P/2 – Então, vamos começar? Qual o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Almir de Souza Moreira Júnior. Local de nascimento: Salvador, Bahia.
P/1 – Que dia você nasceu?
R – Nasci no dia 12 de março de 1987.
P/2 – Como você já falou, eu queria saber qual a origem da sua família, como ela foi constituída.
R – Por parte da minha... Por parte da minha mãe, é uma família indígena, ribeirinha, pescador, ainda, esse núcleo ainda está lá, ainda vivendo da pesca. Por parte do meu pai, já é aquela herança negros, negros nagôs, né, aqueles negros nagôs, de narizes largos, vivem também ali no Bairro de Santa Terezinha, Periperi, uma família bem grande, extensa. Estão lá até hoje os dois grupos.
P/1 – Periperi é em Salvador?
R – Sim, vivem lá em Periperi, em Salvador. Esses são os meus ramos, indígena e o de ascendência africana.
P/2 – Falando de ramificação, quantos irmãos você tem?
R – Tenho um irmão chamado Wiliam e tenho uma irmã chamada Juliana.
P/1 – A família da sua mãe mora em Salvador também?
R – Também.
P/2 – Eu queria saber lembranças, assim. O que você, quando era criança, lembrou do que a sua mãe fazia, o seu pai, a constituição, como eles se juntaram pra constituir a sua família, como...
R – As minhas primeiras, as minhas memórias, mais de berço, mais antigas que eu tenho, as minhas... Brincando na areia da praia, aquela coisa do mar, vindo até, assim, próximo, e algum adulto sempre por perto ali, chamando mais pra cá. Essa memória eu tenho muito bem gravada. Os meus pais se casaram, se juntaram após minha se engravidar, ter sido engravidada.
P/1 – De você?
R – É, de mim, e aí, naquele momento, eles se reuniram, eram jovens, minha mãe ainda no final da adolescência, ainda... E aí Salvador, naquela época, final da década de 80, Brasil da década de 80 também estava num cenário econômico bem complicado, de vida muito difícil. O meu pai, aconteceu um caso com ele, que ele saiu de uma empresa, uma empresa que ele trabalhava no porto, fazendo manutenções em plataformas, máquinas elevatórias, empilhadeiras, é a profissão dele até hoje. E aí ele, ele foi, ele fez um acordo com a empresa, que a empresa estava fechando, e aí, na época, ele recebeu uma baita, digamos assim, uma bolada do dinheiro acumulado que ele tinha dos seus direitos, né? E aí um dinheiro que ele, eu não sei bem porque razão, mas ele pegou em mãos e eis que o seu Almir, né, eu sou o Almir Júnior, né, o seu Almir (risos), o Seu Almir foi, não sei, celebrar, não sei o quê calhou que ele, segundo ele, perdeu o dinheiro, todo o dinheiro, e era um dinheiro que eles estavam contando muito pra os próximos meses, deles, assim, se organizando, na organização familiar. E aí então eles ficaram numa situação muito apertada, muito difícil, com pouquíssimas alternativas, e aí veio a opção de vir pra São Paulo.
P/1 – Sua mãe trabalhava lá?
R – Nessa época não, só cuidava de mim.
P/1 – Ela também foi... Pescava?
R – Ela? Não, não, ela ajudava, trabalhava, tinha os trabalhos domésticos e ela ajudava a mãe dela, minha avó, num tradicional boteco que elas tinham, ela ajudava bastante minha avó lá. E ela não foi criada pela minha avó, ela foi criada pela minha bisavó, né, a minha mãe é a Bárbara Maria e ela foi criada pela bisavó dela, a Maria Bárbara, (risos) que, segundo a lenda, segundo os contos aí da família, já amamentou até uma cobra! (risos)
P/1 – A sua avó?
R – É, cabocla.
P/1 – Como assim?
R – Cabocla forte.
P/1 – Mas como é essa história? Por que ela amamentou a cobra? Você sabe dessa história?
R – Não, não sei, não sei, só é uma história que fica vagando, mas não sei em detalhes, não.
P/1 – Aí vieram pra São Paulo, né?
P/2 – Vieram pra São Paulo e se instalaram aqui em Perus?
R – Vieram pra São Paulo e se instalaram...
P/2 – Como foi essa mudança de lugar, chegando na cidade aqui também, na Babilônia? (risos)
R – Poxa.
P/1 – Quantos anos vocês tinham?
R – Eu era pequeno, tinha quatro anos.
P/1 – Mas como foi? Como o Cleiton perguntou, como foi?
R – O meu pai veio primeiro e aí ele foi procurar as ofertas de emprego, e aí três meses depois, ele mandou o dinheiro pra minha mãe, falando pra ela vir comigo e a minha irmã, que estava na barriga. E aí viemos pra São Paulo, eu tenho flashes dessa viagem, uma viagem de ônibus, eu lembro de instantes de parada e o instante que a gente chegou aqui, esse é mais marcante pra mim. Porque eu lembro que eu estava com saudade do meu pai, né, e aí a minha mãe falou assim: “Ah, a gente vai encontrar seu pai”, e aí eu todo alegre e aí ela, naquele momento, ela já se aproveitou pra perguntar assim: “Mas aí você vai encontrar seu pai chupando a chupeta?”, (risos) e aí foi na rodoviária que eu joguei a chupeta fora, (risos) com quatro anos. (risos) E aí fomos morar em Pirituba, aqui na Zona Oeste também, a primeira habitação nossa foi uma habitação de favor de uma senhora chamada Dona Isaura, moramos nos fundos. A casa dela era uma casa meio num morro, próximo a um córrego, e habitamos essa casa durante um ano, coisa de um ano, a casa da Dona Isaura, que ajudou bastante, deu muita assistência pra nossa família, somos muito gratos a ela. Ela já não é mais viva, mas tem uma memória muito afetiva em torno dela.
P/1 – Você brincava na praia, que é uma memória forte pra você, e aí nesse lugar, como que foi essa mudança? Que aí era um córrego, você morava perto, né?
R – É.
P/2 – Não via mais o mar. (risos)
R – Hoje em dia, eu penso que foi algo muito impactante, talvez até traumático.
P/1 – Mas você lembra, não? Você só imagina?
R – Não, eu lembro, eu lembro, porque tinha um poço nessa casa e eu morria de medo desse poço, porque, não era nem tanto por mim, mas era a minha mãe, eu acho que eu chegava a dois metros do poço, ela já gritava comigo: “Sai de perto desse poço!” Então aquela coisa do poço, de nunca poder chegar perto do poço, sempre aquele cuidado constante em torno do poço e o rio, então era o tempo inteiro era ali, escoltando o menino ali, né? Então ela meio que um ar, assim, eu tenho memórias, meio que assombrosas em torno disso, que o poço era algo que me assombrava, né, aquele poço: “O que será que tem dentro do poço?”, uma criança, né, imaginava mil coisas! O que tinha dentro do poço, e o rio passando do lado de casa, aquela coisa doida, né?
P/2 – E tinha outras crianças que você brincava, que criou outra relação?
R – Tinha, na casa dessa Dona Isaura tinha outras crianças, era uma casa bem movimentada, um auê danado! Mas, ao mesmo tempo, eu era muito tímido, muito acanhado, até hoje ainda me considero muito acanhado. Mas ali foi um momento, ali, que comecei a me socializar com eles, eu tenho uma lembrança do esposo dessa Dona Isaura, que eu não recordo mais o nome dele, que uma vez minha mãe combinou de ir ao centro resolver alguma coisa e aí ele era motorista da antiga CMTC [Companhia Municipal de Transportes Coletivos], a empresa municipal que cuidava do transporte público e aí eu lembro da gente embarcar num ônibus que ele estava dirigindo e eu achei encantador aquilo do ônibus, quando eu fui visitar esse marido da Dona Isaura, e aí eu fiquei encantado com aquilo de ver ele dirigindo o ônibus, e era um bonde até, um bonde não, desculpa, um trólebus, né, e aí eu fiquei encantado. E aí tanto que é a primeira profissão que eu mais me encantei na vida, motorista de ônibus, eu olhava pros motoristas de ônibus com uma profunda admiração, até hoje, motorista de ônibus, muito interessante.
P/1 – Eles merecem admiração.
R – Poxa.
P/1 – Quando você foi crescendo, você falou que mudaram dessa casa, né?
R – Isso.
P/1 – E aí?
R – Após um ano, nós fomos pra uma outra casa que já era tipo um sobrado e a gente morava na parte de cima, mas aí vieram mais parentes nossos também, da Bahia, tinha a irmã do meu pai, uma comunidade nossa, né? E aí eu lembro que moraram muitas pessoas nessa casa, ó, não me pergunte quantas pessoas chegaram a morar nessa casa, mas moraram bastantes pessoas e ficamos durante um ano nessa casa. Aí as pessoas foram se arranjando, foram encontrando seus, outros lugares, outras acomodações, aí nós permanecemos nessa casa, aí permanecemos por mais um período nessa casa. E aí tinha uma relação com os vizinhos, assim, mas também uma outra família muito grande, assim, do lado, assim, tinha um menino, eu brincava muito com esse menino chamado Thiago. O pai dele, eu lembro que o pai dele era... Era presidiário daqui do sistema de Franco da Rocha, e a gente brincava bastante. Aí um ano depois, a gente, depois, já foi pra uma outra casa, mas era dentro daquele... Era uma espécie de aglomerado de casas, não chega a ser um cortiço, mas aquelas casas acompanham, fundo a fundo, e a gente foi pra uma outra casa maior, conforme o meu pai foi, de alguma maneira, ascendendo profissionalmente, né?
P/1 – Ele trabalhava, quando ele chegou aqui, ele conseguiu trabalhar com o quê?
R – Ele foi trabalhar numa empresa que chamava Cetem [Centro de Tecnologia Mineral], era uma...
P/1 – De que que era?
R – Era uma empresa de metal mecânica, também trabalhava com... Tinha transportadora e ele era da parte de manutenção e era uma empresa sediada ali em frente ao que hoje é o SBT, ali na Anhanguera, Rodovia Anhanguera, ele trabalhou nessa empresa durante alguns anos, desde quando ele chegou aqui, ele trabalhou nessa empresa durante alguns anos, até que depois ela abriu falência.
P/1 – E a escola, né?
P/2 – E em questão de educação, como foi a questão de estudar? Estudou em qual escola?
R – Lá em Pirituba, minha educação infantil, assim, fui pra um creche pública, depois pra uma EMEI [Escola Municipal de Educação Infantil], né, uma EMEI, e nessa EMEI foi bem complicado a relação, assim, porque eu sofri algumas hostilizações. Hoje em dia, eu não sei definir em que grau que era, qual a fonte, mas era um ambiente que era muito, muito escanteado, assim, eu era muito deixado de canto, a professora mesmo, ela não tinha um trato muito (risos), muito pedagógico, era bem rude.
P/1 – E depois, na escola, no primário, ginásio, Ensino Fundamental, que lembranças você tem mais marcante?
R – Aí fui pra primeira série, a primeira série eu estudei numa escola chamada Jairo Ramos, lá em Pirituba. Que memória que eu trago de lá, assim?
P/1 – Não precisa ser só da primeira, ao longo, até terminar. Você terminou o primeiro?
R – Eu acho, ela pra mim só era interessante, assim, que era um lugar muito esterilizado, é isso que me vem na lembrança, era um lugar muito esterilizado, era uma parte mais aburguesada, do bairro, então era um ambiente que destoava um pouco da onde eu circulava, era muito, né, muito estéril, muito higiênico. Então era isso, assim, não tinha uma, não criei um vínculo, uma grande identificação, eu só fiquei um ano nessa escola. Daí com oito anos a gente vem pra Perus, que então a gente morava de aluguel e aí chegou um momento que as condições apertaram e nessa época o meu pai começou, a partir da minha vó, né, a mãe dele, minha avó Aurelina, vó Lalu, e eles começaram a participar de umas reuniões do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], numa paróquia lá em Pirituba. Então começaram a participar das reuniões dentro do movimento, e a minha avó foi contemplada com um terreno aqui, durante a gestão da Erundina, projeto do Recanto dos Humildes, na formação, no primeiro projeto que saiu pro Recanto dos Humildes, né, de habitação. E aí, na sequência, o meu pai ajudou a vir, a construir a casa dela, então, quando eu vim pra Perus, o Recanto ainda era predominantemente ainda mato ainda, aí foi, aí as coisas mudaram. (risos) Aí as coisas ganharam cores, ganharam forma, que aí tive a experiência de brincar no mato, brincar no barro, brincar com muitos colegas, viver, um viver na casa do outro, né? E esse primeiro momento do Recanto, como foi um movimento de moradia popular, então era muito forte a questão da solidariedade, muito forte, era tudo mutirão, todo mundo se ajudando a levantar um a casa do outro, bater laje, então as crianças circulavam muito umas pelas casas das outras. Isso daí foi muito significativo pra mim, ter vivido isso daí, esse momento, e foi um lado, assim, bacana, que me deu mais fortalecimento em relação, por exemplo, ao ambiente da escola, que aí eu vim estudar na escola aqui, que é o Gavião Peixoto, Brigadeiro Gavião Peixoto, a maior, a escola de maior espaço físico da América Latina, né? E era um cotidiano muito violento, primeiro dia, aí eu saí daquela escolinha de Pirituba, de um espaço pequeno, aburguesado, e aí vim pra uma escola que, nossa, mil grau, né, já chega no intervalo, eu vejo briga dos moleques, fico: “Ah!”, aí sai, na saída mais briga, aquela coisa, né? As primeiras experiências de começar a se deslocar sozinho, desde cedo, assim, os meus pais já deixavam, eu ia pagar conta, essas coisas, tudo sozinho, desde pequeno eu fui muito autônomo nesse sentido. E o Recanto era esse lado que me fortalecia, assim, de brincar, foi muito boa essa época, e a questão dos mutirões, essa vida ali baseada na solidariedade, de trocas de mantimentos, o que faltava em um trocava com a casa do outro, né, foi muito mágico. (risos)
P/2 – Não posso perder o fio da meada, eu fico aqui olhando. (risos)
R – (risos).
P/1 – Vai lá!
P/2 – E agora? Qual pergunta que eu faço? (risos)
P/1 – Nessa escola, o que pode ter acontecido? Tem uma pergunta aí. (risos) Precisa de óculos?
R – Na escola?
P/2 – É, quais as lembranças que você tem, assim, do Gavião? Sabendo que ali é um... Eu também fui formado ali, eu sei como é o movimento. (risos)
R – (risos) Né?
P/2 – E o que te trouxe de conhecimento lá, assim?
R – Aí o Gavião, é interessante, eu estudei lá depois durante toda a minha vida estudantil, da segunda série até o terceiro ano do Ensino Médio, os dois primeiros anos eu estudei com uma mesma professora, que se afeiçoou bastante a mim, a professora Kátia, né, minha irmã também estabeleceu uma amizade com ela, então ressignificou as experiências anteriores com professoras. E aí foi um momento de crescimento, foi muito crescimento, encontrei docentes muito exemplares que eu carrego na lembrança, né? Depois, na quarta série, estudei dois anos com essa professora Kátia, depois, na quarta série, uma professora que foi o último ano dela, que ela se aposentou naquele ano, era a professora chamada Maria Helena, era uma professora que tradicionalmente tinha uma régua de madeira na sala.
P/1 – Mesmo assim você achou que valeu a pena esse quarto ano?
R – Foi, porque ela tinha rigor, mas ela não era violenta, né, ela tinha rigor, mas não era violenta. Quarta série, é uma lembrança que já me impacta, que eu lembro dos livros didáticos, uma coisa que me incomodava (risos), tinha uma coisa que me incomodava quando eu via ali, quando a gente começou a estudar História do Brasil, quando eu via lá aqueles bandeirantes, aquele porte de roupa, bem vestidos, eu não sei porque, mas aquilo me incomodava de ver, isso daí me marcou na quarta série. Fui pro ginásio...
P/2 – A mudança de um monte de professores.
R – Um monte.
P/2 – Eu não sei se naquela época você tinha que ir pra sala.
R – Começo a sala ambiente.
P/2 – Começou a sala ambiente, isso é muito louco da gente entender. Como foi, assim, pra você?
R – Ali, né, marca um momento no ensino público no Estado de São Paulo, que ali começou um momento de precarização do ensino público, assim, no meu entendimento, que foi ali durante o Governo Mário Covas, e aí começou a progressão continuada e tudo veio de uma vez, né? Até a escola, quando adotou sala ambiente, dos alunos ficarem circulando pela escola, mas as salas não tinham nenhuma ambientação referente à matéria, era só mudar de sala, só mudar por mudar mesmo, e aí acabava sendo um “rolezinho”, ficar fazendo as trocas de sala. Aí, quando eu fui pra quinta série, nasceu meu irmão, então quando eu estava ali na casa já dos 12 anos, 11 anos, chegou o meu irmão William na família.
P/2 – E sua irmã estudava lá também?
R – Não, a minha irmã, ela estudava, ela estudou no Oliveira Lima, ali, né, que EMEI, aí depois ela foi pro Cândido.
P/2 – Ah, Cândido.
R – Ela estudou durante anos lá no Cândido Portinari, escola municipal. E aí, durante esse momento do Gavião, na quinta série, já ali nas portas da adolescência, foi um momento que Perus ganha um novo tamanho pra mim, que eu comecei a andar mais pelo bairro todo, indo jogar bola nas ruas, aquela coisa de tirar timinho pra jogar contra, né? Então a gente andava pelas ruas jogando contra com os meninos e subindo nas árvores pra roubar (risos) fruta dos quintais das casas, ou mesmo passar nos mercadinhos e levar alguns biscoitos na faixa (risos), né, brincamos bastante, foi bem gostoso, uma infância muito boa.
P/1 – E na escola também continuou essa sua impressão que era muito forte, uma certa violência ou como que você via isso, assim, mais velho?
R – Aí o que aconteceu? Aí foi uma coisa de habituando, fui me habituando, porque o Recanto, chegou um momento que, passado esse primeiro momento dos mutirões, da primeira formação dele, aí depois vem uma nova leva, que aí foi o momento da invasão mesmo, aí sumiu a parte de, né, o que restava de mato e também pessoas que vinham pela demanda de casa, mas aí já foi algo mais desordenado. Então foi um momento de muita violência também lá, nesse momento, muitas mortes, aí eu comecei a me habituar com o cotidiano de encontrar corpos mortos, corpo baleado, corpo jogado na linha do trem. De primeiro, né, chocou, aí com o tempo vai encontrando outros, outros significados.
P/2 – Como era a sua vivência no meio dessa área de risco, as brincadeiras? Porque até as nossas mães falavam: “Não, o Recanto...”, tinha até a questão de pedágio, né, em uma parte. Como era a sua juventude dentro desse território destemido?
R – Então, pra mim era meio como se eu tivesse, enquanto jovem, né, ali na porta da adolescência, era como se eu estivesse dentro de um circuito paralelo, assim, porque não tinha problema ainda com questão de drogas, tráfico de drogas, não era isso, era aquela violência mesmo de acertos de conta, de pequenos roubos e a pessoa já acertava a conta ali mesmo, puxar um ferro, puxar uma faca e as coisas já eram resolvidas ali, então era muito acerto de conta, né? Então pra nós, assim, criança, era uma coisa de contar corpo, contar corpos: “Ah, teve uma morte ali”, não sei o que ali, a gente ia lá, aí via, aí depois voltava, ia brincar, era uma coisa meio sombria, mas já não afetava a ponto de ficar... Né? As primeiras sim, as primeiras impactavam bastante, eu lembro das primeiras, quando eu vi, eu não dormi à noite, aquele peso, aquela coisa, e aí no mais a gente brincava. Pra nós era seguro, de um lado, porque nós estávamos lá dentro, então era uma outra relação. Aí, quando a gente saía do Recanto, ia pro restante de Perus, era até um pouco mais apático, algo que fervia ainda bastante era o Jardim do Russo, o Jardim do Russo fervia bastante, era bem agitado, uma dinâmica social bem intensa, né, mas no mais lá era lá que era o fervo o tempo inteiro, como é até hoje. (risos).
P/2 – Até hoje, né? (risos)
R – Como é até hoje.
P/1 – Almir, eu perguntei da escola, porque você, quando chegou na escola, você se sentiu aquela, né, força, algumas brigas no intervalo, brigas na saída, eu estou te perguntando depois, a sua convivência na escola. Como é que você foi vendo ou vivendo?
R – Depois?
P/1 – É, enquanto você estava lá, né?
R – Ah, enquanto.
P/1 – É, mas, assim, no começo você teve um impacto e depois, como é que foi acontecendo?
R – Ah, depois, aí são os laços que vão se ampliando, aí tem as amizades da escola, aí, quando eu estava na segunda, nesse primeiro ano, foi o ano que, quando eu cheguei até aqui, indo pro Gavião e aí estabelecendo contato com os coleguinhas, foram os meus primeiros episódios de conhecer a fábrica de cimento, cabular aula pra ir na fábrica de cimento pra ir brincar nas locomotivas, nos vagões, ficar desbravando a fábrica, andando pela fábrica, né, a fábrica, imagina, pra quem tinha oito, nove anos, a fábrica era...
P/1 – Por que não funcionava mais?
R – É, já estava já desativada.
P/2 – E o muro do Gavião era fundo com a fábrica. (risos)
R – Colado. E a escola, ali atrás ainda tinha um pouco de mata, então ficava aquele mistério, a molecada gostava de pular atrás do muro da escola pra ir pro mato, e tinha um campo, tinha o campo do União, às vezes a gente ia correr lá no campo, jogar bola. Então as amizades foram se ampliando e aí o espaço de vida foi se ampliando, né?
P/1 – Quando você foi entrando na juventude, vocês se divertiam como?
R – Na juventude?
P/1 – Além de jogar bola, né, que foi sempre...
R – Sim.
P/1 – Mas e depois, quando você começou a...
R – (risos) Jogar bola era quase constante.
P/1 – Quando você entrou na juventude, o que vocês faziam pra se divertir?
R – Era muito jogar bola, empinar pipa, era... Eu tive a oportunidade, apesar de todas as dificuldades, meus pais foram muito, muito presentes, sempre me permitiram estudar e brincar, então isso foi uma grande felicidade porque, como eu podia, eu só precisava ter prioridade em estudar, eles cobravam muito que eu estudasse, então eu estudava e podia brincar, então brincava, saía, andava muito.
P/1 – Mas quando você foi ficando maior, 14, 15, 16 anos, como é que vocês se divertiam na adolescência?
R – Isso, daí começam os primeiros namoricos, os interesses, as primeiras paixonites, e já é uma virada próxima pra entrar pro Ensino Médio, né? Então nessa época, eu lembro, assim, como o meu pai tinha essa proximidade com o mundo industrial, aí ele falava muito de Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], por exemplo, falava muito pra mim de Senai, Senai. Até que eu fui uma vez conversar com uma professora, perguntar pra ela, né, de possibilidades, de cursinhos, e aí ela falou que tinha a escola técnica, né, as ETECs [Escola Técnica Estadual], tinha o Senai, e aí eu fui me inscrever num Senai, fui me inscrever no Senai e eu gostava de estudar, né? E aí quando eu fui fazer então essa provinha, então eu me dediquei muito a estudar pra essa prova, tomava gosto, fiquei estudando, estudando, brincava, jogava bola com os colegas, tal, saía à noite, né? Meus pais deixavam eu sair à noite, naquelas, mas deixavam (risos), às vezes a gente, né, falava que ia do lado de casa, mas estava aqui embaixo na praça (risos). E aí comecei a estudar, acabei sendo aprovado pro Senai, aí foi um momento que me deslocou um pouquinho daqui, assim, brevemente, né, que aí eu comecei a... Estudava no Gavião ainda cursando o Ensino Médio à noite, mas durante o dia eu ia pra... Me deslocava pra Vila Leopoldina, pra estudar lá numa unidade do Senai, o Mariano Ferraz, onde eu fiz um curso de Aprendizagem Industrial em Eletricista de Manutenção.
P/1 – Você gostou?
R – Durante dois anos. Foi muito bom, foi muito bom, assim. Tenho umas, hoje em dia, né, as minhas críticas a esse modelo do Senai, tem as suas... Também os seu méritos, né, esse sistema, mas também tem as suas críticas. Mas pra mim, pessoalmente, foi um momento muito bom, foi uma ampliação de repertório, o mundo cresceu mais um pouco, essa coisa de começar a se deslocar pra fora do bairro cotidianamente, muitas amizades também, foi um momento de muitas descobertas, muitas experiências (risos), de andar, começar a andar pela cidade, um momento a gente andava pelo bairro, outro momento...
P/2 – Contando essa história desse aprendizado, mais a frente, o que aconteceu com esse aprendizado? Você começou a trabalhar na área ou se aprofundou mais nos estudos?
R – Daí foram dois anos, né, ali no Ensino Médio, fazendo Senai, esse curso de Aprendizagem Industrial, daí terminando esse curso, eu comecei a fazer curso técnico também nessa mesma unidade. Prestei o vestibulinho, fui aprovado e comecei a fazer um técnico em Manutenção de Equipamentos Biomédicos e era nessa mesma unidade do Senai da Vila Leopoldina, então eu fiquei quatro anos indo nesse Senai da Vila Leopoldina.
P/1 – Quatro anos?
R – É.
P/1 – Era curso técnico equivalente ao Ensino Médio?
R – Nessa época, já tinha... É, isso, precisa ter o Médio, já, na verdade, né, já estava saindo da escola. E aí, nesse momento, eu passo a ficar muitos momentos do dia lá, assim, no Senai, que aí eu passo a ser um... Eu consegui uma... Uma ajuda de custo, uma bolsa e aí eu comecei a fazer algumas tarefas lá dentro do Senai, e me dedicava muito a estudar, né? E aí, no segundo semestre desse técnico, eu fui trabalhar no Hospital do Coração, o HCor, estava com 18 anos, daí fui trabalhar no HCor e aí foi um novo marco de realidade, choque de realidade, de, né, novo repertório, contato, que aí é um hospital de alto padrão, né? E eu fui trabalhar precisamente dentro da UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e do Centro Cirúrgico, então eu comecei como estagiário e, nesse momento, eu conheci a Quilombaque. (risos)
P/2 – (risos) Com quantos anos você conheceu a Quilombaque?
R – Era... A Quilombaque eu conheci até um pouquinho antes, eu estava com 17 quando eu conheci a Quilombaque, né?
P/2 – E como foi esse conhecimento? Como você soube da proposta? Em que te interessou a ir buscar esse contato?
R – Como foi? Eu sempre gostei de um fuzuê, eu sempre gostei de um batuque, né, sempre estava junto de pagode, samba, gostava de ficar batucando, fazendo som, aí depois tive uma banda de reggae também, né? Então eu estava muito, e aí tendo esses horizontes de estar saindo do bairro, tendo contato com outros lugares, pessoas, então eu estava muito sensível a algumas coisas. E aí um dia eu estava numa... Numa... Na que já foi a maior festa junina da região, né, que era a festa junina do Gavião, da escola, do Gavião, aí eu estava lá um dia, lá na festa junina, aí de repente eu ouço uns batuques chegando, assim, uma coisa pesada, coisa visceral, doida. Aí quando eu olho aquele talabarte entrando, e aí aquele talabarte, um cara careca, com um baita de um barbão (risos).
P/2 – (risos).
P/1 – Você sabe quem era? Soube o nome depois dessa pessoa?
R – Dessa pessoa? Depois eu fui saber, depois eu fui saber.
P/1 – Você lembra quem era?
R – Quem era? Era o senhor Cleiton. (risos)
P/2 – (risos)
R – Careca, barbudo, né? E aí eles entraram num cortejo de maracatu, e eu não lembro de ter visto algo daquilo, eu fiquei embasbacado, encanto, eu falei: “Caracoles, mano! Que isso? Da onde veio isso aí? Que que é isso, cara?”. Aí beleza, depois, nesse dia, eles avisaram aonde ficava essa primeira sede da Quilombaque, lá na casa dos meninos, na casa da mãe dos meninos, e aí falou que tinha eventos, tinha encontros, e aí, na primeira oportunidade que eu fiquei sabendo, fui lá conhecer. Daí comecei a frequentar o espaço, né, dos eventos que realizavam, que eram fantásticos...
P/1 – Fantásticos por quê?
R – Fantásticos no sentido de multiexpressões, assim, né, dança, gente de circo, teatro, debate de teor político, então era muito fértil, fiquei muito inclinado, muito atraído, aquilo tudo lá.
P/1 – Você lembra de algum debate que você tenha estado, o assunto?
R – Presenciado? Um assunto? Ó, algo que mais me marcou foi algo de expressão artística, foi o... Mas é politizado ao mesmo tempo, né?
P/1 – Sim.
R – Que foi quando a trupe, não, o grupo de teatro daqui, o Pandora, fez o espetáculo baseado na obra do Machado de Assis, lá da... A Igreja do Diabo, e eu achei muito marcante quando eu fui lá e vi esse espetáculo, né? Aí tinha o Valmir, nosso parceiro, encenando, ali eu me encantei com o Valmir, sou fã do Valmir até hoje, enquanto um baita ator e ali já me encantei com ele, eu achei muito marcante. Teve uma... Teve um cine, né, o cine na televisãozinha. (risos)
P/2 – Cine Quilombo.
R – Cine Quilombo, lá na televisãozinha.
P/1 – Lá mesmo na casa?
R – Lá mesmo, e aí foi um momento de formação, eu lembro que o Dedê, nessa ocasião que eu estava, o Cléber Dedê, ele puxou a formação e na época trouxe um documentário, estava falando acerca da tentativa de golpe na Venezuela, quando tentaram, né, derrubar o Governo Chávez e aí a gente conversando, né? E na sequência aconteceu a chamada pra percussão, a oficina de percussão, um dia eu estava subindo, voltando pra casa, no Recanto, na entrada do Recanto, aí eu olhei pro poste, aí: “Oficina de percussão, Quilombaque”, aí eu falei: “Caracoles, já estou lá”, foi eu e a minha irmã. Aí foi eu e a minha irmã lá conhecer a Quilombaque, conhecer não, já tinha conhecido, mas minha irmã conhecer também, e aí começamos o processo da oficina de percussão, participar do processo da oficina de percussão lá, né, já, e aí isso era paralelo a essa minha entrada lá pra trabalhar no Hospital do Coração, né? E aí lá no Hospital do Coração estagiei durante um ano e aí fui efetivado no cargo e foi um momento também de muito enriquecimento, que é uma tecnologia muito de ponta, né, a tecnologia médica, é uma tecnologia, digamos, de guerra, é algo fenomenal, e um hospital de alto padrão, como é o Hospital do Coração, né, então eu tive contato com tecnologias, assim, fantásticas.
P/1 – E você fazia o que lá de trabalho?
R – Eu fazia manutenção de equipamentos e muito suporte e treinamento pra usuários, principalmente suporte em situações de campo mesmo, e apoio técnico, né, durante... Nos procedimentos que a equipe clínica realizava com os pacientes, então nós éramos responsáveis pelo equipamento e o suporte de uso do equipamento. Então era... Foi muito interessante, assim, ter essa proximidade com o corpo médico, o corpo de enfermagem e dentro da linguagem deles, ali também ressignificou pra mim a morte, comecei a ver tantas mortes diariamente, tantas pessoas que vem e que vão, né, ali também foi um momento de... Rolou um chaveamento de ressignificação com a morte, assim, já ela se naturalizou mais pra mim, já não ficou com aquele assombro, né?
P/1 – Você disse que dentro da UTI você fazia o trabalho?
R – Isso, né, na UTI e no Centro Cirúrgico também. (pausa)
P/1 – Você está lembrando de alguma coisa?
R – É, é assim, quando me vem, eu lembro do Hospital do Coração, eu lembro da... Olha que coisa, né? Eu lembro de respiração, por quê? Eu trabalhava muito com o respirador mecânico, né, equipamentos que fazem a respiração, função pulmonar, enquanto o paciente está em anestesia, no modo assistido, e aí eu lembro assim, muito, isso ficou muito, eu carrego pra vida hoje em dia: quando eu via as pessoas, quando elas voltavam da cirurgia, né, quando elas voltavam, despertavam da anestesia geral, muitas vezes a pessoa acordava assustada, ela esquece, dá um lapso nela, ela esquece aonde ela está, e às vezes ela fica muito assustada, começa a se bater. E aí muitas vezes vai um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem vinha do lado e falava: “Não, pessoa, Fulano, você está no Hospital do Coração, você fez o procedimento tal, tal, tal, foi tudo bem, né, respira, respira, está tudo bem, respira”, aí a pessoa começava a respirar, aí acalmava. Então essa coisa assim, lá, quando eu trabalhei, assim, de todo o contato de muita tecnologia, de muitas situações, muita pressão, muita pressão, colocavam muita pressão sobre a gente, mas essa coisa da respiração, ali a respiração tomou conta da minha vida. (risos)
P/2 – (risos).
R – Né? A dimensão de qual a importância de respirar. (risos) É muito intenso esse momento ali, fiquei seis anos lá.
P/1 – Sei anos?
R – É.
P/1 – Eu vou fazer uma relação com os tambores.
R – Hum.
P/1 – Quando você começou a tocar os tambores, ou o tambor, você lembra da sensação?
R – Lembro.
P/1 – Dá pra descrever? Você já tinha tocado tambor?
R – Não os ritmos que eles trabalhavam, né, que eles trouxeram, eu trabalhava mais com samba, pagode, eles trouxeram mais o regional, vindo do Nordeste, a influência nordestina, maracatu, samba-reggae, baião. Então aquilo pra mim foi uma... Nossa, foi um baita chaveamento, assim, uma espiral que se abriu, que está até hoje assim, tomou conta da vida o tambor.
P/1 – Então o que é tocar o tambor? Assim, naquela época ou agora.
R – Naquela época foi encanto, foi profundo encanto, me apaixonei, aí só vivia atrás do tambor. (risos) Aonde tinha tambor eu estava atrás (risos) e tudo o que o tambor carrega consigo, da nossa ancestralidade cultural, enquanto matriz africana, indígena, né? Foi nesse momento que aí eu me debrucei sobre as minhas origens, comecei a investigar as minhas origens genealógicas, né, ancestrais, então dali em diante o tambor me acompanhava pra todo lugar. O tambor me dava autoestima de chegar nos lugares, né, de sempre ser um... Muitas vezes, né, eu era o único negro do lugar, então isso desde a infância, quando a gente é o único negro no lugar, a circunstância nos coloca a ser não negro, né? Então o tambor, ele me deu muita autoestima.
P/1 – O que é ser não negro? Eu posso ter a minha interpretação, mas fala você.
R – Ser não negro?
P/1 – É, o que você... Não sei se dá pra falar, você falou: “A gente começa a ser um não negro”. Dá pra falar o que seria esse jeito?
R – Dá, dá.
P/1 – Fala.
R – Ah, pensando a parte da estética, a parte da estética, tinha uma busca pela estética da mídia, do que a mídia coloca como estética, impõe como estética, como tem que se vestir, como tem que falar, como tem que se portar, né, até o beiço eu escondia. Eu lembro que na minha infância eu tinha uma coisa de esconder meu beiço, eu frisava o beiço assim nos lugares, dava aquela escondida no beiço, muitas vezes as pessoas perguntavam: “Por que o seu beiço é vermelho?”, né, aí às vezes eu dava aquela encrespada no beiço pra... Né? E aquela coisa de querer ficar invisível aonde chega, não querer...
P/1 – E o tambor, você falou...
R – E o tambor não, o tambor, ele traz muita autoestima porque ele traz vida, é pulso, é corpo, nos corporifica, então lembra que nós estamos aqui, que estamos aqui pra emanar, pra crescer, pra irradiar, então, a partir daí, a gente se conecta com as raízes e lembra que nós somos portadores de heranças valiosas.
P/2 – E depois desse conhecimento de identidade, que você assume, como foi o seu olhar pra o cotidiano, essa relação do negro assumido?
R – Daí começou um profundo estranhamento com tudo, do lugar aonde eu ia trabalhar, no Hospital do Coração, é super elitizado, né, então eu comecei a... Tudo que até o momento era normal pra mim, habitual, começou a rolar um profundo estranhamento nas relações a qual eu me via inserido, né?
P/1 – Por exemplo?
R – Por exemplo, o falar, de não poder... Aí hoje em dia, foi... Aí tem um outro elemento que vai engrossar esse caldo em torno da fala que é a academia, posteriormente, né? Mas a coisa de não poder falar com gíria, que é o que é mais comum pra nós na quebrada, né, utilizar termos que são muito recorrentes, né, ficar o tempo todo se policiando nesse sentido, né, se policiando.
P/1 – Almir, você fala que você foi buscar as suas raízes, conhecer mais das suas origens. Foi um movimento que foi só você que resolveu ou a Quilombaque incentivou? Como que foi esse processo?
R – Daí, quando eu encontro a Quilombaque, esse processo se dá, assim, me ofereceram ferramentas artísticas, né, expressões culturais, então vem essa questão de um empoderamento e da necessidade de valorizar e procurar buscar o conhecimento, né?
P/1 – Eu quis dizer, né, eu queria que você falasse mais, porque é importante a gente entender seu processo, você começou a ficar curioso, ir atrás ou você tinha, assim, uma direção pra fazer isso, um direcionamento, um estímulo?
R – Ó, a Quilombaque, ela... É difícil colocar em palavras.
P/1 – Pra você, como aconteceu? Não precisa, assim, como aconteceu, você contar, sabe?
R – Humhum. Eu estou tateando, tentando encontrar forma.
P/1 – Não tem pressa. Mas, assim, como que foi? Como é que você foi indo atrás dessa herança ou desses conhecimentos? Foi só com manifestação... Só não, que é bastante. Com as apresentações, com o que eles traziam de dança, música ou foi de que jeito? É isso que a gente queria que você falasse.
R – Então, eu fico tateando, procurando, porque falar desse processo é falar de muita sensibilidade, né? A Quilombaque até hoje, assim, ela traz essa coisa de mexer com o imaginário, então traz muitos elementos, então eu, pessoalmente, fiquei muito sensível a tudo, tudo, com os poros abertos a tudo, captando tudo, sabe? Então havia um programa de formação, como habitualmente tem em grupos mais vinculados a partidos, um programa de formação, aqui o programa é você vir, mergulhar nesse universo e ir se descobrindo, né? Então muitas janelas você abre nesse sentido, a sensibilidade, a sensibilidade é outra, torna-se outra, se afina.
P/1 – Quer perguntar?
P/2 – Quero, eu não sei, ah, não sei, porque o Almir aqui é... O que a gente... Eu não posso falar, porque eu vou entrar na história dele.
P/1 – Como é que você aprendia?
P/2 – E com tantas necessidades, né, sendo... Olhando até pelo bairro onde a gente mora.
P/1 – Então faz essa pergunta.
P/2 – Vivendo esse contexto que a gente vive, né?
P/1 – Isso, isso.
P/2 – Como você entende esse aprendizado em comunhão, né?
P/1 – Aí o “comunhão” quer induzir.
P/2 – Ai.
P/1 – (risos).
P/2 – É que vem do processo de mutirão.
P/1 – Ah, tá.
P/2 – Que ele trouxe, da construção de moradia.
P/1 – Então, espera aí, você fez várias perguntas, entendeu? Né?
P/2 – É, pode ser nesse sentido.
P/1 – Tem alguma relação do que você viveu aqui na Quilombaque com o que você viveu fora, ou no mutirão ou quando... Entendeu?
P/2 – Entendi, faz a relação.
P/1 – É. Qual relação que você... Existe alguma relação?
P/2 – Então pergunta agora. (risos) Então, falando sobre o aprendizado da Quilombaque, como você descreve esse aprendizado? Que até hoje a gente compartilha disso.
R – É, fazer essa conexão com a experiência do movimento de moradia, né? A partir do momento que eu me aproximei da Quilombaque, é justamente isso, foi onde eu identifiquei aquilo que era muito presente no movimento de moradia lá das ocupações no Recanto, do apoio mútuo, da solidariedade, do fazer, né, do fazer e depois a gente reflete, faz a reflexão e posteriormente aprende, né? Então essa coisa de fazer e ir aprendendo assim, em meio a escassez, uma escassez, assim, econômica, né, financeira, mas que começa... Que identifica muitas outras formas de riqueza, né, e de potencialidades, né?
P/1 – Por exemplo?
R – Então, quando nessa expressão da solidariedade, em fazer juntos, aí se desdobra em muitas coisas, a percussão mesmo, as oficinas, que era um convívio muito intenso, foram dois anos de convívio muito intenso, de muita troca, né? Era troca tanto do saber ali do tambor, mas aí eram pessoas que traziam as suas experiências pessoais e aí rolava a troca, né, novas conexões, novas pontes, então essa questão da troca, ela é um baita motor. É aí que, pra mim, assim, é a questão central pedagógica da Quilombaque, né, o olhar em torno da troca, do que a troca... De tudo o que a troca nos proporciona, troca entre pessoas.
P/2 – E essa experiência desses dois anos de oficina, como você define isso? Assim, na questão lá da escola, quebrando sua relação do aprendizado, mas indo, cada um conhecendo a vida do outro, assim, essa relação, porque tocava na escola, depois ia todo mundo lá pra sua casa. (risos)
R – É verdade.
P/2 – Toda essa relação, como você vê isso?
R – É verdade, nossa, é verdade! Que os instrumentos, né, durante um tempo ficavam guardados lá em casa, lá, e aí os meus pais também curtiram muito, meus pais também são bem bagunceiros, então eles curtiram bastante, bagunceiros no sentido de fazer fuzuê, alegria, né? E aí a gente ainda ensaiava lá, né, na escola, lá no Recanto, rolava as oficinas e depois a gente descia lá pra casa pra guardar os instrumentos, às vezes de lá já ia pra, né, pra algum evento, alguma atividade. Era um momento muito afetivo, muito afetivo, muito afetivo, de muita proximidade, muito calor.
P/1 – Depois disso que o Cleiton perguntou, eu queria perguntar outra coisa também. Você viveu tudo isso na Quilombaque, como que seria pra outros jovens, na escola tem uma convivência, na Quilombaque tem também uma convivência, como que seria essa... Qual seria, primeiro, essa diferença? Ou não tem diferença? Na escola, escola estadual, e tem uma convivência na Quilombaque, pensando dos jovens na escola e de vocês na Quilombaque, tem diferença? Não tem? Porque a escola é um lugar de aprender.
R – Humhum.
P/1 – E de conviver e aqui na Quilombaque também.
R – Humhum.
P/1 – Você já começou a falar um pouco, né, mas se desse pra você... Se existe essa diferença e qual a principal, entendeu?
R – Humhum.
P/1 – Dá pra falar?
R – Dá, dá. A escola, pensando na escola pública, na escola a qual eu experienciei aqui, essa escola, ela pode ser observada de pelo menos duas, de duas dimensões, né, na sua visão institucional, enquanto detentora e portadora do saber, do conhecimento, onde procura nos instruir, transmitir conhecimento, mas, ao mesmo tempo, dentro dessa escola, os estudantes vêm desse bairro periférico. Então a rua vai pra dentro da escola, então a relação entre os estudantes é a relação da rua, então também há muito, muito aprendizado, muita troca, muito saber, né? Então isso daí convive dentro do ambiente escolar, a coisa do saber da rua, porque todo mundo está na rua e daqui a pouco... A gente se encontra andando pela rua, no bairro, mas daqui a pouco a gente está lá dentro da escola, então, nesse caso, ainda, a rua, ela é ainda muito forte dentro da escola, os códigos da rua. Isso daí, pra mim, essa dicotomia, ela é mais... Ela se tornou mais presente, assim, pra mim o exemplo melhor é quando eu ingressei pra o Ensino Superior, muito estimulado através desse movimento da Quilombaque, quando eu acessei o Ensino Superior, que aí sim, né, já não é aquele lugar aonde a rua adentra também nesse espaço de conhecimento, né?
P/1 – Por que não você acha?
R – Não, por razões de escassez de oportunidades, né?
P/1 – Não é mais aquele ambiente tinha aqui onde você mora?
R – Sim, já não encontra as mesmas pessoas, que vêm da onde eu venho, né, são bem já um número menor, né, já é outro circuito de comportamentos, né, de normas, de relações, é muito impessoal.
P/1 – Almir, então vamos voltar pra escola pública ainda, antes de chegar no Ensino Superior. Você tem uma convivência lá, que tem um aprendizado, porque as pessoas continuam trocando, entre os alunos, aqui também tem essa troca. Em relação aos formadores, aos educadores, dá pra você dizer então o que acontece entre a escola e a Quilombaque?
R – Nessa perspectiva, a escola tinha educadores, na minha época, né, professores, que alguns poucos eram sensíveis e sintonizados ao que vem da rua, alguns poucos eram muito sintonizados, alguns poucos, a maioria não, muito distante da linguagem, de como conseguir uma aproximação. Aí aqui na Quilombaque não, os educadores na Quilombaque já eram educadores que estavam aprendendo (risos), eram... Eram educadores bem criativos e, como educadores que estavam aprendendo, educadores bastante irresponsáveis também, de um lado, assim, porque era muita aventura também, ao mesmo tempo, uma criação, né? Mas não era uma irresponsabilidade no sentido de... Era mais uma irresponsabilidade no sentido de... Pela jovialidade mesmo, uma mistura de um pouco de imaturidade também em alguns elementos. Mas tudo isso era motor também de serem muito abertos, muito criativos, conhecerem muito a fundo os meandros do nosso dia a dia, do nosso cotidiano. Então esse é o aspecto que eu identifico nos educadores e nessa educação que a Quilombaque me proporcionou.
P/2 – Indo pra questão do Ensino Superior, acho que tem um processo antes, que é o momento do cursinho, como você descreve esse momento de cursinho? Porque acho que... Não vai encaixar nada. (risos)
P/1 – Tá ótimo.
R – Em torno dessa questão do conhecimento que a Quilombaque sempre estimulando bastante a gente, a valorizar, e a busca pelo conhecimento e valorizar os conhecimentos que nós possuímos, e também acessar outros códigos de informação. Aí eu fui pro cursinho, fazer cursinho pré-vestibular, era um cursinho até de caráter popular, lá no centro da cidade, ali perto, próximo à Sé, era um cursinho que já foi mantido pelo CA [Centro Acadêmico] XI de Agosto do Largo São Francisco. E foi uma vivência também muito rica porque aí já encontra de vários cantos da cidade nessa busca de acessar o Ensino Superior, então foi um momento também de muita efervescência e a Quilombaque acontecendo simultaneamente. O bacana é que tudo isso que vai se sucedendo, a Quilombaque era... Ela estava... Ela era meio que o meu... Um porto seguro e um resguardo por toda essa proximidade afetiva, então eu saía pro mundo, saí pro mundo, assim, mas muito acalentado, sempre tem pra onde ir, um ninho, né? Então era nesse sentido que ia pro cursinho e a partir do cursinho, depois o acesso ao Ensino Superior e até a escolha, porque, como eu venho de uma formação ali técnica, eu tinha... Já tinha em mente de fazer Engenharia, né, tinha uma coisa de fazer Engenharia, mas aí, com... Ali próximo... Dentro do processo do cursinho, aí eu me apaixonei pela Humanas, fui tomado pela Humanas. (risos)
P/1 – E escolheu o que depois?
R – Fui fazer Geografia. (risos)
P/1 – E conseguiu acessar?
R – Consegui acessar, em... Entrei na turma de 2009.
P/1 – Qual faculdade?
R – No Instituto Federal. Tinha passado pra História também, na Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], aí Geografia ou História, aí comecei a frequentar o curso de Geografia, fui gostando, e a História ia demandar mais esforço pra conseguir também chegar lá na Unifesp, lá no Campus de Pimentas, em Guarulhos, fui lá algumas vezes e era... A coisa ia ser mais difícil. E ainda bem, porque eu... Que bom que eu fui pra Geografia! (risos)
P/1 – Por que você diz: “Que bom”?
R – Que bom, ah, assim, as disciplinas todas são irmãs, né?
P/1 – Ah, tá.
R – Mas essa coisa da Geografia da relação do ser humano com seu entorno, né, da sociedade com o espaço, me fascina.
P/1 – Almir, você está contando bastante da sua experiência, claro, e a gente está perguntando disso mesmo. Você tem uma observação sobre outros jovens em relação à Quilombaque? Você pode falar alguma coisa sobre isso? Se você observa alguma coisa em relação aos jovens daqui, de onde você mora, em relação à Quilombaque. O que eles falam? Se eles conhecem...
R – Tem os jovens e as pessoas que passaram por aqui, experienciaram, vivenciaram coisas aqui, e eu identifico uma fala comum de que todos, de alguma maneira, foram muito tocados profundamente, de sentir uma transformação pessoal muito intensa. Tem os jovens que conhecem, mas não têm muita aproximação, mas conhecem, e são muitos, muitos, muitos se aproximam, mas é muito... A periferia é muito grande ao mesmo tempo, sempre tem aqueles que só conhecem ainda de longe. Mas acho que em Perus, você anda por Perus e pergunta pra um jovem da Quilombaque, rapidamente eles conseguem referenciar.
P/1 – Dá pra dizer assim...
R – O que eles identificam?
P/1 – É, aqueles que não são tão próximos, o que é a Quilombaque pra eles? Dá pra falar? Você tem alguma impressão sobre isso?
R – Dá sim, dá.
P/1 – Quem não conhece, entendeu? Quem só...
R – Eu escuto muito, assim, aquelas falas em torno da... “Ah, aquela turma do pessoal que faz eventos lá na praça”, “Ah, aquele pessoal que passava com os tambores aqui”, porque teve uma época que a gente fez bastantes cortejos andando pelo bairro todo, cada um falando com a sua linguagem, mas muito essa questão da arte e da cultura na rua, essa coisa assim, que é o que mais vem à tona nas falas, né? Trazem... Alguns... Cada um traz a sua memória em torno de evento, determinado, quem observa mais evento quando é do hip-hop ou quando é dos tambores ou quando foi alguma coisa relativa ao teatro ou ao circo, mas sempre essa impressão da Quilombaque na rua, isso é muito forte, assim, nos testemunhos.
P/2 – Pegando esse gancho da rua, o que é o Sarau da Quilo pra você?
R – (risos) Sarau de Quilo, Sarau de Quilo, Sarau de Quilo foi... É um encontro, pra mim, pessoalmente, é um encontro com a poesia aqui na Quilombaque. Pra falar do Sarau de Quilo, eu preciso fazer mais uma conexão, voltar a falar no Ensino Superior, né, da experiência durante o Ensino Superior, que aí vem essa questão desse... Novamente, daquele ensino bancário, da transmissão. A academia ainda tem muito disso, né? Então eu ia pra esse espaço e aí foi um momento que eu entrei numa... Um pouco de suspensão com meu... Com meu envolvimento mais diário aqui, né, pra poder dar conta dos estudos, mas nunca um desligamento, sempre a proximidade constante, mesmo que não diária. Então aqui me resguardava do que eu encontrava por lá e aí quando vem pra falar do Sarau de Quilo, o Sarau de Quilo começou aqui na biblioteca, eram encontros às sextas-feiras, uma coisa bem espontânea, mas havia aquela dimensão impressionante do que que se vinha de conhecimento pra cá, né, as pessoas, professor, culturalista, músico, poeta, pessoas diversas... Então, de uma... A partir da poesia, mas, nossa, quanta coisa girava em torno daquilo, né? Então, quando eu olhava pra isso e olhava pra onde eu estava na academia, eu falava: “Caracoles, cara, aqui, esse espaço está tremendamente equivocado”, então isso era muito pertinente pra mim, assim, eu reconheço, o conhecimento que a academia acumula, que é um conhecimento humano, não é um conhecimento só da academia. A academia, ela também se apropriou de muito conhecimento e vem fazendo esse acúmulo, mas, a partir de expressões como a percussão e o Sarau de Quilo, ficava cada vez mais pertinente em mim o quanto esses espaços estão equivocados em relação a conhecimento, lidar com conhecimento, lidar com pessoas.
P/1 – Por que você acha que é equivocado, Almir?
R – Eu falo equivocado nesse sentido de pouco reconhecer as capacidades, as potencialidades que cada pessoa possui e mesmo podem ser despertadas, reveladas pra si mesmas. Ainda reproduz muito a lógica da transmissão do ensino, uma relação muito hierarquizada, de concentração de poder, de prestígio em torno de determinado conhecimento, então são relações muito doentias, a gente identifica dentro da... Eu, pelo menos, identifico dentro do ambiente assim, acadêmico, né? Há uma produção de conhecimento, porque lá é um espaço de produção de conhecimento, sim, mas muito corroído por essas relações doentias, que se dão em torno de relações de poder, basicamente.
P/1 – Almir, você disse que a Quilombaque fazia os cortejos, aí você falou: “A gente já fez muito”, conta um pouco dessas atividades de vocês na cidade, aqui em Perus e na cidade também, algumas situações, algumas atividades, conta pra gente, que marcou bastante.
R – Que marcou bastante? Nossa! Pra começar, do cortejo, depois tem o sarau novamente, mas os cortejos... Dos cortejos, era fantástico quando a gente saía nas ruas e crianças vinham atrás da gente, atrás do batuque, as pessoas se deleitavam, tem muito nordestino aqui no bairro, então é pulsante pros nordestinos um tambor batendo, a musicalidade, né? Era, nossa, isso era uma das coisas que mais me deliciavam, era de ver pessoas mais velhas, uma senhora, dona de casa, ali, aquela senhora negra, ver aquele senhor também acompanhando o cortejo, às vezes ele com a bengalinha ali indo atrás do cortejo. Eu fico até com dificuldade de encontrar palavras pra o que é esse encontro dessas pessoas, né? Daí tem a experiência da Quilo, do Sarau de Quilo, também uma experiência que irradia. Eu preciso trazer à memória um caso, a nossa experiência de quando pudemos ir pra Buenos Aires com outros coletivos de sarau da cidade.
P/1 – Vocês foram?
R – Fomos.
P/1 – Como que foi?
R – Pra mim foi uma experiência muito enriquecedora, menino aqui do Recanto, da quebrada, eu nunca tinha pego um avião, viajado de avião, né? Mas, pra além disso, poder ter tido a oportunidade de chegar lá em Buenos Aires, passarmos por espaços também privilegiados, né, pra algumas classes, mas também ter tido a oportunidade da gente caminhar pelas ruas de Buenos Aires e ter entrado em contato com pessoas que também vivem mais próximo da rua como nós e encontrar tanta familiaridade, desde o futebol na praça lá, na principal avenida. E encontrar esses pontos comuns entre as pessoas é muito bom, são coisas simples, não são coisas que carecem de muita... É só essa questão de estar aberto pra se encontrar, só, com o outro.
P/2 – Nesse olhar da percussão, né, desse aprendizado e hoje ser o educador que passa esse conhecimento, como é pra você entender você adquiriu o conhecimento do tocar, digerir e passar pro outro através do seu olhar? Como é isso hoje pra você aqui na Quilombaque?
R – Tinha algo que os educadores aqui da Quilombaque, nossos parceiros lá na época da oficina, falavam, que era assim: “A ideia...”, o Jaime mesmo, a Tâmara, falavam muito isso também de que: “A ideia é que, você consiga aqui, ó, vem, aprende com a gente e multiplica lá no Recanto, leva lá e toca também, a gente quer isso, essa coisa de multiplicar o saber”, né? E isso daí eu carrego, muito forte, assim, comigo, né? A Quilombaque... Eu tenho uma fala, que eu falo que eu sou cria da Quilombaque, né, e a Quilombaque me ofereceu muito, assim, então hoje em dia eu procuro, dentro das minhas possibilidades, oferecer o máximo possível de experiências que eu tive contato, de saberes acumulados, de continuar essa multiplicação do saber.
P/1 – Você faz isso aqui no prédio, aqui nesse espaço ou você faz fora daqui isso?
R – Em ambos, ambos, né? Me formei em Geografia, mas gosto mais de me referenciar, me declarar como arte-educador, então justamente pela necessidade, pela necessidade de uma ressignificação da educação formal e também pela necessidade de uma ressignificação em torno do que é a arte, né? Então a arte e a educação, pra mim, elas caminham lado a lado, eu me identifico como arte-educador. Então hoje participo de atividades aqui na Quilombaque como ministrando a oficina de percussão, participando do sarau, participando de outras frentes, em outras mais como um auxílio, mais como uma presença, um apoio, mas sempre procurando acompanhar, cada vez mais, assim, os processos. E fora também, porque esse saber, ele tem que estar sendo levado, tem que estar sendo dialogado com quem realmente precisa, nos lugares que realmente precisam chegar esses aportes.
P/1 – Você leva pra algum lugar daqui de Perus? Você faz alguma atividade assim fora daqui?
R – Sim.
P/1 – Conta então.
R – Ah, a Quilombaque, ela traz a ideia de valorizar pessoas, de valorizar parcerias, criar novas conexões, então as atividades que hoje em dia eu me situo são nesse sentido, né? Os parceiros da região aqui da quebrada, o território, desde a biblioteca, da gente conseguir conciliar atividades da biblioteca municipal, espaços que são administrados pela assistência social, então a gente tem essa proximidade, as escolas mesmo, com oficinas, dentro das escolas, né? Então esse caráter da educação enquanto desenvolvimento integral e dela estar em todo lugar, na rua, dentro de escola, em todo lugar.
P/1 – Você saiu daquele hospital e você foi trabalhar com alguma outra coisa ou já começou como arte-educador?
R – Saí do hospital, ganhava bem (risos), estava confortável economicamente, mas não era o que me movia, me fazia, me inflava, assim, me impulsionava. Daí fiz, o que pra alguns é uma doideira, saí do nada do hospital, não levei nada no bolso, tinha acabado de nascer meu primeiro filho, que eu tenho dois filhos, um menino e uma menina, um menino de seis, a menina de dois anos. E aí nasce o Miguel, meu filho, e aí o Miguel nasce e aí, após esse caminhar da vida, vem muito forte aquela ideia de que eu preciso me reeducar pra eu conseguir educar esse ser que chegou pra minha vida, então isso me fortaleceu muito de fazer essa migração de fazeres. Então eu saí do hospital e fui trabalhar como estagiário num museu de ciências, o Catavento Cultural, fiquei um ano, um pouco mais de um ano lá, né? Então depois tive a experiência com o ensino formal, fiquei dois anos trabalhando no ensino público do Estado de São Paulo, em escolas de áreas bem vulneráveis, a primeira lá no Rio Pequeno, a segunda aqui no Morro Doce, e que me trouxeram, me fortaleceram mais ainda essa ideia de que... Da onde o fazer artístico, calcado com a política, com a cultura, aonde é necessário que ele esteja circulando e o quanto esses espaços, eles ainda estão muito condicionados a esse ensino formal, muito condicionados. Nesses dois anos de experiência que eu tive, que eu pude, que são poucos, né, mas foram muito intensos, deu uma ponta do quanto o profissional de educação... Ele... Circunstâncias perversas vão tolhendo ele, assim, cotidianamente, a ponto de levar até a saúde embora mesmo, né? E aí então, após esses dois anos, eu venho mais ativamente em torno da educação popular, onde as parcerias vão desenhando os horizontes, e as possibilidades, caminhar com pessoas, ser pessoa, procurar ser gente todo dia, um exercício de procurar ser gente todo dia, não se esquecer de que eu sou gente, né, e de me relacionar com outras pessoas.
P/1 – E a sobrevivência com dois filhos nessa sua proposta de vida?
R – Nessa proposta de vida?
P/1 – Sobrevivência financeira.
R – Sobrevivência financeira, sim. Aí eu tenho que fazer dois aspectos, né?
P/1 – Tá bom, à vontade.
R – Um primeiro aspecto é um aspecto que eu vou referenciar, assim, a um âmbito talvez mais transcendentalista, por assim dizer. Cotidianamente, a gente é muito condicionado, os lugares nos condicionam bastante, o que a gente come, o que a gente pensa, o que a gente fala, as nossas ações, condicionam bastante. Eu tive uma feliz oportunidade, algumas oportunidades, de entrar em contato com pessoas mais vividas e que estão ativamente resguardando saberes tradicionais, ancestrais e que observam a materialidade com outros olhos, não através da sua frugalidade, da sua... Observa a matéria muito mais conectada com dados imateriais, (risos) que se reflete em valores humanos, né? Então que se conecta com uma dimensão de crenças e... Ah, não tem jeito, eu vou precisar dizer que o que é necessário não nos falta, é isso, eu vou falar isso mesmo, né?
P/1 – Certo.
R – O que é necessário não nos falta.
P/1 – E o outro aspecto?
R – E o outro aspecto é isso, o que é necessário não nos falta, se conecta diretamente com esse outro aspecto, né?
P/1 – Entendi.
R – Mas pra isso não basta estar sozinho, né, temos que estar juntos, que aí de fato o necessário não falta, né? Então, a partir desse preceito, o que vem me mantendo economicamente é a relação de parceria, de apoio mútuo com os camaradas da Quilombaque, os meus camaradas, meus parceiros, as parcerias.
P/1 – Sim. Você quer perguntar algo específico do trabalho de vocês.
P/2 – Trabalho?
P/1 – Acho que ele falou bastante.
P/2 – Eu acho que... Eu não sei, assim, fazer um fechamento mesmo do que foi isso pra você e como você vê futuramente a experiência da Quilombaque na passagem, assim, na contribuição de conhecimento. Essa experiência Quilombaque, que só quem vive isso sabe (risos), como você descreve, como você define isso e como você vê futuramente? Pra dar uma fechada.
R – Hoje em dia, os dias de hoje são dias... Está uma passagem muito estreita em todos os níveis, uma passagem muito estreita, relações muito perversas, muito violentas, é muita perversidade humana. Umas das referências que nós temos aqui na Quilombaque, Milton Santos, geógrafo, professor, o qual o Seu José Soró muito jogou a sementinha (risos) falando muito desse nome, e aí depois, quando a gente foi entrando em contato com as propostas desse mestre, você observa um mundo que gira em torno do dinheiro, o motor hoje é o dinheiro, tudo girando em torno do dinheiro e não em torno das pessoas, né? E a Quilombaque, ela vem de maneira muito criativa, muito resistente, exercitando essa inversão dessa mediação, de tornar as pessoas o centro, não o dinheiro, não o dinheiro como fim. Não quer dizer que o dinheiro não tem importância, mas o dinheiro como uma ferramenta, não como um fim a ser alcançado e mesmo assim uma ferramenta de um uso político, de pensar uma promoção, de bem-estar coletivo, né?
P/1 – O Cleiton falou pra você fazer um fechamento, até depois você pode falar do futuro, como você vê o futuro, mas eu ia perguntar até uma coisa antes.
P/2 – Ah, desculpa. (risos)
P/1 – Que também vai ser a última pergunta. Você vê um jeito de expandir mais ainda essa concepção, essa proposta da Quilombaque, aqui, pelo menos em Perus, pra esses jovens? Você falou que é muita gente, você consegue, assim, pensar uma estratégia ou vocês falam disso?
R – É isso que a Quilombaque, hoje em dia, vem debruçado, assim, debruçada ativamente.
P/1 – Então fala qual seria essa estratégia ou se vocês têm pensado nisso. Eu falei você, mas não é você, né?
R – É um coletivo, né, de pessoas.
P/1 – Isso. Vocês já falam disso um pouco?
R – Sim. É o que está mais presente hoje em dia, na nossa dinâmica, a gente observa pra o agora e mais adiante, dessa necessidade de... Quando a gente fala de, por exemplo, somos brasileiros, somos brasileiros, estamos sob o erige do estado nacional, pressupõe que deveria haver uma solidariedade nacionalista e não existe, isso, assim, é muito pouco, muito vinculado a pensar a Seleção Brasileira de Futebol, é um dos momentos, talvez, essa dimensão, um espectro dela se apresenta, no mais essa solidariedade nacional não existe. E as relações do capital, como se organiza a sociedade, também nos afastam dessa premente necessidade de solidariedade, que ela é humana, né? Então todo o plano, a visão de desenvolvimento local, sustentável, a partir de uma inclusão social, vem nesse sentido de encontrar frestas pra encontrar esse nexo da necessidade de nos articularmos coletivamente e onde cada um consiga trazer os seus, pra se dizer, os seus talentos, revelar os seus talentos, os seus dons, porque cada um tem o seu presente pra dar, né? Eu trago um presente, você traz outro, não é o mesmo presente, mas é um presente pra o coletivo, pra sociedade, né? Então eu identifico, em todo o escopo de ações, esse objetivo premente de conseguir acessar as pessoas a um nível aonde elas possam se acessar e perceber o quanto elas são importantes, a sua autoestima, e quanto elas podem fazer por si mesmas e pelo seu entorno.
P/1 – Quer falar mais?
P/2 – Eu acho que...
P/1 – Fechou, né? (risos)
P/2 – Fechou.
P/1 – Você quer falar alguma coisa, Almir, a gente terminou, que a gente não te perguntou, que você acha importante registrar? Que aí a gente já vai terminar. Alguma coisa que você queria falar e a gente não perguntou.
R – Alguma coisa que eu queira falar que vocês não perguntaram.
P/1 – É, ou da sua vida ou também da sua vida na Quilombaque.
R – (pausa) Eu gostaria de deixar algo. (pausa) Tá gravando, né?
P/1 – Tá gravando.
R – Então eu gostaria de... (silêncio) Era isso.
P/1 – Muito obrigada.
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