De vez em quando, passeando pelo passado, não resisto a escrever alguma crônica de memória.
Não sou saudosista nem tenho qualquer simpatia pela postura nostálgica e retrô.
Como tudo, a vida segue para frente.
Meu olhar para o passado é simplesmente uma busca por dar sentido ao presente, criticá-lo, elogiá-lo, rir dele, compreendê-lo.
Ontem à noite, coloquei para tocar o disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, lançado em 1972.
Enquanto ouvia as canções desse clássico da MPB, fiquei por algum tempo contemplando a capa, que estampa dois meninos muito parecidos com os cantores – um negro como Milton Nascimento e outro branco, a cara de Lô Borges.
Ambos estão sentados num chão de terra batida, numa paisagem interiorana e mesmo rural.
Logo atrás se vêem um mato, um grosso tronco de árvore e um fio de arame farpado que atravessa a cena.
Os garotos estão sujinhos, vestem roupas meio esfarrapadas e fazem pose de grandes parceiros de travessuras.
Um está descalço, e o outro, o negro, traz nos pés um indefectível e surrado Conga azul.
Esse calçado é que, como verdadeira madeleine, desencadeou em mim todo um processo proustiano de memória.
“Podomemórias”, algum aficcionado de neologismos poderia dizer.
Fui menino interiorano durante os anos 70 do século passado.
Recordo-me de que, como para toda a minha geração, três espécies de tênis compuseram a história de meus pés durante a infância: Conga, Kichute e Bamba.
Os três eram horrorosos mas baratos e duráveis.
Desapareceram no início dos anos 80, com o surgimento dos tênis aeróbicos, mais confortáveis, mais bonitos, com desenhos, cores e formas variadas, acessíveis e multiuso.
O Conga parecia um sapo.
Levíssimo, de borracha e lona, ambas finas e pouco resistentes.
Havia duas opções: ou todo branco ou azul com sol...Continuar leitura
De vez em quando, passeando pelo passado, não resisto a escrever alguma crônica de memória.
Não sou saudosista nem tenho qualquer simpatia pela postura nostálgica e retrô.
Como tudo, a vida segue para frente.
Meu olhar para o passado é simplesmente uma busca por dar sentido ao presente, criticá-lo, elogiá-lo, rir dele, compreendê-lo.
Ontem à noite, coloquei para tocar o disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, lançado em 1972.
Enquanto ouvia as canções desse clássico da MPB, fiquei por algum tempo contemplando a capa, que estampa dois meninos muito parecidos com os cantores – um negro como Milton Nascimento e outro branco, a cara de Lô Borges.
Ambos estão sentados num chão de terra batida, numa paisagem interiorana e mesmo rural.
Logo atrás se vêem um mato, um grosso tronco de árvore e um fio de arame farpado que atravessa a cena.
Os garotos estão sujinhos, vestem roupas meio esfarrapadas e fazem pose de grandes parceiros de travessuras.
Um está descalço, e o outro, o negro, traz nos pés um indefectível e surrado Conga azul.
Esse calçado é que, como verdadeira madeleine, desencadeou em mim todo um processo proustiano de memória.
“Podomemórias”, algum aficcionado de neologismos poderia dizer.
Fui menino interiorano durante os anos 70 do século passado.
Recordo-me de que, como para toda a minha geração, três espécies de tênis compuseram a história de meus pés durante a infância: Conga, Kichute e Bamba.
Os três eram horrorosos mas baratos e duráveis.
Desapareceram no início dos anos 80, com o surgimento dos tênis aeróbicos, mais confortáveis, mais bonitos, com desenhos, cores e formas variadas, acessíveis e multiuso.
O Conga parecia um sapo.
Levíssimo, de borracha e lona, ambas finas e pouco resistentes.
Havia duas opções: ou todo branco ou azul com sola e ponta branca.
Era o mais barato e mais ordinário dos três.
Usei-o bastante para passear, ir para a escola, jogar bola.
O Kichute, por sua vez, era todo preto, de lona mais grossa e resistente, sola e bico de borracha, grandes travas quadradas e longos cadarços com os quais se dava um laço logo acima do tornozelo ou uma volta por baixo da sola.
Havia quem cortasse os cadarços para pudessem ser amarrados normalmente.
E havia quem engraxasse as partes de borracha do calçado, para exibi-lo bem lustroso na escola.
Todo fechado, escuro e usado indiscriminadamente, não raro acumulava suor dos pés e passava a exalar um cheirinho pouco convidativo.
Duravam muito – um ano e meio a dois anos –, ainda que utilizado dia após dia para o futebol em campinhos de terra.
Já o Bamba era caracterizado como “monobloco”, já que sola, ponta e calcanhar compunham uma única peça de borracha branca, sem travas.
O resto também era feito de lona muito resistente.
Lembro que havia umas duas ou três variações de cores, mas o mais popular era o Bamba todo branco.
Machucava muito no início e levava algum tempo para amaciar.
Eram ótimos para o futebol de salão nas aulas de educação física, pois a ponta de borracha era dura e excelente para os chutes fortes de bico.
Se não me engano, era do Bamba uma propaganda de televisão em que um carro perdia os freios, e o motorista – calçado de Bamba, claro – freava o veículo com o pé esquerdo no chão, a poucos centímetros de um desfiladeiro
Quando se chegava na escola com algum desses tênis recém-comprados, usados ali pela primeira vez, quase todos os colegas vinham “estreá-lo”, ou seja, pisavam em cima deles e os sujavam.
E ai de quem reclamasse ou se indispusesse contra os que faziam isso.
Era derrubado no chão e vítima de um “bolinho”, quando todos os outros garotos saltavam-lhe em cima, formando sobre ele um amontoado humano.
Não só o tênis, mas toda roupa lhe ficava suja, além da possibilidade de alguns arranhões e hematomas.
Verdadeiros heróis da resistência, Conga, Kichute e Bamba suportavam até mesmo peladas no pátio de cimento da escola, na hora do recreio, com pedras, tampinhas de garrafa ou um fruto duro e redondo chamado lobeira, que nunca mais vi.
Fui um menino provinciano.
Não sei se nas cidades grandes os garotos da minha geração viveram essas mesmas experiências com esses calçados que hoje parecem ter existido não décadas atrás, mas há centenas de anos, tão completamente desaparecidos eles foram.
Os anos correram, vieram a adolescência e a idade adulta.
Outros calçados – mais bonitos, mais caros e menos duráveis – fizeram a história de meus pés.
Foram-se os calçados, ficaram os pés.
Assim como passou a cidade pequena de interior, vieram as metrópoles importantes, outros países, outras experiências, mais complexidade, os pesos da vida.
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Certa vez, conversando com um amigo paulistano num bar da avenida Paulista, este símbolo brasileiro do cosmopolitismo, disse-lhe que continuo sendo, para sempre, para meu bem e meu mal, apenas um menino do interior de Minas.
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