinha, 50 centavos, um real? Vamos juntar que não deve ser caro o remédio. Vamos juntar o dinheiro aqui dentro, tem umas cem pessoas aqui dentro, a gente consegue comprar o remédio dela, pra daqui um mês o secretário liberar o remédio pra mulher”. O Secretário foi ficando vermelho, quando ele viu todo mundo tirando moedinha do bolso pra pagar o remédio pra mulher, ele simplesmente rasgou a receita. Ele puxou com tanta força da minha mão, e eu puxava da mão dele, e ele da minha: “Nãoooo, não quero mais. O senhor não falou que só daqui um mês? Nós vamos resolver o problema dela, se o secretário da saúde não tem como resolver, nós vamos resolver agora”. E o homem acabou pegando a receita da minha mão, chamou um guarda municipal que estava lá: “Tó, pelo amor de Deus, vai na farmácia, vê quanto é e fala que depois eu passo lá e pago”. Falei: “Agora o senhor demonstrou pra mim que é secretário da saúde. Era tudo o que eu esperava do senhor, pagar o remédio da senhora”. Eu fiquei tão encantada com aquilo que eu saí. Nisso vinha vindo o secretário de governo: “Ah, quem que era que queria falar comigo?” A moça viu e falou: “É a mulher aí”. Ele veio atrás de mim e eu falei: “Ah, não quero mais falar nada, não, estou de saco cheio. Vou embora procurar o meu serviço que eu ganho mais”. Nisso, saiu um morador do Oratório correndo atrás de mim: “Mas o que foi?” “O que foi? Eu estou doidinha pra pegar o Diniz Lopes”. Só que eu não sabia que o cara trabalhava com ele. “Estou de saco cheio, foi no Parque São Vicente, prometeu um negócio pra minha menina, minha menina está me matando dentro de casa cobrando dele”. Ele falou pra mim: “Não, dá o seu telefone, vamos conversar”, isso, aquilo. Eu falei, “Não dá não, porque eu marquei lá no Oratório e estou indo pra lá.” “O que você vai fazer no Oratório?” “Estou procurando um lugar pra trabalhar lá”. Ele falou: “Eu sou de lá”. “Você conhece algum lugar?” “Não, eu vou te indicar um local pra você procurar. Você procura o seu Moacir, que é Presidente da Associação do Jardim Oratório, procura ele lá que ele conhece tudo lá e arruma um lugar pra você trabalhar”. Eu ia encontrar com a Sandra, falei: “Sandra, mandaram nós procurarmos o seu Moacir”. Foi quando eu entrei, a Sandra já conhecia ele, porque ela morava lá, me apresentou. Ele falou: “Que tipo de trabalho você faz?” “Eu estou com 38 bordadeiras, mulheres daqui, e está muito dificultoso pra elas irem buscar o serviço. Então, eu resolvi alugar um lugar aqui pra trazer porque vai ficar mais perto pra elas e elas vão poder ganhar mais. Aí, ele pegou um maço de chave e falou: “Vem aqui”. Aí, ele me levou no fundo da Associação, me mostrou uma sala, nessa sala estavam guardados todos os instrumentos da escola de samba, ele falou: “Tem esse espaço aqui, o que você acha?”, “Tá ótimo, tá lindo, maravilhoso!”. Cabia só a minha mesa. Eu falei: “E aí? Dá pra acertar o aluguel?” “Eu não tenho como cobrar aluguel de você porque aqui é uma Associação e não cobra aluguel. Dá pra você vir fazer um trabalho com as mulheres aqui e você vê no que você pode ajudar dentro da Associação. Você vê se você ajuda com produto de limpeza, alguma coisa”. Só que aí eu observei que na Associação não tinha telefone, eu ia precisar de uma linha telefônica. Eu já tinha, dentro do Parque São Vicente, um telefone. Eu falei: “Bom, seu Moacir, pra começo eu vou trazer uma linha telefônica pra gente usufruir aqui na Associação e para eu poder trabalhar”. Eu reuni as meninas e falei: “Como eu não vou pagar mais aluguel, melhora porque eu aumento o valor da peça, em vez de eu retirar pro aluguel, eu aumento”. E aí, as meninas falaram: “Vai ficar melhor porque fulano não estava indo trabalhar pra você porque tinha que ir buscar”. Quando eu me vi, com um mês lá dentro, eu estava com 220 bordadeiras. Eu tinha tirado as bordadeiras de todas as oficinas que eram de lá. As oficinas já estavam vindo buscar serviço comigo. Eu bordava, por dia, oito mil peças pra empresa. Eu fui ficando na empresa, porque aí eu já tinha um livre acesso dentro da empresa. Até aí, eu não lembrava do nome Solange, o telefone que o meu primo tinha me dado, nem associado com o meu primo. Quando foi um dia, porque quando a Solange precisava de pilotagem, o caminhão ia sair às sete da manhã, ainda tinha mil peças pra bordar, não dava pra trazer pro Oratório pra pegar e bordar, o que eu fazia? Eu reunia cinco, seis bordadeiras, íamos pra dentro da Confex, a Solange liberava uma mesa grande pra gente e a gente trabalhava lá dentro. De manhã ela dava jeito de levar a gente embora. E a gente fazia. Pras minhas bordadeiras fazerem isso, a Solange liberava o dinheiro pra gente, daquele dia, pras meninas terem dinheiro e a gente ia. Acabou que eu não pegava mais cheque, eu abria o mês dia primeiro e fechava dia 30, o pagamento sempre dia 3, dia 4 estava na minha conta. Aí, as coisas começaram a mudar. Um dia, dentro da Confex, já se passando quase dois anos, eu encontro o meu primo lá dentro. Eu fiquei olhando, sabe quando faz tempo que você não vê a pessoa e eu pesava 98 quilos, e eu cheguei nos 70 quilos. Então, eu estava magrinha. Ele olhava pra mim, eu olhava pra ele, e eu falava: “Putz, eu conheço você de algum lugar”. E não lembrava de onde. E ele também estava com a fisionomia mudada. Eu tinha livre acesso dentro da empresa, eu era a única que entrava no escritório, eu mexia nos materiais, em máquina, eu tinha livre acesso lá dentro. E aí, eu subi pra conversar com a Jane, porque estava próximo de pagamento e eu fui acertar as notas com ela. E eu estava conversando com a Jane, que é tia da Solange. E ele estava sentado em uma outra mesa. E aí, no que eu e a Jane estávamos falando de negócios, ele entrou no meio. Aí, eu olhei pra cara dele: “Você não é o Heleno?” “Sou”. “Eu sou a Vânia”. “A Vânia da tia Lúcia?” “É”. Ele falou pra mim assim: “Nossa, você está aqui desde aquela época?”. Eu falei, “Não, Heleno, eu entrei aqui por um acaso”. Aí, a Jane falou: “Nossa, eu conheço a sua tia, a sua avó” – que ainda era viva. “Tenho muita amizade com a sua prima. Vou pro interior porque a minha tia mora no 18, no interior”. E foi aquele negócio assim, eu não imaginava que fosse encontrar ele ali. Então, se tornou uma coisa da empresa comigo, e dos donos da empresa com a minha pessoa, mais ligada nesse sentido. E eu fiquei lá oito anos. E aí, naquele mesmo ano que eu fui pra Associação, ia ter eleição. O seu Moacir veio me convidar pra entrar pra diretoria. Eu falei pra ele: “Mas o que eu tenho que fazer?” “Você não precisa fazer nada, só você entrar”. Eu me senti na obrigação de entrar. Aconteceu no sentido que, automaticamente quando eu entrei, eu comecei a me envolver aos poucos com aquilo lá. Eu tratava de assunto das bordadeiras, eu comecei a mostrar pra Sandra. Então, eu cuidava mais da parte de ligar pra empresa e de pagar as meninas, e a Sandra cuidava das outras coisas. Eu só entrava ali na oficina pra cuidar das coisas quando eu via que estava enrolado e tinha que desenrolar. E comecei a vir mais pro lado da Associação. Comecei a aprender a fazer os contratos de compra e venda, comecei a mexer na documentação do leite. Aí, eu comecei a ter diversos problemas. Porque os moradores não chegam pra você com educação, com a cabeça baixa, eles chegam já te agredindo, porque eles acham que você é culpado pelo que eles estão passando dentro de casa, não querem nem saber, eles não chegam pra conversar com você em tom baixo, devagar. Eles já chegam te agredindo. E se a outra me chega agredindo, eu já agrido de imediato (risos). Então, eu tive muita dificuldade no início, eu passei um mês assim, que eu achei que ia ficar louca. E eu fui tomando gosto pela Associação. Automaticamente o seu Moacir me enfiou dentro do Conselho de Habitação de Mauá, depois me levou pra Conferência.
P/1 – Só pra gente conhecer um pouco mais, pra quem não conhece assim, como que é essa Favela do Oratório, quantos moradores tem?
R – Na favela são 26 mil moradores. E é assim, é uma área de invasão. Todo mundo fala que foi em 68, quando o seu Benedito fundou a Associação de lá e o seu Benedito resolveu ajudar os moradores que não tinham uma área pra morar e resolveu liberar a invasão no local. A invasão foi liberada tanto pelo seu Dito, que já é falecido, como pela Prefeitura na época, que o Dorival Resende era Prefeito. E os moradores começaram a chegar aos poucos. Lá era uma área do INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], em 68 a Prefeitura comprou o terreno por um valor simbólico, de 495 cruzeiros na época, pra liberar o título de posse pros moradores. Hoje, a área tem 26 mil famílias. Então, é assim, é uma área com vários problemas, já passou por área de risco, hoje eu não falo pra você que é área de risco porque não é mais. Tem alguns locais em que as famílias contruíram em barranco, aí sim, mas os locais que já estão asfaltados, a água foi canalizada, não são mais áreas de risco. Já tem regularização de área no local também.
P/1 – E quando você chegou lá, essa infraestrutura já existia?
R – Pouco, de cinco anos pra cá que formou bastante coisa.
P/1 – Você falou que a Associação surgiu na década de 60, e como ela funciona?
R – A Associação, eu acho que funciona pouco, acho que deveria funcionar muito mais. Quando eu entrei lá, a única coisa que tinha era o leite.
P/1 – O que é o leite?
R – A entrada do leite é aquele programa Viva Leite do governo do Estado, que chega pra 150 famílias dentro do Oratório, é entregue uma cota de quatro litros semanais por família, na terça e na sexta, dois na terça e dois na sexta, que vem pra Associação e ela repassa isso pros moradores. São 150 famílias cadastradas. Quando eu cheguei lá tinha o leite, tinha aula de capoeira que, se não me engano, era cobrada, à noite. Tinha uns cursos lá dentro, de uma empresa, pro primeiro emprego, tinha umas coisas assim, que não era nada muito formal. Eu acho que tem que ter muito mais coisa lá dentro. E aí, eu comecei a me envolver primeiramente indo pro leite. Como o morador vinha procurar o seu Moacir, e geralmente o seu Moacir estava andando no bairro, eu acabava tendo de atender os moradores. Tinha vez que eu saía dentro do bairro procurando o seu Moacir. Quando eu saía procurando o seu Moacir, os moradores começaram a ver, seu Moacir, presidente, Vânia na Associação. Ninguém começou a ver que eu era só da minha oficina. Então, muitas vezes os moradores nem chegavam procurando o seu Moacir, chegavam procurando a minha pessoa. E eu sofri muito ali dentro. Teve morador que chegou com pau na mão pra me bater porque não admitia eu ser da forma que eu era, eles vinham com pedra e eu acertava a pedra primeiro. Então, quando chegavam eu falava: “Não vem com pedra não porque eu acerto primeiro, não estou aqui pra ser ofendida por ninguém”. Eu sofri muito, foi um mês, dois, mais ou menos, no leite, que tinha dia que dava vontade de estourar todos os saquinhos de leite, gente (risos).
P/1 – Mas do que eles reclamavam? Você lembra de alguma coisa?
R – Nossa, é muita muvuca que elas fazem no leite (risos). Atrasa o caminhão, você é a culpada, se aquele dia não vai ter entrega de leite porque faltou alguma coisa, eles querem te bater e você é a culpada. Se perde a carteirinha por falta de assinatura, você que é a culpada. Você não consegue enfiar na cabeça deles que a gente tem uma norma pra seguir, que a norma do leite vem da secretaria e a gente tem que seguir ao pé da letra, senão a gente não consegue o leite, a gente perde o leite. É muuuito complicado. E quem fica um só dia no leite não quer ficar mais (risos). Eu já tentei colocar um monte de gente pra cuidar do leite, te juro, já peguei mães que pegam leite: “Fica você, você não faz nada no período da manhã, vem ajudar aqui dentro”. A pessoa fica um dia: “Pelo amor de Deus, Vânia, me socorre, não estou aguentando mais”. E eu não sei o que acontece, eu fico no leite e não tenho um pepino agora. Se eu ponho uma pessoa lá, no outro dia eu acho um monte de pepino. Então, não dá pra entender a cabeça do ser humano. Por mais que você explique, sou voluntário, estou aqui ajudando. É difícil, é complicado. Então, pra mim essa fase do leite foi a mais crítica mesmo, foram uns dois meses de sofrimento. Eu falava: “Ai, seu Moacir, pelo amor de Deus, como que o senhor aguenta?” “Você vai acostumar”. Porque de vez em quando, lá no fundo, eu via o seu Moacir exaltado, gritando com os idosos, com as mulheres, na hora do leite. “Não é possível, tem que tratar dessa forma? Acho que dá pra tratar diferente, não é possível”. Aí, eu saía, dava umas rodadas pra ver o que estava acontecendo. “Não, o seu Moacir deve ser um carrasco, porque não é possível, um idoso daquele. Você vê que a pessoa saiu de casa e não teve o que tomar, não teve nem um café, está ali esperando a sobra do leite”. Porque eles ficam lá até às onze e meia da manhã esperando a sobra do leite. E aí, eu ficava imaginando, imaginando. Gente, na primeira semana do leite eu falei: “Tem razão, tem mais é que gritar mesmo e fazer ver o lado deles”.
P/1 – Conta um pouco das coisas que você viu lá na Associação.
R – Então, você começa a ver que quando a pessoa está tratando a outra com educação, a pessoa quer te levar pra casa dele. A pessoa quer porque quer que você vá ver a situação deles, ao vivo ali, eles não querem só contar, querem que você vá ver. Eles acham que você vai conseguir ir lá olhar, tirar dinheiro do bolso e acabar fazendo as coisas. Eu cansei de fazer isso.
P/1 – Você chegou a ir na casa das pessoas?
R – Nossa, demais. Porque a pessoa insiste tanto com você que você acaba indo com dó.
P/1 – E dessas idas, tem alguma que te impactou mais?
R – Não, não tem muito, não. Eu já conhecia mais ou menos pelas próprias bordadeiras minhas. Porque na época que cortava o serviço, eu dormia dentro da casa delas, com elas, porque ninguém tinha coragem de ficar dentro da Associação, o terreno é muito grande, tem as salas, tudo. Uma olhava pra cara da outra e dizia: “Não vamos ficar aqui, não”. “Não, aqui não vamos ficar, não. Vamos embora pra nossas casas, lá pelo menos tem televisão, dá pra gente coar um cafezinho”. “Vamos”. Então, cansei de passar muitas noites ali dentro do Oratório trabalhando com elas. E era assim, passava uma noite na casa de uma, eu ia de noite pra minha casa, tomava banho, pegava a minha escova, voltava pro Oratório. E aí, saía briga, eu falava: “Tá bom, na casa de quem vamos ficar essa noite?” Aí, na outra noite tinha que ficar na casa da outra, e se não ficasse saía briga. Então, eu tinha que ir. Eu estava meio acostumada. E eu sou uma pessoa assim, eu entro na casa deles, não quero nem saber, se tiver garrafa de café em cima da mesa eu vou pegar o copo, vou passar água, vou tomar. Eu sento na cama junto com eles, eu não quero saber, eu acostumei com eles dessa forma. Então, como eu estava falando, eu olhava o seu Moacir como um carrasco pelo jeito que ele tratava. Quando o seu Moacir sumia, que ele me ensinava a fazer o contrato, mas eu nunca fui muito ligada em computador, não, eu nunca quis sentar em frente ao computador e ficar. Ele me ensinava a fazer, ele sumia: “Mas eu te ensinei, mexe lá, não sei o quê”. A gente tem uma impressora lá que ainda é à base de fita, que tem que ser tudo no manuseio para ela imprimir, demora um ano pra imprimir. Eu nunca tinha visto uma impressora daquela. E eu não queria mexer. Aí, o morador vinha e eu saía pelo bairro caçando o seu Moacir, o seu Moacir ficava bravo: “Ah, manda voltar depois, eles enchem o saco!”. Mas realmente, gente, é uma encheção de saco sem tamanho. E o que acontece? Acho que o seu Moacir já estava de saco cheio de ter de ir pra reunião de Educação, pra reunião de Câmara, pra reunião de Conferência, pra reunião de não sei o quê, pra reunião de Federação, o que o seu Moacir começou a fazer? O seu Moacir começou: “Ah, eu vou em tal reunião e você vai junto”. Aí, em vez de colocar o nome dele, começou a colocar o meu nome pras coisas. Eu comecei a me interessar, só que eu comecei a ver também o lado social. Eu comecei a me interessar no seguinte: “Se eu posso vir pegar o leite aqui, eu posso procurar uma outra coisa também. Se eu posso fazer o contrato, também posso tirar um [atestado de] antecedentes criminais pela internet. Se eu posso fazer isso, eu posso fazer um currículo também. Se eu posso ver um asfalto que está na rua, eu posso ir na assistente social ver uma cesta básica. Ah, eu posso ir lá no posto de saúde tentar um remédio. E eu comecei a fuçar dentro dos órgãos da Prefeitura nesse sentido. Eu comecei a deixar um pouquinho a minha oficina, eu deixava só pro Luís e a Sandra cuidarem e comecei a mexer mais do lado da Associação. Então, com isso, as próprias bordadeiras chegavam a pedir as coisas pra mim: “Ah, Vânia, isso”. “Espera que eu vou ver aqui”. E elas mesmo começaram a trazer os moradores pra procurarem as coisas. Aí, eu conheci o Juvenildo, que era um dos diretores da Habitação na época.
P/1 – Só para eu entender: Quando você fala “Habitação”, o que é? Como é a estrutura?
R – É a Secretaria de Habitação do Município de Mauá, dentro da Prefeitura.
P/1 – E a Associação tem vários diretores e cada um faz uma coisa. É isso?
R – Isso. Teria que ser dessa forma, só que é rara a Associação que funcione dessa forma. A maioria das vezes tem Associações que são abertas pra receber o leite, e na maioria das vezes o próprio presidente que monta a Associação chama as pessoas pra serem diretoras, mas as pessoas não contribuem para o serviço, porque todo mundo sabe que ninguém ganha nada ali dentro. Quem monta uma Associação sabe que tem que ser voluntário mesmo. Tem formas de você tirar uma condução, você faz um brechó pra tirar uma coisinha aqui, uma coisinha ali, arruma parceria com empresas, pra você pelo menos manter a condução, né?
P/1 – Mas existe uma reunião da Associação com os moradores pra discutir o que tem que fazer?
R – Olha, no momento até existe, quando eu estive lá, não. Existia somente a reunião mensal do leite. Aí, eu comecei, como eu estou te falando, a fuçar em um canto, fuçar em outro, tentar entender melhor a Associação, pra que a Associação serviria. Porque até aí eu mexia mais num movimento individual, de condomínio. Eu ia no CDHU, eu ia no Governo do Estado, eu ia na Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, mas pra mexer em minuta de condomínio e não de Associação. Eu comecei a saber quais eram as obrigações da Associação e a que a Associação tem direito dentro do Município.
P/1 – E quais são os direitos e obrigações?
R – Olha, eu fiquei sabendo há pouco tempo pela Defensoria Pública que a Associação pode até entrar pelo Poder Público e obrigar a Prefeitura a manter a Associação devidamente como deve ser mantida. Porque tudo que age em prol da Prefeitura é a Associação que tem que estar presente, é a instituição civil que tem que estar presente. E para a instituição civil estar presente, ela tem que estar devidamente registrada, devidamente documentada. Isso tem um custo muito alto pra Associação. Então, a Associação pode, pelo Poder Público, obrigar a Prefeitura a mantê-la. E eu vi que nenhuma delas faz isso. Então, é assim, tem muitas coisas que a Associação pode vir buscar para o morador. A Associação pode pleitear apartamentos pra entregar perante a secretaria de habitação, pode fazer uma parceria. A Associação tem como buscar uma cesta básica, o sopão, a feira semanal, atendimento médico e odontológico, atendimento psicológico, montar um grupo de terceira idade. A Associação tem como fazer tudo isso, parceria com a Prefeitura. Até mesmo montar a equipe de assistentes sociais para darem atendimento. Se os presidentes – agora eu vou falar pra você o que eu sinto de coração – se envolvessem um pouquinho mais e deixassem um pouquinho a política de lado... Porque muitas vezes, o que acontece um pouco mais é política, mesmo que se não é a política dentro da Associação, mas fora da Associação tem uma política envolvida. E isso daí me magoa muito, porque eu acho que a gente tem uma Câmara com 17 vereadores e eu não tenho que bater na porta de fulano ou sicrano, eu tenho que bater na porta do presidente da Câmara e obrigar que esse presidente faça leis que obriguem os 17 a assumirem também, por obrigação de manter uma melhoria para os moradores e não só vereador, que acaba fazendo pelo tempo determinado da política, seja um ano eleitoral, e depois esquecem os moradores. Essa parte aí me magoa muito. Nesse tempo, mesmo com o seu Moacir dentro da Associação, eu vim tentando, ele foi me envolvendo dentro das secretarias, eu fui tentando me aproximar e saber como era o procedimento dentro de cada uma delas. Eu nunca tinha entrado em uma plenária e resolvi entrar pra saber como era. E comecei. E os moradores começaram a me conhecer. Eu não tenho muita paciência com criança, eu tenho mais paciência com terceira idade. Então, era assim, a terceira idade me procurava. Muitas vezes eles estão precisando de comida dentro de casa, eles estão sem arroz e feijão pra comer, mas eles não querem que você dê arroz e feijão pra eles, eles querem conversar. Você entendeu? Então, eu aprendi, na minha profissão de bordado, a escutar sem estar escutando (risos). Eu sentava ali, é como você estava falando, às vezes eu prestava atenção em alguma coisa, sabe quando batia assim dentro da sua cabeça? Aí, eu olhava e prestava atenção, mas aquilo que não chamava a atenção, ele ficava falando, falando, falando. Eles só queriam isso, falar. E muitas vezes eu não estava nem escutando, mas ele estava se aliviando ali, eu consegui conquistar muita amizade através disso. Cheguei a ir pra igreja com idoso, de tanto insistir, de ir mesmo, de tanto a pessoa insistir. Eu falava: “Tá, vou tirar da pessoa”. Cheguei a ir à benzedeira de tanto a pessoa chegar pra mim e falar: “Fulano mandou te chamar”. Apesar de eu ser espírita, eu cultivo minha religião, eu fiz estudos da minha religião, então, nada me impede de entrar em uma igreja católica, evangélica, de eu fazer amizade com pastor, de eu assistir a um culto. Porque eu tenho a minha espiritualidade, eu tenho a minha religião, eu sei separar e eu jamais vou entrar dentro de uma igreja, ou conversar com um pastor, e colocar a discussão religião, porque não vou mesmo. E nem vou falar pra ele se ele está errado ou se está certo, pra mim é uma só, pra mim a mesma coisa que eles fazem no Espiritismo eles fazem dentro da igreja, não tem como. Então, é assim, eu fui me envolvendo. Quando foi em 2007 que teve a conferência em Mauá, logo no início de 2007...
P/1 – Como é essa Conferência? O que é?
R – Conferência. Hoje que eu entendo melhor. A Conferência Municipal é pra retirada dos delegados das entidades, do Poder Público, do Poder Legislativo, dos Sindicatos, da Prefeitura, de todos os órgãos que retiram os delegados pra irem pra conferência em Brasília. Aí, vem, Conferência Estadual, e depois vai pra Conferência em Brasília.
P/1 – É de Associações?
R – Isso, de Associações junto com o Poder Público. Todo mundo se organiza em prol de votações de leis, emendas.
P/1 – Ela tem uma regularidade?
R – Tem, a cada três anos, se não me engano. Aconteceu em 2007, agora está acontecendo em 2010. Acho que a cada três anos. Então, é assim. E chegando lá na Conferência Municipal, o seu Moacir tinha me inscrito como delegada e eu peguei uma outra bordadeira minha para levar como suplente, porque eu tinha que levar. Chegou lá, eu me interessei, porque eles separaram a gente em umas salas de debate, eu fiquei mais quieta o tempo todo. Teve só um momento que deu para eu entender alguma coisa, quando fiz perguntas. E ali eu me interessei um pouco. Aí, sem mais nem menos, acho que já estava o negócio meio que programado pela Federação, seu Moacir e umas outras entidades, porque ali eu entendi que tudo já vai para uma conferência mais que preparado, que são as reuniões anteriores, já vai em comum acordo de todo mundo. Só que na realidade não era pra ser a Vânia, era pra ser a Sônia, o encaminhamento que eles deram, era com a Sônia, que é a Assistente Social formada e é uma das Assistentes Sociais da Adhab, que é uma outra Associação na qual eu também sou voluntária. Essa é por moradia mesmo, habitação. E o que aconteceu? Acho que eu me destaquei no meio disso, de procurar interesse, e na hora da eleição dos delegados, as associações se dividiram lá dentro, porque cada Associação tem uma federação, né? Separaram os movimentos lá dentro para se escolher os delegados. E foi assim, todo mundo falando, falando, falando e eu falei assim: “Ó gente, acho que em respeito ao seu Antonio Carás, vocês deveriam deixar ele escolher. Quantos anos faz que o seu Antonio conhece todo mundo aqui? Eu não conheço. O seu Lampião não me conhece, o Sanfoneiro não me conhece, fulano não me conhece, o PT também não. Então, eu acho que deveria deixar o seu Antonio, que conhece todo mundo, escolher”. Aí, em comum acordo todo mundo falou, deixamos o seu Antonio escolher. O seu Antonio tirou um, não me lembro o nome do cara. Tirou um, aí, tirou o seu Lampião, e se não me engano saiu o Vanderlei e uma outra pessoa também. E o seu Lampião começou a brincar que ele estava com uma pasta na mão e colocava a pasta no meu rosto. Aí, o menino fazia assim, ele falava: “Tira a mão que essa aqui é a minha suplente! Tira a mão, essa aqui é a minha suplente”. E eu entrei como suplente do seu Lampião, ele como delegado e eu como suplente na votação. Só que o que aconteceu? Eu percebi isso durante a semana, que foi alguma tramoia que houve, mas que na verdade não era para eu ser a suplente dele, mas a Sônia. Só que quando foi no meio da semana, o seu Lampião me procurou: “Ó, você tem que ir lá na Secretaria de Habitação e fazer novamente o procedimento, porque eu vou pra Bahia e não estou mais como delegado, você vai ter que assumir como delegada e vai para a estadual”. Era tudo que eu queria, estar dentro. Gente, quando eu cheguei na Estadual eu não acreditei, foi uma emoção tão grande pra mim.
P/1 – Na Conferência Estadual?
R – Isso, que vai acontecer agora nos dias 27 e 28 de março.
P/1 – E essa que foi a primeira que você participou?
R – Foi em 2007.
P/1 – E em que local foi essa conferência?
R – Em São Paulo mesmo, no Memorial da América Latina. Quando eu vi mais de duas mil pessoas, todo mundo em um movimento social, que eu fui ver União, CMP [Central de Movimentos Populares], MSTU [Movimento dos Sem Terra Urbanos], esses movimentos por moradia, tudo unido em uma mesma coisa, e a votação, as salas de debate. Isso foi me encantando, me encantando. Aí, eu encontrei o pessoal da Prefeitura, o Jovenildo, o pessoal lá e eu falei assim: “Eu vou pra Brasília”. Aí, os meninos falaram assim: “Bom, batalha, se você conseguir, vai”. Eu faço amizade facilmente, e eu comecei a me envolver com um grupo aqui, um grupo ali, com um grupo lá, e comecei a brincar, fazer perguntas, me envolver mais e mais. Aquilo foi me interessando mais ainda. Quando eu vi que a Verusca, que na época era a presidente da Facesp [Federação das Associações Comunitárias do Estado de São Paulo], tirou os delegados por regiões, tirou a quantia que iria sair por região e ia tirar um montante, quando o pessoal de Barretos não aceitou a quantia que ia pra Barretos, eles queriam muito mais daquilo que foi. E começou a discussão ali, e o pessoal de Mauá, que estava comigo, representando as entidades, foi falado pra eles que era a minha primeira participação, que era para eles não me deixarem sozinha... Nós estávamos lá no fundo do auditório e o bicho estava pegando lá embaixo, e eu não escutava direito o que estava acontecendo. Eu falei: “Sinto muito”. Joguei minha bolsa na mão dele: “Se vira porque eu quero ver o que está acontecendo lá”. “Não, volta, vai sair pau”. “Não, eu quero ver lá. Não estou escutando. Vocês querem ficar aqui no fundo? Eu quero ver o que está acontecendo lá”. Aí, eu desci, aquela muvuca, ninguém deixava ver. Começou o pessoal sentar no chão, eu sentei no meio também pra ver, aquilo foi me empolgando, eu falei, tenho que ir pra Brasília. Se aqui é desse jeito, imagine lá, tenho que ir! Passar uma semana no meio desse povo, tenho que ir, não adianta. Eu fui em direção da tenda da Facesp. Chegou lá, eu não conhecia o Vanderlei, não conhecia ninguém de lá. Eu comecei a pegar no pé do Vanderlei e falaram assim pra mim: “Ó, o bambambam é aquele ali, que é o Caíque de Marília”. Eu comecei a pegar no pé dele, eu falei: “Você não vai me colocar pra votação?” “Você até vai pra votação, eu quero ver o povo votar em você”. “Não, eu saio pelada lá em cima, se for preciso tirar a roupa lá em cima eu vou sair, mas que eu quero ir, eu quero ir”. Eu fiquei no pé dele, perturbando ele. Eu ia, entrava no plenário, voltava, perturbava a vida deles. Mas eu perturbei a vida deles. O que aconteceu? Na hora da retirada dos delegados, ia sair um da região do Grande ABC.
P/1 – Nossa, de toda região do Grande ABC, das sete cidades?
R – Um do Grande ABC. E foi aquela disputa, porque estavam Santo André, Ribeirão, Mauá, se não me engano São Bernardo, não. E Diadema, parece. E aí, o que acontece? Foi aquela disputa, né? Só que eu fiz a minha articulação antes. Eu fui pro pessoal de Mauá: “Quem é que vai querer ir”. “Ah, eu não quero”. “Eu não quero”. “Então, tá, vocês vão votar em mim”. E comecei, aí fui no pessoal de Ribeirão, fui no pessoal de Santo André e comecei: “Quero ir, eu quero ir, quero ir”. E os meninos: “Tá, vamos, vai”. Na hora da votação, todo mundo se dispersou, fizemos o grupo do Grande ABC e o pessoal se dispersou, ficou só o pessoal que eu tinha conseguido articular. Aí, o Vanderlei veio: “Quem vai?”. Aí, eu não ia me inscrever, quando eu vi um cara que eu não gostava de Mauá se inscrevendo, eu peguei e levantei a minha mão também. O cara queria discutir porque eu comecei a cutucar todo mundo, comecei a beliscar todo mundo que estava em volta de mim: “Quero ir, quero ir”. E todo mundo votou em mim. E o cara ficou como suplente. Porque ele brigou tanto que ele queria ir, que ele queria ir também. Aí, foi quando eu saí. Eu fiquei numa ansiedade, comecei a participar de umas reuniões na Cesp, comecei a ir em umas oficinas pra conseguir entender como eu faria pra chegar lá, as propostas, como era, como deixou de ser, como seria lá. E comecei a participar. Aí, eu comecei a conhecer melhor o Vanderlei, o Manteiga, conheci o Deodeti de Arujá. Aí, eu conheci o Luisinho de Itapevi, um outro de uma outra região, conheci de Americana, de Osasco, eu fui fazendo uma amizade. Eu fui pegando um pouquinho do que um me passa aqui, do que um me passa lá e fui. Quando chegou em Brasília, nós estávamos todos lá, foi onde eu fiquei mais empolgada, eu falei: “Eu tenho que ir pra Mauá e levar o que eu aprendi aqui, colocar em prática o que eu aprendi aqui, principalmente na área da habitação”. Foi quando eu voltei de Brasília que eu comecei a ir mais a fundo, a me inteirar mais, a participar mais do movimento social de São Paulo, tentar levar o movimento pra Mauá, porque até aí em Mauá o movimento estava meio que morto, e tentar buscar o que os moradores têm direito. Só que é assim, eu sei que precisa, dentro do Oratório, fazer um trabalho social grande, só que não é a minha área, eu não gosto desse trabalho social. Eu gosto de mexer com a área da habitação, porque eu acho que se a gente começar pelo ponto da habitação dentro de Mauá, nós não vamos precisar fazer um trabalho social ali dentro. O que mais agride moralmente os moradores ali é realmente a área de habitação. Porque nós ainda temos muitas palafitas dentro do Oratório, apesar de não ter mais enchentes, não ter mais rio passando por baixo, porque a Prefeitura canalizou o rio, mas ainda temos palafitas dentro, e são os que mais sofrem com isso. Sem contar que mais sofrem, e eu até entendo o lado do morador, eles não querem uma unidade habitacional, eles querem que a Prefeitura vá lá, regularize e deixe eles construírem uma casa de bloco.
P/1 – Ali mesmo?
R – Ali mesmo. Eles não querem, não adianta. Eu aprendi de conversar com um, de conversar com outro, dentro do movimento também, de 2007 pra cá, que infelizmente o meu ponto de vista é o seguinte, a luta que o movimento social faz hoje é uma luta muito grande por habitação, mas a gente está esquecendo um pouquinho de ver o lado do morador. E o morador não quer ir para uma unidade habitacional, o morador não quer ir para um apartamento. Ontem, eu estive em uma reunião dentro da Prefeitura de Mauá, na Secretaria de Habitação, que está implementando o Plano Local de Habitação de Interesse Social, o PLHIS, de Mauá. Eu estava conversando isso com o Vanderlei. Eu falei pra ele: “Fica difícil, numa hora dessas, porque você quer ver o lado do morador, mas você também tem que ver o lado que cabe às leis pro morador. Eu acho que a gente deveria fazer a proposta de um outro tipo de lei”. Porque eles não querem sair do bairro, eles não querem sair do local. Muitos deles querem ser oportunistas e pegar dinheiro, você entendeu? Eu acho errado, eu acho que a Prefeitura deveria fazer um plano de habitação perguntando pra eles o que eles querem, não dar dinheiro. Montar uma unidade, uma casa decente, ou mesmo que pegue, desocupe uma área boa, regularize essa área. Faz um loteamento, entregue pra eles: “Ó, o loteamento seria pra pagar 400, 500 reais por mês, mas você vai pagar 50 reais por mês, pode construir sua casa aí”. Não adianta a gente bater de frente com os moradores, eles não querem apartamento, eu não sei o que acontece na cabeça deles, mas eles não querem.
P/1 – Vânia, deixa só eu voltar um pouquinho. Você teve a experiência lá em Brasília, só assim, dá um flash pra gente como foi aquilo. Era muita gente, você lembra de alguma discussão que te empolgou?
R – Nossa, demais, demais, demais. Principalmente na hora da votação da plenária, que é a votação das propostas. Eu achei que seria uma coisa votada em urna, eu nunca imaginei que seria em público. E também nunca imaginei que seria da seguinte forma, que ali não existe partido político, ali existe um movimento. E ninguém fica sentado separadamente, os partidos políticos, nem os movimentos nacionais, as entidades nacionais também não ficam. E muitas vezes a entidade nacional de uma sigla que levanta a mão para o número da proposta, os outros acabam aderindo e votando na mesma. Eu fiquei muito encantada com aquilo ali. Porque até ali eu conhecia pela televisão o que era o movimento social, eu conhecia que era desordeiro, baderneiros, bagunceiros que invadiam terras alheias, eu não conhecia essa união e esse trabalho deles. Então, dali eu me encantei mesmo e eu falei, daqui eu não saio mais.
P/1 – E você lembra uma proposta que foi votada e foi importante?
R – Não, não lembro. Não adianta eu querer lembrar alguma coisa, porque realmente não lembro. Eu estava tão empolgada com o negócio. Eu saí um momento pra fumar, que estava tendo uma agressão da polícia lá de Brasília contra os camelôs, porque nós estávamos lá no Ministério e não tinha nada próximo pra comprar. Então, os camelôs foram para lá, tanto os que vendiam artesanato, como os que tavam vendendo alimentação, estavam do lado de fora. Na realidade, a gente estava comprando as coisas deles. A polícia chegou com um caminhão pra retirar os camelôs de lá. Todo mundo começou a correr, começou a falar lá dentro que estava tendo uma manifestação do lado de fora e o movimento todinho começou a correr em prol de ajudar os camelôs, pra não retirarem eles de lá. E falaram assim pra mim, tinha duas pessoas da Facesp que estavam lá comigo, que falaram: “Não, não vai. É a primeira vez que você está aqui”. Só que a minha empolgação era de ir adiante, não tem jeito. Porque a gente vê muito idoso no movimento, quando eu vi as senhoras indo pra frente dos camelôs e ficarem de frente pra polícia, cantando o Hino Nacional, foi maravilhoso, não tem coisa melhor. E de repente eu vejo o Ministro Márcio Forte saindo e vindo fazer negociata com a polícia, pedindo pra polícia sair do local e deixar os camelôs trabalharem, pelo menos enquanto a gente estivesse ali. Isso pra mim foi uma emoção muito grande, foi uma passagem que eu me recordo e acho que não vou esquecer nunca.
P/1 – Aí, você voltou e falou que você procurou aprender um pouco mais com o movimento em São Paulo pra levar pra Mauá. O que era isso? Você ia aonde?
R – Então, eu ia muito na Facesp, os pontos de encontro são na Facesp.
P/1 – Eram cursos?
R – Isso. Oficinas, palestras, seminários, debates mesmo. Participar de plenárias, de atos. Foi aí que eu comecei a participar mesmo, foi aí que eu aprendi mais. Porque eu cheguei à seguinte conclusão: não adianta você fazer um curso numa faculdade e você não vivenciar. Eu acho que eu aprendi muito mais vivenciando do que fazendo um curso, tá? Acho que eu aprendi muito mais na prática. Porque acho que de tanto ouvir as pessoas falarem de leis, de regularização, de leis, de planos, eu comecei a aprender muito mais, porque o meu interesse foi de estar dentro de uma plenária e escutar, chegar em casa e procurar livros, e internet, pra me informar sobre aquilo. Muitas vezes, perturbar muito o Manteiga, que é o Ademir, o apelido dele é Manteiga, e perturbar o Vanderlei e o próprio Delzete, tinha época de eu perturbar mesmo a pessoa dele pra saber a respeito de leis. Então, é assim, mas eu perturbava, eu sou uma pessoa insistente (risos), eu fico em cima mesmo, ainda mais se a pessoa me der atenção. E aí, de saber mesmo o que eu queria. Dentro de Mauá eu consegui um parceirão que foi o Jovenildo, que é uma pessoa muito ligada na área de Educação, é uma pessoa que tem o mesmo foco de pensamento que eu na Habitação, foi uma pessoa que me ajudou muuuito mesmo. É uma pessoa que de vez em quando a gente está sempre ligado por causa a Dehab, mas eu ainda procuro muito ele, a atitude que eu devo proceder. Através dele eu conheci o doutor Sales, que é um advogado que manja muito da regularização, que me acompanha muito em reuniões dentro de Mauá. Então, através desse movimento em Brasília que eu conheci essas pessoas.
P/1 – Voltando pra Associação: o que começou a mudar na Associação?
R – Eu comecei a levar o nome da Associação também numa parte de Habitação, não só no Social. Através deles, eu comecei a trazer mais moradores lá pra dentro, eu consegui trazer o Segundo Tempo que funciona com 200 crianças.
P/1 – O que é o Segundo Tempo?
R – O Segundo Tempo é um projeto do Governo Federal que vem direto do Ministério dos Esportes. A gente tem que manter, durante 20 horas semanais, 200 crianças em cursos dentro da entidade, com professores, um professor formado, dois estagiários e um monitor. Eles mandam pra gente o salário dos professores, uma ajuda de custo para o monitor, vem os lanches pras crianças, o material didático, materiais de esporte e as camisetas. É assim, eu tenho um curso lá na segunda, quarta e na sexta no período da manhã. Ano passado era futebol, judô e badminton. No dia oito começou novamente o curso, tem futebol, o professor de futebol é o meu coordenador, o Gerenilton, que dá aula de badminton também, porque ele é campeão de badminton. E eu estou com mais duas estagiárias, que são a Tuca e a Jéssica. A Jéssica é campeã em judô, dá aula de judô e a Tuca vai dar aula de capoeira. Já aumentou a aula de capoeira pras crianças. Só que é assim, eu estou conseguindo trazer muito mais as mães das crianças pra dentro da Associação, estou tentando envolvê-las muito mais, estou tentando mostrar pros moradores do Oratório os direitos de moradia deles. É como eu falei, eu brigo mais pelo direito de moradia do que pelo social.
P/1 – Quando você fala sobre o direito à moradia, vocês fazem reuniões para discutirem?
R – Isso, ultimamente estou fazendo muito com os moradores.
P/1 – E quantos participam, mais ou menos?
R – Hoje estamos com problema com 600 moradores retirados pelo Dersa [Desenvolvimento Rodoviário S. A.]. Eu coloco que uns 100 moradores que andam comigo no movimento.
P/1 – Foi bom você ter tocado no Dersa. Quais as principais bandeiras de luta da Associação?
R – De um ano atrás pra cá está sendo firme e forte a bandeira de luta da Associação pela moradia. Por quê? O seu Moacir é funcionário público concursado. E quando mudou do PV pro PT em Mauá, o PT colocou cada um no seu quadrado, como o próprio seu Moacir faz. E tiraram a licença de doença que ele tinha e fizeram ele voltar pro posto dele. Então, ele teve de voltar a trabalhar. Estamos em 2010, isso foi em 2008. De 2008 pra cá eu tive que assumir a Associação sozinha, seu Moacir só comparece lá sábado e domingo, que eu não posso ir e ele vai. Então, ele me dá total liberdade pra trabalhar e eu avancei mais um pouquinho nesse tempo. Porque nesse tempo que eu estou conseguindo trazer secretários pro debate, estou conseguindo trazer vereadores pra debater, coloquei o Segundo Tempo lá. Então, é agora, de um ano pra cá que a gente está começando a construir reuniões lá dentro, correr atrás do que os moradores têm direito, fazer os moradores buscarem a reunião pra Associação. Então, é de um ano pra cá que eu estou trabalhando realmente nisso. Eu tive que fechar a minha oficina porque eu estava levando problema pra empresa, porque a Sandra teve de sair pra trabalhar fora, ela quis assim dessa forma, arrumei um serviço pra ela na casa de uma amiga nossa, está trabalhando lá até hoje. A Vera veio trabalhar comigo, a Vera e o Luís, os dois não tiveram pulso forte pra manter a oficina, eu acabei tendo problema com a empresa e eu resolvi sair fora. Eu resolvi chegar pra empresa e falar: “Não, coloca outra pessoa porque eu não quero atrapalhar”. Eu resolvi, eu mesma, cair fora. Então, eu tive de fechar a oficina porque não dá tempo, a Associação hoje, se eu vou lá todo dia seis e meia da manhã, à partir do momento que eu desço do ônibus já tem fila na porta da Associação esperando. Porque querem saber de tudo. Então, é assim, eu não tenho mais tempo dentro da Associação, fica complicado. Eu já tentei várias formas de colocar alguém no leite, já tentei ensinar gente a mexer no computador pra fazer os contratos, e não há meio, porque o morador é difícil de lidar. E eu tento colocar morador mesmo lá dentro, mas o próprio morador acaba brigando com o morador.
P/1 – Só um paralelo, o que são esses contratos?
R – Ali dentro ainda tem a comercialização de casas, a gente faz o contrato de compra e venda com o papel timbrado da Associação. Quando o morador não tem nenhum documento, a gente faz um contrato de moradia pro morador, que esse contrato de moradia dá direito pra esse morador colocar água, luz, requerer documentos da Prefeitura, ter um endereço.
P/1 – Então, a Associação legitima a moradia?
R – Legitima. Desde a época que começaram as invasões, quem deu o primeiro documento foi a Associação.
P/1 – E o que foi esse problema com o Dersa?
R – Há cerca de três anos, quando a gente começou a ter informações que seriam retiradas 2 mil famílias da área, nós tentamos alertar os moradores pra não comprarem casa ali e nem modificarem o que já estava construído. Só que acontece que é difícil você conseguir convencer, eles não acreditavam. Aí, há cerca de dois anos, começaram as audiências públicas pra retirada dos moradores pra construção da ligação no Rodoanel que é o trajeto Jacú-Pêssego. E daí só estava em debates, audiências públicas, só mostrando onde o trajeto iria passar, coisa e tal. Até onde eu sei, seriam avançados 200 metros pra dentro do terreno da Petroquímica, nós estamos no fundo do terreno da Petroquímica, do Pólo Químico de Mauá. Até onde o próprio Dersa informa pra gente, a Petroquímica não liberou essa área de 200 metros, então, eles tiveram que avançar mais 200 metros pra dentro do Oratório. Porque o primeiro projeto, que a gente sabe, não seriam retirados muitos moradores, ia pegar uma parte pequena, seriam umas 300, 400 famílias. Só que essa da Petroquímica não deixar entrar 200 metros, teve que avançar 200 metros pra dentro do Oratório. Em princípio, 1970 famílias seriam retiradas da área, só que o Dersa não chega no sentido de dar um tempo pras famílias digerirem que serão retiradas da área, tempo de a Prefeitura tomar conhecimento, fazer uma coisa concreta pra essas famílias saírem dessa área e irem para uma unidade habitacional regularizada, a qual é difícil fazer eles aceitarem, mas por fim eles acabam aceitando. Eles vêm tentando fazer uma divisão entre os moradores. Então, eles começam a vir, fazer medições, depois vêm, dividem o bairro por setores. Depois que dividem o bairro por setores, eles dividem por reuniões, aí, eles não querem nem a Prefeitura, nem a Associação, nenhum tipo de movimento nem a Câmara envolvidos. Já na primeira reunião que eles fazem com esses grupos de moradores, eles já pedem. Eles alegam o seguinte, se o morador procurar a Câmara, Prefeitura ou qualquer tipo de movimento social, que não tem acordo, que eles vão passar com a máquina por cima. Ou senão vão entrar com processo em cima dos moradores e os moradores já estão com o choque de que vão ter que sair; 30, 40 anos no lugar e vão ter que sair. Eles já não escutam o que é preciso escutar, eles escutam o que eles querem escutar. O Dersa chega falando uma coisa dessas, a única coisa que o morador escuta é o seguinte: a máquina vai passar por cima da minha casa. Eles não escutam que aquilo que o Dersa falou de procurar a Câmara é mentiroso, procurar o movimento é mentiroso. Eles nem sequer escutam as palavras Câmara e movimento social, eles escutam só: “a máquina vai passar por cima da minha casa”. Então, os moradores começam a fazer o que o Dersa quer, aquele grupinho. Aí, eles conseguem colocar aquele grupo contra o outro grupo, o outro grupo contra o outro grupo, e assim vão se dividindo todos os moradores. Quando foi em março do ano passado [2009] eu peguei o Jovenildo e falei: “Jovenildo, eu preciso passar algum tipo de informação pra esses moradores”. Como o seu Moacir não ia tomar atitude, como Presidente da Associação, eu resolvi e falei: “Está na hora de eu me envolver nisso daí e ver o que está acontecendo”. Porque os moradores que andavam dentro da Associação começaram a me procurar. Algumas bordadeiras que eu sabia que iriam sair, começaram a me procurar. Sabendo que eu tinha um pouco de base em leis, começaram a me procurar com medo do que iria acontecer. “Chega, vou me envolver totalmente, acabou, né?” Foi quando eu decidi fazer uma reunião dentro da Associação. Então, eu chamei o Jovenildo, ele falou assim pra mim: “Vamos chamar o doutor Sales pra dar uma explicação mais técnica, mais judicial pros moradores, qual o direito e o dever deles”. Eu resolvi fazer uma reunião à noite na Associação e trouxe os dois pra fazerem essa reunião com os moradores. Só que o Dersa já tinha feito uma lavagem cerebral nos moradores e o doutor Sales estava ali mais pra dar esclarecimento pra eles, só que me parece que os moradores não conseguiam entender muito bem o que ele falou. Porque de tudo o que eu obtive informações e fui atrás pra ver, tudo, o certo seria, naquele momento, a gente entrar com uma ação coletiva em cima do Dersa, pra que os moradores tivessem sido retirados da área decentemente, um direito que eles tinham. E os moradores não entenderam isso, resolveram negociar cada um por si. Já tinha um outro pessoal envolvido que acho que naturalmente queriam, entendeu? Políticos e gente envolvida no meio que estava levando os moradores pro outro lado. Fiz aquela reunião, tentei mostrar pros moradores o direito deles, alguns moradores vieram a meu favor, outros não. E por fim não deu em nada a reunião, os moradores não quiseram saber de entrar com uma ação. Aí, começou a procurar Defensoria Pública, Poder Público, os órgãos competentes, só que eles esqueceram de uma coisa, que nós estávamos no Município e que a gente devia fazer valer a lei nossa, do Plano Diretor do Município, e fazer o Município assumir o que estava acontecendo, não sair pra fora do Município, e não brigar diretamente com o Dersa, mas sim fazer o Município se envolver no negócio. Porque o Prefeito anterior lavou as mãos, até onde a gente sabe, o Prefeito anterior foi numa audiência pública e falou pra quem quisesse ouvir que, a partir daquele momento, ele não tomaria mais partido de nenhum morador, nem de nada. E que o Dersa cuidaria das coisas. Ele pegou e doou um terreno que ele não poderia doar, um terreno que era dos moradores, porque eles estão em uma área ZEIS, que é uma Zona Especial de Interesse Social. E o Dersa fez o que quis lá dentro. Eu comecei a tentar cativar os moradores, dizer que eles estavam errados, que, se eles fossem às negociações, não escutarem o que o Dersa tinha falado, não sair da área antes deles terem o direito certo de moradia, não sair por qualquer dinheiro. Só que o grupo paralelo estava levando os moradores a sair. As coisas começaram a ficar complicadas, chegou um certo momento que eu achei que eu iria atrapalhar os moradores, porque o outro grupo estava conseguindo convencer os moradores e eu falei, eu vou bater em retirada, vou me retirar antes que eu me irrite mais com isso ainda. Já que eles não querem ajuda, vou deixar eles irem sozinhos, vamos ver no que vai dar. Aí, eu parei um pouco de mexer com isso. Até aí já tinham sido retirados uns 500 moradores da área. E começou uma outra complicação, os moradores estavam saindo com 800 reais, com 500 reais. Morador pegando Bolsa Aluguel que é ilegal, porque até onde eu sei, pelo Plano Diretor do nosso Município, o Dersa deveria ter entrado como fiador do morador e passar o dinheiro diretamente do proprietário. E o Dersa não fez isso, o morador que procurava a casa, o morador que alugava a casa e o morador que se responsabilizava pelo aluguel. E aí, começou, o Dersa a depositar o aluguel pro morador a cada três meses. E quando fazia três meses que tinha depositado os três meses, o morador penava 20, 30 dias pra receber os outros três meses, era uma confusão tremenda, porque o proprietário começava a cobrar o aluguel. Então, falei: “Sabe de uma coisa? Que tenha grupo separado, que não tenha, eu sou representante legal da Associação, estou com a Facesp do meu lado, eu vou me envolver, sim. Se tiver que gritar com muita gente, eu vou gritar. E se tiver também alguém escondido atrás dessas pessoas, os moradores vão ficar sabendo disso”.
Depois de uns três meses eu decidi me envolver novamente, aí, nós conseguimos marcar uma audiência pública na Prefeitura, na Câmara. Consegui fazer os vereadores enxergarem que eles estavam errados, conseguimos montar um grupo de cinco vereadores pra vir a favor dos moradores e eles entraram na briga também. Só que, infelizmente, esse grupo paralelo estava incentivando os moradores no que era errado, junto com o Dersa. Porque o Dersa chega e fala assim: “Vocês vão atrás de vereador? Vereador não tem nada a ver com isso, nós somos os donos do terreno, o terreno é nosso agora. Nós vamos passar com a máquina por cima e acabou”. E ficou esse impasse. Eu comecei a ir em defesa dos moradores e a ficar na obra também. Então, era assim, chegava de manhã já estava cheio de problemas. Aí, eu ia pro meio da obra, ia tentar ajudar os moradores ali dentro, ia ver se um ia precisar de uma coisa, outro estava precisando de outra, ia à Câmara tentar obrigar o pessoal da Câmara a vir também. Porque estava difícil a negociação, quando eu avançava um campo na negociação, esse grupo paralelo fazia a gente ir dois passos pra trás. Eu avançava um, automaticamente eu ia dois pra trás por causa desse grupo paralelo. Aí, eu comecei a queimar o grupo dentro de Mauá, eu comecei mesmo a colocar os moradores contra eles, porque eu cansei, eu falei, não é possível que não vão enxergar o que eles estão fazendo de errado. E são moradores da área. E moradores que quando o Dersa chegou, foram os primeiros a sair. Eu falei: “Por que eles estão fazendo isso com os demais que estão na área?” E começou a ficar muito complicado, porque o morador que pegou 14 mil subiu pra Rua 27, que é Zoaldo, e foi comprar numa área de risco, que é em um barranco. Aí, quando choveu, a primeira casa que caiu foi a desse morador, que saiu de uma área que não era mais de risco, foi para um barranco, choveu, a casa dele caiu. Os únicos 14 mil que ele pegou lá, ele deu nesse barraco e ficou sem moradia. Aí, a pessoa que alugou a casa, sem saber a lei, que a lei é pra alugar a casa em um lugar regularizado, que o Dersa era obrigado a pagar o aluguel, entendeu? Foi alugar barraco dentro do Oratório. E a casa ia cair também e ficar sem moradia. Começou aquele monte de conflito, monte de problema. Aí, eu comecei a fuçar, até que foi no mês de novembro eu dei um basta em tudo, eu cansei, nós fizemos uma paralisação em setembro, uma paralisação de uma semana nas obras. Nós fazíamos assim, oito horas da manhã parávamos a obra, cinco horas da tarde nós íamos pra casa, e no outro dia fazíamos a mesma coisa.
P/1 – Mas como vocês paravam? Quantas pessoas iam com você?
R – Nós estávamos em aproximadamente 15 moradores, só que já não era mais do setor que já tinha saído total, era do setor que era dividido. Porque tem a avenida no meio, ia sair um tanto de moradores do lado de lá da avenida e um tanto desse, que eram os moradores dos setores 10 e 22. E aí o Dersa começou a falar que do setor 22 não iria sair. Estava já selado pra sair, mas que eles não iriam tirar porque não iriam precisar da área. Por que não vai tirar, se eles vão ficar embaixo do viaduto? É normal uma casa ficar embaixo do viaduto? Ou ficar embaixo de uma alça de acesso? Não, não é normal, tem alguma coisa errada, tem que tirar, tem que ficar a cem metros longe da pista, tem que tirar. E eles falavam pra gente que era a Prefeitura que não deixava tirar. A primeira vez que fizemos a paralisação foi em setembro, foi quando a Aliança chegou no Brasil, e a Angela e a Carlinda que foram fazer a cobertura.
P/1 – Só pra explicar um pouco, o que é Aliança?
R – Aliança, até onde eu sei, é uma ONG estrangeira que está dentro do País fazendo levantamento de habitação. E como eu tenho uma certa amizade com o Manteiga, que é quem me apoia lá dentro, eu comecei a ligar pro Manteiga. “Manteiga, é assim. O que você acha que eu faço? Estou na paralisação com os moradores”. “Fica aí, nós estamos indo para aí”. Sempre falava isso, e vinha ele e o Fred junto comigo. Eles ficavam só à distância, junto com a gente ali, mas à distância. Aí, vinha a polícia e falava: “Vamos fazer isso”. “Não, não tem acordo, só tem acordo se for com o Dersa, só tem acordo se for conversar com eles, fora eles nós não vamos conversar com ninguém. Não tem acordo”. Cheguei a ter de ir pra delegacia fazer boletim de ocorrência pelos moradores.
P/1 – Vocês ficavam nas máquinas? Como vocês faziam?
R – Ficávamos. Nós entravamos no terreno onde as máquinas estavam trabalhando, fazíamos os funcionários descerem das máquinas. Na realidade, os funcionários que estão trabalhando ali nas máquinas são moradores do Oratório. Porque é assim, quando a empreiteira chegou ali, eles fizeram uma seleção dos próprios moradores para trabalharem na área. Por quê? Porque, por ser uma favela, o medo de risco de queimar máquinas, de roubar máquinas, é muito grande. Então, eu acho que fazem isso porque o pessoal vê os moradores trabalhando, fala: “Não vamos fazer nada”, porque sabe que são os moradores que estão ali. Quando a gente ia pro lado das máquinas: “Desce”. “Não, não se preocupa não, estamos desligando tudo, estamos descendo, acabou, morreu o assunto”. Foi nessa paralisação de setembro que eu conheci o senhor Hermes, do Dersa, que é Diretor de Reassentamento, alguma coisa assim, lá dentro do Dersa. E foi numa dessas paralisações que vieram buscar a gente dentro do Oratório, mandaram uma Kombi vir buscar, nem mandaram vir buscar. Com essa paralisação, eu consegui fazer com que o Sindicato dos Funcionários Públicos entrasse em contato com o Presidente da Câmara e viesse em ajuda dos moradores. Foi quando nós fizemos uma reunião dentro da Câmara com eles e eles chamaram uma audiência com o Dersa. E foi a primeira vez que eu vi o Hermes. Só que fomos para essa reunião com o Dersa, com o Hermes, o Zé Geraldo, Daniel, Cátia, e mais alguns vereadores, que nós colocamos a nossa proposta e que ali naquele momento os moradores me deixaram muito magoada com o que eles fizeram, porque aquele grupo paralelo estava presente e eu, na minha movimentação de tentar um acordo melhor pros moradores, eu deixei muitos moradores sozinhos. E esse grupo falou que elas estavam agindo errado ao deixarem os vereadores resolverem o problema. Porque na realidade, até aí eu desconfiava que esse grupo estava ganhando algum dinheiro do Dersa pra fazer o que estava fazendo, porque foram os melhores moradores retirados das áreas, os melhores valores. E eu já estava saturada com isso, porque toda vez que você conseguia alguma coisa, entrava, eles e destruíam. E o Dersa acabou a reunião, mostrou tudo o que tinha que mostrar, falou que ia fazer um acordo com os moradores e o Dersa pegou e falou pra tirar uma comissão de cinco moradores mais a liderança para uma conversa em particular pra resolver o problema do setor 22, na qual estava havendo a paralisação. As pessoas do grupo paralelo convenceram aos moradores que não tinha que entrar ali dentro liderança nenhuma com eles, que eles tinham que entrar sozinhos. E aí, foi quando uma moradora falou: “Não, aqui não tem liderança com a gente, nem vereador”. O Hermes do Dersa deu risada, porque era tudo o que ele queria, prensar os moradores, fazer mais uma lavagem cerebral. Eu falei assim pra moradora: “Vocês estão enganados, mas se vocês querem dessa forma, vocês vão sozinhos”. Eu deixei eles irem sozinhos. A Dersa mais uma vez enrolou os moradores. O que começou a acontecer? Eu comecei a lutar pelo setor 10, no qual mora o Severino há 25 anos. Esse Severino começou a observar que a minha luta era mais uma luta pela lei que dá direito, a eles, de prensar a Prefeitura do Município e a Câmara, pra virem em ajuda aos moradores, e sabia muito bem que se os moradores fossem parar a máquina, que eu estava na frente junto com eles, e que eu assumia o risco de ter que parar em uma delegacia. E assumia qualquer risco. Porque quando chegava viatura ou chegava qualquer poder maior lá dentro, eu me assumia como liderança e falava: “Fui eu”. Eu não culpava morador nenhum. Ele começou a observar isso e o que ele começou a fazer? Ele ia atrás de mim na Associação, procurava tentar se informar tudo o que ele podia em leis. Eu comecei a ver a empolgação deles e comecei a socar livros nele para ele ler. E mostrar pra ele o direito dele, e ele começou a passar para os moradores do setor 10. Aí, ele pegou e falou pra mim: “Mas o que você vai fazer com o setor 22?” “O setor 22 deixou declaradamente que não quer liderança, quer andar pelas próprias pernas, problema é deles. Eu estou aqui pra ajudar, se eles vierem pedir ajuda, eu vou dar, senão o problema é deles”. Aí, nada se resolveu com o setor 22, que é o setor que mais estamos tendo problemas lá agora. E aí, o que aconteceu? A Câmara do Município pediu uma audiência pública com o Hermes. Só que o Hermes chegou cheio de parafernálias achando que ele iria mostrar o projeto grandioso dele. Só que aquele que estava no grupo paralelo levou alguns moradores que já tinham saído da área. O que eu fiz? Que os moradores que ainda estão na área fossem nessa audiência pública. E na primeira fala não deixaram eu falar, escolheram três moradores pra falarem. Na segunda vez que nós tivemos direito a falar, eu tanto briguei e insisti que o Presidente da Câmara falou: “Pelo amor de Deus, deixa, senão ela vai acabar com a nossa audiência”. Porque eu falei pra ele: “Ou você vai me deixar falar em favor dos moradores ou eu vou lá pra cima da plenária e não vai acontecer mais nada, que eu vou retirar os moradores daqui de dentro”. Ele falou assim pra mim: “É, já me falaram da sua pessoa, então, deixa pelo amor de Deus”, convenceu um morador a me deixar falar. “Quanto tempo você vai me dar?” “Três minutos”. “Não aceito, eu quero no mínimo 20 minutos pra expor o que está acontecendo lá dentro”. Ele falou: “Por quê?” “Deixa eu começar a falar que você vai ver que não sabe o que está acontecendo lá dentro. O que esses moradores vieram reclamar aqui, que já saíram da área, é o recebimento do terreno deles. O que eu quero mostrar pra vocês são as famílias que estão passando dificuldades lá dentro, que já perderam serviço, já houve enchente lá dentro e perderam tudo dentro de casa, tem gente doente na área, eu estou com gente internada em hospital psiquiátrico por causa deles. Pessoas sadias. Ou você vai me deixar falar 20 minutos, ou eu vou parar com a audiência, porque essa audiência não é para os vereadores falarem ou bem ou mal do vereador, ou o que ele fez de bem, ou o que ele fez de mal, essa audiência é da população pra população meter o pau no Dersa”. Aí ele falou: ‘Tá, vamos liberar o tempo pra você, se a gente ver que não está sendo no sentido que você está falando pra gente, a gente corta”. “Tudo bem, tranquilo”. Quando eu comecei a falar e mostrar e gritar com o senhor Hermes, mesmo, e chamar ele de mentiroso mesmo, como eu chamei ele na cara, ele ficou meio que assustado, os vereadores também. Aí, foi que os moradores viram que eu não estava contra os moradores, como o grupo estava falando, que eu estava a favor deles, e que quando eu falava pra eles, que eles tinham que obrigar a Prefeitura e a Câmara a tomarem providências, que eu não estava com brincadeira, e que eles viram e enxergaram que realmente teria que partir de Mauá, teria que ser da Prefeitura de Mauá para ajudar. Aí, eles vieram em meu favor. O senhor Hermes acabou levantando dessa audiência e se retirou do recinto. Ele falou que ele não estava ali pra ser ofendido, que ele tinha ido ali pra mostrar o projeto dele. Porque eu fiz com que os próprios vereadores que estavam ali, do partido do PT, ficassem comovidos e caíssem matando em cima do Dersa também. E que não deixassem o Dersa apresentar nenhuma proposta grandiosa, nenhuma obra grandiosa. Eu fiz isso. Então, deram o tempo pra cada vereador falar e cada vereador começou a descer o pau. Aí, nisso, o Paulo Suares, um dos vereadores, a secretária dele fuçou lá rapidamente, achou uma das leis do Município, que ele leu, foi a favor do povo, e foi aí que eu consegui convencer aos moradores que o outro lado estava errado. A luta do outro lado está sendo em vão, que a gente tem que formar uma luta primeiro dentro de Mauá com a Prefeitura e com a Câmara, pra depois a gente querer vir pro Estado de São Paulo brigar, numa proposta de acordo. Aí, o que aconteceu? Eu consegui trazer novamente o setor 22 pro meu lado, e foi aí que a gente conseguiu algumas negociações. Mas eu vou falar pra você o seguinte, o Dersa é muito difícil, porque eles não reconhecem a Associação, eles não reconhecem a Prefeitura de Mauá, não reconhecem os vereadores. Eles não estão nem aí, eles não querem saber. Eles estão destruindo quatro bairros dentro de Mauá: Sertãozinho, Parque São Vicente, Santa Cecília e Jardim Oratório. Só que o Sertãozinho e o Parque São Vicente são a nossa reserva florestal que eles estão destruindo, o Santa Cecília é uma área regularizada, então, os moradores estão saindo dali com um dinheiro bom, porque é uma área regularizada. Eles não estão saindo com menos de 250 mil. Agora, quem está sofrendo são os moradores do Jardim Oratório, eles falam que foi tudo invasão. Foi invasão, hoje em dia não é mais, hoje em dia eles têm o direito de uso permanente do solo. Então, é assim, quando foi em novembro [de 2009] caiu uma chuva muito feia dentro de Mauá, e por causa das obras, os córregos encheram e entraram pra dentro das casas. Nós tivemos problemas gravíssimos lá. E naquele dia, se não me engano foi no dia 9, desde de manhã eu comecei a prensar a Câmara, Defesa Civil, a Prefeitura, Corpo de Bombeiros, pra virem tentar ajudar aos moradores e ninguém queria vir ajudar porque todo mundo falava: “Não, é problema do Dersa”. Tudo assim. Quero colocar o seguinte, quando eu avançava uns passos por causa do grupo paralelo e alguns vereadores de Mauá, eu perdia o foco do negócio por causa deles, as negociações dentro de Mauá, e acabava virando em nada. E aí, aquele dia eu entrei em desespero mesmo, porque nós tivemos até que quebrar parede de uma casa que dava pra uma rua pra conseguir tirar morador, porque ficou tudo, tudo, debaixo de água, um metro de água. Água e barro. Porque onde passa construção, os barrancos vieram tudo pra dentro das casas. Em vez de tirar os moradores pra fazerem a construção, não, ainda tem 600 moradores na área da construção. Então, os moradores estão convivendo com tudo, com rato, com pó, com enchente, com doenças, com tudo. Sem água, sem luz. Tem seis meses que não chega água nas casas. E o Dersa, isso pra eles é, corto a luz hoje, corta a água amanhã, pra depois de amanhã prensar o morador na parede, pro morador sair por merreca. E eu ainda estou conseguindo segurar os moradores na área, através de luta. Porque se eu não conseguisse fazer o que eu fiz dentro da Câmara naquele dia, eu não estaria com os moradores do meu lado. Inclusive nesse dia, o Vanderlei esteve lá em Mauá junto com o Manteiga, e foi conversar com um grupo de moradores, e um morador foi extremamente grosseiro com o Vanderlei. E o Vanderlei chegou em mim e falou: “Vânia, para, eles não querem ajuda. Para, esquece, você está se desgastando à toa”. Eu falei: “Vanderlei, não é por causa de um morador que eu vou deixar os outros, eu vou em frente, uma hora ele vai enxergar o que fez”. E esse é o morador que mais está do meu lado no setor 22. Ele tomou a consciência do que ele estava escutando de um lado e o que eu estava fazendo de outro, foi aí que eu consegui trazer os moradores pro meu lado. Nesse dia que houve a enchente, eu ligava pra Câmara, para um canto, pro outro, era dia de plenária, uma terça-feira. E eu cheguei a ligar pro Suares, que é um dos assessores do Rogério, que é Presidente da Câmara. Eu falei pra ele: “Suares, pelo amor de Deus, para a Plenária, faça com que os vereadores venham até aqui ajudar aos moradores, nós estamos com dificuldade, eu não estou conseguindo ajuda de lugar nenhum”. E nada. Aí, eu comecei a ligar pra São Paulo. Eu ligava, era o Manteiga que atendia: “Manteiga, pelo amor de Deus, eu tô problema aqui dentro, eu não consigo ajuda”. O Manteiga tentava pela Facesp e a CONAM [Confederação Nacional das Associações de Moradores], ajuda de televisão, tentava ajuda de Defensoria Pública, de Direitos Humanos, da própria ONU, tentava de tudo quanto era forma e a ajuda não chegava nunca pra mim lá. Até que, por volta das cinco horas da tarde eu falei: “Manteiga, eu vou reunir os meninos da biqueira e nós vamos fazer muvuca aqui dentro, a gente já não aguenta mais. Nós estamos na rua, debaixo de chuva, pelo amor de Deus, eu estou precisando de ajuda”. “Espera que eu vou ver o que a gente vai fazer aqui”. Aí, o Manteiga me ligou de volta e falou: “Vânia, tá indo a Bartira, o Dito e um defensor público pra tentar ajudar vocês”. A Bartira é a presidente da CONAM, que é a Confederação Nacional das Associações de Moradores. O Dito, se não me engano, é da CMP, e o defensor público que foi, foi o doutor Carlos. Foi umas oito e meia da noite quando eles chegaram na Associação. Agora ali, eu não sei se foi parte minha de fraqueza mesmo, porque foi fraqueza mesmo, eu estava o dia inteiro tentando ajudar os moradores, tirar eles debaixo da água, da enchente. Quando eu vi o doutor Carlos, eu não acreditei, porque esse grupo paralelo tinha feito o doutor Carlos ficar contra mim também. Pro doutor Carlos, o grupo paralelo era o presidente da Associação e eles que eram a legítima entidade representante dos moradores. Quando ele desceu do carro, eu não acreditei, eu comecei a chorar. Porque eu estava tão desesperada tentando ajuda pros moradores e eu não estava acreditando que estava chegando ajuda pra eles. Foi quando eu expliquei pro doutor Carlos o que estava acontecendo e a Bartira falou: “Vou pedir a palavra”. E eu falei pra ela: “O que você acha que a gente tem que fazer?” “Nós temos que ir pra frente da Prefeitura, nós temos que ocupar o prédio da Prefeitura hoje. A Prefeitura de Mauá vai ter que tomar conhecimento e vir em ajuda dos moradores”. “É a única atitude a ser feita?” “É”. Então, saímos, eu, ela, a pé, o Dito e o doutor Carlos foram de carro, e mais 15 moradores com a gente. Quando nós chegamos no Paço Municipal, eu vi que a Câmara estava acesa. Eu falei: “Bartira, hoje foi dia de plenária. É capaz de ter algum vereador aí dentro ainda, se está acesa é porque tem alguém aí dentro”. Ela falou pra mim: “O que você acha?” “Tá chovendo, frio, vamos pra lá”. Então, nós vamos pra porta da Câmara, quando nós abrimos a porta, tinha uma policial feminina sozinha. Acho que ela se assustou, com medo, e deixou a gente entrar. Nós entramos e pedimos pra falar com alguém da Câmara, não tinha ninguém no momento. Infelizmente, ou felizmente, quem estava lá dentro era o Jovenildo, porque o Jovenildo até aí trabalhava no gabinete do doutor Cincinato, vereador. Essa policial ligou pra ele, achou ele lá dentro e falou: “Olha, tem um grupo aqui, eu tô com medo, o que eu faço? Querem falar com o Rogério, Presidente e eu não sei o que eu faço”. Ele falou: “Estou indo aí pra ver o que a gente faz”. Só que na realidade a gente não queria o Rogério, a gente queria o Secretário de Habitação. Nisso, o Jovenildo chegou e falou: “Vânia, vamos tentar uma negociação, vamos ligar pro Secretário, ver se ele atende vocês amanhã”. Eu falei: “Jovenildo, eu gosto muito da sua pessoa, mas daqui eu não saio mais, eu estou cansada. Hoje o dia inteiro eu liguei pra todos os gabinetes aqui dentro e ninguém foi tomar partido de ajuda dos moradores, eu cansei. Não tem mais acordo, eu cansei. Agora, o que a Bartira falar, está falado. Eu não saio mais daqui”. Ele tentou convencer a Bartira também, tentou convencer outros, aí um começou a ligar pro outro, começou a aparecer o Sindicato, começou a aparecer o pessoal do meu partido, começou a aparecer a turminha do “deixa disso, vamos embora”, e eu pus o pé firme que nós não iríamos, não. Nós só sairíamos dali se o presidente viesse conversar com a gente, ou então o secretário de habitação. Por volta de meia-noite e meia o Rogério chegou lá. Aí, nós já tinhamos tirado os tapetes das portas, porque tinha criança com a gente, mandamos as crianças deitarem em cima dos tapetes, já estavam tudo dormindo, mesmo. Chegou um monte de viatura policial, falei pro doutor Carlos falar que “vocês não colocam a mão em ninguém, isso aqui é nosso, foi construído com dinheiro nosso e daqui nós não vamos sair”. Chegou o Rogério e mais quatro vereadores juntos, que ainda tentaram, o Batoré que é o vereador de Mauá, que é o humorista, foi muito grosso com o doutor Carlos, tentou fazer de uma forma assim... Eu ainda falei assim: “Batoré, se você não sabe o que está acontecendo, você não entende de Habitação, fica na sua que você vai entender. Em nenhum momento eu vim dentro da Câmara gritar com vocês ou pedir ajuda pra vocês sem saber se realmente os moradores estavam precisando de ajuda ou não. Eu não estou aqui pra fazer política e muito menos para uma brincadeira. Nós só saímos daqui se sair com um acordo, senão a gente não vai embora”. “Mas vocês têm que ver que aqui a gente não tem uma cama, não tem comida, não tem estrutura”. “Eu não quero cama, comida, estrutura. Eu queria isso durante o dia. Durante o dia você não me deu, agora eu não quero mais”. Aí, o Rogério chegou, conversou com os moradores, conversou com a minha pessoa numa boa, ele falou: “Vou falar por mim, como vereador e como presidente da Câmara, que amanhã, nove horas da manhã, eu vou estar na Associação, vou fazer uma reunião com vocês e vou lutar e ajudar vocês. Só que eu queria que vocês fossem embora, que não sei o quê”. “Vai?” “Vai”. “Ó, tá filmando, tá sendo gravado”. O Marcos, da Aliança esteve com a gente no dia, ele tem tudo isso gravado. E eu falei: “O acordo vai ser esse, você vai?” “Vou”. “Se nove horas da manhã você não aparecer, você pode ter certeza que às dez horas da manhã eu vou estar com mais moradores aqui dentro. Aí, a briga não vai ser mais com o Secretário de Habitação, vai ser com a sua pessoa”. No outro dia ele conseguiu ir, ele e mais seis vereadores com ele. Eles queriam conversar, eu falei: “Não, vocês não vão conversar. Nós vamos andar na área e você vai ver a situação do que eu estou falando pra você. Porque eu estou cansada de falar e vocês acharem que eu estou falando mentira. Agora vocês vão ver o que a gente tá falando”. Eu fiz eles ficarem o dia inteiro comigo dentro do Oratório, fazer a visita aos moradores, ver o que estava precisando. Foi aí que o Rogério falou pra mim: “Você tem razão, eu vou te dar apoio, nós vamos tentar uma conversa com o governo de Mauá, vamos tentar ver de que forma podemos ajudar os moradores”. E através disso o que eu consegui foi o seguinte, que o Prefeito liberasse o título de posse pros moradores, no qual já estamos retirando isso daí, que é uma obrigação do Dersa pagar o terreno pros moradores na área. Só que, quando foi no dia 27, devido aos moradores estarem há seis meses sem água no local e ter caído outra chuva e enchido tudo, e o Dersa não retirou os moradores, eu reuni os moradores que já tinham feito acordo com eles de dois, três meses e eles não vinham dar o dinheiro. E o morador já tinha perdido tudo dentro de casa por causa das enchentes. Quer dizer, o morador agora conseguiu o dinheiro pra comprar a casa, mas não tem dinheiro pra comprar os móveis. Foi um dia que eu cheguei dentro da Associação de manhã e eu comecei a ver certas coisas que eu não acreditei, eu fiquei muito revoltada mesmo e eu saí andando por dentro do Oratório, chamando os moradores comigo e falando: “Hoje, para, ninguém vai fazer eu voltar atrás”. Quando eu cheguei próximo da máquina pra parar, já estavam viaturas e a Valéria, que é uma das assistentes sociais do Encalso, da construtora que está fazendo a obra. Ela sabendo que passaram pra ela que era eu que estava indo parar a máquina, que até aí vários moradores pararam as máquinas. Quando as máquinas estavam na casa deles, eles param, vem a assistente social do Dersa, faz aquela lavagem cerebral no morador e o morador vai embora. “Não, vai ter negociação, o Dersa vai te atender amanhã. Amanhã nós marcamos uma reunião pra você”, o morador pega e deixa. Aí, ela falou: “Não, não vai parar a máquina”. “Vou”. “Não vai”. “Vou”. Eu falei: “Não tem acordo mais, Valéria, eu cansei. Eu cansei”. Aí, veio o policial tentar fazer com que eu não fosse, eu comecei a gritar com o policial mesmo, foi aí que eu dei mais voz pros moradores que estavam do meu lado. Eu falei pro policial: “Quando houve uma morte aqui dentro, que um dos seguranças da empresa matou o menino de 17 anos daqui, com um tiro no peito, de frente, vocês não vieram aqui socorrer o menino. Vocês não estão aí atrás pra achar o assassino do menino”, isso aconteceu em dezembro, uma semana antes do Natal. “Agora, agora você vem, pra quê? Pra coagir o morador? Aqui você não vai coagir o morador. Agora nós vamos parar e morrer com o assunto”. Aí, o policial falou pra Valéria: “Eu não posso colocar a mão nela, eu não posso fazer nada. Ela é uma representante legal dos moradores, se eu levar ela pra delegacia, eu vou ter problema, porque aí não vão ser só os moradores que vão vir pra cima de mim, a Câmara e a Prefeitura vão vir também. A menina faz parte do Conseg [Conselho Comunitário de Segurança] e o pessoal do Conseg, principalmente o presidente, vai ficar em cima de mim porque levei ela. Eu estou de mãos atadas, não posso mesmo, a não ser que ela queime alguma máquina, agrida outra pessoa, aí, é outro caso”. Eu saí do meio do barro, me atolando, peguei e falei pros moradores: “Quem vai junto?” Três moradores falaram: “Nós vamos juntos com você também”. “Então, você vai para aquele lado que eu vou para aquele”. Parei, cinco minutos que eu estava com a máquina parada, chegou uma perua do Dersa, alegando que o senhor Hermes tinha me chamado para uma conversa lá na rua Iaiá, dentro do Dersa, que eu poderia levar cinco moradores comigo. Aí, eu peguei um morador de cada setor e fui. Chegando lá, mais uma vez ele fez um acordo comigo, só que foi assim, dessa vez eu falei: “Hermes, eu vou gravar”. Até aí eu nunca tinha gravado. “Eu vou gravar a nossa conversa”. Ele falou: “Eu também estou com um gravador aqui e eu vou gravar”. Dei a palavra primeiro pro morador do setor 22 falar, o morador falou assim pra ele: “É, agora você vai gravar por quê? Porque ela te xinga tanto de mentiroso na tua cara, que agora você quer uma forma de colocar ela no processo, porque o processo foi aberto contra ela e você não teve provas”. Porque eles abriram um processo contra mim, e eles não tiveram como provar, porque eu tive como provar o que eu estava falando e eles não. Então, dessa vez ele resolveu gravar a nossa conversa. Eu falei: “É bom mesmo você gravar, Hermes, porque quem sabe você chegando na sua casa, quando você não cumprir o acordo, você coloca esse gravadorzinho debaixo do teu travesseiro e fica escutando a noite inteirinha o que você está prometendo pra gente aqui”. Então, ficou prometido que até o dia cinco eles tirariam os moradores que já tinham feito acordo há três meses, mas não viam o dinheiro, porque eu estou muito mais preocupada com a saúde e a vida dos moradores lá dentro do que com o dinheiro que eles vão receber. E que até o dia dez eles tirariam os demais moradores pra dar continuidade à obra. Só que infelizmente até o dia cinco ele tirou alguns, os mais críticos que eu pedi pra ele. Tem uma família que é o caso mais crítico, porque precisa ir pro Bolsa Aluguel, não tem como alugar a casa, não tem fiador. Essa família está tendo que ficar lá ainda. E até o dia dez eles não fizeram acordo ainda, tiraram uns 15 moradores só. Só que está difícil porque, se depois que passar o carnaval, ele não continuar a retirada, se pelo menos até o dia 15 não sair pelo menos 50% dos moradores que estão na área, eles não vão trabalhar mais. Porque eu cheguei à seguinte conclusão: Eu, como entidade, eu posso entrar pro Poder Público pra pedir a paralisação da obra até o término da retirada dos moradores. E ele está brincando comigo, só que eu não estou brincando mais. De setembro do ano passado [2009] pra cá [fevereiro de 2010] eu não estou brincando mais, eu estou procurando uma forma de fazer valer o direito dos moradores. E agora foi o que eu falei pra ele, os moradores estão do meu lado agora, porque viram que o grupo paralelo estava ganhando alguma coisa deles. Porque é impossível pagarem 300 mil por um salão de uma igreja que está em uma mesma área e 15 mil para um morador. É impossível pagarem 150 mil para um morador porque é uma casa de alvenaria de três cômodos, e um barraco do lado eles quererem dar 200 reais. Porque ali é a mesma lei pra eles todos, não é uma lei exclusivamente pra cada morador, a lei é igual. E sem contar que a gente sabe que para uma licitação eles passam primeiramente, demarcam a área, falam quantos moradores têm que sair da área e chegam já com um valor pra cada morador. E aí, é aprovado o dinheiro que vem. E tem dinheiro do Governo Federal envolvido nisso também, e também pra retirada dos moradores. Então, é assim, agora, tem hora que eu penso em desistir, mas também tem hora que dá vontade de pegar um revólver, ir pra cima de uma ponte dentro de São Paulo e ficar ameaçando a minha própria vida pra ver se vai chamar atenção da televisão e eu falar tudo o que eu tenho vontade, a respeito do Dersa. Porque na última reunião que eu estive com o Hermes eu me senti coagida, aquele gravador, e não foi só aquele gravador, eu acho que ele imaginou o seguinte, porque tudo o que eu faço, eu mostro pros moradores, eu não faço nada sem mostrar pra eles. Primeiro eu tiro informações pra saber se eu estou correta, eu vou na luta naquilo que eu sei que estou correta, e também, quando eu volto, eu mostro pros moradores: “Ó, eu fiz isso, isso e isso. Agora vai ter uma próxima reunião que vai dar direito de vocês irem, e vocês tiram todas as dúvidas de vocês”. Em reunião nenhuma eu participo sem um advogado do meu lado, que é o doutor Sales, ele me acompanha em tudo. O jornal Notícia de Mauá, o Diário Regional do Grande ABC acompanham, então, é assim, não tem porque dos moradores desconfiarem. E outra coisa, ontem eu estive dentro da Câmara de São Paulo, eu sei que eles não têm nada a ver, porque eles não podem mexer em Mauá, só que foi que eu pedi pro Netinho de Paula, eu pedi, pelo amor de Deus, tenta alguma forma da gente fazer com que o Dersa cumpra alguma lei, cumpra alguma coisa. Porque eles não cumprem lei nenhuma, não cumprem nada, nada. Eles simplesmente têm a destruição e acabou, eles querem o local e morreu o assunto, não importa se é ser humano, animal ou árvore que está no local, eles matam da mesma forma. Isso aí está me revoltando a cada dia que passa. E assim, nessa reunião com o Hermes, ele falou pra mim o seguinte: “Não, porque a Defensoria Pública e o Ministério Público, no qual eu já tive uma reunião, e a Prefeitura de Mauá, o senhor Prefeito, eles alegaram que se o morador não sair com o Bolsa Aluguel ou pegar a indenização que estão pagando, que eles vão vir retirar os moradores pela lei”. E ele achou que eu fosse pegar essa gravação e levar pra Mauá, passar pros moradores verem. Só que quando ele começou a ficar aquilo, eu, nessa reunião, fiquei muito em silêncio mesmo, deixei mais os moradores falarem. Foi no dia 26 de janeiro [de 2010]. Nessa reunião eu fiquei mais calada, deixei os moradores, porque eles já estão sofrendo demais pra ter intervenção de outras pessoas falando por eles. Eu só coloquei o seguinte, antes de ir pra lá, nós nos reunimos, eu coloquei pra cada um que eles deveriam falar do setor e exigir uma negociação pra cada setor. Porque as coisas lá são diferenciadas. Eu tenho o setor 23 que é só de palafitas, eu tenho um setor 10 que está na beirada do córrego, o setor 22 que tem umas casas melhores. Então, é uma situação diferenciada. E aí, o Hermes ficou o tempo todo só me observando, e eu observando ele. A minha vontade era subir na mesa e grudar no pescoço dele. E me segurando pra não falar. Eu falei: “Se ele acha que eu vou ofender ele aqui, ou se ele acha que eu vou perder o foco da minha reunião, ele está enganado”. Porque uma coisa do movimento eu aprendi: eu era uma pessoa que não falava em público, muitas vezes eu estava em um lugar, queria me dirigir às pessoas, mas não me dirigia, eu estava ali, eu fazia perguntas e as coisas, mas eu jamais iria falar em público, jamais eu iria para um debate. De um ano pra cá, eu vou colocar nem de um ano, de seis meses pra cá, o que eu comecei a fazer? Eu falei: “Eu preciso acabar com isso e mostrar a liderança que eu tenho”. Então, o que eu comecei a fazer, eu comecei a ir: “Ah, vai ter paralisação tal hora”. Eu vou. Eu comecei a ir em paralisação em tudo quanto era lugar e eu comecei a aprender que, se eu não gritar, não falar mais alto que eles, eu não vou ter as coisas. Se eu não pegar um microfone e sair falando, eu não vou ter as coisas. E graças a Deus, através disso, eu estou tendo reconhecimento dentro de Mauá, que é importante pra mim no movimento. Porque também, se eu brigar sozinha, eu não vou conseguir nada, a Prefeitura e a Câmara tem que brigar junto pelos moradores. Então, é uma coisa que eu estou conquistando aos poucos.
P/1 – Você colocou agora como é que está, está nesse suspense ainda o movimento.
R – Está nesse suspense.
P/1 – Outra coisa, você falou da Aliança. Como a Aliança chegou até você, você lembra?
R – Então, em setembro [de 2009], os moradores tomaram a atitude de parar as máquinas, na frente da oficina tem o Carlão, que é um dos nossos diretores da Associação. Ele sabe como eu sou, porque tem um ano que estamos trabalhando lado a lado. Ele foi lá e falou pra mim: “Vânia, eu não vou lá. Vai você e vê o que os moradores querem e o que está acontecendo e ajuda”. Foi quando eu cheguei e falei pros moradores: “Vocês querem ajuda?” “Queremos. Mas não vamos sair daqui”. “Tranquilamente, eu paro junto com vocês. Eu só estou perguntando se eu posso ficar aqui e ajudar vocês”. Aí, os moradores: “Tranquilamente”. Foi quando eu comuniquei ao Manteiga que eu estava com os moradores parando a máquina, foi quando o Manteiga falou assim: “Vânia, eu estou com uma ONG aqui que se chama Aliança, internacional, que está no Brasil fazendo um trabalho de habitação pra mandar pra fora. Posso levar eles aí, você fica o dia com eles?”. Eu falei: “Fico, pode trazer”. Foi o momento que eu conheci a Angela. Eu não tive nem muita conversa com ela. Porque foi assim, foi uma coisa que eu estava tão envolvida com os moradores que eu nem dei muita atenção pra ela, eu nem lembrei que ela estava ali, tanto que a coitada passou o dia inteiro comigo e eu esqueci de dar o que comer pra ela (risos). E ela não sabendo muito bem das coisas aqui dentro, ela ficou sem pedir, né? Foi o que eu falei pra ela: “Você deveria ter pedido”. E eu fui ter um contato maior com ela na segunda vez que ela esteve lá, porque fora isso, houve outros manifestos, outras coisas dentro de São Paulo, que eu fui participar e ela estava lá.
P/1 – E questões também relacionadas a...
R – Relacionadas à Habitação, essas enchentes que estão acabando com São Paulo, transporte, sindicato. E aí, eu cheguei, ela estava também presente e nós começamos a pegar uma certa amizade. Quando o Marcos chegou, dois meses depois, eu conheci o Marcos no dia que eu fui pra Câmara que ele tava junto.
P/1 – Perfeito. Agora em relação ao fórum sobre a questão da Habitação. Vocês têm alguma relação, participaram alguma vez?
R – Olha, o pessoal da Facesp e da CONAM têm sim, eu nunca participei de nenhum Fórum, a única coisa que eu participei foi da Conferência e de algumas marchas dentro de Brasília.
P/1 – Vai ter uma atividade paralela ao Fórum, que você estava comentando.
R – Isso, vai ter a Conferência das Cidades, a nossa é a Conferência Estadual, dias 27 e 28 de março [de 2010] no Memorial da América Latina. E eu estou fazendo parte da organização da conferência através da CONAM. Porque é assim, quem tá chamando a Conferência é o Estado, só que as entidades nacionais têm o direito de entrar com o movimento e participar, senão não tem a Conferência, entendeu? Porque na realidade quem faz a Conferência é o movimento social junto com o Estado. E eu fui convidada pra participar, a-do-rei o convite, pra mim está sendo uma coisa nova, eu estou aprendendo mais ainda. Estou tendo um conhecimento melhor com novas pessoas, graças a Deus estou sendo reconhecida porque eu percebo que o pessoal lá dentro fica muito calado, estou conseguindo entender, por ser a primeira conferência de que eu estou participando da organização, estou conseguindo pegar bem a organização, como se monta a conferência tudo, nesse sentido.
P/1 – Agora você tem uma atuação na Associação, na Federação também?
R – A Associação é filiada à Federação. A Federação de Mauá não é filiada à Facesp, só que a minha entidade é filiada e eu sou Diretora da Facesp também.
P/1 – Perfeito. Desde quando você é Diretora?
R – A direção da Facesp mudou em junho, é, desde junho.
P/1 – E a sua relação com a CONAM começou como?
R – A Facesp é filiada à CONAM, porque a CONAM é nacional e a Facesp é estadual. Então, automaticamente é filiada à CONAM que é onde a gente se une, que um mantém do outro.
P/1 – Nessa sua relação do movimento, como é que você definiria a questão da solidariedade. Você vê isso no dia a dia ou tem uma dificuldade?
R – Você quer dizer no movimento...
P/1 – Com os moradores.
R – Ah, nós do movimento ou, eu do movimento com o morador?
P/1 – Lá no movimento.
R – Lá na Associação com o morador? O movimento com o morador?
P/1 – Isso.
R – É assim, no meu ponto de vista, de princípio você tem que mostrar autoridade pra eles, senão eles não abaixam a guarda pra você. Porque, os moradores em si, acho que já estão tão calejados da vida que levam, dos políticos podres que existem no país, e se eles veem em você uma liderança mesmo, de levantar a cabeça e de vez em quando dar uns gritos com eles, eles te apoiam, se você abaixar a cabeça, eles não te apoiam, não. E eu tenho uma fácil liderança, porque eu não deixo ninguém fazer eu abaixar a cabeça, antes da pessoa chegar pra me agredir eu já levanto mesmo e acabou, é isso aqui e acabou. Porque se me deram o poder da liderança, eu vou executar a minha liderança, a não ser que eu não tenha, mas eu tenho esse poder na mão. Então, eu vou fazer valer a minha liderança. Ninguém passa por cima de mim, muito menos morador. Eu sei do que eles precisam, porque eu convivo com eles no dia a dia, eu sei como eles vivem, porque eu estou lá sete horas da manhã e só saio de lá às cinco horas da tarde. Eu almoço geralmente dentro da casa deles, eu tomo café com eles. Então, é assim, eu sei muito bem, não tem porque eles chegarem e me obrigarem a fazer uma coisa que eu acho que não é o direito deles e nem fazer uma coisa que eu sei que vai dar um resultado errado mais na frente. Então, essa liderança eu tenho e eles me respeitam.
P/1 – Vânia, com essa sua experiência, sua atuação, como é que você definiria a moradia digna, como ela deveria ser?
R – Eu acho que no próprio bairro em que eles estão, que é uma área irregular, que é muito barraco de madeira. Eu definiria da seguinte forma, que a Prefeitura deveria entrar ali, dar a eles primeiramente o Bolsa Aluguel, dividir aquele terreno e eles construírem a moradia deles lá dentro, da forma que eles quiserem, mas exigir que eles não construam um barraco. E exigir que eles não vão nem pro morro e muito menos pra beirada de córrego, ou em cima de córrego. Eu acho que a Prefeitura, nesse sentido, deixa a desejar. Por quê? Porque tem local ali que tem casa de alvenaria, por que a própria Prefeitura, o próprio Município, não coloca uma lei ali dentro: a partir desse momento, pra você sobreviver aqui, você vai ter que pagar uma água, uma luz, eu vou mandar colocar pra você, você vai ter que pagar um imposto a partir desse momento, e você vai ter que construir uma casa de alvenaria. Porque eu sei que ali dentro tem famílias que estão no barraco de madeira porque realmente não têm condições, muitas vezes têm um deficiente dentro de casa, muitas vezes é um casal de idosos aposentados, não têm mesmo condições nenhuma, estão abandonados. E eu sei também que tem caso de gente que mora dentro de um barraco, mas que tem um salário melhor do que o do meu esposo. Que tem um carro do ano, um carro melhor do que o meu. E são pessoas que estão ali pra aproveitarem que não pagam água, não pagam luz e não pagam imposto. Então, eu acho que a Prefeitura deveria vir e fazer um censo no local e retirar essas pessoas dessa área. Falar: “Não, você tem um salário que dá pra você sobreviver em uma outra área. Essa área vai ser realmente pras pessoas que realmente precisam”. E um outro erro que eu acho que tem nesses projetos de habitação, principalmente do CDHU, eu acho que deveria realmente ter uma lógica ali dentro de colocar, realmente as pessoas dentro de apartamentos desses, no valor de um salário mínimo. E eles não olham isso. Tem pessoas ali dentro que poderiam pagar uma prestação de 600, 700 reais, de 400, 500 reais. Não, eles não olham isso, e acho que deveriam olhar.
P/1 – Vânia, a gente está quase fechando, eu estou explorando um pouco porque a gente está conhecendo o movimento. Qual a importância que você acha que têm essas conferências, esse fórum. Qual é a importância pra esse movimento?
R – Eu acho que é como eu falei pra você. Até alguns anos atrás eu achava que isso era só uma baderna, não conseguiria definir isso como bom. Hoje eu sei que não, que isso é o primordial pras leis dentro do Estado. Isso é primordial pra que funcione e faça valer os direitos que as pessoas têm, de igualdade. Porque se não tivesse esse movimento, se não tiver fóruns, conferências, nós nadamos e morremos na praia. Através dos movimentos, das conferências, dos fóruns que eu percebi que saem as leis pra irem pra Constituição e fazer valer os nossos direitos.
P/1 – Perfeito. Vai ter o Fórum Mundial.
R – Já teve, em Porto Alegre.
P/1 – Isso. Esse Fórum Mundial e vai ter o de Urbanismo.
R – Isso, no Rio de Janeiro.
P/1 – Isso. Mesmo você não podendo ir, de que forma você acha que eles podem contribuir com a luta?
R – Porque o Movimento Social está unido. Eu acho que todo o Movimento Social sabe o que eu estou passando dentro de Mauá. Eu sei o que o Movimento Social está passando dentro de São Paulo, então, se eu fosse, eu iria por uma proposta de lei que ajudaria tanto a eles quanto à minha pessoa, quanto o movimento dentro de Mauá, certo? Como há muitas reuniões, muitas plenárias, muitos manifestos juntos, a gente também discute o que está acontecendo dentro do Município, dentro do outro, pra se chegar a valer uma proposta de leis. E todo mundo, do movimento em si sabe disso. O movimento dessa hora não tem branco, amarelo ou azul, o movimento levanta uma bandeira só.
P/1 – E a bandeira, só pra gente fechar?
R – É uma bandeira de uma moradia digna e as pessoas terem o respeito que merecem.
P/1 – E qual o seu sonho em relação ao futuro do movimento?
R – Olha, o meu sonho, eu agora vou falar como movimento de Mauá, seria poder levantar amanhã cedo, chegar dentro do Oratório e ter a notícia de que o Dersa resolveu chamar e pagar o que os moradores têm direito, no mínimo retirar os moradores com 65 mil reais cada um, numa área de risco que está lá, pra que eles possam comprar as casas deles.
P/1 – Perfeito. Tem alguma coisa que você gostaria de colocar aqui?
R – Eu acho que não, já coloquei tudo.
P/1 – Então, Vânia, muito obrigada pela entrevista.
R – Obrigada vocês!
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